Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
363/11.2TJVNF-O.G1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: RICARDO COSTA
Descritores: PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
PODERES DO JUIZ
PROVA
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
PODERES DA RELAÇÃO
FACTOS ESSENCIAIS
FACTOS INSTRUMENTAIS
EXCESSO DE PRONÚNCIA
CASO JULGADO FORMAL
Data do Acordão: 04/10/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA (COMÉRCIO)
Decisão: RECLAMAÇÃO INDEFERIDA.
Sumário :
I- O princípio do contraditório, plasmado no essencial no art. 3º, 3, do CPC, estabelece uma garantia de participação efectiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, mediante a possibilidade de, em igualdade, influírem em todos os elementos (factos, provadas, questões de direito) que se encontrem em ligação com o objecto da causa e que em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão – o escopo é, mais do que a defesa enquanto oposição, pronúncia ou resistência à actuação da outra ou outras partes e do próprio tribunal, a influência sobre o desenvolvimento e êxito da sua pretensão nas decisões do processo.

II- O contraditório como fundamento para o direito de influenciar a decisão exige, no plano da prova, que às partes seja facultada, em particular, a proposição de todos os meios de prova potencialmente relevantes para o apuramento da realidade dos factos (principais ou instrumentais) da causa.

III- É de sufragar que esse contraditório influenciador se alargue ao dever de o tribunal promover esse “direito à prova” das partes e, por isso, suscitar a produção de prova necessária ao esclarecimento da verdade material em função da sua importância para a composição do litígio (arts. 6º, 1, 411º e, em especial, 436º, 1, do CPC).

IV- A falta intercalar de diligência probatória na tramitação processual inerente à prova de factos essenciais (arts. 5º, 1 e 2, CPC) a considerar na decisão final (no caso, os correspondentes às despesas de mandatário da massa insolvente, no âmbito da decisão sobre “prestação de contas” do administrador de insolvência) é susceptível de ser vista como violadora do “direito à prova” na proposição e obtenção de meios de prova pré-constituídos, depois naturalmente submetida, uma vez sendo oficiosa a iniciativa da prova, à faculdade de as partes discutirem e impugnarem a respectiva admissibilidade e a sua força probatória.

V- Se o contraditório como influenciador for omitido na perspectiva da argumentação e conclusão tiradas na sentença de 1.ª instância, está é susceptível de incorrer em “excesso de pronúncia” aquando da decisão sobre a exclusão desses montantes das despesas apresentadas pelo administrador da insolvência na sua “prestação de contas”; o que implica poder ser sancionado com a nulidade do art. 615º, 1, d), 2.ª parte, do CPC.

VI- Arguida pelo interessado com o mesmo fundamento nulidade processual em reclamação e nulidade de decisão em apelação da sentença proferida em 1.ª instância, o despacho proferido sobre tal nulidade no momento de apreciação da admissibilidade do recurso, de acordo com os arts. 615º, 4, 2.ª parte (com admissibilidade de recurso), 617º, 1, e 641º, 1 e 5, do CPC, sendo tal vício qualificável como nulidade de decisão ou julgamento suscitada no recurso de apelação e absorvente da nulidade processual (configurada nos termos do art. 195º, 1, do CPC), uma vez indeferida nesse despacho e insusceptível de recurso “ex vi legis”, não constitui caso julgado formal nos termos do art. 620º, 1, do CPC e, por isso, não prejudica como obstáculo à apreciação nem exclui a competência funcional própria do tribunal “ad quem” para aferir e apreciar dessa nulidade como vício autónomo e próprio à luz do catálogo do art. 615º, 1, do CPC e, como tal, fundamento acessório e dependente da apelação interposta.

VII- Não é de rejeitar a reapreciação da decisão da matéria de facto em sede de apelação se é cumprido a al. c) do art. 640º, 1, em termos bastantes para se identificar a decisão alternativa pretendida e que deveria ser proferida sobre os pontos de facto impugnados.

Decisão Texto Integral:

Processo n.º 363/11.2TJVNF-O.G1.S1


Revista – Tribunal recorrido: Relação de Guimarães, ... Secção


Reclamação de Decisão Sumária Liminar


Acordam em Conferência na 6.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça


I. RELATÓRIO


A) Relativamente ao processo de insolvência em que foram declarados insolventes AA e BB (sentença de 10/2/2011) e foi nomeado CC como Administrador da Insolvência (AI), este veio apresentar prestação de contas, tramitada neste apenso de acordo com os arts. 62º e ss do CIRE.


B) Pronunciaram-se credores da insolvência, de forma individual, e o Ministério Público, com Resposta do AI.


C) O Juiz ... do Juízo de Comércio de ... proferiu sentença (16/3/2023), julgando validamente prestadas as contas, com excepção das despesas indicadas e excluídas para o efeito.


D) O Autor Requerente arguiu a nulidade da sentença por omissão do cumprimento do princípio do inquisitório e do dever de gestão processual (arts. 411º, 436º, 423º, 2, 195º, 1, CPC) e a rectificação de erros materiais nos termos dos arts. 613º, 2 e 3, e 614º do CPC (requerimento de 30/3/2023), pedindo que fosse dada sem efeito na parte relativa aos honorários do Mandatário, sendo substituída por despacho que ordenasse e apreciasse a junção aos autos de nota de honorários.


E) O Autor Requerente interpôs depois recurso de apelação (5/4/2023) para o Tribunal da Relação de Guimarães (TRG).


F) Foi proferido despacho (7/6/2023) de apreciação das nulidades e de admissão do recurso pelo Juiz em 1.ª instância, cujo teor se transcreve:


“O sr. administrador que presta contas veio invocar uma nulidade por alegada violação do princípio do inquisitório por entender que o tribunal tinha que ordenar a junção da nota de honorários do mandatário pelo sr. administrador de insolvência. Tal resulta contraditório com o seu anterior comportamento ao ser convocado para se apresentar em tribunal para prestar esclarecimentos e ter pedido para ser dispensada a sua audição. Acresce que o administrador de insolvência que presta contas teve muito tempo e oportunidade para juntar documentos aos autos.


Não vislumbramos, assim, qualquer nulidade. Na verdade, o princípio do inquisitório não existe para desresponsabilizar quem está obrigado a prestar contas.


Por outro lado, também não vemos que haja necessidade de qualquer retificação de erros materiais à sentença dos autos, cuja fundamentação nos parece clara.


Quanto ao documento junto após a audiência de julgamento, encontra-se esgotado o nosso poder jurisdicional, proferida que está a sentença, para o admitir ou apreciar.

Notifique.

#


Exmos Senhores Juízes Desembargadores,


Foi pelo recorrente invocada a nulidade da sentença de prestação de contas com o fundamento de que o tribunal tinha que ordenar a junção da nota de honorários do mandatário pelo sr administrador de insolvência. Não vislumbramos qualquer nulidade como acima se explicitou e consta das atas da audiência de julgamento.


Pelo exposto, entendemos não se verificar qualquer nulidade.


Contudo, V. Exªs melhor decidirão.”


#


Por estar em tempo e ter legitimidade, admito o recurso interposto pelo senhor administrador cessante da sentença proferida nos autos, que sobe imediatamente, nos próprios autos, com efeito meramente devolutivo – artigo 14º, nº 5 e 6 CIRE.”


G) Subidos os autos e identificadas as questões decidendas – (i) admissibilidade do recurso; (ii) nulidade da sentença; (iii) reapreciação da decisão sobre a matéria de facto –, o TRG proferiu acórdão (12/10/2023), no qual julgou improcedente a inadmissibilidade do recurso e a prolação de despacho de aperfeiçoamento relativas às conclusões apresentadas, não conheceu do objecto referido à arguição de nulidade e rejeitou-se a reapreciação da decisão de facto quanto aos factos 4., 6., 8., 9., 10., 11., 12., 13., 14. e 15., ficando prejudicado o conhecimento do recurso quanto ao direito, decidindo pela total improcedência e manutenção da sentença recorrida.


H) Inconformado, o Autor Requerente interpôs recurso de revista excepcional para o STJ, fundando-se no art. 672º, 1, a) e c), do CPC, finalizando as suas alegações com as seguintes Conclusões:


1. O presente recurso visa o acórdão proferido em 13.10.2023, com a referência 9032938, nos termos do artigo 671º, nº 1 do CPC.

