Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
266/21.2JAVRL.C3.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: MARIA DO CARMO SILVA DIAS
Descritores: RECURSO PENAL
DUPLA CONFORME
CONFIRMAÇÃO IN MELLIUS
IRRECORRIBILIDADE
MEDIDA DA PENA
IMPROCEDÊNCIA
RECURSO
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 03/20/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário :

I. Quanto à pena individual aplicada (de 2 anos e 9 meses de prisão) pelo crime de violência doméstica agravado há dupla conforme, isto é, houve um duplo juízo condenatório, inclusive quanto às questões que coloca no recurso para o STJ sobre esse mesmo crime (uma vez que a Relação, quando conheceu do recurso que o recorrente apresentou da decisão da 1ª instância, para além de ter apreciado as mesmas questões que já ali haviam sido colocadas, designadamente, sobre esse crime, inclusivamente baixou a pena aplicada pela 1ª instância, retirando-lhe a agravante da reincidência).

II. Esse juízo confirmativo (que abrange a confirmação in mellius pela Relação) garante o duplo grau de jurisdição consagrado pelo art. 32.º, n.º 1, da CRP, não havendo, assim, violação do direito ao recurso, nem tão pouco dos direitos de defesa do arguido (arts. 32.º, n.º 1 e 20.º, n.º 1, da CRP), o que significa que, face ao disposto nos arts. 400.º, n.º 1, al. f) e 432.º, n.º 1, al. b), do CPP, o acórdão do Tribunal da Relação é irrecorrível nessa parte (quanto à pena aplicada pelo crime de violência doméstica agravado) em que confirmou a condenação da 1ª Instância (princípios da dupla conforme condenatória e da legalidade), tendo-se tornado definitivo.

III. Considerando o disposto no art. 400.º n.º 1, als. e) e f) do CPP, a não admissibilidade do recurso vale separadamente para as penas parcelares e para a pena conjunta, podendo acontecer que não sejam recorríveis algumas das penas individuais (como aqui sucede com o crime de violência doméstica agravado), mas já o sejam outras (como aqui acontece com a pena aplicada pelo crime de homicídio qualificado agravado pelo uso de arma de fogo tentado) e mesmo com a pena única.

IV. Voltando o arguido a recorrer para o STJ da condenação cível, colocando as mesmas questões que já colocara quando recorreu da decisão da 1ª instância, sendo que, nessa parte, o acórdão da Relação impugnado negou provimento ao recurso, tendo sido garantido um grau de recurso (para a Relação), apesar da decisão ora em apreciação, nessa parte (cível) lhe ter sido totalmente desfavorável, não obstante se verificarem os pressupostos do art. 400.º, n.º 2, do CPP (considerando o seu valor superior à alçada da Relação, bem como o valor da sucumbência superior a € 15 000,00 - conforme artigo 400.º, n.º 2, do CPP e artigos 629.º, n.º 1, do CPC, ex vi do artigo 4.º, do CPP, e artigo 44.º, da LOSJ), a verdade é que de acordo com a jurisprudência pacífica deste STJ, para aferir da admissibilidade do recurso para este Supremo Tribunal de Justiça quanto à decisão em matéria civil da Relação há que convocar as regras processuais civis e verificar se a decisão será passível de recurso segundo tais regras, “de modo que o demandado civil no âmbito do processo penal tenha as mesmas possibilidades recursórias que teria caso a ação fosse julgada em separado”. Assim sendo, visto o disposto no art. 671.º, n.º 3, do CPC, temos de concluir que não é admissível o recurso de acórdão da Relação, na parte cível, por se verificar “dupla conforme” das decisões da Relação e da 1ª instância nos estritos limites ali referidos (ver arts. 434.º, 414.º n.º 2, 420.º n.º 1, al. b), do CPP e 671.º, n.º 3, do CPC, aplicável ex vi do art. 400.º, n.º 2 e n.º 3 do CPP).

V. Mesmo que em casos de crimes consumados ou até tentados, outros arguidos tivessem sido condenados em penas inferiores por decisões de Tribunais superiores, como invoca o recorrente, quando cita vários acórdãos, isso não significava que se tivesse de concluir pela violação do princípio da igualdade (art. 13.º da CRP). É que tudo depende (como se refere no acórdão sob recurso) das circunstâncias de cada caso, sendo certo que “o recorrente não alegou, nem provou serem as mesmas”. Lendo com atenção a jurisprudência citada pelo recorrente, até considerando as particularidades de cada um desses processos citados, melhor se percebe as diferenças em relação às circunstâncias particulares do sucedido nestes autos, como se pode verificar da leitura dos factos dados como provados na decisão sob recurso (sendo fácil de concluir que não há qualquer violação do invocado princípio da igualdade previsto no art. 13.º da CRP, nem do princípio da proporcionalidade previsto no art. 18.º, n.º 2, da CRP).

