Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
199/22.5JACBR.C1.S1
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: VASQUES OSÓRIO
Descritores: RECURSO DE ACÓRDÃO DA RELAÇÃO
PODERES DE COGNIÇÃO
DUPLA CONFORME
PENA PARCELAR
IRRECORRIBILIDADE
FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
PENA ÚNICA
CÚMULO JURÍDICO
MEDIDA CONCRETA DA PENA
OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA QUALIFICADA
HOMICÍDIO QUALIFICADO
TENTATIVA
Data do Acordão: 04/11/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Sumário :
I - É entendimento pacífico do STJ que a irrecorribilidade de uma decisão resultante da dupla conforme, impede este tribunal de conhecer de todas as questões conexas, adjectivas e substantivas, que lhe digam respeito, designadamente, as respectivas nulidades, os vícios decisórios, as invalidades e proibições de prova, a livre apreciação da prova, o pro reo, a qualificação jurídica dos factos, a determinação da medida da pena singular e inconstitucionalidades suscitadas neste âmbito.
II - Tendo o acórdão da Relação, confirmado, quanto aos factos e sua qualificação, a decisão da 1.ª instância, bem como as penas parcelares – de 3 anos e 6 meses de prisão e 7 anos e 6 meses de prisão – e a pena única – de 9 anos de prisão – aplicadas ao recorrente, a verificação da dupla conforme determina, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 399.º, 400.º, n.º 1, al. f) e 432.º, n.º 1, al. b), todos do CPP, que os poderes de cognição do STJ, no recurso interposto, estão limitados ao cúmulo jurídico, e à medida da pena única.
III - Ponderando, conjuntamente, a gravidade do ilícito global, a personalidade unitária do recorrente e o seu passado criminal – onde avultam, uma condenação em pena de prisão, por crime tentado de homicídio, e duas condenações, também em penas de prisão, por crimes de tráfico e de tráfico de menor gravidade – podemos concluir pela existência de alguma propensão para a prática de crimes contra a vida.
IV - A pena única decretada, de nove anos de prisão, face às exigências de prevenção, geral e especial, que se verificam, mostra-se necessária, adequada, proporcional e plenamente suportada pela medida da culpa unitária do recorrente, sendo, por isso, de manter.
Decisão Texto Integral:

RECURSO Nº 199/22.5JACBR.C1.S1


Recorrente: AA.


Recorrido: Ministério Público.


*


Acordam, em conferência, na 5ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça


I. RELATÓRIO


No Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra – Juízo Central Criminal de ... – Juiz ..., o Ministério Público requereu o julgamento, em processo comum com intervenção do tribunal colectivo, dos arguidos AA, BB e CC, todos com os demais sinais nos autos, imputando-lhes:


- Ao primeiro arguido, em concurso real, em co-autoria, a prática de dois crimes de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos arts. 145º, nºs 1, a) e 2 e 132º, nº 2, e) e h), ambos do C. Penal, e em autoria material, a prática de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelos arts. 2º, nºs 1, ap), 3.º, 2, e), 4º, nº 1 e 86º, nº 1, d), do Regime Jurídico das Armas e Munições, e a prática de um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, p. e p. pelos arts. 131º, 132º, nºs 1 e 2, e), 22.º e 23.º, todos do C. Penal.


- Ao segundo arguido, a prática, em co-autoria, de um crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punido pelos arts. 145º, nºs 1, a) e 2 e 132º, nº 2, e) e h), ambos do C. Penal; e,


- Ao terceiro arguido, a prática, em co-autoria e concurso real, de dois crimes de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos arts. 145º, nºs 1, a) e 2 e 132º, nº 2, e) e h), ambos do C. Penal.


O Centro Hospitalar e Universitário ..., EPE, deduziu pedido de indemnização contra os arguidos, com vista à sua condenação no pagamento da quantia de € 1435,09, acrescida de juros de mora à taxa legal, desde a notificação do pedido e até integral pagamento, para pagamento dos cuidados de saúde prestados aos ofendidos.


Por acórdão de 27 de Fevereiro de 2023, foi decido:


(…)


A) - absolver o arguido AA:


A.1) - da prática do crime de detenção de arma proibida que lhe era imputado neste processo por não se ter provado a existência/utilização da soqueira; e


A.2) - da prática do crime de ofensa à integridade física qualificada relativamente ao ofendido DD perante a situação de concurso aparente com o crime de homicídio qualificado na forma tentada pelo qual vai condenado;


B) - condenar o arguido AA pela prática, em concurso real:


B.1) - em co-autoria e na forma consumada, de um crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punido pelos artigos 145.º, nº 1, alínea a) e nº 2 e 132.º, nº 2, alíneas e) e h), ambos do Código Penal, na pena de três anos e seis meses de prisão, relativamente ao ofendido EE;


B.2) - em autoria material e na forma tentada, de um crime de homicídio qualificado, previsto e punido pelos artigos 131.º, 132.º, nºs 1 e 2, alínea e), 22.º e 23.º, todos do Código Penal, na pena de sete anos e seis meses de prisão;


C) - condenar o arguido AA, em cúmulo jurídico, nos termos do disposto no artigo 77º, nºs 1 e 2, do Código Penal, na pena única de nove anos de prisão efectiva;


D) - condenar o arguido BB pela prática, em co-autoria e na forma consumada, de um crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punido pelos artigos 145.º, nº 1, alínea a) e nº 2 e 132.º, nº 2, alíneas e) e h), ambos do Código Penal, na pena de três anos de prisão efectiva;


E) - condenar o arguido CC pela prática, em concurso real, co-autoria e na forma consumada, de dois crimes de ofensa à integridade física qualificada, previstos e punidos pelos artigos 145.º, nº 1, alínea a) e nº 2 e 132.º, nº 2, alíneas e) e h), ambos do Código Penal, nas penas de dois anos de prisão (ofendido EE) e dois anos e seis meses de prisão (ofendido DD), respectivamente;


F) - condenar o arguido CC, em cúmulo jurídico, nos termos do disposto no artigo 77º, nºs 1 e 2, do Código Penal, na pena única de três anos e seis meses de prisão suspensa na sua execução, pelo período de cinco anos, mediante regime de prova;


(…).


I) - condenar os arguidos/demandados AA, BB e CC no pagamento, solidário, ao Centro Hospitalar e Universitário ..., EPE, da quantia de € 1.435,09 euros (mil quatrocentos e trinta e cinco euros e nove cêntimos) relativa à assistência prestada a EE e DD pelos serviços do CHU... em resultado das referidas agressões sofridas pela actuação dos arguidos, acrescida de juros à taxa legal em cada momento em vigor desde a data da notificação até efectivo e integral pagamento.


(…).


*


Inconformados com a decisão, os arguidos AA e BB recorreram para o Tribunal da Relação de Coimbra que, por acórdão de 21 de Junho de 2023, decidiu:


(…).


- julgar totalmente improcedente o recurso intentado pelo arguido AA (RECURSO 1) e parcialmente improcedente o recurso intentado pelo arguido BB (RECURSO 2), passando agora as condenações a eles atinentes a ter a seguinte formulação (a sublinhado, as partes que representam revogação do acórdão de 1ª instância):


Condena-se o arguido AA:


- em co-autoria e na forma consumada, de um crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punido pelos artigos 145º, nº 1, alínea a) e nº 2 e 132º, nº 2, alínea e), ambos do CP, na pena de três anos e seis meses de prisão, relativamente ao ofendido EE;


- em autoria material e na forma tentada, de um crime de homicídio qualificado, previsto e punido pelos artigos 131º, 132º, nºs 1 e 2, alínea e), 22º e 23º, todos do CP, na pena de sete anos e seis meses de prisão;


- em cúmulo jurídico, nos termos do disposto no artigo 77º, nºs 1 e 2, do CP, na pena única de nove anos de prisão efectiva;


Condena-se o arguido BB:


- pela prática, em co-autoria e na forma consumada, de um crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punido pelos artigos 145º, nº 1, alínea a) e nº 2 e 132º, nº 2, alíneas e) e h), ambos do CP, na pena de dois (2) anos e três (3) meses de prisão efectiva.


No mais, mantém-se todo o teor do acórdão recorrido.


(…).


*


O arguido BB arguiu nulidades do acórdão de 21 de Junho de 2023, que foram indeferidas por acórdão da Relação de Coimbra de 27 de Setembro de 2023.


*


*


Inconformado com o decidido no acórdão da Relação de 21 de Junho de 2023, o arguido AA recorreu para este Supremo Tribunal, formulando no termo da motivação as seguintes conclusões:


1. Vem o presente recurso interposto na sequência do Douto Acordo proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra a 21 de Junho de 2023, onde em súmula se decidiu “(…) julgar totalmente improcedente o recurso intentado pelo Arguido AA (RECURSO 1) (…)”.


2. Neste conspecto, não se conformando com o teor do mesmo, o ora Recorrente arguiu a sua NULIDADE, ao abrigo do disposto no artigo 379.º, als. A) e c), do Código de Processo Penal, aplicável ex vi do disposto no artigo 425.º, n.º 4, do CPP, cuja decisão recaiu sobre a arguição das nulidade invocadas pelo Recorrente datada de 11 de Abril de 2023.


3. Venerandos Senhores Doutores Juízes Conselheiros, salvo o devido respeito, que é muito pelos Meritíssimos Juízes que proferiram o douto Acórdão de que se recorre, entende o ora Recorrente que a pena única de 9 (nove) anos de prisão que lhe foi aplicada se afigura manifestamente exagerada e desproporcional, não satisfazendo igualmente as exigências do Direito Penal.


4. Não poderá ser descurada a realidade judicial no tocante à aplicação de penas, e à concretização da medida concreta de pena de prisão neste(s) tipo(s) de crime – face à qual esta pena concreta se afigura manifestamente desproporcionada –, sob pena de, na impossibilidade de se alcançar uma justiça absoluta, passarmos a ter uma justiça relativa que não serve os valores nem os fins do Estado de Direito Democrático e, por maioria de razão, a verdadeira essência do Direito Penal.


5. Não obstante o respeito que as decisões judiciais, sempre e em qualquer circunstância merecem, não pode o Arguido, ora Recorrente, conformar-se com a doura Decisão proferida.


6. Daí a discordância de tal decisão no que tange à medida da pena aplicada, e da não suspensão na sua execução. Entende o Recorrente, que não deveria ter sido condenado, na pena em que foi condenado (pena única de nove anos) de prisão, por esta ser deveras excessiva.


7. Não entende também o aqui Recorrente do porquê da factualidade dada como provada e assente ser condenado, em co-autoria e na forma consumada, de um crime de ofensa à integridade física qualificado, relativamente ao ofendido EE – quando, no entender do Recorrente, a subsunção dos factos preenche um tipo legal de crime diferente e por ter agido (num primeiro momento), sob um estado de necessidade desculpa defensivo (quando protegeu o seu filho, menor, das agressões a que estava a ser vítima naquele exacto momento), previsto e punido nos termos dos artigos 35.º, n.ºs 1 e 2 e 31.º, n.º1, ambos do Código Penal; e ainda,


8. No seu entender, o aqui Recorrente, não vislumbra e discorda com a manutenção da tipificação dos factos contra o ofendido DD. Dos factos dados como provados e assentes, a subsunção fáctica enquadra-se e preenche o tipo legal de ofensa à integridade física grave, previsto e punido nos termos do 144.º, do Código Penal. Alteração jurídica anteriormente requerida e declinada pelo Tribunal da Relação de Coimbra. Ao invés, o douto Acórdão manteve a condenação de AA, como autor material e na forma tentada, de um crime de homicídio qualificado.


9. Entende o ora Recorrente que, face à factualidade dada como provada em juízo e ao Direito aplicável, que a pena aplicada se revela pouco (ou nada mesmo!) criteriosa, injusta e extremamente penosa.


10. A pena única de nove anos de prisão que lhe foi aplicada se afigura manifestamente exagerada e desproporcional, não satisfazendo as exigências do Direito Penal.


11. Entende o Recorrente que o Tribunal de 1.ª Instância, bem como o Tribunal da Relação de Coimbra ao manter o Acórdão intacto quanto à escolha e medida da pena, aplicaram pena excessiva, não atenuando a pena – como deveria ter ocorrido –, uma vez que, a pena aplicada ao Arguido não corresponde ao factos dados como provados e assim não preenche o tipo legal de crime pelo qual vem condenado, e assim, a pena única aplicada ao Arguido ultrapassa em larga medida a culpa.


12. Por esta se revelar injusta, desproporcional e violadora dos Princípios da Proporcionalidade, da Dignidade da Pessoa Humana e da Igualdade, não satisfazendo de igual modo as exigências do Direito Penal.


13. Por discordar da pena aplicada pelo Tribunal da 1.ª Instância, interpôs o Recorrente recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra, cuja decisão consta do douto Acórdão proferido nos autos em epígrafe, datado de 21-06-2023, decisão que inexplicavelmente DECIDIU MANTER A PENA APLICADA AO RECORRENTE.


14. Neste conspecto, não se conformando com o teor do mesmo arguiu a sua NULIDADE, ao abrigo do disposto no artigo 379.º, alíneas a) e c), do Código de Processo Penal, aplicável ex vi do disposto no artigo 425.º, n.º 4, do mesmo Diploma legal.


15. Não pode o Recorrente conformar-se com o subscrito no douto Acórdão.


16. O Recorrente não se pode conformar no que concerne à pena que lhe foi aplicada, pela alegada prática em autoria material e na forma tentada daquele crime relativamente ao ofendido DD.


17. Não se pode conformar também o Recorrente pela pena que lhe foi aplicada, pela alegada prática em co-autoria e na forma consumada, de um crime de ofensa à integridade física qualificada relativamente ao ofendido EE.


18. Sob pena de comprometer o embasamento das diligências adoptadas e seus resultados, cumpre afirmar que, não se questionando a verosimilhança das ilações retiradas de uma apreciação crítica das provas, tem-se como inadequada, face aos factos apurados, a medida da pena concretamente aplicada (pena única) de nove anos de prisão (efectiva).


19. A fundamentação de uma decisão tem de permitir avaliar o porquê dessa decisão. Assumindo que aquela se encontra preenchida, questionam-se as suas derivações.


20. Afigura-se-nos que os elementos recolhidos – e os não encontrados, v.g., a “arma do crime” (pertinentes e atinentes questões quanto a esta) relativamente ao crime de homicídio qualificado), no decurso das diligências adoptadas, a análise e ponderação da matéria probatória carreada e a interpretação conjugada dos elementos disponíveis nos autos não habilitam a que a sanção privativa de liberdade com que o Recorrente foi cominada seja de nove anos de prisão.


21. Colocam-se em crise os termos em que se procedeu à determinação da medida concreta da pena. Desde logo, O Princípio da Investigação reporta-se, em especial, à matéria de prova. Este princípio significa que o tribunal tem o poder-dever de investigar os factos sujeitos a julgamento, indo para além dos contributos dados pelas partes (em especial, através da prova que estas carrearem para o processo), de modo a encontrar a verdade material dos factos e obter uma decisão mais justa no âmbito do processo penal, sendo manifestações do Princípio da Investigação, entre outros, os poderes atribuídos ao tribunal nos artigos 154.º, 164.º, n.º 2, 174.º, n.º 3, 288.º, n.º 4, 290.º, 323.º, 327.º, 340.º e 354.º, todos do Código de Processo Penal.


22. No que concerne à escolha e determinação das penas, a fase de plena discricionariedade judicial que encarava a determinação da pena como manifestação paradigmática da arte de julgar encontra-se superada.