A. Da invocada nulidade da sentença proferida: da relevância jurídica


2. Por requerimento de 30/03/2023, o Recorrente, arguiu a nulidade da sentença proferida em 16/03/2023, invocando, para tanto e em síntese, resultar da mesma que o tribunal considerou que não eram percetíveis os serviços prestados pelo mandatário da Massa insolvente, que os honorários não podiam ser liquidados pelo facto de não ter sido junta aos autos a nota de honorários a especificar os serviços que foram efetivamente prestados e o montante pago, pelo que sobressai do disposto nos art. 411º e 436º do CPC a possibilidade de o juiz realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, as diligências necessárias ao apuramento da verdade à justa composição do litigo, quanto aos factos de que lhe é licito conhecer e, designadamente, ordenar a junção de documentos ao processo, que repute relevante para essa decisão. Ora, tendo o tribunal acusado a falta de junção das notas de honorários, devia, à luz do disposto no art. 411º, ter ordenado a sua junção para que ficasse cabalmente esclarecido, e não justificar a decisão com a não junção das mesmas, razão pela qual, a sentença padece de nulidade nos termos do art. 195º n.º 1 do CPC.


3. A 04/04/2023, o Recorrente interpôs recurso pedindo que fosse “revogada a decisão proferida e substituída por douto acórdão que declare nula a sentença proferida por omissão do cumprimento do princípio do inquisitório e do dever de gestão processual, no que respeita aos honorários pagos pela Massa Insolvente ao Mandatário, considerando aprovadas as restantes despesas supra indicadas. Subsidiariamente, e para o caso da sentença proferida pelo tribunal a quo não ser declarada nula no que em concreto respeita aos honorários pagos pela Massa Insolvente ao Mandatário, deverão as todas as despesas supra indicadas ser consideradas aprovadas, e, caso tal não se conceda, o que se concede por mero dever de patrocínio, deverão ser, nos termos referidos, parcialmente aprovadas.”


4. A 07/06/2023 Sra. Juiz do Tribunal de 1ª Instância proferiu o seguinte despacho: “Req de 2-2-2023 e ss: O sr administrador que presta contas veio invocar uma nulidade por alegada violação do princípio do inquisitório por entender que o tribunal tinha que ordenar a junção da nota de honorários do mandatário pelo sr administrador de insolvência. Tal resulta contraditório com o seu anterior comportamento ao ser convocado para se apresentar em tribunal para prestar esclarecimentos e ter pedido para ser dispensada a sua audição. Acresce que o administrador de insolvência que presta contas teve muito tempo e oportunidade para juntar documentos aos autos. Não vislumbramos, assim, qualquer nulidade. Na verdade, o princípio do inquisitório não existe para desresponsabilizar quem está obrigado a prestar contas. Por outro lado, também não vemos que haja necessidade de qualquer retificação de erros materiais à sentença dos autos, cuja fundamentação nos parece clara. Quanto ao documento junto após a audiência de julgamento, encontra-se esgotado o nosso poder jurisdicional, proferida que está a sentença, para o admitir ou apreciar. Notifique. Exmos Senhores Juízes Desembargadores, Foi pelo recorrente invocada a nulidade da sentença de prestação de contas com o fundamento de que o tribunal tinha que ordenar a junção da nota de honorários do mandatário pelo sr administrador de insolvência. Não vislumbramos qualquer nulidade como acima se explicitou e consta das atas da audiência de julgamento. Pelo exposto, entendemos não se verificar qualquer nulidade. Contudo, V. Exªs melhor decidirão. # Por estar em tempo e ter legitimidade, admito o recurso interposto pelo senhor administrador cessante da sentença proferida nos autos, que sobe imediatamente, nos próprios autos, com efeito meramente devolutivo - artigo 14º, nº5 e 6 CIRE.”


5. O acórdão da Relação aqui em discussão, colocou como questão prévia o saber se pode conhecer tal questão, porque o Recorrente, antes de interpor recurso, por requerimento de 30/03/2023, invocou a referida nulidade junto do tribunal de 1ª Instância, que se pronunciou quanto ao mérito da mesma, indeferindo-a. Para tal, no ponto 4. do acórdão cuja apreciação se requer, titulado de “nulidade da sentença”, o Tribunal a quo veio decidir que “não pode apreciar o mérito do recurso na parte que tem por objecto a invocação da nulidade da sentença por violação do princípio do inquisitório, por, quanto a essa questão, se ter formado caso julgado formal com o despacho do tribunal recorrido, que a apreciou, em virtude do facto de o A. ter reclamado dessa nulidade junto do mesmo, despacho que não foi impugnado. Termos em que não se conhece do objecto do recurso na parte relativa à nulidade processual com fundamento na violação do princípio do inquisitório, por a tal obstar o caso julgado.”


6. ORecorrente nãoconcorda, nempodeconcordar, com oteor acórdão. Dopróprio despacho queapreciou anulidade invocada por requerimento, conforme acima transcrevemos retira-se que foi o próprio Tribunal da 1ª Instância quem deixou à consideração dos Exmos. Juízes Desembargadores a verificação, ou não, da arguida nulidade. Assim, não podia, sem mais, o Tribunal a quo, ter deixado de conhecer do objeto do recurso, na parte relativa à nulidade processual com fundamento na violação do princípio do inquisitório, por a tal obstar, alegadamente, o caso julgado.


7. Tal despacho proferido pelo Tribunal de 1ª Instância, na parte em que refere que não vislumbra qualquer nulidade de sentença, é nitidamente tabelar ou genérico, na medida em que não se pronuncia em concreto sobre a questão em apreço. E foi assente nesta premissa, dada pelo Tribunal de 1ª Instância, que o Recorrente, nas suas alegações, voltou a arguir a nulidade invocada. Nem poderia ser de outra forma, já que se assim fosse, teria o Recorrente de recorrer duas vezes, ou seja, do despacho proferido pelo Tribunal de 1ª Instância, e da sentença na sua totalidade, na qual esta questão sempre teria de estar incluída, o que além de ir contra tudo o que é economia processual, representando uma verdadeira duplicação de atos, vai também contra tudo o que é o decurso normal de um processo, já que obriga a parte a pagar duas taxas de justiça para a mesma apreciação de direito.


8. Entendemos, desta forma, que não seria aqui a nulidade invocada suscetível de recurso autónomo do despacho do Tribunal de1ª Instância, por estar abrangida noobjeto dorecurso deapelação, interposto da totalidade dasentença, nãoconstituindo, desta forma, casojulgado formal. Enesse sentido, videoAcórdão doSupremo Tribunal deJustiça, de 05.07.2022, no processo nº 1258/19.7T8LSB.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt.


9. Assim, atendendo ao caso em apreço, afigura-se pertinente que o STJ clarifique o alcance do caso julgado no sentido de saber se o despacho proferido pelo Tribunal de 1ª Instância que remete a questão sobre a nulidade para o Tribunal da Relação, mas que ao mesmo tempo contém apenas mera declaração sobre o entendimento que tem sobre a nulidade invocada, importa o caso julgado formal, e se, por sua vez, tal obsta a que o Tribunal da Relação, conheça da invocada nulidade.


10. Mostra-se também justificada a necessidade da revista excecional aos presentes autos, nos termos do artigo 672º, nº 1 al. a) do CPC, pela relevância jurídica da questão em apreço que se impõe que seja densificada pelo STJ, não só no quadro da divergência jurisprudencial ainda existente, conforme se verificou pelo Acórdão acima transcrito, como também pela especial complexidade que sobre o tema recai.

B. Da Impugnação da decisão de facto – Requisitos (da Oposição de Julgados)


11. No Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação, foi entendimento do Tribunal a quo que deve ser rejeitado o recurso quanto à impugnação da decisão de facto, uma vez que o recorrente não indicou a resposta que devia ser dada quanto a cada um dos pontos de facto impugnados, resposta essa que, tendo em consideração o objetivo da impugnação, há-de ser necessariamente diferente da que foi dada pelo tribunal recorrido e que, por força dos princípios da utilidade, da economia e da celeridade processual, o Tribunal ad quem não deve reapreciar a matéria de facto quando o(s) facto(s) concreto(s) objeto da impugnação for(em) insusceptível(eis) de, face às circunstâncias próprias do caso em apreciação e às diversas soluções plausíveis de direito, ter(em) relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma atividade processual que se sabe ser inútil, pois, estando o juízo jurídico-conclusivo de aprovação das despesas que o tribunal recorrido não aprovou, absolutamente dependente da alteração da decisão de facto, sendo este rejeitado e não conhecido, está necessariamente prejudicado o conhecimento do recurso quanto ao direito.


12. O presente acórdão do qual ora se recorre, encontra-se em contradição com o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, já transitado em julgado, datado de 15.06.2023, no âmbito do processo nº 1929/20.5T8VRL.G1.S1, tudo conforme artigo 672º, nº1, alínea c) do Código de Processo Civil, cujo acórdão se junta.


