Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
7772/20.4T8LSB.L1.S1
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: JORGE ARCANJO
Descritores: RESPONSABILIDADE CONTRATUAL
SEGURADORA
PROPOSTA RAZOÁVEL
SEGURO AUTOMÓVEL
JUROS
SANÇÃO PECUNIÁRIA
LESADO
PRESTAÇÃO
MORA DO CREDOR
ACIDENTE DE VIAÇÃO
Data do Acordão: 04/23/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :
O lesado que num acidente de viação se recusa a cooperar com a Seguradora na peritagem do seu veículo sinistrado, sendo esta diligência indispensável para a Seguradora emitir a sua proposta no prazo legalmente fixado, não tem o direito de exigir os juros em dobro, previstos no art. 38 nº2 do DL nº 291/2007 de 21/7 e a sanção cominada no art.40 nº2 do mesmo diploma, porque a falta de colaboração essencial no cumprimento, sem justificação, constitui o credor em mora accipiendi
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

I – RELATÓRIO



1.- A Autora - RODO CARGO, TRANSPORTES RODOVIÁRIOS DE MERCADORIAS, S.A., com sede na Estrada ..., ..., ..., instaurou a presente acção declarativa, com forma de processo comum, contra a Ré - GENERALI SEGUROS, S.A., com sede na Avenida ..., ....

Alegou, em resumo:

A Autora é possuidora e locatária do veículo trator com a matrícula ..-RU-.. e titular da licença nº ...76 emitida para o trator matrícula ..-RU-.., a qual, a legitima a usar o conjunto circulante constituído pelo veículo trator com a matrícula ..-RU-.. e pelo semi-reboque com a matrícula L-...91 no transporte rodoviário internacional de mercadorias por conta de outrem.

No dia 15 de janeiro de 2018, pelas 17:15 horas, na Avenida ..., ocorreu um acidente envolvendo o conjunto circulante constituído pelo veículo trator com a matrícula ..-RU-.. e pelo semi-reboque com a matrícula L-...91, sendo a culpa do mesmo exclusivamente imputável ao condutor do veículo com a matrícula ..-QP-...

Em 19 de janeiro de 2018, a Autora enviou à ora Ré, por correio normal, através da empresa sua representante, a sociedade RS..., Lda., a sua “Reclamação Inicial” sobre o acidente.

Face ao silencio da Ré, a A. contactou a empresa RC..., Lda. para proceder à realização da peritagem aos danos verificados no veículo e esta veio a emitir esse relatório de peritagem em 02.02.2018.

Foi enviada nova missiva, por correio registado para a sede da Ré a 14 de fevereiro de 20201., transmitindo, no que ao processo importa, o seguinte: - Reclamação de indeminização correspondente ao custo de reparação do veículo matrícula ..-RU-.. no valor de €3.355,18 (ponto “1” da carta datada de 19-01-2018 endereçada à Ré); -Reclamação de correspondente aos custos de paralisação do veículo matrícula ..-RU-.. no valor de €2.056,24 (ponto “3” da carta datada de 19-01-2018 endereçada à Ré) e Reclamação de Indemnização correspondente aos custos decorrentes da necessidade de contratar a empresa RC..., Lda., para proceder à peritagem do veículo acidentado no valor de €200,00 (ponto “6” da carta datada de 19-01-2018 endereçada à Ré).

Face à ausência de assunção de responsabilidade ou não, deverá a Ré incorrer nas penalizações legais.

Pediu a condenação da Ré:

A) A pagar-lhe a quantia de € 104.798,03 (cento e quatro mil, setecentos e noventa e oito euros e três cêntimos);

B) Juros de mora, de 14% ao ano, em dobro da taxa legal como decorre do nº 1 e 3 do artº 43º do DL 291/2007 sobre o montante da condenação até efetivo e integral pagamento, ou, caso assim não se entenda, juros de mora à taxa comercial, desde a mesma data até efetivo e integral pagamento, a que acresce a obrigação de pagamento de juros à taxa de 5% ao ano desde a data em que a Sentença de Condenação transitar em julgado, os quais acrescem aos juros de mora referenciados nos articulados 53º e 54º da presente PI;

C) Penalizações impostas pelo incumprimento do decreto-lei 291/2007;

D) E a notificada para, ainda no âmbito do processo, se assim o entender, comunicar a assunção ou não assunção da sua responsabilidade como fixado na alínea e) do artigo 36º do decreto-lei 241/2007 a fim de parar com a penalização imposta por força do decorrente deste incumprimento €100,00 o qual se requer continue a contar e seja a Ré condenada a pagar até à data da sua assunção de responsabilidade.

1.2. - A Ré contestou, alegando, em síntese:

Não recebeu da Autora ou de qualquer comunicação datada de 19/01/2018. Apenas em 14/02/2019 teve conhecimento da ocorrência do acidente.

A partir da data em que teve conhecimento do acidente, 14/02/2019, a Ré iniciou as diligências necessárias ao apuramento do acidente, enquadramento e verificação dos danos, e definição da responsabilidade. Acontece que nessa data, já há muito a Autora havia procedido, por sua iniciativa e com total desconhecimento, autorização ou intervenção da Ré, à “reparação” dos “danos”.

Concluiu pela improcedência da acção e pediu a condenação da Autora como litigante de má fé.