Decisão Texto Integral:

Processo nº 266/21.2JAVRL.C3.S1

Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça

I. Relatório

1. No processo comum (tribunal coletivo) n.º 266/21.2JAVRL do Juízo Central Criminal de ..., Juiz 3, comarca de ..., por acórdão de 12.07.2023, o arguido/recorrente AA foi condenado, além do mais, como reincidente, de um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, p. e p., nos artigos 22.º, 23.º, 131.º e 132.º, n.º 1 e 2, al. b) e i), 75.º e 76.º todos do Código Penal agravado por uso de arma de fogo, nos termos do art. 86.º n.º 1 al. c), n.º 3 e 4 da Lei 5/2006 de 23 de Fevereiro, na pena de 11 (onze) anos de prisão; de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. no art. 86.º n.º 1 al. c) e e) conjugado com o art. 2.º n.º 1 al. j) x) n.º 3 al. p), art. 3.º n.º 1 e 2 al. l) todos da Lei 5/2006, de 23 de Fevereiro e arts. 75.º e 76.º ambos do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 10 (dez) meses de prisão; de um crime de violência doméstica agravado na forma consumada, p. e p. no art. 152.º, n.º 1, al. b), n.º 2 al. a), 4 e 5, 75.º e 76.º todos do Código Penal, na pena de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão; de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. nos artigos 143.º, n.º 1, 75.º e 76.º todos do Código Penal, na pena de 1 (um) ano e 2 (dois) meses de prisão; e, em cúmulo jurídico, na pena única de 15 (quinze) anos de prisão. Além disso, foi também condenado, nos termos previstos no art. 152.º, nºs 4 e 5, do Código Penal, na pena acessória de proibição de estabelecer quaisquer contactos com a vítima e de proibição de uso e porte de arma pelo período de 5 (cinco) anos. E, foi ainda, julgado parcialmente procedente o pedido de indemnização formulado pela assistente BB e condenado no pagamento àquela da quantia de € 40.000,00 (quarenta mil euros) a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora, à taxa legal, devidos desde a presente decisão até efetivo e integral pagamento, sendo absolvido do demais peticionado.

2. Tendo o arguido recorrido, por acórdão do TRC de 22.11.2023, foi decidido conceder parcial provimento ao seu recurso, sendo alterada decisão recorrida e, consequentemente, foi o mesmo arguido condenado pela prática de um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, p. e p. nos artigos 22.º, 23.º, 131.º e 132.º, n.º 1 e 2, al. b) e i), todos do Código Penal agravado por uso de arma de fogo, nos termos do art. 86.º n.º 1 al. c), n.º 3 e 4 da Lei 5/2006, de 23 de Fevereiro, na pena de 10 (dez) anos e 6 (seis) meses de prisão; de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. no art. 86.º n.º 1 al. c) e e) conjugado com o art. 2.º n.º 1 al. j) x) n.º 3 al. p) e art. 3º n.º 1 e 2 al. l) todos da Lei 5/2006, de 23 de Fevereiro, na pena de 2 (dois) anos e 4 (quatro) meses de prisão; de um crime de violência doméstica agravado na forma consumada, p. e p. no art. 152.º, n.º 1, al. b), n.º 2 al. a), 4 e 5, todos do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 9 (nove) meses de prisão; e de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. nos artigos 143º, n.º 1 do Código Penal, na pena de 1 (um) de prisão e, em cúmulo jurídico, na pena única de 14 (catorze) anos de prisão, sendo no mais mantido o remanescente do Acórdão recorrido (portanto, inclusive quanto ao montante da indemnização cível arbitrada à assistente/demandante cível, assim sendo confirmada no mais a condenação fixada na 1ª instância).

3. Não se conformando com o decidido, recorreu o mesmo arguido apresentando as seguintes conclusões1:

1. O tribunal da Relação de Coimbra, e assim a quo, por decisão constante do acórdão proferido no dia 23.11.2023, condenou o arguido CC pela prática dos seguintes crimes: a) de um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, previsto e punível, nos termos dos artigos 22.º, 23.º, 131.º e 132.º, n.º 1 e 2, al. b) e i), todos do Código Penal agravado por uso de arma de fogo, nos termos do art. 86º n.º 1 al. c), n.º 3 e 4 da Lei 5/2006 de 23 de Fevereiro, na pena de 10 (dez) anos e 6 (seis) meses de prisão; b) de um crime de detenção de arma proibida, previsto e punível, pelo art. 86º n.º 1 al. c) e e) conjugado com o art. 2º n.º 1 al. j) x) n.º 3 al. p), art. 3º n.º 1 e 2 al. l) todos da Lei 5/2006, de 23 de Fevereiro do Código Penal, numa pena de 2 (dois) anos e 4 (quatro) meses de prisão c) de um crime de violência doméstica agravado na forma consumada, previsto e punível pelo art. 152.º, n.º 1, al. b), n.º 2 al. a), 4 e 5, todos do Código Penal, numa pena de 2 (dois) anos e 9 (nove) meses de prisão; d) de um crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punível, pelos artigos 143º, n.º 1 do Código Penal, numa pena de 1 (um) de prisão. e) Em cúmulo jurídico das penas parcelares, condenar o arguido uma pena única de 14 (catorze) anos de prisão. Manter no remanescente o Acórdão recorrido. Sem custas criminais. Custas cíveis pelo demandado recorrente (art.º 523.º do CPP)

2. Entende o arguido sinteticamente que esta decisão é ilegal, por violação dos princípios legais e constitucionais da razoabilidade, legalidade, igualdade e proporcionalidade.