13. O Recorrente não concorda, também neste ponto, com a decisão do Tribunal a quo, pois o ónus a cargo do recorrente consagrado no art.º 640º, do CPC, não exige que as especificações referidas no seu nº 1, constem todas das conclusões do recurso, mostrando-se cumprido desde que nas conclusões sejam identificados com precisão os pontos de facto que são objeto de impugnação. Aliás, quer na motivação, quer nas conclusões, o Recorrente identificou expressamente os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, pontos 4, 6, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14 e 15 dos factos provados. E tanto assim é, que o Recorrente começou a sua fundamentação quanto aos pontos de facto que considerou incorretamente julgados.


14. Em derradeiro termo, o recorrente cumpriu as especificações enunciadas no artigo 640.º do Código de Processo Civil, pelo que carece de fundamento a decisão do Tribunal da Relação em rejeitar o recurso sobre a matéria de facto, que quer o Tribunal da Relação, quer a parte contrária, conseguiram apreender as questões que foram suscitadas pelo recorrente.


15. É, assim, excessiva a rejeição da impugnação da matéria de facto feita em “blocos”, quando tais blocos são constituídos por um pequeno número de factos ligados entre si, tendo o Recorrente indicado os meios de prova com vista à sua pretensão. Numa impugnação da decisão da matéria de facto, deve constar das conclusões a indicação dos concretos pontos de facto tidos por incorretamente julgados. Salvo opinião contrária, não se impõe que se indiquem os números dos pontos impugnados, mas que, com clareza, resulte identificada a matéria que se quer pôr em causa – o que, de resto, foi mais do que cumprido.


16. Os concretos meios de prova indicados pelo recorrente são comuns aos factos, daí que a alegada impugnação em bloco não obstaculiza a perceção da matéria que se pretende impugnar, nem o respetivo fundamento, pelo que se conclui que o recorrente cumpriu o ónus de impugnação a que se refere o artigo 640.º do CPC. Se o Tribunal da Relação entendia que, ainda que a factualidade fosse alterada nos termos pretendidos pelos recorrentes, a decisão seria sempre a mesma, deveria tê-lo explicitado, pois não podia recusar-se a conhecer da impugnação da decisão de facto, com fundamento na falta de indicação do direito aplicável aos factos.


17. A Relação não se deve abster de conhecer da impugnação da decisão de facto, quando, a propósito de alguns pontos da matéria de facto, considerou que não foram cabalmente observados pelo recorrente os ónus previstos no art.º 640º, n.º 1 do CPC e, quanto a outros pontos (neste caso, o ponto 10), reputou tratar-se de matéria irrelevante para a decisão final. Na interpretação-aplicação do art. 640.º do CPC, o STJ tem observado, fundamentalmente, um critério de proporcionalidade e de razoabilidade, no respeito pelo princípio do processo equitativo e repudiando excessos de formalismo.


18. Sem mais, e porque existe contradição, conforme exposto, do Acórdão que ora se recorre com o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, transitado em julgado, datado de 15.06.2023, no âmbito do processo 1929/20.5T8VRL.G1.S1, entendemos estar justificada a necessidade da revista excecional aos presentes autos, nos termos do artigo 672, 1 al. c) do CPC.


H) O Ministério Público veio responder às alegações, sustentando a inadmissibilidade (arts. 14º, 1, do CIRE e 629º, 1, do CPC) e a improcedência da revista.


A credora «Fagricoop – Cooperativa Agrícola e dos Produtores de Leite de ..., CRL», na qualidade de Presidente da Comissão de Credores, veio apresentar contra-alegações, pugnando pela inadmissibilidade da revista (à luz dos arts. 14º, 1, do CIRE, e 672º, 1, e 629º, 1, do CPC) e da respectiva improcedência por falecimento das respectivas conclusões.


I) Subidos os autos, por força da iniciativa processual desencadeada neste STJ, foi proferido em 1.ª instância despacho (15/1/2024) de fixação do valor da causa neste apenso no valor de € 359.800,00, transitado em julgado.


J) Ao abrigo da faculdade proporcionada pelos arts. 652º, 1, c), e 656º do CPC, ex vi art. 679º, do CPC, foi proferida Decisão Sumária Liminar, na qual previamente se decidiu convolar oficiosamente a revista interposta para a modalidade de revista normal (arts. 6º, 2, 193º, 3, 547º, CPC), de acordo com os arts. 671º, 1, e 674º, 1, do CPC, e se julgou parcialmente procedente a revista, com as decisões inerentes de:

i. anular o acórdão recorrido por verificação-configuração da nulidade decorrente do art. 615º, 1, d), 2.ª parte, ex vi art. 666º, 1, do CPC;

ii. anular o acórdão recorrido na parte em que se rejeitou e não se conheceu o recurso do Apelante CC no segmento relativo à reapreciação da matéria de facto no que toca aos factos provados 4., 6., 9., 11., 12., 13., 14. e 15.;

iii. ordenar a devolução dos autos à Relação para julgamento da nulidade arguida e da reapreciação da matéria de facto rejeitada em relação aos pontos de facto provados impugnados e antes identificados sob (ii);

iv. determinar a prolação de novo acórdão em resultado desse julgamento e reapreciação, com substituição do acórdão assim anulado, se possível pelos mesmos Juízes Desembargadores que julgaram o acórdão recorrido.


K) Inconformada, a credora e recorrida «F........» deduziu Reclamação para a Conferência, visando a prolação de acórdão que revogue a Decisão Sumária e considere improcedente o recurso de revista.


O Recorrente e Reclamado CC veio apresentar Resposta, pugnando pela improcedência da Reclamação.





Colhidos os vistos nos termos legais, cumpre apreciar e decidir em conferência, atendendo às motivações aduzidas pela Reclamante.


II. APRECIAÇÃO DA RECLAMAÇÃO E FUNDAMENTOS


A) Factualidade


As instâncias consideraram a seguinte factualidade provada:


1. A credora F........ intentou ação declarativa de condenação contra a Massa Insolvente, o AI e os co-herdeiros, que deu origem ao processo nº 4249/19.4... do juízo central cível de ..., J., no qual foi proferida sentença a 7-9-2021, já transitada em julgado, que anulou os atos de transação, aquisição e disposição das verbas 1 a 6 da relação de bens no inventário nº 1130/11.9... do juízo local cível de ..., por o AI, em acordo com os interessados, ter pago tornas no processo de inventário utilizando dinheiro da massa insolvente sem o consentimento da Comissão de Credores.


2. As tornas referem-se às transferências realizadas no dia 5-3-2018 pela conta da massa no âmbito do processo de inventário nº 1130/11.9... a DD, no valor de € 20.000,00, EE, no valor de € 35.000,00 e a FF, no valor de € 10.000,00. (D1, D2, D3).


3. Nesse inventário o AI pagou através da massa insolvente custas processuais no montante de € 1.384,14. (D4)


4. A despesa de € 172, 70 com a legalização de um imóvel não identifica que legalização foi efetuada e se se reporta a um imóvel apreendido para a massa insolvente. (D5)


5. O montante de € 42.960,00 que a F........ entregou à massa foi-o a título de caução. (R3)


6. O AI pagou pela massa insolvente os honorários ao advogado Dr GG a 16-1-2019, o valor de € 9.225,00 enquanto mandatário no processo de inventário nº 1130/11.9... – artigo 8º Lei 29/2009 de 29-6. Não obrigatória constituição de mandatário. (D6)


7. A despesa apresentada de € 5.105,31 a 7-3-2019 refere-se a transferência no processo de execução intentado por um dos co-herdeiros da insolvente, HH, a pedir o pagamento da quantia de € 15.000,00 de remanescente do valor das tornas do acordo realizado no processo de inventário já referido. (D7)


8. As despesas de € 5.105,31 a 21-3-2019 referente a pagamento de IMT e de € 908,81 a 6-5-2019, referente a pagamento de imposto de selo e despesas não indicam sobre que prédios incidiram, não se sabendo se têm ligação aos bens apreendidos. (D8 e D9)


9. Os pagamentos de € 367,20 pela massa insolvente a 31-5-2019 reportam-se a taxas de justiça e multas no processo 363/11.2TJVNF-H. G1 para alegações de recurso em nome pessoal do Acórdão que o havia destituído. (D10 a D12)


10.Foi concedido à massa insolvente o benefício de apoio judiciário na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo.


11.A despesa de custas processuais no montante de € 428,40, pagas no dia 21-6-2019 é da responsabilidade do AI por se reportar a multas e penalidades por este ter apresentado recurso e não ter junto o comprovativo de taxa de justiça devida. – fls 126 e 127. (D 13)


12.A despesa de € 19.065,00 efetuada a 2-8-2019 de pagamento a mandatário da massa insolvente não especifica a nota de despesas e honorários para prova do valor e serviços prestados.


13.Não é percetível quais os serviços pagos pela despesa de € 9.225,00 com mandatário. (D6 e D14)


14.O AI não obteve o consentimento da Comissão de Credores para a constituição de mandatário à massa insolvente.