1.3.- Realizada audiência de julgamento, foi proferida sentença que, na parcial procedência da acção, decidiu:

Condenar a Ré a pagar à Autora a quantia de € 3.555,18 (três mil quinhentos e cinquenta e cinco euros e dezoito cêntimos), a título de danos patrimoniais, acrescida de juros de mora à taxa supletiva legal prevista para obrigações civis, vencidos desde a data da citação da ré, e a quantia de 600€ (seiscentos euros), a título de indemnização por privação de uso, acrescida de juros de mora à taxa supletiva legal prevista para obrigações civis, vencidos desde a presente decisão e vincendos até integral pagamento .

No mais, absolver a Ré do pedido.

1.3.- A Autora recorreu de apelação e a Relação de Lisboa, por acórdão de 25/5/2023, confirmou a sentença.

1.4.- Inconformada, a Autora recorreu de revista excepcional ( admitida por acórdão da Formação) com as seguintes conclusões:

1. O presente recurso de revista excepcional deverá ser admitido, nos termos do artigo 672º nº2 alínea a) do Código de Processo Civil, por violação do princípio do primado e pela necessidade de se para balizar concretamente todos os casos em que um Tribunal, confrontado com pedido de condenação de uma Ré Seguradora na aplicação da sanção cível prevista no número 2 do artigo 40º do Decreto-Lei 291/2007, aplique a legislação interna sem qualquer condicionamento que não tenha respaldo na letra da lei desse mesmo diploma, por respeito ao princípio do primado, isto é, que aplique, com base num juízo de verificação da existência ou não existência de resposta, a sanção cível preconizada neste artigo 40º do Decreto-lei 291/2007, sempre que os prazos previstos no seu artigo 36º se mostrem incumpridos, como contributo para a formação de uma orientação jurisprudencial clara e inequívoca.

2. O presente recurso de revista excepcional deverá ser admitido, nos termos do artigo 672º nº2 alínea b) do Código de Processo Civil pela violação do princípio da separação de poderes e pela necessidade de incremento da confiança na função socioeconómica das seguradoras na resolução atempada dos sinistros automóveis que lhe incumba realizar no âmbito do regime jurídico do seguro de responsabilidade civil obrigatório, plasmado no Decreto-Lei 291/2007.

3. O presente recurso de revista excepcional deverá ser admitido, nos termos do artigo 672º nº2 alínea c) do Código de Processo Civil por se encontrar em contradição com o processo nº 576/20.6..., proferido por este Colendo Supremo Tribunal de Justiça a 30 de novembro de 2022.

4. O Tribunal a quo decide, na douta Sentença Recorrida, que a falta de definição da posição da Ré face ao sinistro em causa não pode ser subsumível no art. 40.º, nº2, do Decreto-Lei nº 291/2007, de 21.07, porquanto entendemos que a Autora deu causa a tal indefinição da situação ao não ter correspondido às solicitações telefónicas da Ré, nem escritas, inviabilizando que o sinistro fosse resolvido em sede Convenção IDS (Indemnização Direta ao Segurado) por não ter sido possível à Ré ter procedido à vistoria do veículo sinistrado.

5. Conforme o teor do número 3 do artigo 34º do Decreto-Lei 291/2007, a Ré deveria ter contactado o causador do sinistro, o que não sucedeu e mais, sem prejuízo da regularização do sinistro com base na prova apresentada pelo terceiro lesado, ou seja, que a ausência de peritagem, mais de um ano volvido após o acidente, não implica a ausência de pagamento à Autora, outrossim implica tal pagamento e que se determine o motivo pelo qual o causador do sinistro não o participou à sua seguradora, aqui Ré, para que entrasse em contacto com a Autora, e não o oposto, uma vez que é à Ré, e c

6. Pelo que sempre se verificaria a violação do teor dos artigos 31º, 34º nº1 alínea a) e nº 3 e 36º nº1 alínea a) do Decreto-Lei 291/2007.

7. Mal andou o Tribunal Recorrido ao decidir que: A Ré sempre deveria de ter contacto o seu segurado, responsável pelo sinistro, não o fez nem aceitou a prova feita pela Autora consubstanciada no seu fax e na sua reclamação enviada por carta registada com aviso de receção.

8. Nunca se poderá conceber que Ré tenha cumprido o dever de comunicação de assunção ou não assunção da responsabilidade previsto nos artigos 36º nº1 alínea e), 38º nºs 1 e 2 e 40º nºs 1 e 2, do Decreto-Lei 291/2007”

9. Ou seja, é imposto à Ré, enquanto empresa de seguros, um acto de conteúdo positivo que deve obrigatoriamente ser cumprido no prazo máximo definido no decreto-lei 291/2007, designadamente os trinta dias úteis previstos na alínea e) do número 1 do seu artigo 36º, e, tendo em consideração o quadro legal vigente, o conhecimento presumido não corresponde a um acto de conhecimento positivo nos termos dos artigos 36º nº1 alínea e), 38º nºs 1 e 2 e 40º nºs 1 e 2, do Decreto-Lei 291/2007, pelo que não pode ser a Autora, que, com a propositura de uma ação, faz presumir que contra si própria que a Ré não assume a responsabilidade pelo causar do acidente.