3. A primeira questão a evidenciar neste recurso, prende-se com o facto de o recorrente entender que foram dados como provados factos que não encontram assento em qualquer meio de prova, muito menos em qualquer uma das provas produzidas em audiência.

4. Quanto ao crime de violência doméstica, apenas foi declarado ter resultado provado que o arguido, às vezes, discutia com a assistente - discussões estas que, por vezes, a maioria, diga-se, iniciadas pela própria assistente, como confirmaram as testemunhas ouvidas DD e EE - e que nessas discussões, por vezes, o arguido a apelidava de puta. Nada mais resultou provado.

5. No entanto o Tribunal a quo deu como provados os factos 9. e 10. para com base neles condenar o arguido pela prática do referido crime.

6. Como se pugnou em sede de alegações, o que não foi tido em consideração na decisão proferida, em caso algum o Tribunal poderá dar como provado que o arguido agrediu, fosse de que forma fosse, a assistente.

7. Apenas a assistente referiu ter sido agredida, nessas circunstâncias de tempo, modo e lugar pelo arguido com um cabo de uma enxada nas costas quando estava sentada no carro e o arguido da parte de fora - .

8. Nem a testemunha DD, nem a testemunha EE, presenciaram a alegada agressão, apenas tendo referido que viram uma marca no corpo da assistente, sem conseguirem atestar se tinha alguma relação com o acima referido; diga-se a este propósito, que a testemunha EE referiu, perentoriamente, que a assistente apenas lhe disse que o arguido a teria agredido porque a testemunha estaria a defender algumas posições defendidas pelo arguido. E, aqui chegados, concluímos que a assistente falou verdade ou, antes e pelo contrário, aproveitou a ocasião para, infundadamente, acusar o arguido, tanto que não lhe aproveitavam os argumentos da testemunha EE, sua mãe, que a fazia ver a realidade? Ou seja, no mínimo, atentas estas discrepâncias, teremos de concluir existirem dúvidas quanto ao depoimento da assistente e sua veracidade.

9. É de todo inverosímil que a assistente, estando sentada no banco do carro de apenas dois lugares, grávida de seis meses o que a obrigaria a estar encostada ao banco - conseguisse introduzir o cabo de uma sachola pela janela e a atingisse nas costas; é improvável, inverosímil, para não dizer impossível, logo e assim, de todo inconsistente essa versão apresentada pela assistente.

10. Mais, apesar de a assistente se ter queixado de tal facto à Polícia Judiciária que dirigiu o inquérito e o ter confirmado em julgamento a verdade, é que existe prova documental nos autos, da qual resulta, inequivocamente, o contrário, tendo a assistente confirmado NUNCA TER SIDO AGREDIDA PELO ARGUIDO. Vejamos: foi junto aos autos em 5.01.2022 o relatório médico no qual o senhor perito atestou o seguinte, que lhe foi transmitido pela assistente em consulta: “Nega agressões prévias, referindo que esta terá acontecido porque ela decidiu terminar a relação.”

11. É inverosímil que a assistente sentada no banco de um carro de apenas dois lugares (duas portas), grávida e, por isso, necessariamente encostada por não ter espaço suficiente, tenha levado uma pancada nas costas como refere. Ou seja, fica nos autos quanto a este episódio, apenas a versão da assistente desacompanhada de outros meios de prova. Versão esta, por si só, frágil e contraditada em juízo, pela própria, que refere ter sido agredida neste dia (entre junho e julho de 2019) e aquando da realização do exame médico junto aos autos, a 5.01.2022, referiu ao senhor médico nunca antes ter sido agredida pelo arguido.

12. Pelo que salvo melhor opinião, mal andou o Tribunal a quo ao dar como provado o supra aludido facto.

10. Devendo por isso, o mesmo ser considerado como não provado, atenta a falta de prova que o possa sustentar, a corroboração da versão da assistente, a existência de prova documental que atesta a sua inverdade e ainda porque não resulta dos autos que o arguido, antes do dia 5 de maio de 2020, haja agredido a assistente, fosse de que forma fosse.

13. Analisada a factualidade dada como provada e as declarações da assistente e testemunhas, apenas resulta que o arguido terá dirigido à assistente a expressão “puta”. E tal expressão teria sido proferida sempre em alegados contextos de algumas discussões entre o casal. Discussões estas que nem sempre foram iniciadas pelo arguido, como aliás as testemunhas DD e EE foram perentórias em afirmar e que acrescentaram que, no geral, eram discussões normais de casal, sem qualquer tipo de ilicitude.

14. Veja-se a este propósito o depoimento das testemunhas DD e EE gravado em sistema sonoro no dia ... de ... de 2022 e ... de ... de 2022, mas cujas partes relevantes que abonam em favor da versão do arguido, se transcrevem supra.

15. Resultou provado nos autos que, a própria assistente, tinha um discurso agressivo e intimidatório para com o arguido, tendo a mesma confessado que no dia ... de ... de 2020, lhe escreveu e enviou a seguinte mensagem de texto: Não voltes a por cá os pés e manda vir cá vuscar as tuas coisas se vieres cá tu vais ver o que te Faso”. - Vide facto provado sob o nº 39.