15. A despesa de custas processuais no montante de € 102,00 a 19-8-2019 corresponde ao pagamento de uma taxa de justiça da reclamação apresentada pelo mesmo do despacho que não admitiu o recurso que apresentou contra a sua destituição. (D15)


16. A despesa de € 816,00 paga a 1-10-2019 não tem qualquer documento a comprová-la. (D16)


17. A 4-11-2019 o AI recebeu o montante de € 34.000,00 do remanescente do preço da venda dos imóveis rústicos descritos na CRP de ... sob os artigos 3158º e 3157º. Verbas 7 e 8 do inventário. Já havia sido destituído. (R2)


18.O AI foi destituído por decisão proferida a 9-5-2019.


19.Tendo recorrido de tal decisão, o recurso teve efeito meramente devolutivo.


B) Admissibilidade, configuração e objecto do recurso


A Reclamante começa por impugnar a convolação oficiosa da revista excepcional em revista normal, decisão que estaria viciada por nulidade (que não especifica qual, porém).


Porém, reitera-se o que se referiu e sustentou na Decisão Sumária:


“O recurso não segue o regime de revista atípica e restritiva do art. 14º, 1, do CIRE, uma vez que se trata de apenso ao processo de insolvência, de acordo com o art. 64º, 1, do CIRE (cfr. AUJ n.º 13/2023, processo n.º 3125/11, Rel. AFONSO HENRIQUE, in DR, 1.ª Série, n.º 225, de 25/11/2023, págs. 11 e ss).


O objecto recursivo não incide sobre segmentos que possam estar a coberto da “dupla conformidade decisória”, tal como prevista no art. 671º, 3, do CPC, sem prejuízo da confirmação da sentença recorrida quanto ao mérito pelo acórdão proferido pela Relação.


Com efeito, temos, por um lado, a sindicação da decisão de não conhecimento da nulidade invocada pelo Recorrente por força de alegado acatamento de caso julgado formal e, por outro, a sindicação da interpretação e aplicação do art. 640º, 1, do CPC na rejeição da impugnação da decisão sobre a matéria de facto. Em ambos os casos, temos decisões tomadas originariamente e que emergem apenas do acórdão recorrido no âmbito do recurso de apelação. Logo, não subsiste uma conformidade de decisões das instâncias pré-STJ que obste ao recurso de revista normal e, por tal circunstância, que legitime a interposição de revista na modalidade excepcional do art. 672º do CPC – improcedendo, portanto, o que se visa nas Conclusões 10. e 18. da revista.


De tal sorte, há que convolar oficiosamente a revista interposta para a modalidade normal (arts. 6º, 2, 193º, 3, 547º, CPC), de acordo com os arts. 671º, 1, e 674º, 1, do CPC, que configurará e determinará a tramitação nesta instância de recurso.”


Logo.


Não procede a impugnação da Reclamante quanto à existência de dupla conformidade.


Não procede a impugnação da Reclamante quanto à observância do regime recursivo do art. 14º, 1, do CIRE.


Nem à admissão da convolação obsta a fundamentação da revista em oposição de julgados, que seria naturalmente condição para ser tramitada à luz do art. 14º, 1, do CIRE, mas não é obstáculo para ser tramitada como revista normal em face da inexistência da “dupla conformidade”, com as devidas adaptações em sede das respectivas Conclusões (desconsiderando os pontos 12. e 18. relativos à contradição de jurisprudência), em aplicação do princípio do aproveitamento processual dos actos das partes em proveito das suas garantias (neste caso, de impugnação das decisões por via de recurso para a instância superior). Assim manda, em especial, o art. 193º, 3, do CPC, ordenado a “evitar que, por meras razões de índole formal, deixe de ser apreciada uma pretensão deduzida em juízo”, desde que não haja obstáculos legais ao meio processual resultante da convolação1.


Confirma-se, pois, essa convolação, com a consequente tramitação, tal como adoptada pela decisão reclamada.


C) Nulidade da sentença


Quanto a esta questão recursiva, a decisão reclamada apresenta a seguinte motivação, que se reitera.


Notificado da sentença, o Autor e Requerente veio arguir a nulidade da sentença decorrente da omissão das diligências impostas pelos arts. 411º e 436º, em conjugação com o art. 423º, 2, do CPC, traduzidas na – assim entendida como necessária – junção oficiosa aos autos dos documentos relativos às notas de honorários do mandatário da massa insolvente ou na realização de diligências de prova sobre o montante dos honorários cobrados, e que se configurariam como essenciais para a “justa composição do litígio” pelo tribunal – fundamenta nos termos do art. 195º, 1, do CPC, “por omissão do cumprimento do princípio do inquisitório e do dever de gestão processual”.


Depois, no âmbito da Apelação interposta, cingida à “parte em que [a sentença] considerou não provadas as despesas da Massa Insolvente indicadas”, veio reiterar a mesma arguição, visando dar sem efeito a sentença proferida na parte relativa aos honorários de mandatário – cfr. Conclusões 3. a 19. da Apelação.


Confrontado, o juiz afectado por tal alegação veio proferir despacho em que se pronuncia pelo indeferimento de tal nulidade (nas dois momentos usados e alegados pelos Apelantes: reclamação e apelação), despacho esse que se prolatou também a pretexto do exercício do poder de apreciar a admissibilidade do recurso, de acordo com o art. 617º, 1, do CPC, que justamente prescreve não haver recurso da decisão de indeferimento das nulidades invocadas.


Confrontado com tal questão recursiva, o tribunal de 2.ª instância decidiu não conhecer da questão da nulidade, argumentando que, não tendo sido interposto recurso desse despacho, este constitui caso julgado formal (art. 620º, 1, CPC), que obsta ao conhecimento da questão na apelação em face da reclamação e subsequente decisão do juiz de 1.ª instância.


A nulidade foi configurada na apelação pelo Autor – depois de requerida como nulidade processual – como nulidade da própria sentença, decorrente da violação do princípio do inquisitório pela invocada falta de realização de diligências probatórias essenciais à decisão final em sede de “prestação de contas”.


Ao invés, foi conhecida pela Relação no pressuposto subjacente de ser tão-somente nulidade processual inominada, reclamada enquanto tal (antes de interposto o recurso de apelação) ao abrigo dos arts. 195º, 1, 196º, 199º e 200º, 3, do CPC, obstando por isso com o obstáculo cognitivo do “caso julgado formal”.


Não obstante, visto o iter processual à luz do regime legal pertinente, não podemos ignorar que a apreciação prévia do juiz de 1.ª instância dessa nulidade, enquanto segmento recursivo da apelação, foi empreendida no exercício dos poderes oficiosos atribuídos ao juiz no tribunal “a quo”, justamente no âmbito desse recurso de apelação, de acordo com a 2.ª parte do art. 615º, 4, e do n.º 1 do art. 617º do CPC (em conjugação com o art. 641º, 1 e 5, do CPC), tendo como objecto uma nulidade de decisão (art. 615º, 1, CPC) suscitada no recurso interposto da sentença recorrida. E, mesmo não tendo sido fundamentada expressamente pelo juiz nos termos do art. 617º, 1, do CPC, o certo é que da sua pronúncia resulta que essa apreciação incidiu e absorveu a invocação da nulidade processual configurada à luz do art. 195º, 1, do CPC (desde logo então já afectada pelo regime de arguição do art. 199º, 1, do CPC), resultando dessa absorção uma e uma só resposta a tal arguição de apreciar nulidade no âmbito do regime recursório próprio de apelação da sentença recorrida (v. os arts. 644º, 3, e 660º do CPC2).


Ora, cremos haver razões para que essa nulidade processual pudesse e possa ser absorvida e consumida, a final, como nulidade de decisão ou julgamento, enquanto vício fundado em “excesso de pronúncia”:

i. o princípio do contraditório, plasmado no essencial no art. 3º, 3, do CPC, estabelece uma garantia de participação efectiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, mediante a possibilidade de, em igualdade, influírem em todos os elementos (factos, provadas, questões de direito) que se encontrem em ligação com o objecto da causa e que em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão – o escopo é, mais do que a defesa enquanto oposição, pronúncia ou resistência à actuação da outra ou outras partes e do próprio tribunal, a influência sobre o desenvolvimento e êxito da sua pretensão nas decisões do processo;

ii. o contraditório como fundamento para o direito de influenciar a decisão exige, no plano da prova, que às partes seja facultada, em particular, a proposição de todos os meios de prova potencialmente relevantes para o apuramento da realidade dos factos (principais ou instrumentais) da causa;

iii. é de sufragar que esse contraditório influenciador se alargue ao dever de o tribunal promover esse “direito à prova” das partes e, por isso, suscitar a produção de prova necessária ao esclarecimento da verdade material em função da sua importância para a composição do litígio (arts. 6º, 1, 411º e, em especial, 436º, 1, do CPC);

iv. a falta intercalar de diligência probatória na tramitação processual inerente à prova de factos essenciais (arts. 5º, 1 e 2, CPC) a considerar na decisão final – como se vieram a revelar os correspondentes às despesas de mandatário da massa insolvente – é susceptível de ser vista como violadora do “direito à prova” na proposição e obtenção de meios de prova pré-constituídos3, depois naturalmente submetida, uma vez sendo oficiosa a iniciativa da prova, à faculdade de as partes discutirem e impugnarem a respectiva admissibilidade e a sua força probatória.