23. Após a determinação da moldura abstracta da pena é necessário proceder à determinação da medida concreta da pena, à sua quantificação e por fim a escolha da pena.


24. O art. 71.º, n.º 1, do Código Penal determina que o quantum da pena de prisão seja fixado em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.


25. Atendendo ao preceituado, a culpa funciona como limite da pena, inviabilizando, desde logo, que alguém seja punido com pena mais elevada em atenção a fins de prevenção geral ou especial.


26. Na determinação da medida concreta da pena são basilares os factores de determinação da pena, acolhendo-se todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando nomeadamente as circunstâncias agravantes e atenuantes apresentadas nas alíneas a) a f), do n.º 2 do mesmo normativo — e no caso concreto contra o ora Recorrente não foi tida a atenuante relativamente ao ofendido EE.


27. Sufraga-se o entendimento de que, a medida da pena terá que ser encontrada dentro de uma moldura de prevenção geral positiva, definitiva e concretamente estabelecida em função de exigências de prevenção especial positiva, tal como nos é ensinado pelo Senhor Professor Doutor Figueiredo Dias.


28. O douto Acórdão, claramente, não ponderou tal dinâmica.


29. Ora, sem prescindir, atendendo apenas e exclusivamente a matéria efectivamente dada como provada pelo Tribunal a quo no seu douto Acórdão,


30. é nosso entendimento que a decisão concretamente proferida contraria o objectivo da política criminal que a Lei perspectiva e que a Justiça não pode subtrair-se, que é o afastamento do delinquente, no futuro, da prática de novos crimes e da primazia e preferência da Lei pelas Penas Não Privativas da liberdade, uma vez que condenou o Arguido em pena única de prisão de nove anos


31. Quando poderia e deveria, tendo em conta a prova produzida, e tendo em conta as concretas necessidades de prevenção geral e especial, e as circunstâncias que depunha a favor e contra o mesmo, condenado em pena bem inferior.


32. O conteúdo reeducativo das penas consagra, além do aspecto punitivo, a reintegração social do delinquente na sociedade. A matriz humanista do nosso Direito Penal não bloqueia esta realidade, antes a promove. O Recorrente, admitindo-se a autoria dos dois crimes, terá necessariamente de ser punido.


33. Mas, esse castigo, não lhe pode nem deve fechar as portas de uma ulterior vida honesta.


34. O Recorrente está perfeitamente integrado socialmente, sempre trabalhou, e poderá retomar com o seu posto de trabalho no bar onde trabalha, assim que se encontre em liberdade.


35. Assim, o Recorrente apela que lhe seja dado uma merecida e justa oportunidade de (re)iniciar um correcto caminho, conforme os interesses de reinserção social que o nosso Ordenamento institui.


36. O Tribunal a quo, e com o devido respeito, ao condenar o Recorrente na pena única de prisão de nove anos, fê-lo sem apresentar um único fundamento para a escolha daquela dosimetria – para mais atendendo à necessária alteração da qualificação jurídica relativamente ao ofendido DD –, e não de outra.


37. Aliás, afigura-se existir, nesta questão concreta da escolha e determinação de medida da pena, falta de fundamentação, e ainda uma errónea subsunção fática ao(s) tipo(s) legal de crime(s) que vem o Recorrente condenado, o que consubstancia nulidade do artigo 379.º, n.º 1, al. a) e 374.º, n.º 2, ambos do Código de Processo Penal, o que aqui se suscita e alega para os devidos e legais efeitos.


38. Pelo exposto, é nosso entendimento que, no caso concreto e tendo em conta tudo o que se acaba de referir quanto à subsequente determinação da medida da pena e tendo em conta as concretas exigências de prevenção geral e especial e tendo em conta todas as circunstâncias que depõem a favor do Recorrente, a pena aplicável ao Recorrente, deveria ser inferior aos cinco anos de prisão e suspensa a sua execução.


39. Nos termos do artº. 40 do CP, as finalidades da aplicação de uma pena residem primordialmente na tutela de bens jurídicos e, na medida do possível, reinserção do agente na comunidade, não podendo ultrapassar, em caso algum, a medida da culpa.


40. Que de acordo com o princípio constitucional da intervenção mínima do direito penal (artigo 18.º, n.º 2, da CRP), refere que a determinação de uma sentença condenatória privativa da liberdade, deverá restringir-se aos casos de manifesta necessidade, adequação ou idoneidade e proporcionalidade, respeitando-se os respetivos pressupostos e limites de não perpetuidade das penas de prisão (artigos 27.º, n.º 2 e 30.º, n.º 1 da mesma Lei Fundamental), bem como, as finalidades da punição.


41. Foram violados os artigos 40.º, 70.º e 71.º, todos do Código Penal e artigos 120.º, n.º 2, al. d), 369.º e 410.º, n.º 2, todos do Código de Processo Penal e art. 32.º da Constituição da República Portuguesa.


42. Pelas expostas razões e reafirmando as elevadas qualidades de inteligência, cultura jurídica, sensatez e suficiente experiência da vida, a limitação resultante da incontornável subjectividade da Justiça e o sequente aceite de que ninguém é perfeito,


43. impõe-nos a conclusão que se lamenta dum desrespeito da concordância prática dos valores em causa, valores imperativamente atendíveis por nenhuma sanção poder ser aplicada afora da teleologia específica do conjunto de meios que é o Processo Penal, convergente com a regeneração pessoal e social do delinquente, afetante da ponderação de meio e fim ínscio no Princípio da Proporcionalidade.


44. Ora, tal não foi respeitado, desequilibrando-se desrazoavelmente o Princípio jurídico-constitucional da Proporcional entre a prova e pena, que um outro igualmente ponderoso da Igualdade de todos perante a Lei também impõe, pela circunstância que mereceu a justificação que o douto Acórdão contém da personalidade do Recorrente e do justificativo racional que este oferecia para as condutas delituosas imputadas.


45. São os imputs referidos pelo Sociólogo Max Weber que não inquinam pela compreensão que merecem mas afectam pela injustiça que possibilitam é contra esta que se protesta, nesta vertente da violação dos aludidos Princípios jurídicos-constitucionais da Proporcionalidade e da igualdade de todos perante Lei, consignados e estatuídos nos termos dos artigos 13.º, 18.º e 32.º da Constituição da República Portuguesa, decorrente da inconstitucionalidade material dos artigos acima expressamente enunciados, que ora se suscita.


46. O Tribunal a quo fez tábua rasa do que acima se aduziu, ignorando o estatuído no art.º. 50.º do CP, para sustentar uma condenação. Daí que, o ora Recorrente, clame pela aplicação de uma pena suspensa na sua execução A pena de prisão aplicada ao Arguido deverá ser alterada e consequentemente suspensa na sua execução, suspensão necessariamente acompanhada por regime de prova, nos termos do n.º 3, do art. 53.º, do CP, condicionada a regras de conduta, nos termos dos arts. 50.º, n.º 2 e 52.º, n.º 1, als. b) e c), ambos do Código Penal, nomeadamente presença em programas específicos para os crimes de que vem condenado.


47. Interpretou as provas no sentido de que apesar de não ter conseguido concretizar as provas reais, materiais capazes de suportar um juízo seguro sobre a verificação dos factos dados como provados na matéria dada como provada e supra impugnada, mesmo assim, e porque o Julgador aprecia livremente a prova segundo a sua convicção e as regras da experiência, e tudo é justificado com base neste princípio aparentemente inatacável, o Tribunal deu-os, igualmente, como provados.


48. A livre apreciação da prova exige, indiscutivelmente, um exame crítico das provas (v. art.º 374.º n.º 2, do CPP). Tendo em conta o que acima se explanou!


49. Existe patentemente nulidade do Acórdão do Tribunal por falta do exame crítico da prova (art.º 379.º, n.º 1, aliena a) e art.º 374.º, n.º 2 , ambos do CPP.


50. Daí que não se entenda como o Tribunal da Relação não ter aplicado ao ora Recorrente uma pena não privativa da liberdade, o que desde já se requer, atendendo ao circunstancialismo atrás descrito.


51. Sem conceder, admitindo-se que esse Venerando Tribunal e por VV. Exas. Senhores Juízes Conselheiros possam analisar a questão de forma diferente, sempre se constata a desproporcionalidade da medida da pena aplicada, a qual viola patentemente as regras fixadas na Lei para a sua determinação.


52. Pelo exposto, foram violados os arts. 13.º, 14.º, 40.º, n.ºs 1 e 2, 50.º, 70.º, 71.º, n.ºs 1 e 2 e 72.º, n.º 2, todos do Código Penal; e artigos 120.º, n.º 2, al. d), 125.º, 126.º, 127.º, 369.º, 379.º, n.º 1, als. A) e c) e n.º 2, 410.º, n.º 2 e 434.º, todos do Código de Processo Penal; e ainda os arts. 13.º, 18.º, 18.º, n.º 2, 27.º, n.º 2, 30.º, n.º 1, 32.º, n.ºs 2 e 8 e 205.º, n.º 1, todos da Constituição da República Portuguesa; ademais, violados também o art. 11.º, n.º 1 da Declaração Universal dos Direitos do Homem, bem como, o artigo 6.º, n.º 2 da Convenção Europeia para a Protecção dos Direitos e Liberdades Fundamentais e, por fim, violado o art. 14.º, n.º 2 do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos.


Nestes termos, e nos mais de Direito que VV. Exas. Venerandos Juízes Conselheiros do Supremo Tribunal de Justiça doutamente suprirão, se requer seja o presente recurso julgado procedente nos exactos termos supra expostos, devendo ser revogada a decisão de que agora se recorre, fazendo-se assim a costumada JUSTIÇA!


*


O recurso foi admitido.


*


Respondeu ao recurso a Exma. Procuradora-Geral Adjunta junto do Tribunal da Relação de Coimbra, formulando no termo da contramotivação as seguintes conclusões:


- O acórdão está exaustivamente fundamentado e não padece de quaisquer vícios.


- Foi feita acertada aplicação do Direito, não se verificando qualquer interpretação ou aplicação inconstitucional de normas legais.


- Não houve violação de lei.


- O recurso deve ser julgado totalmente improcedente, mantendo-se o decidido.


Vossas excelências decidirão.


*


*


Na vista a que se refere o art. 416º, nº 1 do C. Processo Penal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto junto deste Supremo Tribunal emitiu parecer, no termo do qual, além do mais, fez constar, «Ocorre uma situação de dupla conforme, assente na completa concordância das duas Instâncias quanto ao mérito da causa (na parte que constitui objecto do presente recurso); O Acórdão recorrido não padece de falta de fundamentação; A pena única é ponderada e adequada; A suspensão da execução da pena de prisão não é, sequer, legalmente, de equacionar.» e concluiu pela improcedência do recurso.


*


Foi cumprido o art. 417º, nº 2 do C. Processo Penal.


O recorrente não respondeu ao parecer do Exmo. Procurador-Geral Adjunto.


*


*


Colhidos os vistos, foram os autos presentes à conferência.


Cumpre decidir.


*


*


*


*


II. FUNDAMENTAÇÃO


Matéria de facto fixada pelas instâncias [o acórdão da Relação recorrido não modificou a decisão de facto proferida pela 1ª instância]


A) Factos provados [com excepção dos factos pessoais relativos aos arguidos não recorrentes]


“(…).


1- No dia 19 de Fevereiro de 2022, cerca das 05:00 horas, DD e EE caminhavam pela Praça ..., em ..., perto da caixa multibanco aí existente, quando se cruzaram com os arguidos BB e CC que seguiam com FF, amiga de BB.


2- Então, o arguido BB esbarrou contra DD, ao que este lhe disse: “Então, como é?”.


3- Nessa sequência veio a gerar-se, entre aqueles, uma altercação, levando FF a dizer “O pai dele (do arguido BB) é segurança do M..., eu vou chamá-lo!”.


4- Acto contínuo, EE interveio, pedindo calma e referindo que deviam pedir desculpa pelo ocorrido.


5- Nessa altura, o arguido BB abeirou-se de EE e desferiu-lhe um murro no peito.


6- Em resposta, EE agarrou BB e provocou a sua queda.


7- Neste momento, surgiu o arguido AA, pai do arguido BB, o qual desferiu uma forte pancada na cabeça de EE, atirando-o ao chão.


8- Com EE no chão, o arguido AA colocou-se em cima dele e desferiu-lhe vários murros na cabeça.


9- Enquanto EE estava caído, o AA, juntamente com o arguido CC, ainda o atingiu com diversos pontapés e murros em todo o corpo.


10- Assim que conseguiu sair debaixo do arguido AA, EE, juntamente com DD, fugiu em direcção ao seu carro que se encontrava estacionado poucos metros mais à frente, perto da C... (porta ao lado da do mandarim).


11- Acto contínuo, os arguidos AA, BB e CC seguiram no encalço de EE e DD.


12- Receando que os arguidos pudessem alcançá-los e apesar de o carro estar naquelas imediações, EE e DD optaram por seguir apeados, continuando a correr para o lado da Rua ..., em direcção à ....


13- Quando EE e DD iam subindo a Rua ..., surgiu o arguido AA a conduzir o veículo de marca KIA, de cor branca, com a matrícula ..-VL-...


14- Ao ver EE e DD, o arguido AA parou o veículo, antes do Café A......


15- De imediato, os arguidos AA, BB e CC saíram daquele veículo e dirigiram-se, a pé, aos ofendidos.


16- Vendo que os arguidos vinham na sua direcção, EE e DD começaram a correr.


17- Então, DD atravessou a passadeira aí existente, fugindo pelo lado direito, enquanto EE tomou o lado esquerdo, seguindo ambos em direcção a ....


18- Nessa sequência, DD caiu e foi alcançado pelos três arguidos AA, BB e CC.


19- Logo os arguidos desferiram vários murros e pontapés por todo o corpo de DD.


20- Nessas circunstâncias de tempo e lugar, o arguido AA, com recurso a um objecto de características não concretamente apuradas, mas de características perfuro-cortantes semelhante a uma navalha, desferiu um golpe no abdómen de DD, enquanto lhe dizia “não te metas comigo, eu sou ...!”.


21- O arguido AA desferiu, ainda, com tal objecto, um golpe na hemiface direita de DD.


22- Como consequência directa e necessária da actuação dos arguidos AA e CC, EE sofreu lesões, nomeadamente no crânio, apresentando dois pontos na metade esquerda da região occipital, medindo 1,5 cm de comprimento e escoriação na região retro-auricular esquerda, medindo 1 cm de comprimento; e na face, apresentando 3 pontos de sutura na metade medial da região supraciliar esquerda, em forma de V invertido, medindo cada ramo 0,8cm, duas escoriações na região zigomática direita, a maior com 0,7 cm de comprimento e a outra com 0,3 cm de comprimento, cujos dias de doença não foi possível determinar.


23- Como consequência directa e necessária da actuação dos arguidos AA, BB e CC, DD sofreu dores e lesões no corpo, além do mais, exteriorização de epiplon na zona supra umbilical com cerca de 3 cm, ferida incisa no flanco direito e na hemiface direita, tendo tido alta hospitalar a 20 de Fevereiro de 2022.


24- DD apresentava, ainda, na face e como consequência da aludida conduta, uma cicatriz linear nacarada que se estende desde a região pré-auricular até a região bucal direita, oblíqua de cima para baixo e de trás para a frente, medindo 6 cm de comprimento e no abdómen, 3 escoriações lineares com crosta cicatricial na região do flanco direito, ocupando o conjunto de tais lesões uma área com 10cmx1cm, dispostas de forma obliqua ínfero-medialmente.