16. Confessando assim a assistente, ainda que de forma indireta, já que a instância da defesa ainda nem a defensora do arguido tinha formulado a questão já a assistente se estava a escudar que “a mensagem não tinha contexto”, que ela própria era o elemento desestabilizador do e no casal. Mais, a testemunha EE, foi igualmente perentória a afirmar que chegou a alertar a filha para os “modos” com que falava para o arguido, vide o acima transcrito.

17. Na situação que efetivamente resultou demonstrada - que o arguido uma ou outra vez se dirigiu, á assistente apelidando-a de puta - sem nunca ter sido possível concretizar as circunstâncias de modo, tempo e lugar em que tais ações ocorreram e apesar de censurável, não nos parece consubstanciar mau trato físico, nem sequer psíquico, já que, alguém que é efetivamente subjugada ou intimidada, não dirige ao arguido a mensagem que se volta a transcrever: “não voltes a por cá os pés e manda vir cá vuscar as tuas coisas se vieres cá tu vais ver o que te Faso”, nem discute permanentemente com o mesmo, provocando discussões frequentes, como atestaram as referidas testemunhas, pelo que, em caso algum poderá o arguido ser punido pela prática do crime de violência doméstica e/ou, a sê-lo, nos termos em que o foi, ou seja, na pena de três anos e seis meses de prisão.

18. A conduta do arguido, embora possa até ser penalmente relevante, surge no contexto de uma relação que apenas esporádica e negativamente se manifestou, muitas das vezes provocada pela própria assistente, como as testemunhas bem disseram e afirmaram, pelo que, não espelha qualquer situação de maus tratos, da qual resultassem provados sérios riscos para a integridade física e psíquica da mesma e, assim a decisão de condenação do arguido é errada, injusta e ilegal.

19. Veja-se neste sentido o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto proferido no âmbito do processo 927/20.3KRPRT.P1 e datado de 02.02.2022 ou o Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra no âmbito do processo 361/07.0GCPBL.C1 datado de 28.01.2010, acima transcritos.

20. Demonstrando-se, como se espera vir a ser aferido por Vªs Exªs, que o arguido não agrediu a assistente fosse de que forma fosse, antes do dia ... de ... de 2020 (data da prática da tentativa de homicídio) e, que, quando muito, apenas a teria chamado uma ou outra vez de “puta”, sem qualquer concretização das circunstâncias de modo, tempo e lugar em que ocorreram, e ainda que, a própria assistente tinha para com o arguido um comportamento agressivo e intimidatório, o que demonstra por si só que a mesma não sofreu quaisquer maus tratos dos quais haja resultado sério risco para a sua integridade física e psíquica, não nos parece estar reunida matéria de facto suficiente para permitir a condenação do arguido pela prática do crime de violência doméstica, pelo qual foi acusado e condenado p. e p. pelo art. 152º nº 1 al. b) nº2 al. a, 4 e 5, 75º e 76º todos do Código Penal.

21. Ademais do acórdão recorrido verifica-se ainda a injustiça e ilegalidade da decisão recorrida por manifesto erro e desproporcionalidade na fixação das penas parcelares nos termos dos artigos 40º, 70º e 71º do Código Penal, no que concerne aos crimes de violência doméstica e tentativa de homicídio.

22. Caso o demais não proceda, entende ainda o arguido que a decisão que o condenou, quanto aos crimes de violência doméstica e tentativa de homicídio (homicídio na forma tentada) é errada e desproporcional e merece o reparo por parte deste Tribunal.

23. Quanto ao crime de violência doméstica, entendemos que o arguido deve ser absolvido da prática do crime de violência doméstica, por não estarem preenchidos os seus requisitos e pelos demais fundamentos atrás elencados.

24. No entanto, caso assim não se entenda, sempre se terá de considerar que a pena singular/parcelar que lhe foi aplicada, de 2 anos e nove meses de prisão, pelo crime de violência doméstica, na forma consumada, é uma pena claramente exagerada e desproporcional face às reais circunstâncias do caso concreto que resultaram provadas em audiência de julgamento.

25. Desde logo, entende o arguido, como alegado em I), que apenas poderia ter sido dado como provado que o mesmo, por vezes, poucas, a apelidou de “puta”. Já que a própria assistente confirmou perante do perito da medicina legal nunca antes ter sido agredida pelo arguido, antes do dia 5 de maio (dia da prática dos factos consubstanciadores do crime de homicídio na forma tentada). Mais as testemunhas da acusação, filha (DD) e mãe (EE) da assistente, foram peremptórias em referir que nunca antes viram qualquer agressão, por parte do arguido, e que o mesmo nunca manifestou qualquer comportamento violento para com elas ou para com a assistente.

26. Referiram as referidas testemunhas que as discussões eram conversas normais de casal e que por vezes a própria assistente também as provocava.

