Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
08P3181
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: ARMÉNIO SOTTOMAYOR
Descritores: LEGITIMIDADE
ÓNUS DA PROVA
RESPONSABILIDADE CIVIL EMERGENTE DE CRIME
ACIDENTE DE VIAÇÃO
TRANSPORTE DE PASSAGEIROS
CONDUÇÃO SOB O EFEITO DE ÁLCOOL
NEXO DE CAUSALIDADE
NEGLIGÊNCIA
CONCORRÊNCIA DE CULPAS
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
Nº do Documento: SJ200902050031815
Data do Acordão: 02/05/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE
Sumário :
I - Conforme é jurisprudência pacífica a expressão «em conjunto» do n.º 2 do art. 496.º do CC significa que os herdeiros participam simultaneamente na titularidade do direito, pelo que devem propor a acção em litisconsórcio necessário activo.

II - Se a recorrente parte civil entende que há ilegitimidade da demandante por preterição de outros herdeiros na linha sucessória ou por desrespeito do litisconsórcio necessário activo, terá de alegar e de provar que a vítima, apesar de solteiro, tem algum filho ou que o pai ainda é vivo e que concorre juntamente com a mãe, não lhe bastando alegar que pode a vítima ter um filho ou que pode o pai ainda estar vivo, pois o ónus de provar a excepção dilatória cabe a quem a invocou (art. 516.º do CPC).

III -Mostram-se provados, entre outros, os seguintes factos:
- “o arguido MM conduzia o veículo ligeiro de mercadorias …, transportando … na caixa aberta, MS, a aqui vítima;
- o arguido insistiu com esta para que se acomodasse na cabine do veículo, o que aquela não quis;
-… o arguido conduzia com uma TAS de 1,01 g/l;
- ao entrar na … canada, o arguido fê-lo a uma velocidade inapropriada à inclinação da via o que fez com que o veículo ganhasse ainda mais velocidade (…) perdeu, então, o controlo do veículo que, a cerca de 100 m a 200 m do início da canada embateu num muro de pedra à direita da via, atento o sentido de marcha do veículo, e 30 m depois num muro de uma residência situada à esquerda da via, … provocando o capotamento do veículo sobre o lado direito;
- por força deste embate MS foi projectado para o solo, tendo sofrido (…) lesões que foram a causa directa da sua morte.

IV -O arguido é o principal responsável pela ocorrência do acidente, pois não só conduzia em estado de embriaguez, como imprimiu ao veículo uma velocidade tal que não lhe permitiu controlá-lo sem entrar em despiste, como ainda transportava um passageiro (a vítima) sem ser nos assentos apropriados e sem a colocação do cinto de segurança, infringindo o disposto nos arts. 81.º, n.ºs 1, 2, 3, e 5, al. b), 24.º, 25.º, als. c) e e), e 54.º, n.º 4, todos do CEst, sendo certo que a primeira infracção é considerada uma contra-ordenação muito grave [art. 146.º, al. j)].

V -
A lei estradal considera responsável pela contra-ordenação (no caso, o transporte de passageiros fora dos assentos do veículo), o respectivo condutor e não o passageiro – art. 135.º, n.º 3, al. a), do CEst.

VI -O passageiro que aceita ser transportado na caixa de carga de um veículo de mercadorias sabe que está a colocar-se numa situação de enorme risco para a sua própria integridade física, mesmo que não haja qualquer acidente, pois um ressalto do veículo na estrada pode propiciar, em pleno andamento, a sua projecção ao solo.

VII - A vítima também actuou com negligência, pois não agiu com a prudência de um homem médio, colocado na mesma situação e com o mesmo grau de conhecimentos – art. 487.º, n.º 2, do CC.

VIII - A culpa da vítima, assim estabelecida, foi causal, não quanto à produção do acidente, este da inteira responsabilidade do condutor do veículo, mas em relação à produção dos danos indemnizáveis, pois se fosse sentado no assento próprio do veículo, com o cinto de segurança colocado, como era seu dever e como era dever também do condutor do veículo, poderia, apesar do acidente, nada ter sofrido ou muito menos teria sofrido.

IX -Na produção dos danos indemnizáveis é, pois, a vítima parcialmente responsável conjuntamente com o condutor do veículo, embora em menor grau do que este, pelo que, para o efeito de repartição de culpas (art. 570.º, n.º 1, do CC), atribui-se 80 % de responsabilidade ao condutor e 20 % à vítima.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

1. No âmbito do processo n.º 48/03.3PCSRQ do Tribunal de São Roque do Pico, onde se procedeu ao julgamento criminal do arguido AA por crime de homicídio com negligência grosseira, p. e p. pelos n.ºs 1 e 2 do art. 137. º do Código Penal, a demandante BB deduziu pedido de indemnização civil contra a demandada “C... de S... A..., S.A.” pedindo a condenação desta a pagar-lhe a quantia total de €70.000,00 (setenta mil euros), acrescida de juros de mora à taxa legal, desde a data da sentença e até integral pagamento, sendo € 40.000,00 pelo dano morte, €20.000,00 por danos não patrimoniais sofridos pela vítima e € 10.000,00 por danos não patrimoniais sofridos pela demandante, com os fundamentos constantes de fls. 104 a 108.