25- As referidas lesões determinaram, para DD, 30 dias de doença, com afectação da capacidade de trabalho geral e afectação da capacidade de trabalho escolar, por igual período.


26- Na descrita actuação sobre EE, os arguidos AA e CC agiram, em comunhão de intentos e esforços, fazendo-se valer da sua superioridade numérica e determinaram-se a molestá-lo corporalmente actuando motivados pelo referido desentendimento entre BB e os ofendidos.


27- Os arguidos AA e CC agiram com o propósito de molestar corporalmente EE, o que conseguiram nos moldes descritos.


28- Os arguidos AA, BB e CC, ao actuar do modo enunciado, quanto a DD, agiram em comunhão de intentos e esforços, fazendo-se valer da sua superioridade numérica, tendo-se os três determinado a molestá-lo corporalmente, motivados pelo referido desentendimento entre BB e os ofendidos


29- Os três arguidos agiram com o propósito de atingir corporalmente DD, o que conseguiram nos moldes descritos.


30- Os arguidos actuaram bem sabendo que agiam em superioridade numérica e motivados pelo referido desentendimento entre BB e os ofendidos.


31- O arguido AA sabia que ao desferir um golpe no abdómen de DD, com um objecto com lâmina cortante, de características não concretamente apuradas mas semelhante a uma navalha, o atingia numa zona vital do corpo, que lhe poderia provocar a morte, o que pretendia e apenas não logrou por razões alheias à sua vontade.


32- O arguido AA agiu com o propósito de tirar a vida a DD, bem sabendo que apenas o fazia por força do referido desentendimento com BB.


33- Os arguidos agiram sempre livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que as suas condutas são proibidas e punidas por lei penal.


34- O arguido AA não manifesta arrependimento.


35- O arguido AA foi condenado nos seguintes processos:


35.1- processo comum colectivo nº 1122/10.5..., do 2º Juízo Criminal de ..., por acórdão de 24.05.2011, transitado em julgado em 30.06.2011, na pena única de 5 anos e 6 meses de prisão, pela prática de um crime de homicídio na forma tentada e um crime de detenção de arma proibida, por factos praticados a 22.08.2010; a pena aplicada neste processo foi englobada no cúmulo jurídico efectuado no processo comum colectivo nº 163/10.7...;


35.2- processo sumaríssimo nº 1690/11.4..., do 1º Juízo Criminal de ..., por sentença de 18.04.2012, transitada na mesma data, foi condenado pela prática de um crime de falsidade de testemunho, na pena de 100 dias de multa, à taxa diária de cinco euros, por factos praticados a 15.12.2006; tal pena foi declarada extinta, pelo pagamento, por decisão de 4.12.2012;


35.3- processo sumaríssimo nº 1688/09.2... do 2º Juízo Criminal de ..., por sentença de 26.02.2013, transitada na mesma data, foi condenado pela prática de um crime de apropriação ilegítima, na pena de 100 dias de multa, à taxa diária de cinco euros, por factos praticados a 11.11.2009; tal pena foi declarada extinta pelo pagamento por decisão de 13.09.2013;


35.4- processo comum colectivo nº 163/10.7..., do Juízo Central Criminal de ... – J3, com o nº 163/10.7..., por acórdão de 2.05.2014, transitado em julgado a 02.06.2014, na pena única de 6 anos e 2 meses de prisão, pela prática de um crime de detenção de arma proibida e um crime de trafico de estupefacientes, por factos praticados, respectivamente, a 03.09.2010, e no ano de 2009; por acórdão de 04.11.2014, transitado em julgado a 17.12.2014, a pena aplicada nestes autos foi cumulada com a pena do processo 1122/10.1..., tendo sido aplicada ao arguido a pena única de 9 anos de prisão efectiva; por decisão de 23.12.2015, o Tribunal de Execução de Penas de ... concedeu-lhe a adaptação à liberdade condicional em regime de permanência na habitação com vigilância electrónica, com efeitos a partir de 23.12.2012, até à revisão prevista para 4.09.2016; a 29.08.2016 foi concedida liberdade condicional ao arguido a partir de 4.09.2016 até ao termo da pena a 04.09.2019;


35.5- processo comum singular nº 1685/19.0..., do Juízo Local Criminal de ..., por sentença de 14.02.2020, transitada em julgado a 09.06.2020, na pena de um ano e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução por dois anos sujeita ao regime de prova, pela prática de um crime de falsidade de testemunho, por factos ocorridos a 27.02.2019; a 17.10.2022, tal pena foi declarada extinta, por referência a 09.06.2022;


35.6- processo comum colectivo nº 248/20.1..., do Juízo Central Criminal de ..., por acórdão de 29.11.2021, transitado em julgado a 19.05.2022, pela prática de um crime de tráfico de estupefaciente de menor gravidade e de um crime de detenção de arma proibida, por factos ocorridos a 28.04.2020, na pena única de dois anos e seis meses de prisão efectiva.


36- O arguido AA nasceu a ... de ... de 1988, na freguesia de ..., em ..., sendo um de dez filhos de um casal residente naquela cidade.


37- O arguido AA frequentou o ensino até aos 14 anos na zona de residência, registando algumas retenções por dificuldades de aprendizagem e fraca motivação.


38- Aos 15-16 anos de idade, o arguido passou a viver com uma companheira, ficando a residir em casa dos pais, tendo como meio de subsistência, à data, o Rendimento Social de Inserção.


39- Desta união nasceram dois filhos: o co-arguido BB e GG, com 13 anos de idade a viver com a mãe.


40- Aos 20 anos de idade, o arguido AA passou a fazer alguns trabalhos como segurança em estabelecimentos de diversão nocturna.


41- Então, retomou o ensino, completando o 6º ano de escolaridade através do Programa Novas Oportunidades e continuou a investir na prática de exercício físico.


42- O arguido AA foi detido em Setembro de 2010 tendo terminado a união de facto com a mãe dos filhos, assumido ainda um relacionamento extraconjugal existente já antes da detenção.


43- O arguido AA contraiu matrimónio em Fevereiro de 2012 (durante a reclusão), com uma cidadã brasileira, de quem se separou mais tarde.


44- Em Setembro de 2016, aquando da concessão de liberdade condicional a AA, a família (pais, irmãos e filho) estavam a residir na cidade de ..., pelo que o arguido se fixou também nesta cidade.


45- Durante o período de liberdade condicional, o arguido AA assumiu uma atitude colaborante com os serviços de reinserção social apresentando-se a todas as entrevistas previamente agendadas.


46- A nível profissional, e após concessão de liberdade condicional, o arguido teve dificuldade em exercer actividade laboral com regularidade, pelo que foi beneficiário do Rendimento Social de Inserção.


47- O arguido manteve a sua inscrição no Centro de Emprego de ..., respondendo a várias entrevistas, e em Abril de 2018, foi contratado como motorista da sociedade “M..., Lda”, com sede na ....


48- O arguido AA passou depois a trabalhar numa empresa de Restauração, com vários estabelecimentos na cidade de ...; devido à situação de pandemia Covid19, esteve em situação de “Lay Off”, mas já tinha retomado o trabalho a tempo inteiro à data dos factos.


49- Relativamente aos tempos livres, o arguido AA mantinha a sua actividade desportiva na Associação Académica de ... – Secção de Cultura Física.


50- A 30 de Março de 2022, o arguido AA foi preso preventivamente à ordem do presente processo.


51- A 27 de Setembro de 2022, o arguido AA foi colocado em cumprimento da pena de prisão que lhe foi imposta no processo comum colectivo 248/20.1..., no qual foi descontado o tempo de prisão preventiva sofrida no presente processo.


52- No estabelecimento prisional de ..., o arguido AA trabalha como faxina do ginásio e não regista incidentes disciplinares.


53- O arguido AA apresenta dificuldades em avaliar a responsabilidade pessoal nos acontecimentos.


(…).


73- No dia 19 de Fevereiro de 2022, EE foi assistido no Serviço de Urgência do CHU....


74- No dia 19 de Fevereiro de 2022, DD deu entrada no H.. tendo sido assistido no Serviço de Urgência, a que se seguiu internamento até 20 de Fevereiro de 2022


75- A assistência prestada foi originada pelos ferimentos apresentados em consequência da descrita agressão ocorrido naquele dia 19 de Fevereiro, pelas 05:00 horas, na zona da Praça ..., em ... e praticada pelos arguidos.


76- Os encargos com a assistência prestada a EE importam na quantia de 112,07 euros, ainda em débito.


77- Os encargos com a assistência prestada a DD importam na quantia de 1.323,02 euros.


78- Tais encargos ainda não se mostram pagos».


(…)”.


B) Factos não provados


“ (…).


I- o arguido AA agrediu EE com o auxílio de uma soqueira;


II- o arguido AA tenha dito repetidamente “Não te metas comigo. Eu sou ...!”;


III- o arguido AA quis deter e transportar uma soqueira;


IV- na descrita actuação sobre EE, os arguidos AA e CC quiseram agir com recurso a uma soqueira;


V- o arguido AA tenha agido com o propósito de defender o seu filho BB.


(…)”.


C) Fundamentação de facto [na parte relativa ao recorrente]


“(…).


3.2.8. Vejamos, então, se houve ou não erro de julgamento nestes autos.


RECURSO 1


Invoca o recurso 1 que foi erroneamente dada como provada a factualidade constante dos factos 2, 20, 21, 27, 31, 34 e 53, invocando também existir erro de julgamento na não prova do facto V.


Ou seja, é impugnado o seguinte (parte sublinhada), referentes à factualidade que está na base das condenações do arguido AA:


- no ponto “2- (…) BB esbarrou contra (…)”;


- no ponto “20- (…) com recurso a um objecto de características não concretamente apuradas, mas de características perfuro-cortantes semelhante a uma navalha”;


- no ponto “21- (…) ainda, com tal objecto (…)”;


- no ponto “27- (…) agiram com o propósito de molestar corporalmente (…)”;


- no ponto “31- (…) objecto com lâmina cortante, de características não concretamente apuradas mas semelhante a uma navalha (…)”;


- no ponto “32- (…) agiu com o propósito de tirar a vida (…)”; e,


- no ponto “34- (…) não manifesta arrependimento (…)”.


Já relativamente aos factos dados como NÃO PROVADOS, impugna que se tenha dado como tal o facto:


V- o arguido AA tenha agido com o propósito de fender o seu filho BB


Ouvimos as gravações dos depoimentos em causa (apenas os mencionados no recurso), ou seja:


- Depoimento do ofendido DD;


- Depoimento do ofendido EE;


- Depoimento da testemunha FF;


- Depoimento da testemunha HH;


- Depoimento da testemunha II;


- Depoimento da testemunha JJ.


Assinale-se que os arguidos não depuseram em audiência sobre os factos [o tribunal invocou o depoimento do pai AA a 30/3/2022, perante um Juiz, o que seria legítimo valorar o dito depoimento, ao abrigo dos artigos 141º/4 b) e 357º/1 b) do CPP – cfr. fls 207 -, discutindo-se na doutrina e jurisprudência se tais declarações podem valer como meio legítimo de prova sem serem expressamente lidas em audiência; contudo, diremos que para a dinâmica da criação da convicção pelos julgadores de ..., este depoimento não teve qualquer relevante valor, tal a credibilidade dada aos depoimentos das vítimas, sendo inócuo tomar aqui posição sobre este aspecto da prova].


Ouvidos os depoimentos dos dois ofendidos, corroboramos em absoluto com os epítetos atribuídos às suas palavras – «serenos, firmes, sérios e coerentes, mesmo quando confrontados com a possibilidade de diferente perspectiva dos factos».


Foram elucidativos e nada contraditórios, assumindo bem as dores que sentiram por se verem assim tratados de forma tão incivilizada e injustificada por três cidadãos portugueses (e as declarações de desistência de queixa de fls. 265 e 265-v, esta última com assinatura muito pouco idêntica à do DD – nada provam em seu desabono, tendo os mesmos contextualizado a razão de ser das mesmas e o carácter não verdadeiro do que lá se atesta quanto à forma como se processaram os acontecimentos daquela madrugada perto do M...).


De facto, o EE diz:


Não. É assim, eu estava de boa-fé para eles…” e acrescenta: “Eu estava a dizer… É assim, eu estava de boa-fé para eles, para desistir da queixa… Mas como eles estavam a inventar coisas que não aconteceram, porque estavam a dizer que nós é que fizemos isso e até estavam a dizer que nos deram dinheiro, foi aí que percebi e eu falei: “DD, se tu quiseres podes desistir da queixa, mas eu não vou desistir e vou até ao fim, se for preciso vou arranjar advogado e vou até ao fim porque eu sei que eu não fiz nada daquilo e que não nos deram nada, eles estão a mentir e estão a usar-nos para nos passar a culpa”… Eu disse: “não, eu não vou desistir da queixa porque foram eles que nos vieram pedir para os ajudar, para desistir da queixa, e estávamos a tentar ajudar e agora estão a fazer isto, então a partir de agora não vou desistir da queixa e levo a queixa até ao final”».


E estamos falados sobre o valor desta desistência.


Não temos qualquer dúvida que tudo começou com um encontrão – não duvidamos que foi involuntário da parte do arguido BB (e o verbo «esbarrar» foi o correcto) mas acreditámos mais nessa versão do que na veiculada pela testemunha KK, demasiado comprometida por laços de amizade com o pai e filho AA e BB, como bem assinalou o tribunal.


Diremos, contudo que é perfeitamente inócuo saber quem começou tudo – se foi um ou outro a esbarrar. O que interessa é que a partir daí escalou a violência.


E temos por certa a versão acusatória segundo a qual, e por ordem cronológica:


1º- O BB esbarra no EE, não havendo dados para aferir se foi involuntário ou não (facto 2);


2º- O BB abeira-se do EE e dá-lhe um murro no peito (procedimento criminal que foi extinto por homologação de uma desistência de queixa – cf. ponto II-B do despacho de arquivamento/acusação de fls 529 a 537);


3º- O EE agarrou o BB e provoca a sua queda (não se acredita minimamente que tenha havido qualquer desmaio – a fls. 201 do diário clínico não consta que o BB tenha perdido os sentidos, o que seria natural que informasse de viva voz quando recorre a ajuda hospitalar cerca das 8:59 do dia 19/2, recordando-se que os factos 1 a 9 decorreram pela 5 da manhã, sendo estranho que tenha recorrido o hospital quando é certo que apenas apresentava «contusões e hematomas nas regiões parietal e frontal esquerda, sem qualquer sintomatologia neurológica», saindo dos CHU... com gelo e ibuprofeno – olhando para a queixa recíproca que dá corpo ao Inquérito apenso nº 608/22.3..., e que estranha e sintomaticamente apenas deu entrada em juízo no dia 6 de Abril de 2022, quase dois meses após a data do evento danoso, começa a fazer sentido essa ida ao Hospital) – facto 5;


4º- Surge a agressão dos arguidos AA e CC à pessoa do EE, desferindo-lhe murros na cabeça e pontapés e murros em todo o corpo (factos 8 e 9);


5º- Após a fuga das vítimas guineenses, os 3 arguidos perseguem os mesmos, agredindo os três o ofendido DD (facto 19);


6º- Surge então o fatal golpe do arguido AA ao DD (facto 20, a que acresce o facto 21, só imputável ao AA).


Quanto ao objecto cortante usado pelo AA, sabemos que a vítima não se lembra de nada ter visto na mão do seu agressor mas apenas de sentir.


E sentiu uma lâmina, disse-o de viva voz, não entendendo este tribunal que tenha sido induzido pelo seu inquiridor tal como insinua a defesa.