27. Mais resultou provado, sem margem para dúvidas que a assistente era o elemento desestabilizador do casal, adotando perante o arguido uma postura autoritária e agressiva. Vejam-se a este propósito as declarações da testemunha EE, que referiu ter alertado a filha (assistente) para os modos como falava ao arguido e, ainda, a própria assistente que confessou ter enviado ao arguido a seguinte mensagem “não voltes a por cá os pés e manda vir cá vuscar as tuas coisas se vieres cá tu vais ver o que te Faso”,

28. Ficando demonstrado que o arguido não agrediu a assistente, fosse de que forma fosse, antes do dia ... de ... de 2020 (data da prática do crime de homicídio na forma tentada), que quando muito apenas a teria chamado uma ou outra vez de “puta” e que a própria assistente tinha para com o arguido um comportamento agressivo e intimidatório, que demonstra por si só que a mesma não sofreu quaisquer maus tratos dos quais resultasse sério risco para a sua integridade física e psíquica.

29. Mais, em momento algum foram concretizadas e explicitadas, seja por quem quer que seja, as circunstâncias de modo, tempo e lugar da alegada prática desses factos, logo, não estão minimamente preenchidos os requisitos do crime imputado.

30. E, ainda que se entenda que a matéria de facto é suficiente para permitir a condenação do arguido, no que se não concede, sempre se terá de considerar que a pena aplicada é claramente exagerada e desproporcional, tendo como barómetro comparativo tantos outros casos em que perante situações graves, as penas parcelares são substancialmente inferiores.

31. Pelo que, ainda que se entenda que se encontram reunidos os pressupostos para a condenação do arguido pela prática do referido crime, a pena concretamente aplicada - tendo em conta que apenas se logrou demonstrar que por vezes o arguido apelidou a assistente de puta, sem concretizar quando, como e onde - a pena a aplicar teria de ser mínima e não nos moldes aplicados no acórdão recorrido, isto claro está, para o caso de não proceder o alegado em I) que efetivamente se entende ser a decisão mais justa, ou seja, a absolvição do arguido da prática deste concreto crime.

32. Quanto ao crime de homicídio na forma tentada, também aqui a decisão recorrida merece reparo.

33. O Tribunal a quo não teve na devida consideração que apenas se tratou de uma tentativa. Embora haja a prática do crime, o mesmo não foi consumado. Ora independentemente das circunstâncias pelas quais o crime não foi consumado, verdade é que o arguido nunca pode ser condenado como se e efetivamente tivesse consumado o crime.

34. O arguido foi condenado numa pena singular, muito mais próxima do limite máximo da moldura penal aplicável do que do limite mínimo, sem que para tanto haja fundamentado, minimamente, essa aplicação, quer enunciando razões de prevenção geral, quer enunciando razões de prevenção especial. E, aliás, quanto a estas, as que possam existir, mas não foram enunciadas, até são em prol da defesa da aplicação de uma moldura penal muito inferior, mais próxima do limite mínimo dessa mesma moldura penal.

35. Note-se que existem centenas de condenações em que, mesmo em casos de homicídios consumados, os seus autores vêm ser-lhes aplicadas penas muito inferiores.

36. A condenação do arguido pela prática do crime de homicídio na forma tentada agravado pelo uso de arma de fogo na pena de 10 anos e seis meses de prisão é claramente desproporcional e injusta pelo que deve ser substancialmente reduzida nesta sede.

37. A pena aplicada num crime na forma tentada não pode cair na tentação de ser uma medida coerciva e de impedimento futuro da prática desse crime. Essa missão, a da ressocialização do arguido e do apoio à vítima, são funções ou obrigações posteriores da sociedade, não impendem sobre o julgador que, em momento algum se pode antecipar (nessa defesa hipotética de direitos que também defendemos, mas devem ser assegurados por outros órgãos estatais e pela própria sociedade em si) numa punição dita preventiva. Por muito que as penas antevejam a necessidade da punição para defesa da prevenção especial e sobretudo prevenção geral, não é, consabidamente, punindo o agente pelo crime que tentou praticar, mas que não praticou, que se faz justiça e se defende a aplicação de tais regras de prevenção.

38. Pelo que, a pena a aplicar ao arguido, pela prática do crime tentado, de homicídio, em caso algum poderá no valor que foi o que se requer que se tenha em consideração por este Supremo Tribunal e, desde já, alterando-se a concreta pena a aplicar, de acordo com as Boas Regras de decisão e com os factos concretos apurados e circunstâncias favoráveis ou desfavoráveis ao arguido, no caso, fundamento para aplicação de pena nunca superior a seis anos de prisão efetiva, que é praticamente já o dobro do limite mínimo da moldura penal aplicável.

39. A pena concretamente aplicada ao arguido, pela prática do referido crime, é exagerada, desproporcional e injusta, não só comparativamente com outras tantas decisões proferidas pelos nossos Tribunais, mas sobretudo atentas as concretas circunstâncias que favorecem o arguido na aplicação e uma pena muito inferior.

40. Não se pode fazer tábua rasa dessas circunstâncias e apenas validar as circunstâncias agravantes para, sem mais, condenar exemplarmente (diremos mesmo exageradamente) o arguido. Existem e foram dadas como provadas muitas outras circunstâncias atenuantes que devem ser apreciadas pelo Tribunal.