Após audiência e por sentença de 21 de Dezembro de 2007, foi, para além do mais, julgado parcialmente procedente o pedido de indemnização e, em consequência, condenada a demandada C... de S... A..., S.A., a pagar à demandante a quantia total de € 46.000,00 (quarenta e seis mil euros) a título de indemnização por danos não patrimoniais, sendo € 30.000,00 pelo dano morte (a favor da demandante, sem prejuízo de eventual direito de regresso de outros herdeiros quanto às respectivas quotas-partes), € 6.000,00 a título de danos não patrimoniais sofridos pela vítima (a favor da demandante, sem prejuízo de eventual direito de regresso de outros herdeiros quanto às respectivas quotas-partes) e € 10.000,00 a título de danos não patrimoniais sofridos pela demandante.
Da sentença recorreu a demandada para o Tribunal da Relação de Lisboa, mas, por acórdão de 5 de Junho de 2008, foi negado provimento ao recurso.

Desse acórdão da Relação recorre a demandada, ainda inconformada, para o Supremo Tribunal de Justiça e, da sua fundamentação, concluiu o seguinte:

1. A ora Recorrente deduziu, em sede de contestação ao pedido de indemnização cível apresentado, uma excepção dilatória de ilegitimidade da ora Recorrida;

2. O juiz de 1ª Instância nunca conheceu em momento algum, estando a isso obrigado, desta excepção de ilegitimidade, cometendo, desta forma, uma omissão de pronúncia, sendo por tal nula a sentença proferida, nos termos conjugados dos artigos 668°, n.º 1, alínea d), 660°, 494°, alínea e), 493° e 495°, todos do CPC;

3. Tendo esta nulidade sido arguida em sede de recurso para o Tribunal da Relação, foi decretado improcedente o recurso quanto a esta parte;

4. O Acórdão ora Recorrido violou assim as referidas leis processuais, nos termos do artigo 722°, n.º 1 CPC;

5. De qualquer forma, da sentença de 1ª Instância, e bem assim, do Acórdão de que se recorre não resulta que o falecido não tivesse outros herdeiros, mormente legitimários, nos termos do artigo 2157° CC;

6. Não se fez prova em 1ª Instância que o falecido não tivesse filhos ou que o seu pai já tivesse falecido;

7. É, por isso, ilegítima a intervenção da ora Recorrida nos presentes autos, porquanto o direito à indemnização pelos danos decorrentes da morte da vítima tem de ser exercido conjuntamente por todos os herdeiros da mesma, configurando a sua intervenção uma situação de litisconsórcio necessário passivo, nos termos do artigo 496°, n.º 2 CC;

8. É o que resulta da expressão "em conjunto", aposta no referido preceito legal;

9. Não se admite que a sentença de 1ª Instância, confirmada na íntegra pelo Acórdão de que se recorre, venha resolver esta questão determinando a distribuição proporcional dos montantes indemnizatórios pelos herdeiros que eventualmente surjam;

10. Porquanto a decisão proferida não produz efeitos quanto a terceiros;

11. Ao confirmar a sentença no que respeita a esta parte, o Acórdão de, que ora se recorre violou o artigo 496°, n.º 2, CC;

12. De qualquer forma, não há lugar ao pagamento de qualquer indemnização, porquanto a morte da malograda vítima resultou directamente de um facto culposo da mesma, nos termos do artigo 570°, n.º 1, CC;

13. De facto, o condutor do veículo sinistrado ordenou ao malogrado AA que viajasse na cabine do veículo, onde ele próprio seguiria acompanhado de outra pessoa, tendo sido aquele que insistiu em viajar na caixa aberta do veículo;

14. Não fora o facto de o malogrado AA viajar, por sua iniciativa, na caixa do veículo, e a sua morte não se teria verificado;

15. As lesões sofridas pela vítima que conduziram à sua morte são consequência directa do embate da mesma no solo, o que só aconteceu por seguir na caixa aberta;

16. Com a sua conduta, o sinistrado violou culposamente o artigo 54°, n.º 4 do Código da Estrada, o que comprometeu irremediavelmente a sua segurança;

