Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2154/16.5T8BRR-H.L1-A.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: LEONEL SERÔDIO
Descritores: RECURSO DE REVISTA
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
INSOLVÊNCIA
LIQUIDAÇÃO
PRAZO DE INTERPOSIÇÃO DE RECURSO
PROCESSO URGENTE
CONVITE AO APERFEIÇOAMENTO
PRINCÍPIO DA AUTORRESPONSABILIDADE DAS PARTES
INSOLVENTE
RECLAMAÇÃO PARA A CONFERÊNCIA
REJEIÇÃO DE RECURSO
Data do Acordão: 04/10/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECLAMAÇÃO - ARTº 643 CPC (COMÉRCIO)
Decisão: RECLAMAÇÃO INDEFERIDA.
Sumário :

I - O Juiz apenas tem o dever de convidar o Recorrente a suprir omissões ou deficiências meramente formais e secundárias.


II -Atento o disposto no artigo 9º n.º 1 do CIRE, o incidente de liquidação, em processo de insolvência tem natureza urgente, por isso, nos termos do artigo 638 n.º 1, 2ª parte, do CPC, o prazo para interposição do recurso é de 15 dias.

Decisão Texto Integral:

Processo n.º 2154/16.5T8BRR-H.L1


Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça ( 6ª secção)

I. Relatório

No apenso de liquidação do processo de insolvência, o insolvente AA interpôs recurso de apelação do despacho que incidiu sobre o seu requerimento de 27.10.2022.


Remetidos os autos ao Tribunal da Relação por despacho proferido pelo Desembargador/relator em 26.07.2023, não foi admitida a apelação interposta pelo Insolvente, por falta de objeto e de legitimidade.


Notificado desse despacho, veio, o Insolvente, ao abrigo do disposto no artigo 652.º n.º 3 do Código de Processo Civil, apresentar reclamação para a conferência, invocando, em síntese, que a questão controvertida e, portanto, o objeto do recurso, não se prende com o indeferimento da fixação de um prazo máximo para desocupação do imóvel, mas antes com a requerida suspensão de toda e qualquer venda judicial, sobre a qual não houve qualquer pronúncia.


Em 02.10.2023 foi proferido acórdão em conferência que julgou improcedente a reclamação apresentada pelo Apelante, confirmando o despacho do relator que não admitiu o recurso de apelação.


. Em 30.10.2023, o Insolvente interpôs recurso de revista deste acórdão para o STJ, invocando o disposto nos artigos 652.º, nº5, alínea b) e 672.º, nº1 do Código de Processo Civil.


Por despacho do Sr. Juiz Desembargador/ relator proferido em 23.11.2023, nos termos do artigo 641º n.º 2 al. a) do CPC, não foi admitido o recurso de revista interposto pelo Insolvente/Recorrente relativamente ao acórdão proferido por este Tribunal da Relação de Lisboa em 02.10.2023, por não cumprir os requisitos de admissibilidade previstos no artigo 14º do CIRE e porque o respetivo requerimento deu entrada fora de prazo.


O Recorrente veio reclamar para a conferência desse despacho que não admitiu o recurso e o Ex.mo Sr. Desembargador/relator convolou o requerimento para reclamação para o STJ.


Nesse requerimento que pugna pela admissibilidade do recurso de revista, o Recorrente apresenta os seguintes fundamentos:


“1. Os recorrentes interpuseram recurso de apelação no apenso de liquidação com subida em recurso de revisão para o STJ.


2. É certo que em processo de insolvência a regra é de apenas uma instância de recurso, cfr. artigo 14.º, n.º 1 CIRE.


3. Contudo, encontra-se previsto o recurso de revisão de sentença sempre que haja julgados contraditórios com decisão sobre a mesma matéria, cfr. previsto no artigo 638.º do CPC aplicável ex vi artigo 17.º CIRE.


4.Assim, salvo melhor entendimento, somos de modesta opinião em crer que “in casu” se aplica o recurso de revisão da sentença supra referido.


5. Pelo que se requer que a douta decisão colegial a proferir nos presentes autos, em apenso de liquidação, admita a apelação interposta pelos ora requeridos em recurso de revisão para o douto STJ.”


Não foram apresentadas respostas.


Por decisão do relator de 16.02. 2024 foi, nos termos do artigo 643º n.º 4 do CPC, indeferida a reclamação, mantendo-se o despacho reclamado que não admitiu o recurso de revista.


O Recorrente veio reclamar para a conferência, nos termos do artigo 652 n.º 3 do CPC, ex vi artigo 679º do mesmo diploma.