10. Destarte, é claro que o legislador pretendeu que a Seguradora, ora Requerida, apresentasse uma proposta, nos termos do número 1 do artigo 38º do Decreto-Lei 291/2007, ou uma resposta fundamentada, nos termos do número 1 do artigo 40º do mesmo normativo, não que se remetesse ao silêncio, ou que reserve para si, em momento ulterior no futuro a definir de acordo com a sua discricionariedade, sendo igualmente consabido que o silêncio da Seguradora não possui valor jurídico, nos termos do artigo 218º do Código Civil.

11. Dúvidas não existindo quanto à omissão da emissão de uma proposta apresentada pela Ré ou de sua resposta fundamentada, devendo ser considerado que a Ré ainda não cumpriu o dever imposto pelo artigo 36º nº1 alínea e) do Decreto-Lei, isto é, não formalizou, de forma positiva, o teor da obrigação que sobre si impende, devendo ser condenada no pagamento da penalização imposta pelo artigo 40º nº2 do referido normativo até que tal comunicação seja expedida e do conhecimento da aqui Autora e, como consequência direta, ser condenada na penalização prevista no artigo 40º nº2 do , até que, de forma positiva e inequívoca, venha comunicar junto da Autora a sua assunção, ou não assunção, da responsabilidade na regularização do presente sinistro, para tanto, depositando o valor que entendem ser devido, sob pena de, nada fazendo, se continuarem a vencer as penalizações impostas pelo supra citado normativo.

12. A Ré não deu cumprimento ao disposto na alínea e) do número 1 do artigo 36º, não deu cumprimento ao preceituado no número 1 do artigo 38º do Decreto-lei 291/2007, isto porque não formulou uma proposta razoável nem procedeu ao pagamento de qualquer valor.

13. Ou seja, é imposto à Ré, enquanto empresa de seguros, um ato de conteúdo positivo que deve obrigatoriamente ser cumprido no prazo máximo definido no decreto-lei 291/2007, designadamente os trinta dias úteis (in casu 15 dias úteis) previstos na alínea e) do número 1 do seu artigo 36º.

14. Destarte, é claro que o legislador pretendeu que a Seguradora, ora Requerida, apresentasse uma proposta, nos termos do número 1 do artigo 38º do Decreto-Lei 291/2007, ou uma resposta fundamentada, nos termos do número 1 do artigo 40º do mesmo normativo, não que viesse enviar uma carta «declarando que terem promovido o enquadramento do presente sinistro na Convenção IDS (indemnização Direta ao Segurado), não tendo sido possível proceder à avaliação de danos na viatura, assim, não havendo uma posição definida, reservaremos para momento ulterior a nossa decisão relativamente à definição de responsabilidade», em que:

−Até à apresentação da Contestação a Ré não definiu a sua posição, quando a marca LOGO havia já assumido internamente a responsabilidade e a marca TRANQUILIDADE (ambas Ré) não o havia feito, nem sequer o comunicado à aqui Autora, conforme o depoimento das testemunhas AA e BB montante foi liquidando até à presente data e, caso se verificasse o decurso do prazo de prescrição, bem poderia a Autora demandar a Ré que esta sempre oporia a prescrição, de nada lhe valendo a acarta por esta enviada e rececionada a 18 de março de 2022 para o computo indemnizatório se esta não for acompanhada de uma concreta proposta indemnizatória.

15. Muito menos poderá ser afirmado que não o fez por falta de cooperação por parte da Autora, uma vez que o preceito é inequívoco, sempre que o dano sofrido for quantificável, deve ser formulada a proposta a que alude o número 4 do artigo 38º do Decreto-lei 291/2007.

16. Pois, se o dano é quantificável, não pode a Ré, em momento algum, vir afirmar que reserva para momento futuro a sua definição de responsabilidade, o que é um nim não previsto na lei, sob pena de se encontrar a subverter o funcionamento do procedimento de regularização de sinistros automóveis, como fixado pelo Decreto-lei 291/2007, nos seus artigos 36º e 38º.

17. Pois o envio de uma missiva que remete para um momento posterior, sujeito à inteira discricionariedade da Ré, sem comunicar a assunção ou não assunção nem o tendo feito sequer em qualquer momento posterior, não pode ser enquadrado como cumprimento da alínea e) do número 1 do artigo 36º do decreto-lei 291/2007, mas antes como uma clara violação do aí preceituado.

18. A assunção ou não assunção de responsabilidade por parte da Ré nada tem a ver com a quantificação do prejuízo, mas sim das circunstâncias em que ocorreu o acidente.

19. Objetivamente, a Ré não cumpriu o normativo ínsito no número 1 do artigo 38º do Decreto-lei 291/2007, o que, de outro modo, resulta numa visão simplista da aplicação do Decreto-lei 291/2007, em que bastaria somente o envio de uma mera carta simples afirmando que a Empresa de Seguros se reserva no direito de, num momento futuro, decidir se é ou não responsável na produção do sinistro, momento esse futuro sem prazo, que poderá coincidir com o prazo prescricional, em que nada é pago até esse momento e que continuará sem ser pago, dado essa mesma ocorrência de prescrição, sem necessidade sequer de se efetuar uma proposta razoável de indemnização e de pagamento dessa mesma proposta.