Se assim for de considerar – como julgamos ser –, o contraditório influenciador terá sido omitido na perspectiva do autor e aqui recorrente enquanto determinante para a argumentação e conclusão tiradas na sentença de 1.ª instância (sublinhado nosso):


“Foram postas em causa as despesas de pagamento de tornas no âmbito do processo de inventário nº 1130/11.9... a DD, no valor de € 20.000,00, EE, no valor de € 35.000,00 e a FF, no valor de € 10.000,00 (D1, D2, D3).


(…)


Relativamente ao pagamento de honorários do Dr. GG para representar a massa insolvente e o administrador de insolvência, tendo sido constituído sem a anuência da Comissão de credores ou do juiz, não tendo sido cumpridos os formalismos do artigo 55º, nº 3 do CIRE, não pode o pagamento dos seus honorários pela massa insolvente ser aceite – artigos 6º e 13º dos factos provados, documentos D6 e D14. Especialmente se tivermos em atenção que, a partir do Acórdão que destituiu o sr. administrador, a sua defesa não podia considerar-se do interesse da massa, mas do seu interesse pessoal. Também falta a nota de honorários a especificar os serviços que foram efetivamente prestados e o montante pago. Além do mais, a constituição de mandatário no processo de inventário é facultativa, a menos que se discutam questões de direito, o que manifestamente não foi o caso.


Pelo que não podem as despesas indicadas ser aprovadas.”


Logo, na perspectiva do Recorrente, ao julgador não seria lícito decidir sem ter em conta essa prova determinante para a sorte do ligítio; podendo incorrer a sentença, em coerência, num vício de “excesso de pronúncia” aquando da sua decisão sobre a exclusão desses montantes das despesas apresentadas pelo AI na sua “prestação de contas”; sancionável portanto nos termos do art. 615º, 1, d), 2ª parte, CPC)4.


Logo, a apreciação desta nulidade de decisão não se encontra precludida, como se fosse decisão definitiva, pelo regime da nulidade processual e do seu eventual caso julgado, que, neste caso de coincidência de fundamento erigido em fundamento recursivo, não se constituiu como tal à luz do art. 620º, 1.


Se esta qualificação (nulidade de decisão) é a que melhor se adequa à alegada falta de exercício do inquisitório pelo juiz na tramitação processual (nomeadamente aquando da realização da audiência final) e possa e deva ser conhecida e apreciada com competência funcional própria pelo tribunal de recurso, como vício autónomo e próprio à luz do catálogo do art. 615º, 1, do CPC, ao invés (e independentemente) de ser reclamada no tribunal recorrido, onde a alegada nulidade teria sido cometida, como deveria ser se apenas fosse vista como nulidade processual, então não estava o tribunal de 2.ª instância impedido (por esgotamento de poder jurisdicional) de apreciar o vício como nulidade da sentença, uma vez invocada por via do recurso interposto dessa decisão.


O resultado dessa apreciação – a única que conta para o efeito da questão recursiva – foi o indeferimento da nulidade de decisão invocada e projectada pelo Recorrente na sentença recorrida como fundamento da apelação. Ora, essa decisão não é susceptível de recurso autónomo, uma vez que já está abrangida no objecto recursivo da apelação (art. 617º, 1, in fine, CPC), nem, em qualquer caso, é imodificável, uma vez que não prejudica nem exclui a competência do tribunal “ad quem” para aferir e apreciar dessa nulidade como fundamento acessório e dependente da apelação interposta (arts. 615º, 4, 2ª parte, 641º, 1 e 5, CPC). Logo, não se constituiu de todo como caso julgado formal, que pudesse ser obstáculo à sua apreciação pelo tribunal de recurso.5


Em suma: não resulta termos sob escrutínio o acatamento de um caso julgado já constituído sobre a questão da nulidade da sentença, razão pela qual não pode ser aceite a interpretação do acórdão recorrido, por não ter abordado, salvo o devido respeito, com a melhor perspectiva o regime dos arts. 615º, 4, 2.ª parte, 617º, 1, e 620º, 1, do CPC.


Logo, no que interessa a esta revista e questão delimitada, não há obstáculo legal, antes imposição, para o julgador de 2.ª instância conhecer dessa arguição, depois de previamente apreciada pelo julgador de 1.ª instância – o que se determina em função de serem procedentes as Conclusões 2. a 9. da revista.





A Reclamante não apresenta razões que façam soçobrar a decisão tomada em face do regime adoptado para sancionar as “decisões-surpresa” na relação com o art. 3º, 3, do CPC e a relevância do princípio do contraditório.


Mais.


A propósito da omissão do exercício deste contraditório “influenciador”6, há apenas a realçar que o “excesso de pronúncia” imputado à decisão tomada em 1.ª instância sem tal exercício prévio, fundamento de nulidade dessa mesma decisão de acordo com o art. 615º, 1, d), 2.ª parte, não permite que se convoque em revista a regra da substituição do art. 684º, 1, do CPC – a interpretar restritivamente apenas para as nulidades que viciem acórdãos da Relação em recurso com tal arguição, sem abranger as decisões proferidas em 1.º grau, com vício reapreciado em 2.º grau, que faz funcionar um poder de cassação e reenvio dos autos à 1.ª instância para suprimento de vício próprio e prossecução da instância (e por interpretação extensiva do art. 684º, 2, do CPC, em referência ao julgador da 1.ª instância).


No caso, de todo o modo, tal não se problematiza; o que se discute por ora é a possibilidade de configuração do vício como nulidade de decisão à luz do art. 615º no objecto da apelação e a omissão do conhecimento e apreciação dessa nulidade pela Relação, por força de invocado caso julgado, o que, não se verificando, se ordenou e reitera.


Resta, pois, confirmar em acórdão o decidido sumariamente sobre a questão.


C) Rejeição da reapreciação da decisão sobre a matéria de facto


1. O acórdão decidiu a rejeição do recurso respeitante à impugnação da decisão sobre a matéria de facto nos seguintes termos:


“O recorrente indicou os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados – 4, 6, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14 e 15.


O recorrente também indicou, grosso modo, os meios probatórios que permitiriam uma decisão diversa.


Porém, com excepção do ponto 10, nem na motivação, nem nas conclusões, o recorrente indicou a decisão que, no seu entender, devia ser proferida sobre cada um dos restantes pontos de facto impugnados, ou, dito de outro modo, não indicou a resposta que devia ser dada quanto a cada um dos pontos de facto impugnados, resposta essa que, tendo em consideração o objectivo da impugnação, há-de ser necessariamente diferente da que foi dada pelo tribunal recorrido.


É certo que na pág. 6 da motivação, refere:


“Entende o recorrente que, atenta a prova produzida, a redação dos referidos pontos teria de ser outra, nos termos que a seguir se esclarece.”


Porém e percorrida a motivação e as conclusões, o recorrente não indica qual a outra redacção quanto a cada um dos pontos impugnados.


De referir ainda que em determinados momentos o recorrente manifesta que determinadas verbas deviam ser “aprovadas”.


O objecto da prestação de contas por parte do AI (art.º 62º, n.º 1 do CIRE) é o apuramento e aprovação das receitas e despesas, tendo em vista, por um lado, o apuramento das despesas que o AI tem direito a ser reembolsado (art.º 60º, n.º 1 do CIRE) e, por outro, o saldo da massa.


O apuramento constitui o processo de verificação, certificação, demonstração de que foram percebidas dadas receitas e realizadas certas despesas.


Aqui estamos no domínio fáctico.


A aprovação significa aceitar ou rejeitar as receitas e/ou as despesas apuradas, para efeito de contabilização para apuramento do saldo, aceitação ou rejeição essa que implica um juízo de valor sobre a utilidade e indispensabilidade das despesas administração em causa no processo.


Aqui estamos no domínio jurídico.


Destarte, a invocação de que determinadas verbas deviam ter sido aprovadas é um juízo jurídico-conclusivo.


E sendo assim, não constitui a indicação da resposta (necessariamente diferente da que foi dada) que devia ter sido dada quanto a cada um dos referidos pontos de facto.