É risível a argumentação de que poderia um anel do AA ter provocado a ferida sofrida pelo DD. Na cara ainda se poderia compreender. Mas no seu abdómen (factos 23 e 24) foi muito mais do que um anel, sendo «cortante» (depoimento da vítima), não sendo crível que um anel – ou uma invocada (pelos autos) caneta Uniball – provoque as lesões que levaram a uma intervenção cirúrgica no corpo do DD.


Contudo, a defesa não conseguiu trazer aos autos qualquer prova relevante que infirme a conclusão de que foi esse objecto cortante – que não o anel – nas mãos do AA a provocar os danos na face e no abdómen do DD.


Para o tribunal de 1ª instância e para este tribunal foi esse objecto – descrito no facto 20 – não identificado (sendo naturalíssimo que as vítimas não tenham conseguido ver a «arma» em causa nas branqueado mãos dos seus algozes pois a prioridade era a sua defesa, tapando até os olhos e protegendo a sua cabeça, a fim de evitar males maiores).


O depoimento da Inspectora HH nada traz de relevante aos autos – o facto de nada ter sido encontrado na busca domiciliária à habitação do AA que se possa subsumir à característica do «objecto» usado pelo AA não significa que ele não o tenha usado, livrando-se posteriormente do mesmo, como é óbvio.


Também nada na argumentação da defesa nos convence de que o AA agiu para defender o seu filho (facto – e muito bem – não provado), ou que tenha agido ao abrigo de uma causa da exclusão da culpa prevista no artigo 35º do CP (estado de necessidade desculpante).


*


E temos de trazer à liça regras de Direito Penal substantivo para decidir esta questão factual.


Falemos um pouco dos artigos 31º e sgs. do CP.


Comecemos pelos bancos da Faculdade com os conceitos básicos da dogmática jurídico-penal (navegando pela doutrina geral do crime onde se fala de tipos incriminadores e tipos justificadores).


Estatui o artigo 31º do CP que:


«1 – O facto não é punível quando a sua ilicitude for excluída pela ordem jurídica considerada na sua totalidade.


2 – Nomeadamente, não é ilícito o facto praticado:


a) Em legítima defesa;


b) No exercício de um direito;


c) No cumprimento de um dever imposto por lei ou por ordem legítima da autoridade; ou


d) Com o consentimento do titular do interesse jurídico lesado».


Estas causas de justificação excluem a antijuridicidade de uma conduta que pode subsumir-se a um tipo legal de crime – de facto, há actos e omissões que revestem o aspecto de delito mas a que falta, não obstante, o carácter de serem antijurídicos, de contrários ao Direito, que é o elemento mais importante do crime).


Como exemplarmente explica o nosso Mestre de Coimbra, Eduardo Correia (Direito Criminal, I, Almedina, p. 311), «para ser criminalmente antijurídica precisa, pois, toda a relação social de ser típica, mas não será criminalmente ilícita necessariamente uma relação só por ser formalmente típica. (…) A ilicitude de uma conduta que resulta da sua subsunção formal a um tipo legal de crime pode ser ilidida pela existência de determinadas circunstâncias que, na valoração total da conduta, a excluem».


Johannes Wessels em «Direito Penal – parte geral (aspectos fundamentais)», Sergio Antonio Fabris Editor, 1976, p. 62-63, refere que «uma acção é antijurídica, quando realiza um tipo de injusto e não se torna acobertada por uma causa de justificação; (…) A justificativa de uma acção típica resulta (…) da colisão entre a norma proibitiva ou de comando, fundamentadora do tipo de injusto, e uma oração permissiva. (…) Estas orações permissivas, revestidas nas causas justificantes, impedem, no caso de sua incidência, que a proibição geral se concretize em dever jurídico».


Assim, a conduta justificada permanece «típica» mas não contém qualquer lesão ao dever jurídico, tornando-se aprovada pela ordem jurídica por via do alcance de outros objectivos valiosos.


Teresa Beleza sistematiza esta ideia aduzindo que «as causas de justificação ou de exclusão da ilicitude afastam o indício da ilicitude dado pela tipicidade». (Direito Penal, 2º volume, AAFDL, p. 253).


Dito de outra forma, como o faz o outro nosso mais directo Mestre de Coimbra, Figueiredo Dias, «uma acção relativamente à qual se verifique uma causa de justificação, em todas as suas exigências objectivas e subjectivas, constitui um facto lícito», in Direito Penal, Parte geral, Tomo I, Coimbra Editora, 2004, p. 378.


No nosso Direito Penal (e note-se que a ilicitude é uma qualidade de um comportamento que tem de ser vista face ao conjunto da ordem jurídica e não apenas em relação à lei penal, havendo disposições do Código Civil, respeitantes à acção directa, à legítima defesa e ao estado de necessidade que têm relevância em sede de direito penal, havendo, assim, uma multiplicidade de fontes legais das causas de justificação, em nome do princípio da unidade da ordem jurídica), podemos vislumbrar esta sistematização das causas de exclusão da ilicitude (vulgo, causas de justificação ou tipos justificadores ), sob a veste de causas de justificação gerais e causas de justificação especiais (próprias ou impróprias):


- A legítima defesa (artigo 32º do CP);


- O direito de necessidade (artigo 34º do CP);


- O conflito de deveres (artigo 36º, n.º 1 do CP);


- A obediência hierárquica (artigo 36º, n.º 2 do CP);


- Os consentimentos justificantes (o real ou efectivo e o presumido – artigos 38º e 39º do CP);


Outras causas de exclusão da ilicitude:


- o chamado estado de necessidade defensivo;


- a acção directa;


- o exercício de um direito – os direitos ou liberdades religiosa, cultural e de consciência.


Embora não de forma muito explícita, cremos que o arguido defende que a sua conduta não é ilícita, por não lhe ser exigível ter outro comportamento.


Deixa-se escrito na motivação do recurso: «O arguido AA seguidamente agiu de forma consciente e sobre o pretexto de uma acção que considerou na sua índole, legitimada e justificada, dado o caso em concreto, que mais não era o de afastar do seu filho BB o real risco e perigo de ameaça à vida e integridade física (pelo facto de estar prostrado no chão, inanimado após cair por causa imputável a EE), que estava a ocorrer naquele momento (entre o arguido BB, menor de idade e de menor robustez quando comparada com a idade de EE e a sua constituição física), tudo nos termos do n.º 1, do artigo 35.º do Código Penal».


Invoca directamente o estado de necessidade desculpante (artigo 35º do CP).


Sabemos que o nosso ordenamento jurídico consagra a teoria diferenciada do estado de necessidade, que consiste na distinção entre o estado de necessidade objectivo (ou justificante) como meio de salvaguarda de um bem jurídico de maior valor do que o do sacrificado, e o estado de necessidade subjectivo (ou desculpante) como meio adequado de salvaguarda de um bem jurídico de igual ou menor valor do que o do sacrificado.


Neste último, ínsito na letra do artigo 35º do CP, enquanto circunstância de exclusão da culpa, pretende-se abranger aquelas situações em que se encontra enfraquecido, de forma significativa, o desvalor da acção ilícita através de situações de estados emocionais que colidem com o processo de formação da vontade, de tal forma que não é exigível ao agente outro comportamento.


Para esta norma do CP, não basta que o facto ilícito perpetrado seja adequado ao afastamento do perigo, sendo necessário que aquele seja o único facto capaz de remover o perigo.


Assim, havendo outro ou outros meios para afastar o perigo, o agente terá que optar pelo lícito ou menos ilícito.


Ou seja:


A verificação do estado de necessidade desculpante depende do preenchimento dos seguintes pressupostos: a verificação de uma situação de perigo actual para bens jurídicos de natureza pessoal (vida, integridade física, honra e liberdade) do agente ou de terceiro; o facto ilícito praticado tem de ser adequado, no sentido de idóneo a afastar o perigo que não seria removido por outro modo; que se conclua não se mostrar razoável exigir do agente, segundo as circunstâncias do caso, comportamento diferente.


Tais pressupostos são cumulativos, pelo que a não verificação de um dos requisitos implica, inevitavelmente, a não aplicação da causa de exclusão da culpa.


Revertendo ao caso ora em apreço, constatamos que não se mostra verificado, desde logo, o primeiro dos referidos pressupostos, ou seja, não se verificava qualquer situação de perigo actual que ameaçasse interesse juridicamente protegidos do arguido ou de terceiro nem qualquer situação de perigo actual para bens jurídicos de natureza pessoal (vida, integridade física, honra e liberdade) do arguido ou de terceiro.


Não se acreditou que o BB tenha sido tocado de forma tão grave que o tenha levado ao desmaio e que aquilo que este pai viu justificava a agressão aos ofendidos guineenses da forma como ela se processou.


A compleição física do filho BB não seria até de molde a pensar-se que o mesmo precisaria de defesa por terceiros.


Diga-se ainda que ele sempre poderia ter agido de outra forma – antes de mais, vendo o filho desmaiado, na sua versão, chamava o INEM e depois chamava as autoridades policiais, sempre por ali pululantes na Avenida ..., nesta cidade de ..., evitando partir para um puro acto de vingança e de raiva absolutamente injustificada.


Na conclusão IV alega que:


É, pois, de concluir que não se verificam os pressupostos do estado de necessidade desculpante ou justificante, nem há elementos nos autos que permitam, de forma alguma, sustentar que não era exigível ao arguido ter um comportamento lícito .


*


No que tange à legítima defesa, aqui e ali também abordado pela defesa, diremos que:


A legítima defesa – causa de exclusão da ilicitude tipicamente prevista na letra dos artigos 31º e 32º [Constitui legítima defesa o facto praticado como meio necessário para repelir a agressão actual e ilícita de interesses juridicamente protegidos do agente ou de terceiro], do CP – tem por requisitos, como claramente decorre do texto legal, a ocorrência de uma agressão (sendo ela toda a lesão ou perigo de lesão de um interesse próprio ou de outra pessoa protegido pelo ordenamento jurídico – H. Jescheck, Tratado de Derecho Penal Parte General - 4ª edição - 1993, p. 303) levada a cabo por um comportamento humano voluntário e consciente, devendo esta ser actual, isto é, estar a realizar-se, em desenvolvimento ou iminente (a iminência da agressão afere-se, habitualmente, pela ocorrência de situação perigosa, a qual se caracteriza pela prática de actos que, segundo a experiência comum e salvo circunstâncias imprevisíveis, forem de natureza a fazer esperar que se lhes siga o acto agressivo, isto é, a agressão), ilícita, ou seja, não ter o agressor direito a infligir ou a praticar a agressão, independentemente do facto de aquele se comportar dolosamente, com mera culpa ou se tratar de um inimputável (cfr. Maia Gonçalves, Código Penal Anotado e Comentado - 8ª edição/1995, p. 277, entre outros), só evitável ou neutralizável através de uma acção ou acto de defesa, acto que, atenta a sua função, qual seja a de impedir ou repelir a agressão, deve limitar-se à utilização do meio ou meios, suficientes para evitá-la ou neutralizá-la, consabido que em consequência desse acto ir-se-ão atingir bens ou interesses do agressor.


A legítima defesa não é nem pode redundar numa acção punitiva, a ela se encontrando subjacente o princípio do maior respeito pelo agressor (cf. Jescheck, ibidem, 308).


Desta forma, «meios adequados» para impedir ou repelir a agressão, mas mais danosos (para o agressor) do que aqueles que, sem deixarem de ser adequados (suficientes, eficazes), causariam menores lesões ou prejuízos ao agressor, serão considerados desnecessários e, como tal, excluirão a justificação do facto praticado pelo agredido .


Igualmente, devem ser considerados inadequados os meios que, apesar de pouco danosos para o agressor, não dispõem de quaisquer possibilidades de impedir a agressão ou de dissuadir o agressor.


Por isso, tem-se decidido que o juízo sobre a adequação do meio de defesa não pode deixar de ter em consideração as circunstâncias concretas de cada caso: o bem ou interesse agredidos, o tipo e a intensidade da agressão, a perigosidade do agressor e o seu modo de actuar, a capacidade físico-atlética do agressor e do agredido, bem como os meios de defesa disponíveis e as demais circunstâncias relevantes ocorrentes (Cfr. Taipa de Carvalho, A Legítima Defesa (1995), 318 e H. Jescheck, ibidem, 308).


No fundo, trata-se de um juízo objectivo e ex ante, pelo que o julgador se terá de colocar na posição que assumiria uma pessoa prudente perante as circunstâncias concretas ocorrentes, sem esquecer que a exigência de utilização do meio menos gravoso para o agressor não pode levar a fazer recair sobre o agredido riscos para a sua vida ou integridade física, a significar que o defendente não está obrigado a recorrer a meios ou medidas cuja eficácia para a sua defesa é duvidosa ou incerta.


A defesa só é legítima se surgir como indispensável para a salvaguarda de um interesse jurídico do agredido ou de terceiro – o meio menos gravoso para o agressor.


A necessidade da defesa tem de ajuizar-se segundo o conjunto de circunstâncias em que se verifica a agressão e, em particular, na base da necessidade desta, da perigosidade do agressor e da sua forma de actuar, bem como dos meios de que se dispõe para a defesa, e deve aferir-se objectivamente, ou seja, segundo o exame das circunstâncias feito por um homem médio colocado na situação do agredido.


No que concerne ao elemento subjectivo, não obstante grande parte da nossa jurisprudência e certo sector da doutrina continuem a exigir a ocorrência de animus defendendi, isto é, a vontade de defesa, muito embora com essa vontade possam concorrer outros motivos, tais como indignação, vingança e ódio (acs. do STJ., de 3.7.91, 25.6.92 e 21.1.93, proferidos nos processos n.ºs 41982, 42682 e 42837 e desta Relação de 10.10.84, sumariado no BMJ, 340- 448), a verdade é que se tem vindo ultimamente a entender, na esteira da doutrina mais recente [Taipa de Carvalho, ibidem, 375/387 e Cavaleiro de Ferreira, Direito Penal (1992)], que o elemento subjectivo da acção de legítima defesa se restringe à consciência da «situação de legítima defesa», isto é, ao conhecimento e querer dos pressupostos objectivos daquela concreta situação, o que se justifica e fundamenta no facto de a legítima defesa ser a afirmação de um direito e na circunstância do sentido e a função das causas de justificação residirem na afirmação do interesse jurídico (em conflito) considerado objectivamente como o mais valioso, a significar que, em face de uma agressão actual e ilícita, se deve ter por excluída a ilicitude da conduta daquele que, independentemente da sua motivação, pratica os actos que, objectivamente, se mostrem necessários para a sua defesa .


Decidiu, deste modo, o Acórdão da Relação de Coimbra de 17/9/2003 (Pº 2021/03, visitável em www.dgsi.pt ):


«A exigência do animus defendendi revela-se, aliás, desprovida de sentido, uma vez que se ocorrem os requisitos da «situação de legítima defesa» – agressão actual e ilícita, verificando-se que o defendente não teve outro remédio que defender-se (necessidade de defesa) –, pouco importa, obviamente, que tenha sido motivado por indignação, vingança ou ódio (neste preciso sentido Quintero Olivares, Derecho Penal Parte General (1992), 461). Por isso, o texto do art.32º, do Código Penal, ao aludir «… ao facto praticado, como meio necessário, para repelir a agressão actual e ilícita de interesses juridicamente protegidos do agente ou de terceiro», ao contrário do expressamente defendido por Leal Henriques/Simas Santos que ali detectam a exigência do animus defendendi, não significa outra coisa que a consciência da agressão e a necessidade de defesa».