17. O sinistrado, ao actuar da forma descrita sabia que estava a violar uma norma estradal e de cuidado básico, conformando-se, assim, com o eventual resultado que adviesse dos seus actos;

18. O sinistrado agiu com elevado grau de inobservância do dever objectivo de cuidado, sendo previsível a verificação do perigo e dano, configurando a actuação do mesmo uma omissão fortemente indesculpável das precauções ou cautelas mais elementares;

19. Ao sinistrado é imputável toda a culpa na produção do acidente, pelo que não são devidos quaisquer montantes, a título de indemnização;

20. Ao não atender ao recurso desta parte, o Acórdão de que ora se recorre violou o artigo 570° CC;

21. As indemnizações atribuídas a título de dano morte e pelo sofrimento da vítima devem ser excluídas, porquanto a mesma contribuiu de forma decisiva para a verificação da sua própria morte (570° CC);

22. Por outro lado, nada nos autos indica o nível de sofrimento do “de cujus”, nem se provou que o mesmo tivesse tido qualquer sofrimento ou dores, tanto que o mais usual nestes casos é a vítima entrar num estado comatoso, que não lhe permite aperceber-se do acidente sequer;

23. Ao não adequar os montante indemnizatórios fixados pela sentença proferida em 1ª Instância, o Acórdão de que se recorre violou o artigo 570° CC;

24. Quanto ao montante atribuído a título de danos morais da ora Recorrida, deve o mesmo ser reduzido em sede deste recurso, porquanto desadequado à jurisprudência que se tem vindo a praticar em casos semelhantes;

25. E por a Recorrida não manter com o sinistrado qualquer relação de proximidade, nem sequer morando com o mesmo;

26. Ao não reduzir o montante fixado pela 1ª Instância quanto a esta indemnização, o Acórdão recorrido violou o disposto no artigo 496°, n.º 3, CC.

A demandante não respondeu ao recurso.

Não tendo sido requerida audiência, foram colhidos os vistos e realizada conferência com o formalismo legal.

FACTOS PROVADOS

1. No dia 23 de Julho de 2003, pelas 18 h 05 m, na canada , CC,em Lajes do Pico, no sentido descendente, AA conduzia o veículo ligeiro de mercadorias de matrícula ...-...-..., transportando no interior da cabine, ao seu lado direito, BB e no exterior, na caixa aberta, DD.
2. AAinsistiu com DD para que este se acomodasse na cabine do veículo, o que aquele não quis.
3. Nas circunstâncias de tempo e lugar referidas em 1., o arguido conduzia com uma T.A.S. de 1,01 g/l.
4. A via em causa descreve uma descida acentuada, tem a largura total de 3,20 metros, situando-se dentro de uma localidade.
5. O tempo estava bom e o piso estava seco e, consequentemente, com boas condições de aderência, sendo o arguido conhecedor da via em questão.
6. Ao entrar na referida canada referida em 1., o arguido fê-lo a uma velocidade inapropriada à inclinação da via o que fez com que o veículo ganhasse ainda mais velocidade.
7. O arguido perdeu, então, o controlo do veículo que, a cerca de 100 m a 200 m do início da canada embateu num muro de pedra à direita da via, atento o sentido de marcha do veículo, e 30 m depois num muro de uma residência situada à esquerda da via, atento o mesmo sentido de marcha, provocando o capotamento do veículo sobre o lado direito.
8. Por força deste embate DD foi projectado para o solo, tendo sofrido traumatismo crânio-meningo-encefálico, traumatismo torácico e traumatismo abdominal, lesões essas que foram a causa directa da sua morte, a qual ocorreu já no Centro de Saúde das Lajes do Pico, para onde foi transportado após o acidente.
9. O arguido transportava DD na caixa aberta do veículo bem sabendo que era proibido transportar pessoas de modo que comprometesse a sua segurança e, não obstante, desrespeitou tal proibição.
10. Conduzia com uma T.A.S. de 1,01 g/l, bem sabendo que não devia fazê-lo.
11. Em virtude da alcoolemia apresentada o arguido não estava no pleno uso das faculdades necessárias ao exercício da condução e domínio do veículo e, por via disso, não adequou a velocidade imprimida ao veículo às características da via, dando causa ao acidente, e, consequentemente, à morte de DD.
12. Se o tivesse feito tê-lo-ia evitado.
13. O arguido agiu de forma imponderada e sem o cuidado a que estava obrigado e de que era capaz, de modo a evitar o resultado que devia e podia prever, mas que não previu e que se consubstanciou na morte de DD, que veio a ocorrer em resultado da sua conduta.
14. Agiu, pois, voluntariamente, bem sabendo ser a sua conduta proibida.
15. O arguido está reformado, recebendo mensalmente uma pensão de €450.
16. Reside com a nora e filho desta em casa própria.
17. Do seu certificado do registo criminal nada consta.
18. Em virtude do facto referido em 2. foi o arguido condenado pela prática de uma contra-ordenação rodoviária muito grave por decisão, datada de 15.01.2004, da Direcção Regional de Obras Públicas, na coima de €360 e na sanção acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 60 dias.
19. O arguido confessou parcialmente os factos.
20. DD nasceu em 11.01.1963.
21. Faleceu solteiro deixando como herdeira sua mãe.
22. A qual sofreu desgosto com a sua morte.
23. À data do seu óbito, DD vivia com o arguido, para o qual trabalhava há cerca de 14 ou 15 anos.
24. Por acordo de seguro titulado pela apólice nº ...., à data do acidente, o arguido tinha transferido para a C... de S... A..., S.A., a responsabilidade civil por danos causados a terceiros em virtude da circulação do veículo de matrícula ...-...-... .