Em face do exposto, rejeita-se a impugnação da decisão de facto quanto aos pontos 4, 6, 8, 9, 11, 12, 13, 14 e 15.


Resulta, por isso, que a razão do acórdão recorrido para a rejeição consiste na inobervância da al. c) do art. 640º, 1, do CPC: (…) deve o recorrente obrigatoriamente especificar [a] decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.”


2. Como condição específica de admissibilidade do recurso em sede de reapreciação da matéria, especialmente direccionado para o recurso de apelação, a lei impõe os ónus processuais de alegação recursiva previstos no art. 640º, 1 e 2, do CPC, que determina:


«1. Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. / 2. No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte: a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes; b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.»


Tal como se fez dogmática na jurisprudência do STJ, “é possível distinguir um ónus primário ou fundamental de delimitação do objecto e de fundamentação concludente da impugnação (…); e [em referência ao art. 640º, 2] um ónus secundário – tendente, não tanto a fundamentar e delimitar o recurso, mas a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado aos meios de prova gravados relevantes para a apreciação da impugnação deduzida (…)”7.


Neste âmbito, também se destacaram algumas linhas de força deste regime condicionante da reapreciação da decisão sobre a matéria de facto, bem ilustrados no Ac. de 17/3/20168:


“O sentido e alcance destes requisitos formais de impugnação da decisão de facto devem ser equacionados à luz das razões que lhes estão subjacentes, mormente em função da economia do julgamento em sede de recurso de apelação e da natureza e estrutura da própria decisão de facto.


Assim, em primeira linha, importa ter presente que, no domínio do nosso regime recursório cível, o meio impugnatório para um tribunal superior não visa propriamente um novo julgamento global ou latitudinário da causa, mas apenas uma reapreciação do julgamento proferido pelo tribunal a quo com vista a corrigir eventuais erros da decisão recorrida. Significa isto que a finalidade do recurso não é proferir um novo julgamento da ação, mas julgar a própria decisão recorrida.


Em segundo lugar, no que respeita à impugnação da decisão de facto, esta decisão consiste no pronunciamento que é feito, em função da prova produzida, sobre os factos alegados pelas partes ou oportuna e licitamente adquiridos no decurso da instrução e que se mostrem relevantes para a resolução do litígio. Essa decisão tem, pois, por objeto os juízos probatórios parcelares, positivos ou negativos, sobre cada um dos factos relevantes, embora com o alcance da respetiva fundamentação ou motivação.


Neste quadro, a apreciação do erro de julgamento da decisão de facto é circunscrita aos pontos impugnados, embora, quanto à latitude da investigação probatória, o tribunal da relação tenha um amplo poder inquisitório sobre a prova produzida que imponha decisão diversa, como decorre do preceituado no artigo 662.º, n.º 1, do CPC, incluindo os mecanismos de renovação ou de produção dos novos meios de prova, nos exatos termos do n.º 2, alíneas a) e b), do mesmo artigo, sem estar adstrito aos meios de prova que tiverem sido convocados pelas partes e nem sequer aos indicados pelo tribunal recorrido. De resto, como é hoje jurisprudência seguida por este Supremo Tribunal, a reapreciação da decisão de facto impugnada pelo tribunal de 2.ª instância não se limita à verificação da existência de erro notório por parte do tribunal a quo, mas implica uma reapreciação do julgado sobre os pontos impugnados, em termos de formação, por parte do tribunal de recurso, da sua própria convicção, em resultado do exame das provas produzidas e das que lhe for lícito ainda renovar ou produzir, para só, em face dessa convicção, decidir sobre a verificação ou não do erro invocado, mantendo ou alterando os juízos probatórios em causa.


São portanto as referidas condicionantes da economia do julgamento do recurso e da natureza e estrutura da decisão de facto que postulam o ónus, por banda da parte impugnante, de delimitar com precisão o objeto do recurso, ou seja, de definir as questões a reapreciar pelo tribunal ad quem, especificando os concretos pontos de facto ou juízos probatórios, nos termos da alínea a) do n.º 1 do art. 640.º do CPC. Tal especificação pode fazer-se de diferentes modos: o mais simples, por referência aos artigos da base instrutória, quando tenha havido lugar a ela, ou aos pontos da sentença em que se encontram inseridos; ou então pela transcrição dos próprios enunciados probatórios.


Por seu turno, a indicação dos concretos meios probatórios convocáveis pelo recorrente, nos termos da alínea b) do mesmo artigo, já não respeita propriamente à delimitação do objeto do recurso, mas antes à amplitude dos meios probatórios a tomar em linha de conta, sem prejuízo, porém, dos poderes inquisitórios do tribunal de recurso de atender a meios de prova não indicados pelas partes, mas constantes dos autos ou das gravações realizadas.


Impõe-se também ao impugnante, nos termos da alínea c) do n.º 1 do art. 640.º, o requisito formal de indicar a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.


Este é, pois, o método processual assumido como garantia de um julgamento equitativo das questões de facto e da legitimidade da decisão que sobre elas venha a recair, com observância dos princípios do contraditório e do tratamento igual das partes.


Por outro lado, o legislador terá sido cauteloso em não permitir a utilização abusiva ou facilitação do mecanismo-remédio de impugnação da decisão de facto. Aliás, mal se perceberia que o impugnante atacasse a decisão de facto sem ter bem presente cada um dos enunciados probatórios e os meios de prova utilizados ou a utilizar na sua fundamentação cirúrgica. Daí a cominação severa da sua imediata rejeição.”


De todo o modo, há que adoptar uma interpretação e aplicação equilibradas e ponderadas deste regime, desde logo tendo em conta a sua consequência letal na pretensão recursiva.


De acordo com a doutrina processualista, as referidas exigências legais “devem ser apreciadas à luz de um critério de rigor. Trata-se, afinal, de uma decorrência do princípio da autorresponsabilidade das partes, impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo”9, “sem real mais valia funcional”10. Esse rigor deve ser filtrado pelos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, a fim de não ser denegada a reapreciação da decisão da matéria de facto com invocação de fundamentos que não encontrem sustentação clara na letra e no espírito do legislador, dando prevalência aos aspectos de ordem material. Assim, “[o]s aspetos fundamentais a assegurar neste campo são os relacionados com a definição clara do objeto da impugnação (que se satisfaz seguramente com a clara enunciação dos pontos de facto em causa), com a seriedade da impugnação (sustentada em meios de prova que são indicados ou em meios de prova oralmente produzidos que são explicitados) e com a assunção clara do resultado pretendido11.


3. Sobre o âmbito de actuação do derradeiro ónus configurado na al. c) do art. 640º, 1, do CPC, tivemos recentemente o STJ a proferir o AUJ n.º 13/2023 de 17/10/202312, com o seguinte segmento de uniformização:


“O Recorrente que impugna a decisão sobre a matéria de facto não está vinculado a indicar nas conclusões a decisão alternativa pretendida, desde que a mesma resulte, de forma inequívoca, das alegações.”


Ressaltando dele a seguinte fundamentação (com itálico nosso):


“(…) decorre do art. 640, n.º1, que sobre o impugnante impende o dever de especificar, obrigatoriamente, sob pena de rejeição, os concretos pontos de facto que considera julgados de modo incorreto, os concretos meios de probatórios constantes do processo, de registo ou de gravação nele realizado, que imponham decisão diversa da recorrida, bem como aludir a decisão que no seu entender deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.


Tais exigências, traduzidas num ónus tripartido sobre o recorrente, estribam-se nos princípios da cooperação, adequação, ónus de alegação e boa-fé processuais, garantindo a seriedade do recurso, num efetivo segundo grau de jurisdição quanto à matéria de facto, necessariamente avaliado de modo rigoroso, mas sem deixar de ter em vista a adequada proporcionalidade e razoabilidade, de modo a que não seja sacrificado um direito das partes em função de um rigorismo formal, desconsiderando aspetos substanciais das alegações, numa prevalência da formalidade sobre a substância que se pretende arredada.


O recorrente que impugne a decisão sobre a matéria de facto, cumpre o ónus constante do n.º1, c), do art. 640, se a decisão que no seu entender deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, constar das conclusões, mas também da leitura articulada destas últimas com a motivação do vertido na globalidade das alegações, e mesmo na sequência do aludido, apenas do corpo das alegações, desde que do modo efetivado, não se suscitem quaisquer dúvidas.”


4. Neste contexto interpretativo e aplicativo, surge como susceptível de reparo a decisão do acórdão recorrido, o que motivou que, no que respeita aos factos provados 4., 6., 9., 11. e 15., 12. e 13. e 14., uma vez verificado que foram indicadas em alternativa as decisões que deveriam ser proferidas, se deveria conhecer da reapreciação da decisão da matéria de facto correspondentes a esses factos, o que, ao invés, não se cumprira quanto ao facto provado 8.