Seremos forçados, neste particular, a defender uma tese algo mista, concordante com a doutrina de Fernanda Palma, exarada no artigo «Legítima Defesa», incluído na obra «Casos e Materiais de Direito Penal» (Coordenação de F. Palma/José Manuel Vilalonga e Carlota Pizarro de Almeida, Almedina, 2000, p. 167-168:


«A legítima defesa exige uma efectiva consciência pelo defendente da situação defensiva. Não se configura como defesa nem uma protecção inconsciente e causal do agente relativamente a uma agressão nem a provocação pré-ordenada pelo defendente de uma situação de legítima defesa. Não será, exigível, propriamente, um animus defendendi, no sentido de a defesa ser a exclusiva motivação do defendente, mas é necessário que a conduta que se opõe à agressão ilícita seja explicável como defesa na linguagem social – o que impõe uma acção conscientemente dirigida à defesa, em que a agressão seja motivo determinante do agir».


Ora, a ausência dessa consciência impede a justificação por legítima defesa.


Diga-se ainda que legítima defesa e retorsão são realidades jurídicas incompatíveis – enquanto na primeira, há defesa relativamente a uma agressão iminente ou em execução, na retorsão, o agente procura fazer represália, obter vindicta, tirar desforço, replicar.


Assim, e em suma, poderemos dizer que a exclusão da ilicitude de uma conduta, ao abrigo do artigo 32º do Código Penal, exige a presença de cinco requisitos objectivos e um elemento subjectivo, a saber, a agressão de interesses juridicamente protegidos do agente ou de terceiro, a actualidade da agressão, a ilicitude da agressão, a necessidade da defesa, a necessidade do meio e o conhecimento da situação de legítima defesa, sendo que os três primeiros requisitos objectivos se referem à situação em que o agente actua e os dois últimos à acção de defesa.


Aqui chegados, fácil é também de concluir que a subsunção do eventual acto do arguido a esta figura seria absurda e despropositada na medida em que, no nosso caso, o AA não estava a directa e inelutavelmente defender o filho (já estaria no chão), SABENDO QUE nós que quem primeiro agrediu dolosamente alguém foi o BB e não os ofendidos DD e EE (facto 5)


Se assim é, então o acto agressivo do AA SÓ pode ser doloso e não branqueado ou desculpado ao abrigo dos artigos 34º ou 35º do CP.


Discutiremos na fundamentação de DIREITO se foi bem feita a subsunção jurídico-penal aos tipos legais eleitos.


*


Portanto, também nós não acreditámos nos depoimentos das testemunhas KK, II e JJ, pelas mesmíssimas razões avançadas pelo tribunal de 1ª instância.


Aliás, os excertos escolhidos pela defesa não são suficientes para que nós possamos concluir, com segurança, de que houve um flagrante erro de julgamento quanto à linha do tempo destes acontecimentos de Fevereiro de 2022, no coração da nossa cidade de ....


Temos assim como bem provados os factos 2, 20, 21 e 27.


Quanto ao facto 31 (intenção de matar), não duvidamos dela, face ao circunstancialismo daquela perseguição desenfreada pelos arguidos atrás dos dois guineenses.


O tribunal explicou-se assim:


«O tribunal colectivo formou a convicção de que o arguido AA tinha a intenção de matar a partir da conjugação dos pontos essenciais e da intensidade da sua actuação, das características do instrumento, bem como do local atingido (sendo absolutamente inconsistente a afirmação do arguido de que levou uma caneta para proteger o filho).


O dolo, dada a sua natureza subjectiva, é insusceptível de apreensão directa, só podendo captar-se a sua existência através de factos materiais, entre os quais o preenchimento dos elementos integrantes da infracção, e por meio das presunções materiais ligadas ao princípio da causalidade ou das regras gerais da experiência.


Ora, toda a actuação do arguido e demais circunstâncias são suficientes para concluir pelo preenchimento dos elementos subjectivos do crime de homicídio bem como das ofensas à integridade física.


Existem elementos do crime que, no caso da falta de confissão, só são susceptíveis de prova indirecta como são todos os elementos de estrutura psicológica, são os relativos ao aspecto subjectivo da conduta criminosa. E, neste caso, todos apontam nesse sentido sem outra alternativa, como referido».


Parece-nos suficiente.


É certo que dos relatórios periciais da avaliação do dano corporal, de fls. 9/10 e 337/338, não se retira que o DD esteve em perigo de vida (ainda que as lesões decorrentes da agressão que pelo arguido lhe foi infligida tivessem carecido de intervenção médica urgente).


No entanto, não podemos confundir a falta de perigo para vida com a intenção de tirar a vida ao ofendido.


De facto, o arguido actuou com a intenção de matar o ofendido, o que apenas não ocorreu por motivos alheios à sua vontade, sendo que nenhuma relevância tem para o preenchimento do tipo de ilícito em apreço a circunstância de não ter resultado da sua actuação perigo concreto para a vida do atingido.


Ou seja, podemos estar perante um crime de homicídio tentado e não termos, afinal, uma ferida capaz de matar alguém, por falta de destreza do agente ou por outra qualquer razão.


E bem andou o tribunal em dar como provado a intenção de matar, a qual é retirada de muitas circunstâncias, como mais à frente daremos conta.


Assim, das lesões provocadas pelo arguido na pessoa do DD, bem como das declarações por este prestadas – a raiva contida no facto 20 é relevante disso mesmo, não temos dúvidas, lidas estas palavras à luz das regras da experiência comum e do normal acontecer em pessoas da noite para quem a violência é pasto e a confrontação é usual –, decorre, de forma inequívoca, que pretendia o recorrente atingir o ofendido na barriga, atingindo, quiçá, órgãos vitais, e fazendo-o com a intenção de lhe tirar a vida, o que só não aconteceu por circunstâncias alheias à sua vontade.


Como tal, nada do que é trazido pela defesa em sede de recurso infirma a convicção de culpabilidade do arguido – com base no elenco de factos que deu como provados – que o tribunal de Coimbra criou, criando este tribunal de recurso a mesma convicção de forma fundada e seriamente fundamentada.


Razão pela qual nada há a alterar ao facto nº 32 (intenção de matar).


*


E a questão do arrependimento do AA (facto 34)?


E o facto 53?


Deu-se como provado que:


«34- O arguido AA não manifesta arrependimento


53- O arguido AA apresenta dificuldades em avaliar a responsabilidade pessoal nos acontecimentos».


Entende a defesa que foi violado o seu direito ao silêncio, não podendo o tribunal valorar negativamente esse silêncio.


Ora, não tem razão a defesa do arguido AA.


Uma coisa é provar-se o não arrependimento, outra é não se provar o arrependimento.


No nosso caso, o tribunal entendeu não se ter provado o arrependimento, mas já não deu como provada a ausência de arrependimento.


Apenas que ele não manifestou arrependimento.


O que é verdade.


Nada tendo dito em julgamento o recorrente AA, também não revelou, por palavras, estar arrependido da sua conduta.


E fundamentou a conclusão com base não só no silêncio do arguido recorrente, como também na falta de outros elementos de prova que fundamentassem esse arrependimento.


O aresto do STJ referido pelo Colectivo na sua nota de rodapé nº 12 é elucidativo e convincente:


«Não houve, portanto, valoração negativa do direito ao silêncio, que só teria acontecido se o tribunal tivesse deduzido do silêncio o não arrependimento do recorrente, o que não sucedeu.


O tribunal afastou o arrependimento porque o arguido não o verbalizou convincentemente (antes remetendo-se ao silêncio), nem praticou qualquer ato material donde o arrependimento pudesse ser deduzido.


Mas não considerou provada a falta de arrependimento».


O facto de não ter falado não significa que o arguido não está arrependido.


O facto de não ter falado não significa que o arguido está arrependido.


Apenas significa que não demonstrou por palavras esse arrependimento.


Nada mais.


Por isso, nada a censurar à letra do facto 34.


Quanto ao facto 53, diremos apenas que ele resultou da livre convicção criada pelo tribunal pela leitura que fez do relatório social constante de fls. 648/650 (da lavra da entidade que assessoria os tribunais nesta matéria, a DGRSP).


Não do seu CRC, bem entendido.


Um erro na vida não significa uma vida de erros.


O facto 53 dá conta que o arguido apresenta dificuldades em avaliar a responsabilidade pessoal nos acontecimentos, OU SEJA, nos acontecimentos ocorridos em 19/2/2022 e não outros quaisquer.


Esse facto apenas nos dá conta que ele não assume a autoria dos factos acusados, desculpabilizando a sua atitude (o que é, aliás, bem revelado pelos termos do recurso que intenta).


É uma conclusão que o tribunal retira do relatório em causa que opina e ajuíza, dando a sua percepção sobre o que viu e ouviu quando elaborou o dito documento (tido como fonte no acórdão, como resulta de fls. 748, 1º parágrafo, cujo teor foi livremente apreciado pelo tribunal).


Sabemos que um Relatório Social contém a informação sobre a inserção familiar e socioprofissional do arguido e, eventualmente, da vítima, elaborado por serviços de reinserção social, com o objectivo de auxiliar o tribunal ou o juiz no conhecimento da personalidade do arguido, para os efeitos e nos casos previstos na lei (artigo 370º CPP).


Como decidiu o acórdão da Relação de Lisboa, datado de 18/5/2021 (Pº 454/19.1PEAMD.L1-5):


«Segundo a definição constante do artigo 1.º, n.º 1, alínea g) do Código de Processo Penal, «Relatório social» é a informação sobre a inserção familiar e socioprofissional do arguido e, eventualmente, da vítima, elaborado por serviços de reinserção social, com o objectivo de auxiliar o tribunal ou o juiz no conhecimento da personalidade do arguido, para os efeitos e nos casos previstos na lei.


O relatório social constitui uma informação elaborada por técnico superior de reinserção social habilitado para o efeito, nas áreas das ciências sociais, para além da formação profissional que lhe é dada.


E para que tal informação seja completa e tenha alguma utilidade, não se pode contentar com meros números que pouco podem dizer, mas fazendo incluir uma caracterização, em termos de comportamentais e de conduta nos vários meios onde o arguido interage.


Aliás, só assim, o relatório social poderá e assumir sua função, e é a própria letra da lei que o diz, ao expressamente definir no art° 1°, alínea g), do Código de Processo Penal, que serve para aferir da inserção sócio-profissional e, para além do mais, auxiliar o tribunal, para além do mais, no conhecimento da personalidade do arguido.


Trata-se portanto, de um meio de prova habilitante do conhecimento da personalidade do arguido que, não tendo o valor de prova pericial, está sujeito ao princípio da livre apreciação da prova.


Uma vez que, como dissemos, o relatório social está sujeito ao princípio da livre apreciação da prova, nada impedia que o tribunal recorrido o tivesse valorado probatoriamente para decidir sobre a prova de factos relevantes para a escolha e determinação da medida das penas a aplicar, nomeadamente os pontos (…) da Matéria de Facto provada, não constituindo, pois, meios de prova inválidos».


De facto, o relatório social não é uma prova mas tão só um meio de prova habilitante do conhecimento da personalidade do arguido, sujeito ao princípio da livre apreciação da prova.


É certo que se pode dizer que, não tenho o arguido falado em julgamento, o tribunal não pode saber, com rigor, se ele tem dificuldades em avaliar a sua responsabilidade pessoal nos acontecimentos.


Mas é lícito ao tribunal retirar essa conclusão factual, não só do teor do relatório social que livremente apreciou, mas também da forma como o arguido contestou este processo em peça escrita onde, literalmente, diz que os factos da acusação são falsos (cfr. fls 693/694) – o comportamento processual também é revelador da forma como um arguido se posiciona perante uma acusação pendente sobre si, não sendo tal apenas retirado de eventuais palavras ditas pelo arguido em julgamento, ditando esse facto 53, apenas e só, que o AA tem dificuldades em assumir a autoria destes factos que o tribunal teve como provados – e isso é inegável e indesmentível.


Diga-se ainda que o recorrente nada disse, nada pondo em causa do relatório social ora analisado.


Partindo da norma do artigo 123º do CPP (arguição de irregularidades), diremos que, notificado do teor do relatório social, o recorrente AA nada questionou nem nada requereu, nem antes, nem depois do início da audiência de julgamento, iniciada em 24 de Janeiro de 2023, pelo que, se algum vício o relatório social tivesse, tal poderia constituir uma mera irregularidade, para suscitação da qual o recorrente deixou passar largamente o prazo em que o podia fazer, não tendo, por isso, a virtualidade de determinar a invalidade do ato a que se refere e do termos subsequentes que pudesse afectar.


Como tal, nenhuma censura se faz ao facto 53.


*


E quanto ao facto não provado V?


A tese de que o AA agiu sempre em defesa de seu filho não vingou, sendo claro o tribunal em, desacreditando os depoimentos das testemunhas KK, II e JJ (claramente construído para dar crédito à versão alternativa dos arguidos), considerar que resulta que o mesmo quis retaliar e prevalecer face ao desentendimento que o seu filho acabou por antes provocar.


Ouvidos os depoimentos gravados das ditas 3 testemunhas, deles não retiramos qualquer credibilidade capaz de, convictamente, fazer inverter o juízo fáctico erigido pelo tribunal de Coimbra, assente que este tribunal deu muito maior fidedignidade à versão dos ofendidos do que à dos arguidos (e nós estamos com ele).


Como tal, mantém-se intacto tal facto não provado.


(…)”.


D) Fundamentação de direito quanto à determinação da medida da pena única


“(…).


3.3.2.1. O tribunal de Coimbra fez as seguintes condenações:


1º- O arguido AA pela prática, em concurso real:


- em co-autoria e na forma consumada, de um crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punido pelos artigos 145º, nº 1, alínea a) e nº 2 e 132º, nº 2, alíneas e) e h), ambos do Código Penal, doravante CP, na pena de três anos e seis meses de prisão, relativamente ao ofendido EE;


- em autoria material e na forma tentada, de um crime de homicídio qualificado, previsto e punido pelos artigos 131º, 132º, nºs 1 e 2, alínea e), 22º e 23º, todos do CP, na pena de sete anos e seis meses de prisão;


condenando o dito arguido, em cúmulo jurídico, nos termos do disposto no artigo 77º, nºs 1 e 2, do CP, na pena única de nove anos de prisão efectiva;


(…)


3.3.2.2.2. E quanto às penas de prisão aplicadas?


Foram estas as razões do tribunal, a este nível, na parte concernente aos dois recorrentes (com sistematização nossa, para melhor entendimento):


«Face à anterior explanação de natureza teórica, e que apenas pode relevar como premissa na lógica que nos leva à individualização da pena no caso concreto, impõe-se, agora, a consideração das circunstâncias singulares da actuação em apreço.