20. Pois resulta taxativamente da aplicação do número 1 do artigo 38º do Decreto-lei 291/2007, que a posição prevista na alínea e) do nº1 ou no caso do nº5 do artigo 36º consubstancia-se numa proposta razoável de indemnização, no caso de a responsabilidade não ser contestada e de o dano sofrido ser quantificável, no todo ou em parte, encontra-se no domínio de atuação da Ré a não contestação da responsabilidade, como ocorreu, como a quantificação do dano, que lhe compete efetuar, e não a aqui Autora, que apenas teve a necessidade de o efetuar por força do incumprimento do disposto no aludido nº1 do artigo 38º do Decreto-Lei 291/2007 por parte da Ré.

21. Mais, terá sempre de se tirar ilações do facto da notória contradição do Tribunal a quo, que afirma que «não resulta de tal carta a assunção de responsabilidade pelo sinistro em causa nos presentes autos (…)»:

22. O Tribunal a quo, em plena contradição com a sua fundamentação, dá como assente que a Ré ainda não assumiu a responsabilidade pela ocorrência do sinistro em apreço nos presentes Autos.

23. Tanto mais que inexiste, no âmbito de aplicação do decreto-lei 291/2007, qualquer norma que preveja que, como o faz erradamente o tribunal Recorrido, os prazos previstos no artigo 36º do Decreto-Lei 291/2007 se suspendem quando existe uma alegada «culpa do lesado» ou que não começam a contar enquanto não se marcar a peritagem.

24. Esta interpretação, além de não ter respaldo na lei, viola claramente o disposto na Diretiva 2000/26/CE.

25. Face o exposto, deverá ser considerado que a Ré ainda não cumpriu o dever imposto pelo artigo 36º nº1 alínea e) do Decreto-Lei, isto é, não formalizou, de forma positiva, o teor da obrigação que sobre si impende, devendo ser condenada no pagamento da penalização imposta pelo artigo 40º nº2 do referido normativo até que tal comunicação seja expedida e do conhecimento da aqui Autora.

26. Assim, verifica-se que o Tribunal Recorrido violou o teor dos artigos 33º nºs 2 e 7, 34º nºs 1 e 3, 36º nº1 alíneas a) a e), 38º nºs 1 e 2, 40º nºs 1 e 2 e 46ºdo Decreto-Lei 291/2007, 9º nº3, 218º e232º do Código Civil e 4º nº6 daDiretiva2000/26/CE.

27. Assim deve considerar-se a Ré devedora de uma verba de €100,00 por dia contabilizado a partir do dia 08.03.2019, que se deve considerar o dia em que tomou conhecimento do sinistro, até ao dia em que a sua Contestação se presume notificada à aqui Autora, ou seja, o dia 09.07.2020, perfazendo um total de 48.900,00€ (quarenta e oito mil e novecentos euros), à razão de 100,00€ diários489 dias, ou, tal não se entendendo, até ao dia em que a Ré efetivamente apresentar uma proposta à aqui Autora, não sendo suficiente a mera assunção de responsabilidade sem a apresentação de uma proposta concreta de indemnização, o que, notoriamente, ainda não sucedeu no âmbito da presente regularização de sinistro.

28. Tendo em consideração o alegado no articulado 10º das presentes Alegações, devendo considerar-se rececionada a 22 de janeiro de 2018, atendendo a três dias de trânsito postal, a carta enviada pela representante da Autora a 19 de janeiro de 2018, a Ré deveria ter tomado as seguintes diligências, nos termos do artigo 36º do Decreto-Lei 291/2007 (…)”.

29. Assim deve considerar-se a Ré devedora de uma verba de €100,00 por dia contabilizado a partir do dia 12.02.2018, que se deve considerar o dia em que tomou conhecimento do sinistro, até ao dia em que a sua Contestação se presume notificada à aqui Autora, ou seja, o dia 09.07.2020, perfazendo um total de 87.800,00€ (oitenta e sete mil e oitocentos euros), à razão de 100,00€ diários 878 dias, ou, tal não se entendendo até ao dia em que a Ré efetivamente apresentar uma proposta à aqui Autora, não sendo suficiente a mera assunção de responsabilidade sem a apresentação de uma proposta concreta de indemnização, o que, notoriamente, ainda não sucedeu no âmbito da presente regularização de sinistro.

1.5.- A Ré contra-alegou, dizendo não se verificarem os pressupostos da revista excepcional porque não existe dupla conforme, dado que a Relação fez uma divergente interpretação do ponto 6 dos factos provados.


II – FUNDAMENTAÇÃO


2.1. - O objecto do recurso

A questão essencial submetida a revista consiste em saber se a Ré deve ser responsabilizada pelos juros em dobro e sanção legal, previstos nos arts.38 nº2 e 40 nº2 do Decreto-Lei nº 291/2007 de 21/7.

2.2. – Os factos provados

1. A Autora é titular da licença nº 650376 emitida para o trator matrícula ..-RU-.., a qual, a legitima a usar o conjunto circulante constituído pelo veículo trator com a matrícula ..-RU-.. e pelo semi-reboque com a matrícula L-185391 no transporte rodoviário internacional de mercadorias por conta de outrem, licença esta emitida pela Delegação de... do IMT – Instituto da Mobilidade e dos Transportes, I.P., a 03 de outubro de 2017 e válida de 19 de outubro de 2017 a 18 de outubro de 2022, extensível ao seu semi-reboque com a matrícula L-...91.