Apresenta os seguintes fundamentos que se transcrevem:


«1.Veio a ser determinada a improcedência da reclamação apresentada,


2.Com o fundamento de que,

3 “A admissibilidade do recurso pressupunha que o recorrente demonstrasse que o acórdão recorrido estava em oposição com outro, proferido por alguma das Relações ou pelo Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da mesma legislação e que tivesse decidido de forma divergente a mesma questão fundamental de direito”

4.Mais entendendo que,

5.“Ora, no caso, o Recorrente não alega que o acórdão recorrido está em contradição com qualquer da Relação ou do STJ e, por isso, também não junta cópia do acórdão fundamento.

Assim, por não se verificarem os requisitos exigidos pelo art.º. 14º do CIRE, o recurso de revista não é admissível.”

6.Ora, não pode o reclamante colher tal entendimento, sem demais,

7. Na estrita medida de que por uma questão de forma,

8.Determina a douta decisão singular, o obstaculizar do acesso à JUSTIÇA!

9. Se de facto, é entendimento da decisão singular de que, carecia de ter sido identificado qual o acórdão fundamento,


10. A verdade é que foi indicado que o recurso em causa tinha por base a existência de julgados contraditórios.


11. Sendo esta a questão meramente formal, que obsta a aplicação da douta JUSTIÇA ao caso concreto,

12. Sendo que aqui mal andou a decisão singular proferida que,

13. Na vertente e emergente situação objectiva factual de poder vir, através de um poder-dever, determinar a sanação da eventual questão de forma,

14. Determina apenas indeferir não só a pretensão do reclamante, como na verdade,

15.Determina indeferir o seu acesso à JUSTIÇA!

16. Isto porquanto, não existiu o cumprimento do poder dever do douto Tribunal, de formular o convite ao aperfeiçoamento.

17. Isto porquanto, desde que enunciada minimamente a factualidade consubstanciadora dos requisitos impostos uma eventual imprecisão da materialidade invocada impõe um convite ao respectivo aperfeiçoamento, nos termos do art. 590.º, n.º 4, do CPC.

18. Aplicável que é aos presentes autos e presente situação concreta.

19. O que não aconteceu no caso vertente.

20. Trata-se, «no fim de contas, de isentar a parte de um desproporcionado efeito preclusivo, emergente de não ter perspectivado, no momento próprio, certa realidade factual como substantivamente relevante para a composição da lide, parecendo manifestamente inadequado que um lapso ou omissão, muitas vezes no limiar da desculpabilidade (tanto assim que também escapou ao juiz, que não formulou oportuno convite ao aperfeiçoamento na fase de saneamento e condensação...), acabe por determinar uma materialmente injusta composição do litígio.».


21.E neste mesmo sentido vem-se pronunciando a jurisprudência, afirmando-se no Acórdão do STJ, de 26.03.2015 (processo nº 6500/07.4TBBRG.G2.S2).


22.De realçar que, apesar do poder de iniciativa do juiz de convidar as partes ao aperfeiçoamento dos articulados ser, de algum modo, discricionário, sempre se dirá que, inspirada como está a nossa lei processual civil no princípio da cooperação judiciária proclamado no citado art. 7º e dada a maior latitude que, atualmente, a mesma confere ao suprimento de factos essenciais à procedência da ação, como se alcança do preceituado nos citados arts. 5º, nº 2, al. b) e 590º, nº 2, al. b) e nº 4 CPC, tal poder de iniciativa do juiz ao convite ao aperfeiçoamento deverá ser considerado como um poder-dever que deverá ser exercido,


23. Sob pena de se estar perante uma nulidade insuprível condicionada pela existência de uma decisão surpresa.»


A final pede que se admita o recurso de revista interposto, ainda que careca o mesmo de ser aperfeiçoado, mediante o exercício do poder-dever a que se encontra adstrito o Tribunal.


Não foram apresentadas respostas.


II .Fundamentação


Questões a decidir:


Se devia ter sido proferido pelo relator despacho de aperfeiçoamento.


Se é admissível recurso de revista do acórdão do Tribunal da Relação que não admitiu o recurso de apelação .


**


A factualidade a considerar é a referida no relatório.


*


O despacho reclamado começou por decidir que o recurso de revista não era admissível por não se verificarem os requisitos exigidos pelo artigo 14º do CIRE, por não ser admissível recurso de revista do acórdão prolatado em conferência, no Tribunal da Relação, que não admite o recurso de apelação e ainda por ser intempestivo.


Ora, o Reclamante limita-se a atacar o primeiro dos fundamentos, não verificação dos requisitos exigidos pelo artigo 14º do CIRE, por não ter indicado o denominado acórdão fundamento.


No entanto, reanalisada a questão, entendemos que tendo o acórdão recorrido do Tribunal da Relação por ter sido proferido em apenso de liquidação do processo de insolvência (artigo 170º CIRE), não está sujeito ao regime do artigo 14º, 1, do CIRE.


De qualquer forma, o despacho reclamado não cometeu qualquer nulidade por não ter convidado o Recorrente a indicar o acórdão fundamento.