A determinação concreta da pena deve valorizar as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, militem a favor do arguido ou contra ele; assim, impõe-se ponderar:


- o grau de ilicitude do facto é elevado tendo em conta a intensidade da actuação dos arguido e o contexto de actuação dos mesmos sobre os ofendidos;


- modo de execução dos crimes: à noite, aproveitando a presença do arguido AA e o seu local de trabalho; perseguindo os ofendidos de carro depois da primeira agressão a EE;


- gravidade das consequências: as sequelas e o período de incapacidade quanto às ofensas à integridade física; a não consumação do crime de homicídio devido ao apoio de EE que auxiliou DD a ir ao hospital;


- grau de violação dos deveres impostos ao agente: elevado tendo em conta o modo de actuação revelador de um intenso desrespeito pela integridade física dos queixosos, sendo que o arguido AA manifestou, além disso, absoluta desconsideração pela vida de DD (exibindo, aliás, tal exemplo para o seu filho);


- intensidade do dolo: grau mais elevado – dolo directo – artigo 14º, nº 1, representação do facto e actuação com intenção de o realizar;


- sentimentos manifestados no cometimento do crime: desprezo pela integridade física e vida alheias e sobranceria apenas com o sentido de prevalecer (marcar presença) através da agressão;


- fins ou motivos que o determinaram: resolver “à sua maneira” a provocação criado por um dos agressores (arguido BB) e vingar a afronta ao filho na zona onde o mesmo trabalhava (arguido AA), (…);


- condições pessoais dos arguidos e situação económica:

- o arguido AA - após ter beneficiado da liberdade condicional em Setembro de 2016, fixou residência em ... onde morava a família (pais, irmãos e filho); a nível profissional, em Abril de 2018, foi contratado como motorista da empresa M..., Lda, passando depois a trabalhar numa empresa de Restauração, com vários estabelecimentos na cidade de ...; devido à situação de pandemia Covid19, esteve em situação de “Lay Off”, mas já tinha retomado o trabalho a tempo inteiro à data dos factos; nos tempos livres mantinha a sua actividade desportiva na secção de cultura física da Associação Académica de ...;

(…).


- conduta anterior aos factos:

- o arguido AA regista diversas condenações anteriores aos factos deste processo: um crime de homicídio na forma tentada e um crime de detenção de arma proibida, por factos praticados a 22.08.2010 (cinco anos e seis meses de prisão); um crime de falsidade de testemunho, por factos praticados a 15.12.2006 (100 dias de multa, à taxa diária de cinco euros); um crime de apropriação ilegítima, por factos praticados a 11.11.2009 (na pena de 100 dias de multa, à taxa diária de cinco euros); um crime de detenção de arma proibida e um crime de trafico de estupefacientes, por factos praticados, respectivamente, a 03.09.2010, e no ano de 2009 (6 anos e 2 meses de prisão); um crime de falsidade de testemunho, por factos ocorridos a 27.02.2019 (um ano e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução por dois anos sujeita ao regime de prova); um crime de tráfico de estupefaciente de menor gravidade e de um crime de detenção de arma proibida, por factos ocorridos a 28.04.2020 (dois anos e seis meses de prisão efectiva); trabalhava como descrito;

(…).


- conduta posterior aos factos:

- o arguido AA, no estabelecimento prisional, trabalha como faxina do ginásio e não regista incidentes disciplinares, apresenta dificuldades em avaliar a responsabilidade pessoal nos acontecimentos; não manifesta arrependimento;

(…).


- todos os três arguidos ostentam falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, que deve ser censurada através da aplicação da pena: todo o conjunto da actuação dos arguidos demonstra elevada falta de preparação para manter uma conduta lícita.


Definindo, a partir deste quadro, a importância da justa retribuição do ilícito e da culpa, bem como as necessidades da prevenção especial e, depois, da prevenção geral (confirmação da ordem jurídica), chamando a ponderação entre a gravidade da culpa expressa no facto e a gravidade da pena com a graduação da importância do crime para a ordem jurídica violada (conteúdo da ilicitude) e a gravidade da reprovação que deve dirigir-se ao agente do crime por ter praticado o mesmo delito (conteúdo da culpa), considerando as respectivas molduras penais, o tribunal colectivo entende que os arguidos devem ser condenados nas seguintes penas:


A)- arguido AA:


- crime de homicídio qualificado, na forma tentada (moldura penal entre os 2 anos quatro meses e 24 dias e os 16 anos e 8 meses): sete anos e seis meses de prisão, levando, especialmente, em conta o tipo de golpe desferido sobre a vítima, a motivação e o contexto da actuação e o facto de a vítima estar só, caída, ser de noite e o arguido estar acompanhado pelos outros dois arguidos, sendo um deles seu filho, bem como o facto de já ter cumprido pena de prisão pela prática do crime de homicídio na forma tentada;


- crime de ofensa à integridade física qualificada (moldura penal de um mês a quatro anos): três anos e seis meses de prisão, considerando as circunstâncias referidas acrescendo o facto de ter sido praticado junto ao Bar onde estava a trabalhar;


(…).


Cúmulo jurídico


Cada um dos arguidos AA e (…)vai condenado pela prática de dois crimes.


Nos termos do artigo 77º, nº 1, do Código Penal quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena.


Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.


A pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes (artigo 77º, nº 2).


Na consideração dos factos (do conjunto dos factos que integram os crimes em concurso) há que fazer uma avaliação da gravidade da ilicitude global, como se o conjunto de crimes em concurso se ficcionasse como um todo único, globalizado, que deve ter em conta a existência ou não de ligações ou conexões e o tipo de ligação ou conexão que se verifique entre os factos em concurso.


É pacífico o entendimento de que se deve ter em conta, no dizer do Senhor Professor Figueiredo Dias, “a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão, e o tipo de conexão, que entre os factos concorrentes se verifique.


Na avaliação da personalidade - unitária - do agente relevará, sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma “carreira”) criminosa, ou tão só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta.


De grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização)”.


Neste caso, devem ser consideradas as circunstâncias temporais (factos ocorridos na mesma noite/madrugada), na mesma zona da cidade com escassa amplitude espacial, a homogeneidade de bens jurídicos protegidos por estes crimes e o respectivo enquadramento, reiteração (número de actuações) e gravidade dos comportamentos.


Assim, na avaliação da personalidade, relevando também a idade dos arguidos, não se pode concluir que o conjunto global dos factos indicie uma tendência criminosa para além de uma sequência de actuações motivadas pelo desentendimento inicial.


Em qualquer dos dois casos, a pena mais grave deve sofrer um relevante “efeito expansivo”, com a consequente aplicação de uma pena conjunta, medianamente acima da pena parcelar mais grave.


As penas devem atender aos respectivos graus de intensidade e relevância da actuação de cada um dos arguidos bem como as necessidades de prevenção especial.


Nesta conformidade, perante tais critérios, considerando as respectivas molduras do cúmulo jurídico, cada um destes arguidos deve ser condenado:


a)- AA: limite mínimo de sete anos e seis meses (“a mais elevada das penas concretamente aplicadas”) e limite máximo de onze anos (“soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes”: 7 A 6 M + 3 A 6 M) deve ser condenado na pena única de nove anos de prisão;


(…).»


Vejamos.


O artigo 71º, nº 1 do CP estabelece o critério geral segundo o qual a medida da pena deve fazer-se em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.


O nº 2 desse normativo estatui que, na determinação da pena, há que atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor e contra ele.


Na determinação da medida concreta da pena, dispõe o artigo 71º, nº 1 do CP que ela é feita, dentro dos limites definidos na lei, em função da culpa do agente e das exigências prevenção, atendendo-se a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor ou contra o agente, designadamente de entre as que constam do elenco do nº 2, da mesma norma legal.


A medida concreta da pena há-de ser, assim, o quantum que é encontrado, de forma intelectual pelo julgador, através do racional e ponderado funcionamento dos conceitos de «culpa» e «prevenção, sendo a culpa o limite inultrapassável da punição concreta e casuística.


Dentro dos limites da moldura penal, há-de ser a culpa que fixa o limite máximo da pena que no caso será aplicada – a finalidade de prevenção geral de integração ou positiva orienta a determinação concreta da pena abaixo do limite máximo indicado pela culpa, aparentando-se mais com a prevenção especial de socialização, sendo esta a determinar, em última instância, a medida final da pena.


A determinação da pena dentro dos limites da moldura penal é um acto de discricionariedade judicial, mas não uma discricionariedade livre como a da autoridade administrativa quando esta tem de eleger, de acordo com critérios de utilidade, entre várias decisões juridicamente equivalentes, mas antes de uma discricionariedade juridicamente vinculada.


O exercício dessa discricionariedade pelo juiz na individualização da pena depende de princípios individualizadores em parte não escritos, que se inferem dos fins das penas em relação com os dados da individualização - trata-se da aplicação do DIREITO e, como acontece com qualquer outra operação nesse domínio, “mesclam-se a discricionariedade e vinculação, com recurso a regras de direito escritas e não escritas, elementos descritivos e normativos, actos cognitivos e puras valorações” (SIMAS SANTOS).


Neste domínio, o julgador tem de traduzir numa certa quantidade (exacta) de pena os critérios jurídicos de determinação dessa mesma pena.


Sublinhe-se que estes constituem os princípios regulativos que deverão estar subjacentes à determinação de qualquer pena, funcionando a culpa como fundamento da punição em obediência ao princípio “nulla poena sine culpa” e limite máximo inultrapassável da pena, atendendo à dignidade da pessoa humana.


A prevenção, na sua vertente positiva ou de integração, mostra-se ligada às necessidades comunitárias da punição do caso concreto, e irá fixar os limites dentro dos quais a prevenção especial de socialização irá determinar, em última instância, a medida concreta da pena.


Na verdade, só se justificará a aplicação de uma pena se ela for necessária e na exacta medida da sua necessidade, ainda que sempre subordinada a uma incondicionável proibição de excesso, conquanto, ainda que necessária, a pena que ultrapasse o juízo de censura que o agente mereça é injusta e dessa forma inadmissível.


Ora, aqui chegados, e com este pano de fundo, há que considerar que as penas parcelares e finais aplicadas ao arguido AA são adequadas.


São reais as necessidades de prevenção especial e geral referidas pelo tribunal – com as quais concordamos em absoluto - que se sentem neste caso em que um arguido tenta tirar a vida a uma terceira pessoa, sem dó nem piedade, vivendo a noite do lado errado, em envolvência de violência dificilmente compreendida numa acidade habitualmente pacata como é ....


São, na realidade, prementes as exigências de prevenção geral.


Assim, em concreto, atender-se-á:


- à culpa, sendo certo que ambos os arguidos actuaram com dolo directo, dando um especial envolvimento à sua actuação, sempre numa desculpabilização por alegados comportamentos alheios;


- às exigências de prevenção geral, as quais se nos afiguram particularmente acentuadas dada a frequência deste tipo de crime e alarme que provoca na comunidade, uma vez que abala o princípio geral de confiança na tranquilidade pública, impondo assim fortes necessidades de prevenção geral intimidatória;


- às exigências de prevenção especial, as quais não revertem a seu favor, na medida em que nenhum dos dois é delinquente primário.


Como tal, e partindo das respectivas molduras penais abstractas dos 3 crimes cometidos pelos dois arguidos recorrentes (cfr. artigos 22º, 23º, 73º e 77º do CP), não é excessiva a pena de prisão aplicada, em termos parcelares e de cúmulo jurídico, no caso do AA.


(…)”.


*


*


*


Âmbito do recurso


Dispõe o art. 412º, nº 1 do C. Processo Penal que, a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido. As conclusões constituem, pois, o limite do objecto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso.


Consistindo as conclusões num resumo do pedido, portanto, numa síntese dos fundamentos do recurso levados ao corpo da motivação, entre aquelas [conclusões] e estes [fundamentos] deve existir congruência.


Deste modo, as questões que integram o corpo da motivação só podem ser conhecidas pelo tribunal ad quem se também se encontrarem sumariadas nas respectivas conclusões. Quando tal não acontece deve entender-se que o recorrente restringiu tacitamente o objecto do recurso.


Por outro lado, também não deve ser conhecida questão referida nas conclusões, que não tenha sido tratada no corpo da motivação (Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, Vol. 3, 2020, Universidade Católica Editora, pág. 335 e seguintes).


Assim, atentas as conclusões formuladas pelo recorrente, as questões a decidir no presente recurso, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, por ordem de precedência lógica, são:


- A nulidade do acórdão recorrido;


- A incorrecta determinação da medida concreta da pena única de prisão;


- A substituição da pena de prisão.


*


*
*



Questão prévia [relativa à cognoscibilidade por este Supremo Tribunal de algumas das questões submetidas pelo recorrente ao seu conhecimento]


Nos termos das disposições conjugadas dos arts. 400º, nº 1, f) e 432º, nº 1, b) do C. Processo Penal não é admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça de acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem decisão de 1ª instância e apliquem pena de prisão não superior a oito anos.


Assim, os poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça sobre acórdãos condenatórios das relações proferidos em recurso são limitados pela existência de dupla conforme, mecanismo adjectivo que visa impedir, em recurso, a repetição sucessiva de juízos sobre as mesmas questões (acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20 de Outubro de 2021, processo nº 528/19.9GCFAR.E1.S1, in www.dgsi.pt).


A dupla confirmação, que não exige a absoluta coincidência das duas decisões, pressupõe a identidade essencial entre ambas, isto é, a manutenção da condenação do arguido, no âmbito da mesma qualificação jurídica, e tendo por base os mesmos factos. Nela se incluem também, por razões de coerência processual, as situações de confirmação in mellius, as situações em que, mantendo-se a matéria de facto e a respectiva qualificação jurídica, o tribunal de recurso determina uma redução da pena ou de outros benefícios, designadamente, quanto à perda de instrumentos, produtos ou vantagens (entre outros, acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 26 de Fevereiro de 2014, processo nº 851/08.8TAVCT.G1.S1 e de 30 de Novembro de 2022, processo nº 1052/15.4PWPRT.P1.S1, in www.dgsi.pt).


Da interpretação conjugada dos arts. 400º, nº 1, f) e 432º, nº 1, b) do C. Processo Penal resulta, a contrario, ser recorrível para o Supremo Tribunal de Justiça o acórdão da relação confirmatório de decisão da 1ª instância impositora de pena de prisão superior a oito anos.


Nestes casos, porque a alínea b) do nº 1 do art. 432º do C. Processo Penal não integra qualquer referência aos fundamentos previstos nos nºs 2 e 3 do artigo 410º, como acontece com as alíneas a) e c) do referido art. 432º, não pode o recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça ter por fundamento os vícios da decisão, previstos no nº 2 do art. 410º do mesmo código (acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 1 de Março de 2023, processo nº 589/15.0JABRG.G2.S1 e de 15 de Fevereiro de 2023, Processo nº 7528/13.0TDLSB.L3.S1, in www.dgsi.pt). Sem prejuízo, contudo, deste Supremo Tribunal conhecer oficiosamente de tais vícios, quando detectada a sua presença e a mesma seja impeditiva de prolação da correcta decisão de direito.


Vem sendo também entendimento uniforme do Supremo Tribunal de Justiça que a irrecorribilidade de uma decisão resultante da dupla conforme impede este tribunal de conhecer de todas as questões conexas, adjectivas e substantivas, que lhe digam respeito designadamente, as respectivas nulidades, os vícios decisórios, as invalidades e proibições de prova, a livre apreciação da prova, o pro reo, a qualificação jurídica dos factos, a determinação da medida da pena singular e inconstitucionalidades suscitadas neste âmbito (acórdãos de 7 de Dezembro de 2022, processo nº 406/21.1JAPDL.L1.S1, de 12 de Janeiro de 2022, processo nº 89/14.5T9LOU.P1.S1, de 16 de Dezembro de 2021, processo nº 321/19.9JAPDL.L2.S1, de 20 de Outubro de 2021, processo nº 528/19.9GCFAR.E1.S1, de 17 de Junho de 2020, processo nº 91/18.8JALRA.E1.S1, de 14 de Março de 2018, processo nº 22/08.3JALRA.E1.S1, de 6 de Outubro de 2016, processo nº 535/13.5JACBR.C1.S1 e de 25 de Junho de 2015, processo nº 814/12.9JACBR.S1, todos in www.dgsi.pt), sendo certo que o Tribunal Constitucional vem julgando este entendimento conforme com a Lei Fundamental (acórdãos nº 186/2013, nº 212/2017 e nº 599/2018, todos in www.dgsi.pt).