*
Factos não provados
Não se provaram quaisquer outros factos com relevância para a decisão da causa, alegados ou não, nomeadamente os constantes da acusação, no pedido de indemnização civil e na contestação ao pedido de indemnização civil, que aqui dou por integralmente reproduzidos para todos os efeitos.

3. As principais questões a decidir são:

1ª- Legitimidade da recorrente;

2ª- Culpa do condutor e da vítima e dever de indemnizar por parte da seguradora;

3º- Montante dos danos pelos sofrimentos da vítima e da demandante.

4. Legitimidade da demandante

A recorrente alega que a recorrida apenas fez prova documental de que é a mãe da vítima, mas não fez prova de que o falecido não tivesse filhos ou de que o seu pai já tivesse falecido, pelo que é ilegítima a sua intervenção nos presentes autos, pois o direito à indemnização pelos danos decorrentes da morte da vítima tem de ser exercido nos termos e pela ordem do artigo 496°, n.º 2, do C. Civil, e, nomeadamente, por todos os seus herdeiros, em conjunto.

A legitimidade das partes é um pressuposto processual, isto é, um requisito de que depende dever o Juiz proferir decisão sobre o mérito da causa, pois o processo deve correr perante os sujeitos que possam ser os efectivos destinatários daquela.

O art.º 26.º do Código de Processo Civil define a legitimidade através da titularidade do interesse em litígio: será parte legítima, como autor, quem tiver interesse directo em demandar, e será parte legítima, como Réu, quem tiver interesse directo em contradizer. Como critério supletivo, são considerados titulares do interesse relevante para efeito de legitimidade os sujeitos da relação material controvertida (artigo 26.º, n.º 3, do CPC).

“A legitimidade não é, pois, uma qualidade pessoal das partes... mas uma certa posição delas em face da relação material..., que se traduz no poder legal de dispor dessa relação, por via processual” (Manuel Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1979, página 83). Trata-se de saber, como refere Antunes Varela, "se o demandante e o demandado, pela posição que ocupam em face da relação material debatida (partindo-se da premissa de que o direito invocado pelo Autor e o correlativo dever... imputado ao Réu existem) são as pessoas idóneas para conduzirem o processo. Não o sendo, há todo o interesse social em estimular o ingresso em juízo das pessoas para tal qualificadas: e esse é o objectivo capital da declaração de ilegitimidade" - Revista Legislação e Jurisprudência, ano 114, página 142.

A velha questão sobre como se afere a legitimidade mostra-se há muito ultrapassada: o art.º 26.º, n.º 3, do CPC, ao reportar-se à "relação jurídica controvertida", veio acolher a tese já defendida por Barbosa de Magalhães de que para se aferir da legitimidade devia atender-se à relação jurídica tal como configurada pelo autor e não, como alguns sustentavam (v. g., Alberto dos Reis), à relação jurídica real, tal como veio a se constituir entre as partes.

Nos termos do artigo 496.° do Código Civil, o direito à indemnização por danos não patrimoniais em caso de morte da vítima transmite-se, em conjunto, ao cônjuge não separado judicialmente de pessoas e bens e aos filhos ou outros descendentes; na falta destes, aos pais ou outros ascendentes; e, por último aos irmãos ou sobrinhos que os representem.

Conforme é jurisprudência pacífica a expressão «em conjunto» do n.º 2 do art.º 496.º do C. Civil significa que os herdeiros participam simultaneamente na titularidade de direito, pelo que devem propor a acção em litisconsórcio necessário activo (e não passivo, como, por lapso, refere o recorrente). Pode ler-se, por exemplo, no Ac. do STJ de 15/04/97, proc. 208/97:

« I - Quando o n.º 2 do artigo 496 do Código Civil diz que o direito à indemnização por danos não patrimoniais cabe, "em conjunto", ao cônjuge e aos filhos e outros descendentes, quer significar que o montante há-de ser repartido em igualdade entre os membros desse grupo. II – Quis afastar-se as regras sucessórias e estabelecer norma específica, dizendo que se procede a uma atribuição e a uma repartição conjunta. III - A expressão tem, assim, um sentido substantivo e não adjectivo, a ponto de nela se ver consagrado um litisconsórcio activo necessário.»