2. A Autora é possuidora e locatária do veículo trator com a matrícula ..-RU-.. e possuidora e proprietária do semirreboque com a matrícula L-185391, que constituem o conjunto circulante especial para transporte de automóveis com as matrículas ..-RU-../L-...91 afeto ao desenvolvimento do objeto social da Autora.

3. No dia 15 de janeiro de 2018, pelas 17:15 horas, na Avenida ..., no distrito e concelho de ..., freguesia de ..., no acesso sito na localidade e freguesia de ... à ..., sentido L...- A..., ocorreu um embate, envolvendo o conjunto circulante constituído pelo veículo trator com a matrícula ..-RU- .. e pelo semi-reboque com a matrícula L-...91, conduzido pelo Sr. CC, motorista da Autora, e ainda o veículo ligeiro de passageiros com a matrícula ..-QP-.., conduzido pelo Sr. DD, com registo a favor de EE.

4. A responsabilidade civil emergente da circulação do veículo ligeiro de passageiros de matrícula ..-QP-.., encontrava-se à data do embate referido em 3., transferida para a R., através da Apólice do Ramo Automóvel ...48.

4. A Ré reconhece que o embate referido em 3. ficou a dever-se a culpa exclusiva do condutor do veículo que garantia.

5. Pelo menos, por fax datado de 14.02.2019, a Autora comunicou à Ré, o embate referido em 3., identificou os intervenientes, remeteu listagem de prejuízos e solicitou peritagem.

6. Por carta enviada por correio normal pela Ré diretamente para a Autora a 07 de março de 2019 e por esta rececionada a 18 de março de 2019, foi comunicado que: «face à declaração amigável recebida, promovemos o enquadramento do presente sinistro na Convenção IDS (Indemnização Direta ao Segurado). Porém, ainda não foi possível proceder à avaliação de danos na viatura. Assim, não havendo ainda uma posição definida, reservaremos para momento ulterior a nossa decisão relativamente à definição da responsabilidade.»

7. Em 14 de fevereiro de 2020, a empresa RS..., Lda., na qualidade de representante da Autora, enviou uma carta à Ré, como “Reclamação de prejuízos de forma quantificada”, a interpelar para o pagamento dos prejuízos decorrentes deste sinistro, por correio registado, para a sede da Ré a 14 de fevereiro de 2020, com o seguinte teor:

- Reclamação de indemnização correspondente ao custo de reparação do veículo matrícula ..-RU-.., no valor de € 3.355,18;

- Reclamação de correspondente aos custos de paralisação do veículo matrícula ..-RU-.. no valor de € 2.056,24 e

- Reclamação de Indemnização correspondente aos custos decorrentes da necessidade de contratar a empresa RC..., Lda., para proceder à peritagem do veículo acidentado no valor de € 200,00.

8. A Autora, sem autorização ou conhecimento da Ré, procedeu a uma vistoria do veículo “..-RU-..”, através da “RC..., Lda.”, em 26/01/2018.

9. O veículo deu entrada na oficina a 26.01.2018 e a reparação foi concluída em 02/02/2018.

10. Na sequência do embate referido em 3., o veículo ..-RU-.. sofreu:

- Fratura: do para-choques frente, do aro exterior do farol frente direito, do conjunto de resguardos da porta frente direita;

− O empeno: do estribo inferior direito, suporte direito do para-choques, docanto frente direito da cabine; ligeiro da porta frente direita, do suporte dos estribos direitos, da respetiva moldura, da cava da roda frente direita e ainda Danos: na pintura das partes sinistradas;

11. A reparação dos danos referidos em 9., com “mão de obra” incluída, custou € 3.355,18 (três mil, trezentos e cinquenta e cinco euros e dezoito cêntimos), sem IVA.

12. Pela realização da peritagem, a Autora pagou à RC..., Lda., a quantia de € 200,00 (duzentos euros).

13. No dia 15/02/2019 a Ré tentou contactar a Autora

14.Nesse contacto, a Autora informou a Ré que o contacto deveria ser efetuado com o departamento de sinistro (Sr. FF), através do telefone ...77.

15. A Ré de imediato tentou, por diversas vezes, o contacto para o referido n.º de telefone, no entanto, ninguém atendeu.

16. Estas tentativas de contacto ocorreram: - no dia 15/02/2019 às 11:04. – no dia 15/02/2019 às 14:56.

17. No dia 18/02/2019 pelas 09:12, a Ré tentou efetuar mais um contacto com a Autora, na pessoa do Sr. FF, o que conseguiu, tendo, no entanto, o Sr. FF informado a Ré que deveria ligar com o Sr. Eng.º GG (...70).

18. Este contacto foi tentado pela Ré nessa mesma data, no entanto não atendeu.

19. A Ré, em 18/02/2019, às 09:14, enviou um SMS para a Autora, com o seguinte teor: “De Companhia de Seguros Tranquilidade. Agradecemos o seu contacto para o n.º ...07 para marcação de peritagem selecionando opção 2 em sinistros automóveis. N.º de sinistro ...99.”

20. (…) não houve qualquer resposta da parte da Ré.

21. O acidente foi tentado regularizar no âmbito da Convenção IDS (Indemnização Direta ao Segurado).

22. À data dos factos, o veículo da Autora estava seguro na Companhia de Seguros Tranquilidade, e o veículo “QP” estava seguro na “SEGUROS LOGO” (ligeiro).