Dito isto.


O acórdão recorrido – acórdão da Relação de Coimbra de 21 de Junho de 2023 – no que ao recorrente respeita, confirmou o acórdão da 1ª instância de 27 de Fevereiro de 2023, que o condenou, pela prática, em concurso real, de um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos arts. 145º, nº 1, alínea a) e nº 2 e 132º, nº 2, alíneas e) e h), ambos do C. Penal, na pena de três anos e seis meses de prisão, de um crime de homicídio qualificado na forma tentada, p. e p. pelos arts. 131º, 132º, nºs 1 e 2, alínea e), 22º e 23º, todos do C. Penal, na pena de sete anos e seis meses de prisão e, em cúmulo, na pena única de nove anos de prisão, ao julgar totalmente improcedente o recurso por aquele interposto.


Vale isto dizer que o acórdão da Relação mantendo os mesmos factos e os mesmos crimes, confirmou as penas, parcelares – 3 anos e 6 meses de prisão e 7 anos e 6 meses de prisão – e única – 9 anos de prisão – , aplicadas pela 1ª instância ao recorrente.


Verificada que está, portanto, a dupla conforme, os poderes de cognição deste Supremo Tribunal quanto às questões suscitadas pelo recorrente relativamente ao acórdão da Relação, sofrem as limitações dela decorrentes.


Assim, tendo o acórdão da Relação confirmado, nos termos sobreditos, o acórdão condenatório da 1ª instância que aplicou as penas parcelares e sendo estas inferiores a oito anos de prisão, delas não é admissível recurso para este Supremo Tribunal, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 399º, 400º, nº 1, f) e 432º, nº 1, b), todos do C. Processo Penal, o que significa que, para além da arguida nulidade do acórdão da Relação, os poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça se limitam ao cúmulo jurídico, à medida da respectiva pena única e eventual substituição desta.


*


*


Da nulidade do acórdão recorrido


1. Alega o recorrente – conclusões 14, 36, 37 e 49 – que a Relação, ao condená-lo na pena única de nove anos de prisão, o fez sem apresentar um único fundamento para a escolha de tal medida, para mais, atendendo à necessária alteração da qualificação jurídica dos factos relativos ao ofendido DD, existindo assim, quanto à concreta questão da determinação da medida concreta da pena, falta de fundamentação e errónea subsunção dos factos aos tipos legais por cuja prática foi condenado, o que consubstancia a nulidade prevista na alínea a) do nº 1 do art. 379º do C. Processo Penal, além do mais, por falta do exame crítico da prova. Mais alega – conclusão 52 – ter sido violado, além de muitos outros, o art. 379º, nº 1, c) do C. Processo Penal o que aponta no sentido de também padecer o acórdão recorrido de nulidade por omissão ou excesso de pronúncia.


No corpo da motivação o recorrente densificou a alegação, fazendo uso de um discurso, com ressalva do respeito devido, nem sempre claro, começando por, em jeito de introdução, afirmar que a pena de nove anos de prisão é manifestamente exagerada e desproporcional, não satisfazendo as exigências do Direito Penal, pois «a provarem-se os factos de que vinha acusado e pelos quais foi condenado em 1.ª instância, e depois confirmada pelo Tribunal da Relação, na pena de 9 (nove) anos de prisão, o mesmo jamais poderia/deveria ser condenado a uma pena de prisão», uma vez que a pena aplicada ultrapassa em larga medida a sua culpa, não permitindo realizar as finalidades previstas no art. 40º do C. Penal.


Passou, seguidamente, ao que titulou de «I – Delimitação do Objecto do Recurso», afirmando a sua discordância quanto à inexplicável decisão da Relação em manter a pena aplicada pela 1ª instância, discordância que respeita quer à pena única, quer às penas parcelares para, depois de transcrever os factos que a Relação relevou e a fundamentação de direito apresentada, concluir que a prova produzida deveria conduzir a diversa decisão de facto, subsunção jurídica e medida concreta da pena.


Em suma, da inicial dissensão quando à medida concreta da pena única, passamos para uma divergência alargada quando à decisão proferida sobre a matéria de facto e quanto à qualificação jurídico-penal dos factos.


A conclusão que antecede resulta plenamente confirmada no título seguinte, «Das Razões do Recurso» onde, no subtítulo «Nulidades do Acórdão Recorrido», o recorrente afirma que este acórdão não se pronunciou sobre o claro erro na apreciação da prova por si invocado no recurso interposto da decisão proferida pela 1ª instância, já que a prova produzida não permite considerar qualquer dos factos como provado, não tendo a Relação analisado juridicamente a prova em que a 1ª instância assentou a sua convicção. E, continua, a correcta qualificação do factos passaria pela sua absolvição quanto ao crime de ofensa à integridade física qualificada (ofendido EE) por ter actuado em estado de necessidade desculpante, e pela convolação do crime de homicídio qualificado na forma tentada em crime de ofensa à integridade física grave (ofendido DD) e a ser este sancionado com pena de prisão não superior a três anos e seis meses, suspensa na respectiva execução. Porém, a Relação, suportando a sua convicção apenas no seu [do recorrente] silêncio e antecedentes criminais, sem nada de novo trazer, confirmou o acórdão da 1ª instância, sem atender à presunção de inocência e ao pro reo, sendo evidente o vício de contradição entre os factos provados e a fundamentação da decisão de facto – ao actuar, num primeiro momento, em estado de necessidade desculpante, e relativamente à gravidade dos ferimentos – e o vício de insuficiência da matéria de facto provada – a clara ausência da arma do crime, as suas características, respectiva titularidade, e circunstâncias da sua presença no local – e a violação do princípio da livre apreciação da prova – desde logo, ao condenar sem que se tenham provado os factos preenchedores dos tipos legais em causa.


Como se vê, a coberto da nulidade do acórdão recorrido, o arguido suscita uma série de outras questões tais como, a existência de vícios decisórios, a sua discordância quanto à decisão proferida sobre a matéria de facto, a violação do princípio da livre apreciação da prova que, equivocadamente, reconduz à discordância quanto à qualificação jurídica dos factos, a violação do princípio in dubio pro reo e consequente violação da presunção de inocência.


Porém, o conhecimento de todas estas questões pelo Supremo Tribunal de Justiça mostra-se afastado pela verificação de dupla conforme, pelas razões que, supra, se deixaram expostas.


Não deixaremos, no entanto, de aqui referir, porque é oficioso o conhecimento dos vícios decisórios pr4evistos no nº 2 do art. 410º do C. Processo Penal, que lido integralmente o acórdão da Relação, não descortinamos a presença de qualquer deles.


2. Fixando-nos agora nas nulidades do acórdão recorrido, estão em causa, a nulidade por falta de fundamentação, prevista na alínea a) do nº 1 do art. 379º do C. Processo Penal e a nulidade por omissão de pronúncia, prevista na alínea c) do mesmo número e artigo.


a. No que à nulidade por falta de fundamentação respeita, o recorrente fixa-a na afirmada falta de análise crítica da prova em que o acórdão da 1ª instância suportou a sua convicção, bastando-se a Relação, segundo diz, com o seu silêncio em julgamento e com os seus antecedentes criminais, nada trazendo de novo, portanto, limitando-se a corroborar aquele acórdão, vindo, no entanto, a concluir que a falta de fundamentação se verifica relativamente à determinação da medida concreta da pena única.


Vejamos.


O dever de fundamentação das decisões judiciais ínsito no nº 1 do art. 205º da Constituição da República Portuguesa tem a sua exequibilidade assegurada, a nível infraconstitucional, e no que à sentença penal respeita, pelo art. 374º do C. Processo Penal, com a epígrafe «Requisitos da sentença» ao dispor, no seu nº 2, que, ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.


Como é fácil intuir, o dever de fundamentação visa assegurar o pleno entendimento da decisão pelos seus destinatários directos e mesmo, pela comunidade, permitindo a todos perceber o que se decidiu e por que razões assim foi decidido, e também, já num outro plano, visa assegurar a fiscalização e controlo da actividade decisória pelos tribunais superiores.


Sendo indiscutível que os acórdãos proferidos em recurso devem ter uma estrutura idêntica à estrutura dos acórdãos da 1ª instância, isto é, serem compostos por relatório, fundamentação e decisão, certo é, também, que diferenças de conteúdo se impõem no elemento fundamentação, dada a diferente posição hierárquica dos tribunais em causa, querendo-se significar, que o objecto do recurso é a decisão recorrida e não, a questão que esta julgou.


Na verdade, e no que à decisão da matéria de facto respeita, sendo esta amplamente impugnada, ao tribunal ad quem não compete efectuar um novo julgamento nem reapreciar os elementos de prova produzidos que serviram de fundamento á decisão recorrida, criando uma nova e própria convicção, mas apenas, sindicar a razoabilidade da convicção formada pelo tribunal a quo relativamente aos factos especificados como erradamente julgados pelo recorrente, merecedores de diversa decisão, por imposição das concretas provas para o efeito especificadas por aquele.


Assim, o dever de fundamentação da sentença não exige o exame crítico das provas pelo tribunal superior se, em recurso da matéria de facto, este concluir que, analisada a prova, inexistem razões para censurar a decisão impugnada. Mas esta análise da prova não pode traduzir-se numa fórmula meramente tabelar, ela tem de contemplar cada uma das provas e as razões que as validaram ou não (Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, 2007, Universidade Católica Editora, págs. 929 e 1174).


Pois bem.


Conforme já referido, o recorrente afirma a nulidade por falta de fundamentação, do acórdão da Relação, relativamente à determinação da medida concreta da pena única de nove anos de prisão – conclusões 36 e 37 –, argumentado que a mesma radica na circunstância de não podendo os factos por si praticados – que não são os factos dados como provados – ser qualificados como o foram – crimes de homicídio qualificado tentado e ofensa à integridade física qualificada –, mas apenas, como um único crime de ofensa à integridade física grave, tal significa que a pena única em causa não está devidamente fundamentada, pois não é adequada aos factos que entende terem-se provado nem à qualificação jurídica, menos grave, que entende dever ser efectuada.


Para respaldar esta sua perspectiva, afirma o recorrente que o acórdão da Relação se limitou a corroborar a convicção da 1ª instância, sem nada lhe acrescentar, daqui advindo a reclamada ausência de exame crítico da prova.


Porém, sempre com ressalva do respeito devido, não tem razão.


Com efeito, basta atentar na fundamentação de facto do acórdão recorrido, supra transcrita, para concluir que a Relação analisou, ponto por ponto, os factos, provados [pontos 2, 20, 21, 27, 31, 34 e 53] e não provados [ponto V], especificadamente impugnados pelo recorrente.


Para tanto, procedeu à audição da prova por declarações especificada pelo arguido – declarações dos ofendidos e depoimentos das testemunhas FF, HH, II e JJ. E a partir desta audição, e tanto quanto ela lhe permitiu a imediação da prova por declarações, a Relação considerou credíveis as declarações dos ofendidos, desconsiderou o depoimento da testemunha HH pela sua irrelevância/desconhecimento dos factos essenciais, e desconsiderou os depoimentos das testemunhas FF, II e JJ por ter entendido representarem os mesmos, de forma evidente, uma construção destinada a suportar a versão dos acontecimentos levada pelo recorrente na motivação do recurso. Por outro lado, a Relação discorreu, longamente, sobre aspectos teóricos das causas de justificação invocadas pelo recorrente, que afastou, face, além de outros elementos, ao teor das declarações dos ofendidos e ao grau de convencimento que lhes atribuiu, à compleição física do co-arguido e ao teor da informação clínica de fls. 201. Discorreu também a Relação sobre o teor do ponto 34, relativo à não manifestação de arrependimento, para afastar a pretendida violação do direito ao silêncio, e sobre o valor probatório do relatório social no que respeita ao teor do ponto 53.


Em suma, a Relação procedeu, como era devido, a uma avaliação da razoabilidade da convicção alcançada pela 1ª instância, relativamente aos pontos de facto impugnados pelo recorrente, dela resultando o entendimento de que os concretos pontos de facto provados sindicados se mostravam suficientemente suportados pelos meios de prova produzidos e analisados, o mesmo não acontecendo com o concreto ponto de facto não provado sindicado e, em consequência, manteve sem alteração a decisão de facto proferida.


Inexiste, pois, quanto a este aspecto, falta de fundamentação do acórdão da Relação, por ausência da análise crítica da prova.


Já a pretendida nulidade do acórdão da Relação por falta de fundamentação da determinação da medida concreta da pena única, não é, em bom rigor, subsumível à figura invocada, uma vez que, na construção feita pelo recorrente, ela resulta da inadequação da pena de nove anos de prisão aos factos que o recorrente entende terem resultado provados e que qualifica como cometimento de um crime de ofensa à integridade física grave, p. e p. pelo art. 144º do C. Penal.


Sucede que, como vimos, os pressupostos, de facto e de direito, de que parte o recorrente não se verificam, pelo que, soçobra, também, nesta parte, a nulidade invocada.


b. Atentemos agora na nulidade do acórdão da Relação por omissão de pronúncia, prevista na alínea c) do nº 1 do art. 379º do C. Processo Penal. Nos termos desta disposição legal, ocorre omissão de pronúncia [q]uando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar.


As questões a apreciar são as de conhecimento oficioso e as que foram submetidas à apreciação do tribunal pelos intervenientes processuais, desde que sobre elas não esteja legalmente impedido de se pronunciar.


É unanimemente entendido que, por questão se deve considerar o problema concreto, de facto ou de direito, a decidir, e não também, os motivos, os argumentos, as doutrinas e os pontos de vista invocados pelos sujeitos processuais, em abono das respectivas pretensões, o que significa que só em relação àquela, e não, também, a estes, se coloca a possibilidade de o tribunal ter omitido pronúncia (Oliveira Mendes, Código de Processo Penal Comentado, obra colectiva, 2014, Almedina, pág. 1182, Mouraz Lopes, Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, obra colectiva, Tomo IV, 2022, Almedina, pág. 801 e acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 13 de Setembro de 2023, processo nº 257/13.7TCLSB.L1.S1, de 17 de Maio de 2023, processo nº 140/06.2JFLSB.L1.S1 e de 24 de Outubro de 2012, processo nº 2965/06.0TBLLF.E1, todos in www.dgsi.pt).


Dito isto.


Na perspectiva do recorrente, equivocamente exposta, a nulidade em causa tem por objecto a omissão de pronúncia «acerca da Conclusão, vertida na motivação do recurso interposto da 1.ª instância, na parte em que julgou provados os factos enunciados como provados na decisão da matéria de facto onde se verifica um claro erro na apreciação da prova, já que a “prova” toda existente nos autos não permite considerar qualquer desses factos provados em Processo Penal. Com efeito, tal aresto não analisou ou apreciou juridicamente a “prova” em que o Acórdão da primeira instância assentou a convicção do Tribunal a quo. Assim, deveria o Tribunal a quo ter condenado o ora Recorrente numa pena suspensa na sua execução, embora com regime de prova. Para tanto, necessária seria uma correcta qualificação jurídica subsumida aos factos dados como provados, i.e., absolver o Recorrente do cometimento de crime de ofensa à integridade física e por sua vez, condenar o Arguido por ter agido sob um estado de necessidade desculpante defensivo perante o ofendido EE, previsto e punido nos termos dos artigos 35.º, n.ºs 1 e 2 e 31.º, n.º 1, ambos do Código Penal; e, absolver o Recorrente do cometimento, na forma tentada, do crime de homicídio qualificado quanto a DD. A subsunção dos factos provados indiciam-se sim, um crime de ofensa à integridade física grave, previsto e punido nos termos do artigo 144.º do Código Penal.».