41. Nomeadamente como dispõe o artigo 71ºnº 2 al. c) do CP, para a determinação da medida concreta da pena o Tribunal tem obrigatoriamente de avaliar: ”Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram.” Explicou o arguido em audiência estes mesmos sentimentos que aqui se elencam: - O arguido tinha perfilhado o menor FF, tendo a referida decisão sido comunicada à assistente em ... 2020. - A partir dessa data a assistente começou a tratar o arguido com desprezo tendo-o expulsado de casa várias vezes. - Encontra-se junta aos autos uma mensagem de texto enviada pela assistente BB no dia ... de ... de 2020 tendo a mesma confessado ter procedido ao seu envio, desculpando-se que a mesma não tem contexto, mas também não justificou no Tribunal a razão de a ter enviado com o seguinte teor: “não voltes a por cá os pés e manda vir cá vuscar as tuas coisas se vieres cá tu vais ver o que te Faso”. - Até essa altura a assistente gostava da companhia do arguido tendo passado a evitá-lo. - Nunca antes o arguido havia agredido a assistente e as próprias testemunhas do Ministério Público (filha e mãe da assistente) referiram que o arguido era respeitador, que nunca presenciaram qualquer episódio de violência e que achavam as discussões normais de casal. - No dia da prática do crime, a assistente disse ao arguido que o menor não era seu filho e que uma vez que o arguido já o tinha perfilhado não precisava dele para nada. - A própria assistente, quando apresentou queixa, referiu que o alegado episódio da enxada, quando alegadamente estaria sentada no carro, aconteceu em junho/julho e que nessa data estava grávida de seis meses, sendo que, o arguido apenas saiu em precária do estabelecimento prisional em ...2019, pelo que, o menor, a ter sido concebido nessa altura, em junho/julho, a assistente só poderia estar grávida de 3/4 meses. - Explicou o arguido que no dia ... de ... de 2020, quando a assistente lhe disse que o menor não era seu filho e o “descartou”, começando a colocar as roupas deste em sacos de lixo e a depositá-las no veículo do mesmo, este ficou desorientado, “cego” tendo disparado contra a assistente nos moldes que referiu. - Ficou também provado que o arguido instaurou uma ação para impugnação da perfilhação do referido menor.

42. Tais factos, deveriam ter sido apreciados pelo Tribunal, no sentido de ver valorado o seu estado de espírito, aquando do cometimento do referido crime.

43. Mais, a assistente não sofreu sequelas relevantes, resultando claro dos elementos clínicos juntos aos autos, como igualmente resultou demonstrado em audiência, que a mesma pode fazer e faz uma vida perfeitamente normal.

44. Valorando o ilícito global perpetrado, tendo em conta a natureza, e gravidade dos ilícitos, na lesão dos bens jurídicos atingidos, a pena parcelar aplicada, de 10 anos e 6 meses de prisão, pelo cometimento do crime tentado de homicídio, embora qualificado, afigura-se completamente desadequada e desproporcional.

45. Dão-se aqui por reproduzidos alguns fundamentos constantes de arestos decisórios, em que, em circunstâncias semelhantes, aplicaram penas parcelares substancialmente inferiores e, outras vieram mesmo a ser reduzidas pelas instâncias de recurso, como se espera ver assim decidido neste caso:

- Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto em 30.09.2015 no âmbito do processo 1223/14.0JAPRT.P1: Neste caso a arguida havia sido condenada pela prática, em autoria material e na forma tentada, de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos artgs 131.º e 132.°, n.ºs, 1 e 2, alínea b), por referência aos artigos 22.°, nºs 1 e 2, al. a), 23.°, nºs 1 e 2, e 73º, nº 1, als. a), e b), todos do Código Penal, com a agravante p. e p. pelo disposto no art. 86.º, n.º 3, da Lei n. 5/2006, de 23 de fevereiro, na pena de 8 (oito) anos de prisão, pena esta reduzida pelo Tribunal da Relação para 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão.

- Acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça em 11.03.2021 no âmbito do processo 75/20.6JAFAR.S1: Neste caso o arguido fora condenado por um crime de homicídio qualificado agravado, na forma tentada, p. e p. pelos artigos 131.º, 132.º, nºs. 1 e 2, alíneas b) e i), 22.º e 23.º, do CP e 86.º, n.ºs 3 e 4, da Lei 5/2006, de 24.02 - mínimo de 3 anos, 2 meses e 12 dias e máximo de 21 anos 10 meses e 2 dias, o recorrente foi condenado na pena de 10 (dez) anos de prisão, um crime de homicídio simples agravado, na forma tentada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 131.º, n. º1, 22.º, 23.º, do CP e 86.º, nºs. 3 e 4, da Lei 5/2006, de 24.02 - mínimo de 2 anos, 1 mês e 18 dias e máximo de 14 anos, 2 meses e 20 dias, o recorrente foi condenado na pena de 5 (cinco) anos de prisão. Sendo a pena concretamente aplicada de 12 anos de prisão.

- Acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça no âmbito do processo 134/19.8JAPRT.P1.S1 em 4.02.2021: O arguido, foi condenado pela prática dos seguintes crimes: (i) de um crime de dano, p. e p. nos termos do disposto no artigo 212.º n.º 1, do CP, na pena de 6 meses de prisão; (ii) de um crime de homicídio simples, na forma tentada, p. e p. nos termos do disposto nos artigos 22.º, 23.º nºs 1 e 2, 26.º, 73.º e 131.º, do CP, na pena de 3 anos e 8 meses de prisão; (iii) de um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, p. e p. nos termos do disposto nos artigos 22.º, 23.º nºs 1 e 2, 26.º, 73.º, 131.º e 132.º nºs 1 e 2 alíneas a) e j), do CP, na pena de 7 anos e 6 meses de prisão; (iv) de um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, p. e p. nos termos do disposto nos artigos 22.º, 23.º nºs 1 e 2, 26.º, 73.º, 131.º e 132.º nºs 1 e 2 alínea j), do CP, na pena de 5 anos de prisão; (v) de cada um de dois crimes de detenção de arma proibida, cada um p. e p. nos termos do disposto nos artigos 3.º nºs 4 alínea a) e 5 alínea c), e 86 n.º 1 alíneas c) e d), da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, na pena de 1 ano e 5 meses de prisão, e (vi) em cúmulo jurídico de tais penas parcelares, na pena única de 12 anos e 8 meses de prisão. Pena esta que veio a ser reduzida para 11 anos de prisão.

- Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa no âmbito do processo 1316/12.9PFLRS.L2-5 em 18.10.2016: Neste processo a arguida havia sido condenada na pena de 3 (três) anos de prisão pelo crime de violência doméstica, previsto e punido no art.º 152º, n.º 1, al. b) e n.º 2 do Código Penal, com a agravação prevista disposto no art. 86º, nºs 3 e 4 da Lei nº 17/2009, de 6 de Maio, na pena de 7 (sete) anos de prisão pelo crime de homicídio qualificado, na forma tentada, previsto e punido pelos arts. 22º, 23º, 73º, 131º, 132º, nºs. 1 e 2, al. b) do Código Penal, agravado nos termos do disposto no art. 86º, nº 3 da Lei 5/2006, de 23 de fevereiro, em cúmulo jurídico das penas parcelares aludidas em a) e b), na pena única de 8 anos de prisão, pena esta que veio a ser reduzida para 6 (seis) anos e 6 (seis) meses de prisão.

46. Em suma entende o arguido que a pena de prisão parcelar que lhe foi aplicada, pela prática do crime tentado de homicídio é injusta e desproporcional, devendo ser reduzida para montantes próximos do mínimo legal, com base, nos fundamentos acima elencados, por ser a decisão mais justa para o presente processo, satisfazendo-se desta forma as exigências de prevenção e de modo a consentir e facilitar a reinserção social do arguido.

47. A decisão recorrida também é injusta e ilegal por erro e desproporcionalidade na fixação da pena em cúmulo jurídico.

48. As penas parcelares aplicadas ao arguido, no que concerne aos crimes de violência doméstica e homicídio na forma tentada, afiguram-se erradas por serem exageradamente gravosas e desproporcionais face às circunstâncias do caso concreto.

49. Não pode o arguido ficar convicto da justeza da sua condenação que lhe ditou uma moldura abstrata penal com uma pena de prisão efetiva de 14 anos de prisão. A pena concretamente aplicada ao arguido, é injusta, tendencialmente gravosa e desajustada, desigual, ilegal e desproporcional face às circunstâncias do caso em concreto.

50. Ainda que se equacionasse a hipótese de considerar a moldura abstrata encontrada pelo Tribunal a quo - o que apenas de coloca para efeitos de raciocínio, já que permanece o arguido convicto que não poderia ser condenado pelo crime de violência doméstica e, a pena parcelar para o crime de homicídio na forma tentada é claramente exagerada, o que implicaria uma moldura com valores mínimos e máximos substancialmente inferiores -, ainda assim este cúmulo, operado pelo Tribunal a quo, tem de se considerar errado e merecedor de reparação.

51. Considerou o Tribunal a quo uma moldura abstrata da pena única a aplicar ao arguido num limite mínimo de 10 anos e 6 meses e num limite máximo de 16 anos e 7 meses e, com base nessa moldura, decidiu aplicar ao arguido uma pena única de 14 anos de prisão, mais uma vez, para além do meio dessa moldura, próxima do limite máximo e afastada do limite mínimo, sem, mais uma vez, fundamentar essa escolha/aplicação.

52. Ora, diga-se que, a referida pena, mais próxima do limite máximo do que do limite mínimo, é desajustada e desproporcional, já que as circunstâncias do caso a tanto não justificam. Diga-se, desde logo, que a favor do arguido milita a circunstância de a assistente não ter ficado com sequelas graves ou incapacitantes, continuando a fazer a sua vida diária normal.

53. Não convence nem cria qualquer sentimento de justiça. O arguido e a comunidade em geral ficam, contrariamente ao que deveria suceder, convencidos de que o arguido foi condenado por um crime diferente daquele que cometeu, ou seja, pelo próprio homicídio consumado, quando, bem sabemos, apenas o tentou consumar. Sendo, felizmente, diga-se, clara e abismal a diferença entre a tentativa e a consumação. Aliás, no caso, mesmo e apesar da tentativa, as sequelas e consequências para a vítima são mínimas (isto quando comparadas com outras de iguais circunstâncias, entenda-se, onde as vítimas ficam marcadas para toda a vida, muitas delas sem hipótese de recuperação).