23. A Tranquilidade suscitou a reclamação em sede do IDS e a “Logo” assumiu a responsabilidade pelo sinistro a 14.02.2019.

2.3. Os factos não provados

1. A Ré tenha recebido “Reclamação Inicial” sobre o acidente, datada de 19 de janeiro de 2018, enviada, por correio normal, através da empresa representante da A., a sociedade RS..., Lda.

2. Por falta de atribuição de veículo de substituição, a autora viu-se forçada acancelar todos os serviços para os quais tinha o veículo destinado.

3. A Ré não tenha comunicado posição sobre a assunção de responsabilidade pelo sinistro até à presente data.

2.4. – A responsabilidade da Ré pelos juros em dobro e sanção legal, previstos nos arts.38 nº2 e 40 nº2 do Decreto-Lei nº 291/2007 de 21/7

A sentença da 1ª instância condenou a Ré a pagar à Autora a indemnização de € 3.555,18, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a citação (por danos patrimoniais da reparação do veículo trator e semi-reboque) e de € 600,00, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a data da sentença (por dano patrimonial da privação do uso).

A sentença absolveu a Ré dos restantes pedidos, designadamente do pedido de juros em dobro e da sanção prevista (arts. 38 nº2 e 40 nº2 do Decreto-Lei nº 291/2007 de 21/7), e esta absolvição foi confirmada pela Relação.

A justificação baseou-se, no essencial, no facto de a Autora não ter respondido aos contactos da Ré Seguradora com vista à peritagem, o que inviabilizou a comunicação da proposta razoável.

A Autora pede revista dizendo, em síntese, que:

- a Ré não cumpriu disposto na alínea e) do nº 1 do art. 36º, não deu cumprimento ao preceituado no nº 1 do art. 38º do Decreto-lei 291/2007, porque não formulou uma proposta razoável nem procedeu ao pagamento de qualquer valor;

- Muito menos poderá ser afirmado que não o fez por falta de cooperação por parte da Autora, uma vez que o preceito é inequívoco, sempre que o dano sofrido for quantificável, deve ser formulada a proposta a que alude o número 4 do artigo 38º do Decreto-lei 291/2007;

- O envio de uma missiva que remete para um momento posterior, sujeito à inteira discricionariedade da Ré, sem comunicar a assunção ou não assunção nem o tendo feito sequer em qualquer momento posterior, não pode ser enquadrado como cumprimento da alínea e) do número 1 do artigo 36º do decreto-lei 291/2007, mas antes como uma clara violação do aí preceituado.

O Decreto-Lei nº 291/2007 de 21/7, que revogou o Decreto-Lei nº 83/2006 de 3/5, e transpôs para a ordem jurídica nacional a 5ª Directiva do Seguro Automóvel (2005/14/CE), instituiu o Regime do sistema de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, em cujo capítulo III (arts. 31 a 46) se estabelece as normas sobre a regularização dos sinistros, fixando as regras e os procedimentos com vista a garantir de forma célere e diligente a assunção da responsabilidade e o pagamento da indemnização devida.

Dispõe o art.36 (“Diligência e prontidão da empresa de seguros”):

«1 - Sempre que lhe seja comunicada pelo tomador do seguro, pelo segurado ou pelo terceiro lesado a ocorrência de um sinistro automóvel coberto por um contrato de seguro, a empresa de seguros deve:

a) Proceder ao primeiro contacto com o tomador do seguro, com o segurado ou com o terceiro lesado no prazo de dois dias úteis, marcando as peritagens que devam ter lugar;

b) Concluir as peritagens no prazo dos oito dias úteis seguintes ao fim do prazo mencionado na alínea anterior;

c) Em caso de necessidade de desmontagem, o tomador do seguro e o segurado ou o terceiro lesado devem ser notificados da data da conclusão das peritagens, as quais devem ser concluídas no prazo máximo dos 12 dias úteis seguintes ao fim do prazo mencionado na alínea a);

d) Disponibilizar os relatórios das peritagens no prazo dos quatro dias úteis após a conclusão destas, bem como dos relatórios de averiguação indispensáveis à sua compreensão;

e) Comunicar a assunção, ou a não assunção, da responsabilidade no prazo de 30 dias úteis, a contar do termo do prazo fixado na alínea a), informando desse facto o tomador do seguro ou o segurado e o terceiro lesado, por escrito ou por documento electrónico;

f) Na comunicação referida na alínea anterior, a empresa de seguros deve mencionar, ainda, que o proprietário do veículo tem a possibilidade de dar ordem de reparação, caso esta deva ter lugar, assumindo este o custo da reparação até ao apuramento das responsabilidades pela empresa de seguros e na medida desse apuramento.

2 - Se a empresa de seguros não detiver a direcção efectiva da reparação, os prazos previstos nas alíneas b) e c) do número anterior contam-se a partir do dia em que existe disponibilidade da oficina e autorização do proprietário do veículo.

3 - Existe direcção efectiva da reparação por parte da empresa de seguros quando a oficina onde é realizada a peritagem é indicada pela empresa de seguros e é aceite pelo lesado.