Ou seja, apesar de afirmar que a Relação não se pronunciou acerca da Conclusão vertida na motivação do recurso interposto da 1ª instância, e de expressamente ter indicado como norma violada, a da alínea c) do nº 1 do art. 379º do C. Processo Penal, o arguido reconduz a nulidade ao argumento presente em toda a motivação, a errada fixação dos factos provados, determinante de uma errada qualificação jurídica e de uma pena única inadequada aos factos que entende que deveriam ter sido dados como provados e o não foram.


Ora, a tudo isto respondeu o acórdão da Relação, ao manter integralmente a decisão de facto proferida pela 1ª instância e ao manter a respectiva qualificação jurídico-penal.


Inexiste, pois, omissão de pronúncia no acórdão recorrido.


*


Da incorrecta determinação da medida concreta da pena única de prisão


3. Depois de discorrer sobre o critério legal de determinação da medida concreta da pena e as diversas etapas em que o mesmo, de acordo com a doutrina dominante, se desdobra – conclusões 21 a 27 – alega o arguido recorrente – conclusões 28 a 38 –, convocando, de novo, o argumento prevalecente da motivação apresentada, que atendendo apenas à matéria de facto dada como provada, o acórdão recorrido contraria o objectivo de política criminal visado pela lei, que é o da prevenção da reincidência e a primazia das penas não privativas da liberdade, pois que, atentas as concretas exigências de prevenção e as circunstâncias que a seu favor depõem, como a relativa ao ofendido EE e que não foi relevada, e ainda, a sua integração social, os seus hábitos de trabalho, ter o seu posto de trabalho à espera logo que recupere a liberdade, devia ter sido condenado em pena bem inferior, não se mostrando fundamentada a imposta pena única de nove anos de prisão, tanto mais que, era necessária uma alteração da qualificação jurídica relativamente ao ofendido DD, por ser errónea a feita no acórdão, antes devendo ser condenado em pena inferior a cinco anos de prisão.


As questões suscitadas, uma vez mais, pelo recorrente, tendo por objecto a decisão proferida sobre a matéria de facto e a respectiva qualificação jurídico-penal, estão, pelas razões sobreditas, definitivamente arrumadas, cumprindo apenas conhecer, neste momento, da bondade, ou falta dela, da medida concreta da pena única de prisão que lhe foi decretada.


Vejamos, então.


Havendo que conhecer da [in]correcta determinação da medida concreta da pena única de prisão, somos remetidos para a problemática da determinação da pena no caso de concurso de crimes.


O art. 77º do C. Penal, com a epígrafe «Regras da punição do concurso», dispõe na 1ª parte do seu nº 1 que, [q]uando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena.


Deste modo, é pressuposto da aplicação deste critério especial de determinação da medida da pena que o agente tenha praticado uma pluralidade de crimes constitutiva de um concurso efectivo – real ou ideal, homogéneo ou heterogéneo –, antes do trânsito em julgado da condenação por qualquer deles, distinguindo este último aspecto os casos de concurso dos casos de reincidência. Verificado este pressuposto, o agente é condenado numa pena única.


A lei penal afastou o sistema da acumulação material de penas, e optou pela instituição de um sistema de pena conjunta, resultante de um princípio de cúmulo jurídico (Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, 1993, Aequitas/Editorial Notícias, pág. 283 e seguintes e Maria João Antunes, Consequências Jurídicas do Crime, 2013, Coimbra Editora, pág. 56 e seguintes). Assim, estabelece o nº 2 do art. 77º do C. Penal que, a pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa; e como limites mínimos a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes.


O processo de determinação da medida concreta da pena única a aplicar ao concurso de crimes integra diversas etapas. Assim:


- O primeiro passo consiste na determinação da medida concreta da pena de cada crime que integra o concurso, de acordo com o critério geral de determinação da medida da pena, previsto no art. 71º do C. Penal;


- O segundo passo consiste na fixação da moldura penal do concurso, correspondendo o seu limite máximo à soma das penas concretas aplicadas aos vários crimes que integram o concurso – limite que, contudo, não pode ultrapassar os limites expressamente fixados na lei – e o seu limite mínimo à mais elevada das penas parcelares (nº 2 do art.77º do C. Penal);


- O terceiro passo consiste na determinação da medida concreta da pena conjunta do concurso, dentro dos limites da respectiva moldura penal, em função dos critérios gerais da medida da pena – culpa e prevenção – fixados no art. 71º do C. Penal, e do critério especial previsto no art. 77º, nº 1, parte final do mesmo código, nos termos do qual, na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente;


- Finalmente, o quarto passo consiste na substituição da pena conjunta por pena de substituição, de acordo com o critério geral de escolha da pena, previsto no art. 70º do C. Penal, quando disso seja caso.


O critério especial previsto no art. 77º, nº 1, parte final do C. Penal, ou seja, a ponderação conjunta dos factos e da personalidade do agente, para efeitos da medida da pena única requer uma explicação breve.


Pode dizer-se que o conjunto dos factos indicará a gravidade do ilícito global praticado – sendo particularmente relevante para a sua valoração a conexão que possa existir entre os factos integrantes do concurso –, enquanto a avaliação da personalidade unitária do agente permitirá saber se o conjunto dos factos integra uma tendência desvaliosa ou se, pelo contrário, é apenas uma pluriocasionalidade que não tem origem na personalidade, sendo que, só no primeiro caso, o concurso de crimes deverá ter um efeito agravante. É igualmente importante a análise do efeito previsível da pena sobre a conduta futura do agente (Figueiredo Dias, op. cit., pág. 290 e seguintes). No mesmo sentido pode ver-se, entre outros, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27 de Fevereiro de 2013, processo nº 455/08.5GDPTM, in www.dgsi.pt, no qual se escreveu, além do mais, «[f]undamental na formação da pena do concurso é a visão de conjunto, a eventual conexão dos factos entre si e a relação desse espaço de vida com a personalidade.».


Aqui chegados, atentemos no caso concreto.


4. O arguido foi condenado pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelo art. 145º, nºs 1, a) e 2, com referência ao art. 132º, nº 2, e), ambos do C. Penal, na pena de três anos e seis meses de prisão, e pela prática de um crime de homicídio qualificado na forma tentada, p. e p. pelos arts. 22º, 23º, 131º e 132º, nºs 1 e 2, e), todos do C. Penal, na pena de sete anos e seis meses de prisão, o que significa que a moldura penal aplicável ao concurso tem como limite mínimo, sete anos e seis meses de prisão e como limite máximo, onze anos de prisão.


Assim, torna-se desde logo evidente, face ao limite mínimo em causa, não poder proceder a pretensão do recorrente em a pena única seja fixada em quantum inferior a cinco anos de prisão.


Quanto ao mais.


a. Conforme já referido, entende o recorrente que a Relação não valorizou a circunstância atenuante relativa ao ofendido EE, sem a especificar, e que também não valorizou devidamente a sua integração social, os seus hábitos de trabalho e a circunstância de ter à sua espera, logo que colocado em liberdade, o seu posto de trabalho.


Porque os factores previstos no critério geral do art. 71º do C. Penal, quando unitariamente considerados, podem ser usados como guia na determinação da pena única aplicável ao concurso, vejamos se assiste razão ao recorrente na crítica feita ao acórdão recorrido.


A Relação, no que às penas parcelares respeita, ao analisar o acórdão condenatório da 1ª instância, depois de transcrever o que neste se escreveu quanto a elas, considerou:


- O grau de culpa, ponderando ter o recorrente agido com dolo directo e dando sempre um envolvimento à sua conduta no sentido da desculpabilização por alegados comportamentos alheios;


- As fortes exigências de prevenção geral, dada a frequência da prática dos crimes em causa e o alarme por ela causada na comunidade;


- As exigências de prevenção especial, que não abonam o recorrente, dada a existência de antecedentes criminais.


E concluiu, confirmando o acórdão da 1ª instância, não serem excessivas as penas parcelares de prisão aplicadas ao recorrente (não o sendo, também, a pena única).


Uma vez que o acórdão da Relação recepcionou a decisão da 1ª instância, cumpre notar que o acórdão por esta proferido, para este efeito, ponderou:


- Ser elevado o grau de ilicitude dos factos [face à intensidade e contexto da actuação do arguido], o seu modo de execução [à noite e com perseguição das vítimas] e não serem de desprezar as suas consequências [sequelas e período de incapacidade];


- Ser elevada a intensidade do dolo, que foi directo;


- Ter o arguido actuado com desprezo e sobranceria pela vida e pela integridade física;


- Ter o arguido actuado para resolver e vingar, a seu modo, a afronta feita ao co-arguido, seu filho;


- Exercer o arguido actividade profissional por conta de outrem desde Abril de 2018, trabalhando, na data dos factos, numa empresa de restauração com vários estabelecimentos em ...;


- Residir o arguido nesta cidade, com os pais, irmãos e filho;


- O arguido regista, como condenações anteriores aos factos objecto dos autos: a pena de seis anos e seis meses de prisão, pela prática, em 22 de Agosto de 2010, de um crime de homicídio na forma tentada e de um crime detenção de arma proibida; a pena de cem dias de multa, pela prática, em 15 de Dezembro de 2006, de um crime de falsidade de testemunho; a pena de cem dias de multa, pela prática, em 11 de Novembro de 2009, de um crime de apropriação ilegítima; a pena de seis anos e dois meses de prisão, pela prática, em 2009, de um crime de tráfico e outras actividades ilícitas, e pela prática, em 3 de Setembro de 2010, de um crime de detenção de arma proibida; pena de um ano e seis meses de prisão, suspensa na respectiva execução, pela prática, em 27 de Fevereiro de 2019, de um crime de falsidade de testemunho; a pena de dois anos e seis meses de prisão, pela prática, em 28 de Abril de 2020, de um crime de tráfico de menor gravidade e de um crime de detenção de arma proibida;


- O arguido, no estabelecimento prisional, trabalha como faxina e não regista incidentes disciplinares;


- O arguido tem dificuldade em avaliar a sua responsabilidade nos acontecimentos e não manifesta arrependimento.


De tudo isto resulta que as instâncias, na fixação das penas parcelares, ponderaram a situação profissional do recorrente, bem como a sua situação familiar.


Por outro lado, não foi considerada a afirmada manutenção do posto de trabalho, logo que colocado em liberdade, pois tal circunstancialismo não consta dos factos provados.


Por fim, admitindo-se – porque o arguido não a identifica – que a circunstância atenuante que relaciona com o ofendido EE, se prenda com a invocada actuação em estado de necessidade desculpante, porque o acórdão da Relação, mantendo a decisão de facto da 1ªinstância, não considerou verificada esta causa de justificação, nada mais há a acrescentar ao que, supra, se deixou dito.


Em suma, a Relação valorou o que tinha a valorar e na exacta medida da sua relevância.


b. Abordando agora o campo de aplicação do critério especial previsto no art. 77º, nº 1, parte final do C. Penal, no que à gravidade do ilícito global diz respeito, ponderando o referido em a., que antecede referido, agora, ao conjunto dos factos, sendo evidente a conexão entre os crimes em concurso, porque praticados no decurso do mesmo conflito, e envolvendo um significativo grau de violência gratuita, concluímos por uma ilicitude global de grau médio/elevado.


Relativamente à personalidade unitária do recorrente, o mesmo apresenta traços de uma personalidade impulsiva e violenta, contrária ao direito, algo indiferente aos bens jurídicos tutelados pelas normas infringidas e à ameaça das respectivas sanções.


Ponderando, em conjunto, a gravidade do ilícito global, a personalidade unitária do arguido e o seu passado criminal, onde, além do mais, avultam, uma condenação em pena de prisão, pelo cometimento de um crime tentado de homicídio, e duas condenações, igualmente em penas de prisão, por crimes de tráfico e de tráfico de menor gravidade, podemos concluir que o mesmo revela alguma propensão para a prática, desde logo, de crimes contra a vida, ultrapassando com facilidades as naturais e pressupostas barreiras ao seu cometimento.


Assim sendo, tendo a pena única decretada pela 1ª instância e confirmada pela Relação, sido fixada em nove anos de prisão, situando-se, portanto, muito próximo do primeiro quarto da moldura penal aplicável ao concurso, fica demonstrado que este não funcionou como circunstância agravante na determinação da medida da pena única.


Por outro lado, a pena única decretada, contrariamente ao entendimento do recorrente, face às exigências de prevenção, geral e especial, que se verificam, mostra-se necessária, adequada, proporcional e plenamente suportada pela medida da sua culpa unitária, não merecendo censura, sendo, por isso, de manter.


*


Da substituição da pena de prisão


5. Alega o arguido – conclusões 40, 46 e 50 – que a condenação em pena privativa da liberdade, por aplicação do princípio da intervenção mínima, deve restringir-se aos casos de manifesta necessidade, tendo o tribunal a quo feito tábua rasa do disposto no art. 50º do C. Penal, para sustentar a sua condenação, reclamando, por isso, a aplicação de uma pena suspensa na sua execução, acompanhada de regime de prova e com sujeição a regras de conduta.


Vejamos.


Sendo pressuposto formal de aplicação da pena de substituição de suspensão da execução da pena de prisão, que a pena de prisão aplicada e a ser substituída não seja superior a cinco anos, e tendo o recorrente sido condenado na pena única de nove anos de prisão, resta concluir, sem necessidade de maiores considerações, pela evidente improcedência desta pretensão.


*


*


6. Nas conclusões 40, 41, 45 e 52, invoca o recorrente, segundo cremos, a violação do princípio da intervenção mínima do direito penal, da proporcionalidade e da igualdade, constitucionalmente garantidos nos arts. 13º, 18º, 27º, 30º, 32º e 205º da Lei Fundamental, segundo parece, por não ter visto a pena única de prisão, necessariamente, reduzida e substituída pela suspensão da respectiva execução.


No corpo da motivação, no título, «Da inconstitucionalidade invocada», o arguido reconduziu a inconstitucionalidade ao que considera ser um desvio ao respeito devido pela concordância prática entre a sanção aplicada e a regeneração do delinquente, e consequente violação do princípio da proporcionalidade entre prova e pena (sic), e concluiu pela sua absolvição relativamente ao crime de ofensa à integridade física qualificada relativo ao ofendido EE, por ter actuado em estado de necessidade desculpante, e pela convolação do crime de homicídio qualificado tentado, relativo ao ofendido DD, em crime de ofensa à integridade física grave, a ser punido com pena de prisão até cinco anos, suspensa na respectiva execução.


O recorrente, como se vê, não alinha as razões e argumentos aptos à demonstração de terem os princípios constitucionais invocados sido ultrapassados pela decisão recorrida, e não compete ao tribunal ad quem perscrutar o omitido.


Nesta decorrência, resta dizer que não descortinámos no acórdão recorrido violação dos princípios e normas constitucionais indicadas.


*


*


*


*


III. DECISÃO


Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes que constituem este coletivo da 5.ª Secção Criminal, em negar provimento ao recurso e, em consequência, confirmam o acórdão recorrido.


Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 6 UCS. (art. 513º, nºs 1 e 3, do C. Processo Penal, art. 8º, nº 9, do R. Custas Processuais e Tabela III, anexa).


*


(O acórdão foi processado em computador pelo relator e integralmente revisto e assinado pelos signatários, nos termos do art. 94º, nº 2 do C. Processo Penal).


*


*


Lisboa, 11 de Abril de 2024


Vasques Osório (Relator)


Leonor Furtado (1º Adjunta)


Jorge Gonçalves (2º Adjunto)