Rematou-se em conclusão na Decisão Sumária reclamada:


“Não vemos como deixar de ver como cumprido o ónus para a reapreciação dos factos provados referidos – sem prejuízo de não interessar para o efeito os juízos de carácter jurídico relativos à aprovação das contas relacionadas com tais factos –, com excepção do facto provado 8., ficando este arredado do conhecimento recursivo e os demais abrangidos pelo poder de conhecimento atribuído ao tribunal de recurso em 2.ª instância.


Procedem, pois, as Conclusões 11. a 16. e 17., 1.ª parte da 1.ª frase, com excepção do pretendido relativamente ao facto provado 8.”


Quanto a este segmento do decidido, ao invés das nulidades arguidas pela Reclamante:

i. não se verifica qualquer “excesso de pronúncia” em face do que é questão recursiva delimitada pelas Conclusões 11 e 13. a 17. da revista (arts. 635º, 2 a 4, 639º, 1 e 2, do CPC);

ii. muito menos qualquer contradição com os fundamentos do AUJ n.º 13/2023, que, ainda que superveniente à data de interposição da revista, não pode deixar, quanto ao segmento de uniformização e sua motivação enquanto seu antecedente lógico, de ser uma pronúncia relevantemente persuasiva para a orientação interpretativa do art. 640º, 1, c), do CPC.


É quanto basta para fazer improceder as motivações da Reclamante aduzidas neste particular e confirmar a Decisão reclamada.


5. Por fim, quanto ao facto provado 10., cuja impugnação foi apreciada pelo acórdão recorrido e mantida a decisão ao abrigo do art. 662º, 1, do CPC, tendo sido decidido não poder ser sindicada em revista a correcta interpretação e aplicação do art. 640º, 1, tal como era desiderato dos Recorrentes, nada foi impugnado pela Reclamante, restando confirmar sem mais o decidido.


III. DECISÃO


Em conformidade, decide-se julgar improcedente a Reclamação, confirmando o julgamento de procedência parcial da revista e as decisões consequentes de anulação do acórdão, devolução dos autos à Relação para julgamento do ordenado e prolação de novo acórdão.


Custas da Reclamação pela Reclamante, que se fixa em taxa de justiça em valor correspondente a 2 UCs, sem prejuízo do benefício de apoio judiciário.


STJ/Lisboa, 10 de Abril de 2024


Ricardo Costa (Relator)


Maria Olinda Garcia


António Barateiro Martins


SUMÁRIO DO RELATOR (arts. 663º, 7, 679º, CPC).

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1. ABRANTES GERALDES/PAULO PIMENTA/LUÍS PIRES DE SOUSA, “Artigo 193º”, Código de Processo Civil anotado, Vol. I, Parte geral e processo de declaração, Artigos 1.º a 702.º, Almedina, Coimbra, 2018, pág. 233.↩︎

2. Neste sentido, v. ABRANTES GERALDES, Recursos no novo Código de Processo Civil, 5.ª ed., Almedina, Coimbra, 2018, sub art. 644º, págs. 218-219 (“decisões que absorvam os efeitos de nulidades praticadas (v.g., quando não tenha existido violação do princípio do contraditório”); “abriu-se a possibilidade de a parte vencida introduzir no recurso da decisão final a reapreciação de decisões intercalares”; “a reapreciação da decisão final apenas seja prejudicada quando verdadeiramente se verifique que o erro decisório que afeta uma das decisões interlocutórias exerceu efetiva influência no resultado final da lide”).↩︎

3. V., para estes pontos em conjunto, JOSÉ LEBRE DE FREITAS, Introdução ao processo civil. Conceito e princípios gerais à luz do novo Código, 4.ª ed., Gestlegal, Coimbra, 2017, págs. 126-127, 130, 132-133.↩︎

4. Para a configuração das “decisões-surpresa” (violação do princípio do contraditório e da proibição da indefesa) como nulidade por “excesso de pronúncia”, que surge como situação típica da agressão ao contraditório com influência na decisão final, v. com dominante adesão no STJ, MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, “Decisão-surpresa; nulidade da decisão”, Comentário ao Ac. da Relação de Évora de 10/4/2014 (processo n.º 500/12.0TBABF-KE1), com data de 10/5/2014 https://blogippc.blogspot.com/2014/05/decisao-surpresa-nulidade-da-decisao.html; “Nulidades do processo e nulidades da sentença: em busca da clareza necessária”, com data de 22/9/2020: https://blogippc.blogspot.com/2020/09/nulidades-do-processo-e-nulidades-da.html; “Por que se teima em qualificar a decisão-surpresa como uma nulidade processual”, com data de 12/10/2021: https://blogippc.blogspot.com/2021/10/por-que-se-teima-em-qualificar-decisao.html; “Artigo 3º”, CPC Online, Art. 1.º a 129.º, Blog do IPPC, https://blogippc.blogspot.com/2024/02/cpc-online-19.html), versão de 2024/02, págs. 6-7; convergente: ABRANTES GERALDES, Recursos… cit., sub art. 627º, págs. 26 e ss (com jurisprudência).↩︎

5. Muito elucidativos: Acs. do STJ de 16/12/2021, processo n.º 4260/15.4T8FNC-E.L1.S1, Rel. LUÍS ESPÍRITO SANTO, com jurisprudência de suporte desta última instância (v. Sumário: “I – Encontrando-se a nulidade processual coberta pela decisão judicial que a acolhe (in casu, o saneador-sentença recorrido), o meio adequado para invocar essa infracção às regras do processo é o recurso contra a decisão de mérito, a apresentar junto da instância superior (se for admissível), e não a sua reclamação directamente perante o juiz a quo. II – O conhecimento do pedido, em fase de saneamento dos autos obriga, de forma imperativa, o juiz à designação de audiência prévia, a realizar nos termos e para os efeitos do artigo 591º, nº 1, alínea b), do Código de Processo Civil, facultando às partes a possibilidade de alegarem de facto e de direito sobre a matéria de que irá conhecer. III – Havendo o juiz contrariado a tramitação processual até aí seguida (a audiência prévia foi designada várias vezes e entretanto adiada), procedido à (implícita) dispensa da realização da audiência prévia sem se encontrarem reunidos os respectivos requisitos processuais indispensáveis para esse mesmo efeito e passado ao conhecimento imediato do mérito da causa, a respectiva sentença é nula por excesso de pronúncia, nos termos do artigo 615º, nº 1, alínea d), 2ª parte do Código de Processo Civil. IV – A violação das regras processuais que consiste na omissão ilegal da realização de uma diligência obrigatória que deveria ter tido lugar nos autos (a audiência prévia), comunica-se à decisão de mérito subsequente que é proferida fora do momento próprio, numa altura em que ao juiz se encontrava expressamente vedada a possibilidade de tomar conhecimento dessa matéria. V – Tal decisão de dispensa da audiência prévia, que era no caso obrigatória, constituiu uma verdadeira decisão surpresa entendida enquanto “decisão que decide o que não pode decidir sem audiência prévia das partes”, surpreendendo as partes com o conhecimento que não poderia ter tido lugar antes de as mesmas exercerem o seu direito ao debate da matéria de fundo, de facto e de direito, não se circunscrevendo ao limitado e estrito âmbito da mera irregularidade procedimental, invocável nos comuns termos do artigo 195º, do Código de Processo Civil.”) e de 5/7/2022, processo n.º 1258/19.7T8LSB.L1.S1, Rel. RICARDO COSTA, com manifesta identidade com o presente caso e com simultaneidade dos aqui Relator e 1.º Adjunto (“I. O caso julgado, seja formal ou material, pressupõe o pronunciamento jurisdicional sobre uma determinada questão suscitada pelas partes ou decorrente dos poderes oficiosos do tribunal. A decisão jurisdicional conformadora de caso julgado tem necessariamente um objecto (a factualidade submetida à apreciação jurisdicional) e um conteúdo (o sentido da valoração judicial), que se traduz numa pronúncia anteriormente vinculativa (formal ou material) sobre o objecto da decisão proferida ulteriormente, que pudesse ser fundamento de ofensa de caso julgado. II. Não constitui caso julgado formal o despacho sobre as vicissitudes e encerramento da audiência prévia, sem reclamação tempestiva junto do tribunal de 1.ª instância de alegada nulidade processual associada por falta da sua realização integral (para os fins do art. 591º, 1, do CPC), perante a decisão que, no momento posterior à interposição do recurso de apelação da sentença proferida em 1.ª instância, aprecia da nulidade da sentença recorrida, no âmbito dos poderes oficiosos atribuídos pelo art. 617º, 1, em articulação com o art. 641º, 1, do CPC, tendo como objecto a nulidade de decisão (art. 615º, 1, CPC) suscitada nesse recurso de apelação tendo em conta esse alegado vício da audiência prévia. III. Sendo tal apreciação fundamentada expressamente pelo juiz nos termos do art. 617º, tal significa que essa apreciação absorveu ex professo a invocação da nulidade processual configurada à luz do art. 195º, 1, do CPC (desde logo então já afectada pelo regime de arguição tempestiva do art. 199º, 1, do CPC), resultando dessa absorção uma e uma só resposta a tal arguição de nulidade no âmbito do regime recursório próprio de apelação da sentença recorrida (arts. 644º, 3, e 660º do CPC). IV. Sendo a alegada nulidade processual absorvida e consumida, a final, como nulidade de decisão ou julgamento (enquanto “excesso de pronúncia” pela falta do contraditório na tramitação processual inerente à audiência prévia e ofensa ao princípio da proibição de decisões surpresa, de acordo com o art. 3º, 3, do CPC, sancionada nos termos do art. 615º, 1, d), 2ª parte, CPC), a apreciação desta última não se encontra precludida, como se fosse decisão definitiva por sanação anterior do vício, pelo regime da nulidade processual e do seu eventual caso julgado, que, neste caso de coincidência de fundamento erigido em fundamento recursivo, não se constituiu como tal à luz do art. 620º, 1, do CPC. V. Se esta qualificação (nulidade de decisão) é a que melhor se adequa à falta de exercício de alegação e contraditório pelas partes na tramitação processual e possa e deva ser conhecida e apreciada com competência funcional própria pelo tribunal de recurso, como vício autónomo e próprio à luz do catálogo do art. 615º, 1, do CPC, ao invés (e independentemente) de ser reclamada no tribunal recorrido, onde a alegada nulidade teria sido cometida, como deveria ser se apenas fosse vista como nulidade processual, então não estava o tribunal de 2.ª instância impedido (por esgotamento de poder jurisdicional) de apreciar o vício como nulidade da sentença, uma vez invocada por via do recurso interposto dessa decisão. VI. Não se aplica ao caso o art. 625º, 2, do mesmo CPC, uma vez que não há uma coincidência sobre a mesma questão concreta processual, quando, num primeiro momento, se decide sobre os termos da audiência prévia (nomeadamente quanto à tentativa de conciliação das partes e manutenção da sua posição) e seu encerramento, sem qualquer conhecimento de nulidades, e, num segundo momento, se decide sobre a nulidade da sentença proferida em 1.ª instância e objecto de apelação (ainda que em consideração desse evento processual e suas finalidades legais). VII. A decisão tomada pelo juiz do tribunal “a quo” quanto à nulidade invocada como fundamento da apelação não é susceptível de recurso autónomo, uma vez que já está abrangida no objecto recursivo da apelação (art. 617º, 1, in fine, CPC), nem, em qualquer caso, é imodificável, uma vez que não prejudica nem exclui a competência do tribunal “ad quem” para aferir e apreciar dessa nulidade como fundamento acessório e dependente da apelação interposta (arts. 615º, 4, 2ª parte, 641º, 5, CPC); logo, não se constituiu como caso julgado formal, que possa ser obstáculo à sua apreciação pelo tribunal de recurso em sede de apelação.”), sempre in www.dgsi.pt.↩︎