4 - Nos casos em que a empresa de seguros entenda dever assumir a responsabilidade, contrariando a declaração da participação de sinistro na qual o tomador do seguro ou o segurado não se considera responsável pelo mesmo, estes podem apresentar, no prazo de cinco dias úteis a contar a partir da comunicação a que se refere a alínea e) do n.º 1, as informações que entenderem convenientes para uma melhor apreciação do sinistro.

5 - A decisão final da empresa de seguros relativa à situação descrita no número anterior deve ser comunicada, por escrito ou por documento electrónico, ao tomador do seguro ou ao segurado, no prazo de dois dias úteis após a apresentação por estes das informações aí mencionadas.

6 - Os prazos referidos nas alíneas b) a e) do n.º 1:

a) São reduzidos a metade havendo declaração amigável de acidente automóvel;

b) Duplicam aquando da ocorrência de factores climatéricos excepcionais ou da ocorrência de um número de acidentes excepcionalmente elevado em simultâneo.

7 - Sem prejuízo do disposto nos números anteriores, a empresa de seguros deve proporcionar ao tomador do seguro ou ao segurado e ao terceiro lesado informação regular sobre o andamento do processo de regularização do sinistro.

8 - Os prazos previstos no presente artigo suspendem-se nas situações em que a empresa de seguros se encontre a levar a cabo uma investigação por suspeita fundamentada de fraude.»

Estatui o art.38:

“1 - A posição prevista na alínea e) do n.º 1 ou no n.º 5 do artigo 36.º consubstancia-se numa proposta razoável de indemnização, no caso de a responsabilidade não ser contestada e de o dano sofrido ser quantificável, no todo ou em parte.

2 - Em caso de incumprimento dos deveres fixados nas disposições identificadas no número anterior, quando revistam a forma dele constante, são devidos juros no dobro da taxa legal prevista na lei aplicável ao caso sobre o montante da indemnização fixado pelo tribunal ou, em alternativa, sobre o montante da indemnização proposto para além do prazo pela empresa de seguros, que seja aceite pelo lesado, e a partir do fim desse prazo.

3 - Se o montante proposto nos termos da proposta razoável for manifestamente insuficiente, são devidos juros no dobro da taxa prevista na lei aplicável ao caso, sobre a diferença entre o montante oferecido e o montante fixado na decisão judicial, contados a partir do dia seguinte ao final dos prazos previstos nas disposições identificadas no n.º 1 até à data da decisão judicial ou até à data estabelecida na decisão judicial.

4 - Para efeitos do disposto no presente artigo, entende-se por proposta razoável aquela que não gere um desequilíbrio significativo em desfavor do lesado.»

Prescreve o art.40 (“Resposta fundamentada”)

«1 - A comunicação da não assunção da responsabilidade, nos termos previstos nas disposições identificadas nos nºs 1 dos artigos 38.º e 39.º, consubstancia-se numa resposta fundamentada em todos os pontos invocados no pedido nos seguintes casos:

a) A responsabilidade tenha sido rejeitada;

b) A responsabilidade não tenha sido claramente determinada;

c) Os danos sofridos não sejam totalmente quantificáveis.

2 - Em caso de atraso no cumprimento dos deveres fixados nas disposições identificadas nos nºs 1 dos artigos 38.º e 39.º, quando revistam a forma constante do número anterior, para além dos juros devidos a partir do 1.º dia de atraso sobre o montante previsto no n.º 2 do artigo anterior, esta constitui-se devedora para com o lesado e para com o Instituto de Seguros de Portugal, em partes iguais, de uma quantia de (euro) 200 por cada dia de atraso”.

Comprova-se que a Autora (terceira lesada), já depois de tomar a iniciativa de mandar reparar o veículo sinistrado (a reparação foi concluída em 2 de Fevereiro de 2018), em 14 de Fevereiro de 2019, comunicou à Ré o acidente, identificou os intervenientes, remeteu listagem de prejuízos e solicitou peritagem.

Perante isto, a Ré dispunha legalmente de 2 dias úteis para marcar a peritagem, 10 ou 12 dias para as concluir, e de 32 dias para dizer se assumia ou não a responsabilidade (art.36 nº1 a) e b).

Contudo, para proceder à realização das peritagens, a Ré contactou telefonicamente a Autora por diversas vezes (em 15 e 18 Fevereiro de 2019), inclusivamente para o telefone que lhe foi dado, mas sem sucesso, visto que ninguém atendeu, tendo, em 18 de Fevereiro de 2019, enviado mensagem escrita, solicitando expressamente contacto para marcação da peritagem, mas a Autora nunca respondeu.

Em 7 de Março de 2019, a Ré comunicou por escrito à Autora que “face à declaração amigável recebida, promovemos o enquadramento do presente sinistro na Convenção IDS (Indemnização Direta ao Segurado). Porém, ainda não foi possível proceder à avaliação de danos na viatura. Assim, não havendo ainda uma posição definida, reservaremos para momento ulterior a nossa decisão relativamente à definição da responsabilidade.”