A demandante alegou e fez prova de que a vítima “faleceu solteiro deixando como herdeira sua mãe”, isto é, ela própria.

Como vimos, de acordo com o art.º 26.º, n.º 3, do CPC, para se aferir da legitimidade deve atender-se à relação jurídica tal como configurada pelo autor, pelo que tal significa que, no caso, a recorrente fez prova da sua legitimidade para demandar tal como interpôs a acção, isto é, como única herdeira.

Se a Ré, ora recorrente, entende que há ilegitimidade da demandante por preterição de outros herdeiros na linha sucessória ou por desrespeito por litisconsórcio necessário activo, teria de alegar e de provar que a vítima, consoante o caso, tem algum filho (apesar de solteiro) ou que o pai ainda é vivo e concorre juntamente com a mãe.

Não lhe basta invocar que pode a vítima ter um filho ou que pode o pai ainda estar vivo, pois o ónus de provar a excepção dilatória cabe a quem a invocou (art.º 516.º) e não à parte contra quem é invocada.

Resta concluir, assim, que não se verifica uma situação de ilegitimidade da demandante.

A circunstância da sentença recorrida ter referido, na parte decisória, que a indemnização se estabelece “a favor da demandante, sem prejuízo de eventual direito de regresso de outros herdeiros quanto às respectivas quotas-partes”, não altera a questão da legitimidade da demandante, pois não é mais do que a reafirmação de um dever decorrente da lei face a determinada hipótese. E em nada prejudica a recorrente, pois será uma questão a decidir exclusivamente entre a demandante e esses eventuais herdeiros e constitui, mesmo, uma garantia de que a ora recorrente não terá de indemnizar duplamente pelos mesmos factos e pelos mesmos prejuízos.

É certo que a sentença recorrida não vincula quem não foi parte no processo e que poderá vir a ser interposta uma outra acção contra a ora recorrente por outrem que não a demandante, para fazer valer direitos ainda não protegidos pela sentença recorrida. Mas essa acção, a ser proposta, também em nada altera o ora decidido, que fará caso julgado entre as partes e vinculará a demandante ao dever de restituir o que se apurar que não lhe era devido.

5. Repartição de culpas pelo acidente

Na decisão recorrida, sobre esta questão, afirma-se o seguinte:

Neste segmento do recurso invoca a recorrem que atendendo à matéria de facto considerada provada a responsabilidade no acidente deverá ser atribuída ao próprio lesado, AA.
Refere que “infringindo as mais elementares regras do bom senso se faz transportar na caixa de um veiculo de transporte de mercadorias em contravenção ao disposto no n.º 4 do art.º 55 do C. Estrada.
O falecido fez-se transportar na caixa do veiculo por vontade própria quando sabia que tal não era permitido por lei.
O que foi causa necessária e directa da sua morte, já que foi do facto de ter ido projectado e ter batido com a sua cabeça que resultou fractura da base do crânio e consequentemente a sua morte.
Assim, o resultado da morte somente a ele deverá ser imputado, atendendo a que se fizesse transportar na cabina com o seu colega, com toda a certeza não teria sofrido quaisquer lesões.
É, por isso, da responsabilidade dele os danos que sofreu e consequentemente o resultado, ou seja a sua morte.
Não havendo responsabilidade do arguido na produção do resultado não deverá a demandada ser condenada no pagamento de qualquer indemnização, por não existir nexo causal entre a conduta do arguido e o resultado, sob pena de outro modo a sentença violar o disposto no art.º 483 do C. Civil.
Mesmo que assim, não se considere pelo menos deverá atender-se ao disposto no art.º 570 do C. Civil.
Ou seja, atendendo a que foi o facto do lesado AA ter-se feito transportar na caixa do veiculo, por sua insistência e em contravenção ao disposto no n.º 4 do art.º 55 do C. Estrada, (facto culposo) que provocou que o mesmo fosse projectado e tivesse falecido.
Então a indemnização deverá ser excluída ou reduzir-se o montante da indemnização abaixo do valor dos danos efectivamente sofridos devidos às circunstâncias do lesado ter contribuído de forma irreparável para o resultado.
Pelo menos, alguma responsabilidade deverá ser-lhe acometida na produção do acidente ou melhor do resultado".
Vejamos.
Com interesse para a resolução desta questão o tribunal recorrido deu como assente a seguinte matéria de facto:
(...)
Será que os argumentos da recorrente são aceitáveis?
(...)
A sentença andou bem.
(...)
Por conseguinte, face às regras da experiência comum e científica, a condução sob a influência de 1,01 gramas de álcool por litro de sangue é idónea, e foi, de facto, adequada a provocar no recorrido incapacidade sensitiva e neuromotora diminuidora da sua capacidade de atenção e dos seus reflexos, afectando o seu discernimento para conduzir, estando, assim, na origem do acidente. Não estivera o arguido sob a influência do álcool e facilmente teria adequado a velocidade do veículo às características da via, assim evitando o acidente. A própria violência dos embates e a extensão dos danos causados nos muros, o facto de ter havido não só um mas sim dois embates atestam claramente que o veículo vinha completamente desgovernado sem que o arguido o conseguisse controlar e circulando a uma velocidade inadequada.
Acresce que, a influência negativa o álcool na condução é do conhecimento geral do cidadão comum, sendo de tal forma graves as suas consequências que o legislador criminalizou a condução de veículo em estado de embriaguez quando o condutor apresente uma T.A.S. igual ou superior a 0,08 g/l como contra-ordenação muito grave (cfr. art. 146.°, al. j) do Código da Estrada).
Conclui-se, pois, que, tendo em conta, por um lado, o princípio da livre apreciação da prova e as regras da experiência comum, e, por outro lado, o modo como o acidente se deu, unicamente a influência do álcool poderia explicar a falta de reflexos do arguido e a sua incapacidade em dominar o veículo, ficando, assim provada a influência do álcool na ocorrência do acidente.
Face à forma como ocorreu o acidente e tendo o mesmo ficado a dever-se à condução sob o efeito do álcool e à velocidade imprimida ao veículo pelo arguido, não pode deixar de se concluir que o mesmo podia e devia ter evitado o embate, tanto mais que o arguido conhecia a via em questão. Se persistiu em conduzir nessas condições, foi porque não usou da precaução exigível a qualquer condutor medianamente cauteloso, tendo sido essa a causa do acidente. Por conseguinte, não pode deixar de se concluir que o arguido podia e devia ter evitado o embate. Acresce ainda que o arguido tinha perfeita consciência de que não poderia transportar passageiros na caixa aberta do veículo, sendo que tal resultou das suas próprias declarações ao afirmar que insistiu com DD para que este viesse na cabine do veículo.
Acresce ainda que para prova do referido em 4. e 5. o Tribunal teve em consideração o depoimento da testemunha R... M... L... que prestou depoimento de forma segura, objectiva e credível, justificando a sua razão de ciência quanto aos mesmos, sendo estas derivadas da circunstância de ter chegado ao local do acidente imediatamente após a ocorrência deste tendo socorrido DD".
Perante estes factos e a motivação da decisão, com base na livre apreciação da prova assente nas regras da lógica e da experiência comum, o tribunal só podia ter considerado o arguido AA, como o único culpado do acidente.
É verdade que o tribunal para efeitos de aplicação do regime do art. 570° do Código Civil, podia ter levado em consideração a circunstância do falecido ter-se feito transportar na caixa do veiculo por vontade própria quando sabia que tal não era permitido por lei.
Até porque ficou provado que o AA insistiu com DD para que este se acomodasse na cabine do veículo, o que aquele não quis.
A valorar-se esta causa como relevante para a produção do acidente e, consequentemente, para a morte do DD, podia levar ao não arbitramento de qualquer indemnização ou à redução do seu valor numa partilha percentual de responsabilidades.
Todavia não foi este o caminho do tribunal.
E parece-nos bem, porque esta não foi a causa directa do acidente e da morte.
Não foi este o nexo causal encontrado pelo tribunal para imputar a responsabilidade pela produção do acidente.
Não existem factos suficientes que possam abalar ou alterar o que foi decidido.
O facto de viajar nos termos em que o fez o falecido não produz sem mais a sua responsabilidade pelo acidente.
Até porque é normal nas cidades pequenas as pessoas fazerem-se transportar desta maneira.
Não esquecer que o falecido trabalhava há muito tempo para o condutor do carro.
As circunstâncias do acidente, o nexo causal, e a produção do resultado foram muito bem analisadas na sentença.
A recorrente não aduz factos que levem a abalar a convicção que foi tirada pelo tribunal recorrido para a ocorrência do acidente.
A culpa do acidente foi bem atribuída ao condutor da viatura.
O arguido agiu de forma imponderada e sem o cuidado a que estava obrigado e de que era capaz, de modo a evitar o resultado que devia e podia prever, mas que não previu e que se consubstanciou na morte de Manuel Gonçalves da Silva, que veio a ocorrer em resultado da sua conduta.
Agiu, pois, voluntariamente, bem sabendo ser a sua conduta proibida.