6. Recentemente confirmado como tal no Ac. do STJ de 19/3/2024, processo n.º 18/22, Rel. LUÍS CORREIA DE MENDONÇA, in www.dgsi.pt. Destaque-se o seguinte trecho:

“Não levanta dúvidas o núcleo essencial da proposição normativa [art. 3º, 3, CPC]: a indicação às partes das questões a decidir constitui uma obrigação do juiz e não uma mera faculdade, um simples dever deontológico; o juiz deve observar o princípio do contraditório.

Por outro lado, a lei é expressa ao dizer que esta obrigação vincula o juiz ao longo de todo o processo e não apenas numa fase dele, o que já resultaria da inclusão do preceito nas disposições e princípios gerais, aplicáveis portanto a todos os processos e suas fases.

A norma vincula o juiz à prévia audição das partes quando tiver de «decidir questões de direito ou de facto» o que abrange todas as decisões, qualquer que seja a sua forma, mediante as quais o juiz toma conhecimento ou decide de uma questão, de um incidente ou de uma causa, desde que verificados os demais condicionalismos legalmente exigidos.

Neste artigo 3.º, 3, o termo questão refere-se aos temas de decisão que podem ser objecto de uma pronúncia por parte do juiz, seja ela de facto ou de direito, de natureza substancial ou processual, não abrangendo, porém, os meros motivos, argumentos, considerações ou juízos de valor constantes dos fundamentos da decisão.

Maioritariamente, as questões que devem ser previamente sujeitas ao contraditório prévio, são as questões de direito e de entre estas as que são de conhecimento oficioso.

(…)

São duas as teses que, entre nós, se confrontam quanto ao que se deve entender por uma decisão-surpresa. Para uma primeira corrente, que se pode chamar antiformalista, por defender que não se pode abstrair do conteúdo da decisão a proferir, a decisão-surpresa não se confunde com a suposição ou expectativa que as partes possam ter feito ou acalentado quanto à decisão; não se pode falar em decisão-surpresa quando as decisões, de facto ou de direito, devam ser conhecidas pelas partes como viáveis, como possíveis; só há decisão surpresa «quando se trate de apreciar questões jurídicas susceptíveis de se repercutirem, de forma relevante e inovatória, no conteúdo da decisão e quando não for exigível que a parte interessada a houvesse perspectivado durante o processo, tomando oportunamente posição sobre ela» (Carlos Francisco de Oliveira Lopes do Rego, Comentários ao Código de Processo Civil, Vol. I, 2.ª ed., Almedina, Coimbra, 2004:33).

Para uma outra corrente, garantista, o escopo principal do princípio do contraditório «é a influência, no sentido positivo de direito de incidir ativamente no desenvolvimento e no êxito do processo» (José Lebre de Freitas, Introdução ao Processo Civil, Conceito e princípios gerais à luz do novo código, 3.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2013:125); consequentemente deve garantir-se a «participação efectiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, em termos de, em plena igualdade, poderem influenciar todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação, directa ou indirecta, com o objecto da causa e em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão» (Ibidem:125).

Toda a decisão que não passe por este crivo deverá ser considerada decisão surpresa ou solitária do juiz.

Julgamos que esta segunda tese é a que mais se adequa ao nosso sistema jurídico-processual.”↩︎

7. Ac. de 29/10/2015, processo n.º 233/09.4TBVNG.G1.S1, Rel. LOPES DO REGO, in www.dgsi.pt. Mais recentes: Ac. de 21/3/2019, processo n.º 3683/16.6T8CBR.C1.S2, Rel. ROSA TCHING: “integram um ónus primário, a exigência da concretização dos pontos de facto incorretamente julgados, da especificação dos concretos meios probatórios convocados e da indicação da decisão a proferir, previstas nas als. a), b) e c) do nº 1 do citado art. 640º, na medida em que têm por função delimitar o objeto do recurso e fundamentar a impugnação da decisão da matéria de facto. (…) já constituirá um ónus secundário, a exigência da indicação exata das passagens da gravação dos depoimentos que se pretendem ver analisados, contemplada na al. a) do nº 2 do mesmo art. 640º, pois tem, sobretudo, por função facilitar a localização dos depoimentos relevantes no suporte técnico que contém a gravação da audiência”; Ac. de 17/12/2019, processo n.º 363/07.7TVPRT-D.P2.S1, Rel. MARIA DA GRAÇA TRIGO; Ac. de 19/10/2021, processo n.º 7129/18.7T8BRG.G1.S1, Rel. OLIVEIRA ABREU; sempre in www.dgsi.pt.↩︎

8. Processo n.º 124/12.1TBMTJ.L1.S1, Rel. TOMÉ GOMES, in www.dgsi.pt, com sublinhados nossos, em especial para o art. 640º, 1.↩︎

9. ABRANTES GERALDES, Recursos… cit., sub art. 640º, pág. 169.↩︎

10. Convergente: RUI PINTO, Notas ao Código de Processo Civil, Volume II, Artigos 546.º a 1085.º, 2.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2015, sub art. 640º, pág. 142, com jurisprudência.↩︎

11. ABRANTES GERALDES, Recursos… cit., sub art. 640º, pág. 175, com ênfase da nossa responsabilidade.↩︎

12. Processo n.º 8344/17.6T8STB.E1-A.S1, Rel. ANA RESENDE; publicado in DR 1.ª Série, de 14/11/2023, págs. 44 e ss, com Declaração de Rectificação publicada in DR 1.ª Série, de 28/11/2023, pág. 82.↩︎