O Recorrente sustenta que o relator tinha o dever de o convidar a indicar o acórdão fundamento, invocando para o efeito o princípio da cooperação judiciária proclamado no artigo 7º do CPC e os artigos 5º, nº 2, al. b) e 590º, nº 2, al. b) e nº 4 do mesmo diploma e o acórdão do STJ, de 26.03.2015, processo nº 6500/07.4TBBRG.G2.S2.


No entanto, no citado acórdão do STJ a questão que se discutia era a de saber se a petição era inepta ou apenas padecia de deficiência, por insuficiência de concretização factual.


Aceitando que o convite ao suprimento das exceções dilatórias e ao aperfeiçoamento dos articulados é um poder/dever vinculado dos juízes, nos termos dos artigos 6º n.º 2, 7 º n.º 2, 590º n.º 2 alíneas a) e b) e n.º 3 do CPC, esse convite ocorre até à prolação do saneador e esse dever apenas se verifica quando a petição padece de deficiências, não quando é inepta.


Na fase de recurso, o juiz tem o dever de proferir convite ao aperfeiçoamento, nos termos do artigo 639º n.º 3 do CPC, quando as conclusões sejam deficientes, obscuras ou complexas ou para o recorrente proceder às especificações previstas no n.º 2 do mesmo artigo.


Fora da previsão do citado artigo, apenas se pode recorrer ao princípio da cooperação, para suprir omissões ou deficiências de natureza formal ou secundárias e que não se traduzam em incumprimento de normas que imponham ónus ao recorrente ou recorrido, ou seja, o aperfeiçoamento não é admissível quando as deficiências respeitam ao conteúdo da alegação e a vícios substanciais.


Como refere o acórdão do TC n.º 641/2020, de 16.11.2020, não existe um direito genérico à obtenção de um despacho de aperfeiçoamento. Por outro lado, o direito a um processo equitativo e o princípio da cooperação não afastam o princípio da auto responsabilidade das partes.


Esse direito ao convite ao aperfeiçoamento, está limitado às deficiências formais, e não pode ser instrumentalizado pelo respetivo destinatário, de forma a permitir-lhe de modo enviesado, obter um novo prazo, para reformular a impugnação que optou por deduzir.


Retomando, ao caso concreto, apenas era dever do tribunal convidar o Recorrente a juntar aos autos cópia do acórdão fundamento, mas é inadmissível suprir a falta de indicação desse acórdão.


No entanto, como se referiu, por não ter aplicação ao caso, o artigo 14º do CIRE, está questão perdeu utilidade.


Por outro lado, tendo o recurso de apelação sido admitido pela 1ª instância, nos termos do artigo 641º n.º 5 do CPC, seguindo-se depois o despacho de não admissão no tribunal da Relação, nos termos do artigo 641º n.º 2 do CPC, confirmado por acórdão em conferência, o recurso para o STJ era admissível, de acordo com o regime ordinário da revista, ao abrigo do artigo 671º n.º 1 do CPC, na previsão em que admite o recurso de decisão da Relação que “ponha termo ao processo” , por estar em causa acórdão da Relação que, em apelação incidente sobre decisão de 1.ª instância, extingue a instância recursiva em 2.º grau por não conhecimento do recurso com fundamento em requisitos legais-formais de recorribilidade. ( cf. neste sentido, Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa, em CPC Anotado, vol. I, pág. 807, onde em anotação ao artigo 671º n.º 1, escrevem: “ Ademais, apesar do preceito se reportar textualmente apenas à “ absolvição da instância”, tem suficiente latitude para abarcar outras formas de extinção da instância, designadamente da rejeição do recurso de apelação por intempestividade …” e ainda os acórdãos ali citados do STJ de 30.03.2017, 9.06.2016 e 28.01.2016, os três relatados por Abrantes Geraldes, disponíveis na base de dados do IGFEJ).


No entanto, o recurso de revista, não é admissível, dado que a alegação do recurso de revista, foi apresentada intempestivamente.


Atento o disposto no artigo 9º n.º 1 do CIRE, o incidente de liquidação, em processo de insolvência tem natureza urgente, por isso, nos termos do artigo 638 n.º 1, 2ª parte, do CPC, o prazo para interposição do recurso é de 15 dias.


Ora, o acórdão recorrido foi notificado em 03.10.2023, o prazo para dele recorrer, mesmo com multa, terminaria em 26.10.2023 e o requerimento de interposição de recurso de revista apenas deu entrada em 30.10.2023.


III. Decisão


Pelo exposto, indefere-se arguida nulidade e a presente reclamação e ainda que com diferente fundamentação mantém-se o despacho reclamado.


Custas a cargo da massa insolvente, fixando-se em 2 UC a taxa de justiça.


Lisboa, 10.04. 2024


Os Juízes Conselheiros


Leonel Serôdio ( Relator)


Ricardo Costa ( 1º adjunto)

Maria Amélia Ribeiro ( 2ª adjunta)