Discordamos parcialmente deste raciocínio.

É verdade que o condutor do veículo sinistrado é o principal responsável pela ocorrência do acidente que vitimou o filho da demandante, pois não só conduzia em estado de embriaguez, com valores de alcoolémia muito superiores ao mínimo permitido por lei, como imprimiu ao veículo uma velocidade tal que não lhe permitiu controlá-lo sem entrar em despiste, como ainda transportava um passageiro (a vítima) sem ser nos assentos apropriados e sem a colocação do cinto de segurança. Infringiu, assim, o disposto nos art.ºs 81.º, n.ºs 1, 2, 3 e 5 al. b), 24.º e 25.º als. c) e e) e 54.º, n.º 4, todos do Código da Estrada, sendo certo que a primeira infracção é considerada uma contra-ordenação muito grave (art. 146.º al. j). E todas essas infracções foram causais em relação ao acidente e à consequente morte da vítima, pois a embriaguez provocou um estado de euforia psíquica, uma perda de atenção e um menor controle de movimentos, o excesso de velocidade causou o despiste e o transporte de um passageiro fora dos assentos e, pior ainda, no local exterior do veículo próprio para o transporte de carga, propiciou a fácil projecção do mesmo para o solo.

Também é exacto que a lei estradal considera responsável pela contra-ordenação (no caso, o transporte de passageiros fora dos assentos do veículo), o respectivo condutor e não o passageiro (cfr. o art.º 135.º, n.º 3 a), do C. E.).

Mas, o passageiro que aceita ser transportado na caixa de carga de um veículo de mercadorias sabe que está a colocar-se numa situação de enorme risco para a sua própria integridade física, mesmo que não haja qualquer acidente, pois um ressalto do veículo na estrada pode propiciar, em pleno andamento, a sua projeção ao solo. E sabe-o, ainda que essa forma de transporte seja um «costume» local ou uma «prática» habitual na relação laboral entre transportador e transportado. Para mais, quando é avisado pelo condutor do veículo de que deve sentar-se na cabine, onde tem um lugar apropriado e, ainda assim, insiste em ir na dita caixa aberta, como foi o caso.

Isto é, a vítima também actuou com negligência, pois não agiu com a prudência de um homem médio, colocado na mesma situação e com o mesmo grau de conhecimentos (art.º 487.º, n.º 2, do C. C.).

A culpa da vítima, assim estabelecida, foi causal, não quanto à produção do acidente, este da inteira responsabilidade do condutor do veículo, mas em relação à produção dos danos indemnizáveis, pois se fosse sentado no assento próprio do veículo, com o cinto de segurança colocado, como era seu dever e como era dever também do condutor do veículo, poderia, apesar do acidente, nada teria sofrido ou muito menos teria sofrido.

Na produção dos danos indemnizáveis é, pois, a vítima parcialmente responsável conjuntamente com o condutor do veículo, embora em menor grau do que este, pelo que, para o efeito de repartição de culpas (art.º 570.º, n.º 1, do C. C.), atribui-se 80 % de responsabilidade ao condutor e 20 % à vítima.

6. Montante indemnizatório

A sentença recorrida fixou em € 30.000,00 o dano morte, € 6.000,00 os danos não patrimoniais sofridos pela vítima e € 10.000,00 os danos não patrimoniais sofridos pela demandante.

A recorrente entende que devem ser excluídos os dois primeiros danos, pois a vítima contribuiu de forma decisiva para a verificação da sua própria morte (art.º 570.° do C. Civil) e não se provou que tivesse tido qualquer sofrimento ou dores. Ora, já vimos que a vítima só contribuiu parcialmente e de forma não decisiva para a sua própria morte, pelo que não há razão para excluir esses danos não patrimoniais com base na norma citada, embora os respectivos montantes a pagar pela seguradora tenham de ser reduzidos proporcionalmente ao grau de culpa próprio do condutor do veículo. E quanto ao sofrimento da vítima, ficou provado que a morte só ocorreu no hospital, pelo que, efectivamente, existiu sofrimento e durante um grande lapso de tempo, mesmo que aquela tenha entrado imediatamente em coma, pois a medicina aponta para a existência de um grau elevado de angústia das vítimas nessa situação clínica.

Por outro lado, a recorrente discorda dos montantes atribuídos pelos danos não patrimoniais da vítima e pelos da própria demandante, os primeiros porque se desconhece o seu nível, os segundos porque desadequados à jurisprudência que se tem vindo a praticar em casos semelhantes e por a recorrida não manter com o sinistrado qualquer relação de proximidade, nem sequer morando com o mesmo.