Em 14 de Fevereiro de 2020, a empresa RS..., Lda., na qualidade de representante da Autora, enviou uma carta à Ré, como “Reclamação de prejuízos de forma quantificada”, a interpelar para o pagamento dos prejuízos decorrentes deste sinistro, com o seguinte teor:

- Reclamação de indemnização correspondente ao custo de reparação do veículo matrícula ..-RU-.., no valor de € 3.355,18;

- Reclamação de correspondente aos custos de paralisação do veículo matrícula ..-RU-.. no valor de € 2.056,24 e

- Reclamação de Indemnização correspondente aos custos decorrentes da necessidade de contratar a empresa RC..., Lda., para proceder à peritagem do veículo acidentado no valor de € 200,00.

Verifica-se que a Autora (terceira lesada) não colaborou com a Ré, com vista à realização da peritagem, pois nunca respondeu, apesar das solicitações.

O regime legal instituído da regularização do sinistro impõe à Seguradora uma obrigação consubstanciada numa declaração sobre a responsabilidade e, assumindo-a, em emitir uma proposta razoável.

Tratando-se de uma obrigação, a Seguradora está vinculada a uma prestação perante o terceiro lesado sobre a regularização extrajudicial do sinistro e ao cumprimento (art.762 nº1 CC), concebido como acto jurídico vinculado, são aplicáveis as disposições dos negócios jurídicos (art.295 CC).

A cooperação do credor no cumprimento do devedor pode configurar um dever jurídico de cooperar, designadamente quando imposto pela boa-fé (art.762 nº2 CC), através dos deveres laterais ou acessórios de conduta. De outro modo, é tratado como ónus jurídico, pois a cooperação não deixa de ser um meio para realizar a satisfação do seu próprio interesse.

Ora bem, a falta de colaboração essencial no cumprimento, sem justificação, constitui o credor em mora accipiendi (art.813 CC), que não exige a culpa, logo o risco deve ser assumido pelo credor, ficando o devedor exonerado do “risco da prestação”, “na medida em que se trata da participação que cabe ao credor na concreta implementação do plano negocial” (Baptista Machado, “O risco contratual e a mora do credor”, RLJ ano 116, pág.194).

A Autora não praticou “os actos necessários ao cumprimento da obrigação” pela Ré, ou seja, omitiu actos de cooperação essenciais, tendo em conta que a peritagem é uma acto indispensável para a Seguradora assumir a sua posição, no período de tempo legalmente fixado.

A mora do credor não acarreta a extinção da obrigação correspondente, tendo as consequências previstas nos arts. 814 a 816 CC, ou seja, a atenuação da responsabilidade do devedor, a oneração do credor com o risco, e a circunstância de recair sobre o credor o risco da impossibilidade superveniente.

Conforme se justificou proficientemente no acórdão recorrido, o art.38 nº2 do Decreto-Lei nº 291/2007 pressupõe que a Ré seguradora não cumpriu com o imposto no art.36 nº1 e), o que aqui não sucede, porque o incumprimento temporário foi causado pela Autora, que passou a estar em mora, sendo que tal implica o não vencimento de juros, quer legais, quer convencionados (art.814 nº2 CC), ficando assim afastado o direito aos juros previsto no art. 38 nº2.

Por outro lado, em face do incumprimento da Autora, carece de fundamento a reclamada sanção cominada no art.40 nº2 do DL 291/2007.

Por isso, adere-se à fundamentação aduzida no acórdão, ao afirmar o seguinte:

“O art. 38/2 do DL 291/2007 pressupõe que a seguradora não cumpriu o disposto no seu art. 36/1-e ou 36/5, como decorre do seu n. º1. Ora, a ré não chegou a estar na situação do art. 36/1-e, pois, que nem sequer lhe responderam ao pedido de marcação de peritagem. Só depois disso é que o prazo em causa no art. 36/1-e poderia começar a contar. Aliás, como decorre indirectamente do art. 36/2-3 do mesmo DL. E a ré nunca chegou a estar na situação do art. 36/5 do DL, pois que esta está na dependência da situação do art. 36/4 do DL que não tem aplicação ao caso.

O art. 40/2 do DL 291/2007 pressupõe que a seguradora se atrasou no cumprimento dos deveres fixados no art. 38/1, o que já se viu que não ocorreu, ou no art. 39/1 que não tem nada a ver com o caso”

Note-se que, a despeito da mora da Autora, a Ré comunicou dentro do prazo legal, através de carta de 7 de Março de 2019, em que parece ter assumido a responsabilidade, deferindo a definição dos danos para momento posterior, com a invocação de que “ainda não foi possível proceder à avaliação de danos na viatura”, precisamente porque a Autora omitiu os actos de cumprimento relativos à peritagem, continuando em mora, tendo ainda a Ré informado haver promovido o enquadramento do sinistro na Convenção IDS, uma vez recebida a declaração amigável.

É certo que em 14 de Fevereiro de 2020, a Autora, através de representante, reclamou prejuízos quantificados, mas a verdade é que, perante os elementos factuais disponíveis, nessa altura não tinha purgado a mora. Na verdade, a mora do credor cessa a partir do momento em que está disposto a aceitar a prestação ou colaborar com o devedor, o que não está demonstrado.

Improcede a revista, confirmando-se o douto acórdão recorrido.


III – DECISÃO


Pelo exposto, decide-se:

1)


Julgar improcedente a revista e confirmar o acórdão recorrido.

2)


Condenar a recorrente nas custas.

Lisboa, Supremo Tribunal de Justiça, 23 de Abril de 2024.


Jorge Arcanjo (Relator)

António Magalhães

Nelson Carneiro