Ora, tais montantes devem fixar-se com base em juízos de equidade, tendo em atenção as circunstâncias referidas no artigo 494.º (art.º 496.º, n.º 3, do C. Civil), isto é, a situação económica do lesado, grau de culpabilidade do agente, situação económica deste e as demais circunstâncias do caso (art.º 494.º).

A decisão recorrida já explicou pormenorizadamente os critérios seguidos para chegar aos montantes fixados e não os vamos repetir.

Lembramos, ainda, que se provou que, à data do acidente, a vítima tinha 40 anos de idade, faleceu solteiro deixando como herdeira sua mãe, a qual sofreu desgosto com a sua morte. A vítima vivia com o arguido, para o qual trabalhava há cerca de 14 ou 15 anos.

Ora, em caso de julgamento segundo a equidade (em que «os critérios que os tribunais devem seguir não são fixos» (1) ,. «devem os tribunais de recurso limitar a sua intervenção às hipóteses em que o tribunal recorrido afronte, manifestamente, “as regras de boa prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas e de criteriosa ponderação das realidades da vida”» (STJ 16-10-2000, recurso n.º 2747/00-5, 17-06-2004, recurso n.º 2364/04-5 e 27/11/07, recurso 3310/07-5).
Uma excelente maneira de apurar se não foram afrontados critérios de equidade é confrontarmos os valores fixados com os estabelecidos como orientadores para efeitos de apresentação aos lesados por acidente automóvel de proposta razoável para indemnização do dano corporal, que constam da Portaria n.º 377/08, de 26 de Maio.
Este diploma teve por objectivo, não a fixação definitiva de valores indemnizatórios mas, nos termos do n.º 3 do artigo 39.º do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto, o estabelecimento de um conjunto de regras e princípios que permita agilizar a apresentação de propostas razoáveis. As suas disposições não afastam o direito à indemnização de outros danos, nos termos da lei, nem a fixação de valores superiores aos propostos (art.º 1º, n.º 2), mas são, seguramente, um bom indicador quanto à equidade de critérios.

Ora, nessa Portaria, o montante pelo “direito à vida”, estabelecido a favor dos herdeiros, está calculado em € 50.000 para uma vítima com a idade entre 25 e 49 anos. Vemos, pois, que o montante fixado na sentença recorrida fica aquém dessa quantia, o que justifica, de resto, que o seu valor nem tenha sido contestado pela recorrente.

O montante dos danos não patrimoniais da vítima é calculado na Portaria em € 2000, se o tempo de sobrevivência for até 24 horas. No caso dos autos, não há factos provados que justifiquem um afastamento desta quantia, como aconteceu, pelo que deverá ser reduzida em consonância com o critério razoável proposto pela lei.

O montante dos danos não patrimoniais próprios da demandante está calculado na Portaria em € 10.000, a favor de cada pai por filho falecido com mais de 25 anos de idade. Este critério está de acordo com o da sentença recorrida e não deve ser reduzido, pois o amor de uma mãe por um filho é igual se o mesmo viver consigo ou não, sendo até normal que um filho de 40 anos de idade tenha a sua vida própria, afastada dos pais.

Em suma, como a demandante terá de pagar 80 % do valor dos prejuízos, como explicámos, a indemnização total à demandante deverá ser reduzida para € 33.600 (euro trinta e três mil e seiscentos), correspondente a € 24.000 pelo direito à vida, € 1.600,00 pelos danos não patrimoniais sofridos pela vítima e € 8.000,00 pelos danos não patrimoniais sofridos pela demandante.

Deverá, assim, o recurso ter provimento parcial.

5. Pelo exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em conceder provimento parcial ao recurso e em condenar a demandada a pagar à demandante a quantia total € 33.600 (euro trinta e três mil e seiscentos) a título de indemnização por danos não patrimoniais, sendo € 24.000,00 pelo dano morte (a favor da demandante, sem prejuízo de eventual direito de regresso de outros herdeiros quanto às respectivas quotas-partes), € 1.600,00 a título de danos não patrimoniais sofridos pela vítima (a favor da demandante, sem prejuízo de eventual direito de regresso de outros herdeiros quanto às respectivas quotas-partes) e € 8.000,00 a título de danos não patrimoniais sofridos pela demandante.

Custas pela demandante e demandada na proporção do vencido.

Notifique.

Lisboa, 5 de Fevereiro de 2009

Arménio Sottomayor (Relator)

Souto Moura

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1- Antunes Varela - Henrique Mesquita, Código Civil Anotado, vol. 1.º, anotação 1.ª ao art. 494.º