54. De facto, são várias as decisões sábias e equilibradas que os nossos Tribunais vão proferindo e que, em casos de homicídio consumado, mesmo com agravantes semelhantes à dos presentes autos, os arguidos são condenados em penas de prisão efetivas fixadas em valores inferiores, iguais ou muito próximos da pena aplicada ao aqui arguido, o que igualmente justifica o sentimento de injustiça face à decisão proferida nestes autos e a sua ilegalidade e ferimento dos princípios mais basilares da nossa Constituição, que norteiam e devem nortear, sempre, o poder jurisdicional, como sejam, os da legalidade, igualdade e proporcionalidade.

55. Veja-se, a este propósito e por exemplo a decisão proferida por este Supremo Tribunal de Justiça no âmbito do processo 04P1389, datada de 27.04.2004 em que o arguido foi condenado, pela prática em autoria material de um crime de homicídio, p. e p. pelo art. 131º e 132º/1 e 2, al. a) do Código Penal, na pena de dezoito (18) anos de prisão; pela prática em autoria material de um crime de maus tratos a cônjuge, p. e p. pelo art. 152º/1 e 2 do Código Penal, na pena de dois (2) anos de prisão; e pela prática em autoria material de um crime de detenção ilegal de arma de defesa p. e p. pelo art. 6º do DL. nº. 22/97, de 27 de Junho, na pena de um (1) ano de prisão. Em cúmulo jurídico, na ponderação, em conjunto, dos factos e da personalidade do arguido de harmonia com o disposto no art. 77º do Código Penal, foi o arguido condenado na pena única de vinte (20) anos de prisão, pena este que o Supremo Tribunal veio a reduzir para 15 anos de prisão.

56. O Tribunal da Relação errou na aplicação da medida concreta da pena, condenando o arguido a uma pena de prisão de 14 anos - apenas diminuindo a pena um ano em função da não consideração da reincidência e não mais - quando as circunstâncias do caso concreto não potenciariam uma condenação tão gravosa e distante do limite mínimo ficcionado na moldura penal, sendo certo que, como se disse, permanece o arguido que tal moldura terá necessariamente de ser revista pelos fundamentos acima expostos.

57. Venerandos Juízes, ainda que surjam necessidades de prevenção geral, “cada caso é um caso” pelo que não deveria o arguido “sofrer na pele” a culpa dos outros, quando as circunstâncias que militam a seu favor e já enunciadas, bem como, os concretos valores e bens jurídicos violados não assumem uma gravidade, tal que justifique a pena em concreto que lhe foi aplicada, pelo menos comparada com outros casos que já tiveram decisão nos nossos tribunais, como acima dito.

58. O grau de culpa do arguido deveria funcionar para o Tribunal recorrido como uma barreira intransponível na medida da pena, o que não foi tomado em consideração, pois, como se denota, foi ultrapassado e claramente.

59. Sopesados todos os factos, entende o recorrente que a condenação teria de ser fixada em moldes substancialmente inferiores, diga-se em quantitativo inferior a 6 anos de prisão efetiva (veja-se e comparativamente que no passado mês de julho o também Tribunal de ... sentenciou um militar - pessoa especialmente obrigada a ter comportamento diferente -, que usando a sua arma de serviço praticou o crime de homicídio na forma tentada contra a sua companheira, na pena de 8 anos de prisão), por a isso acarretarem todos os factos atenuantes apresentados pelo arguido.

60. A pena concretamente aplicada ao arguido viola assim os ditames da razoabilidade, legalidade, igualdade e proporcionalidade na escolha da medida concreta da pena.

61. Atendendo às circunstâncias concretas do caso em apreço, revela-se inteiramente proporcional, adequado e justo diminuir substancialmente a pena aplicada ao arguido, nos termos acima sugeridos.

62. Não o tendo feito, o Tribunal a quo violou o disposto no art. 71º e 77º do Código Penal, o que se requer que seja declarado por Vªs Exªs reformulando-se a decisão recorrida no sentido de aplicar ao arguido uma pena substancialmente inferior, o que se requer que seja apreciado por Vªs Exªs.

63. Acresce ainda que a indemnização arbitrada a favor da assistente é exagerada, infundada e desproporcional face às circunstâncias do caso concreto. A assistente formulou nos autos um pedido indemnizatório no valor de 60.000euros e o Tribunal de primeira instância condenou o arguido no pagamento de uma indemnização à ofendida, que fixou em 40.000 euros, decisão esta que veio a ser confirmada pelo Tribunal da Relação de Coimbra.

64. Desde logo entendemos que o Tribunal a quo, apesar de ter tecido várias considerações de direito, quanto ao instituto da reparação em direito penal, acabou por fundamentar a referida decisão de forma insubsistente e parca ou insuficiente, o que equivale, em termos jurídicos, por dizer que falta a fundamentação, quer de facto, quer de direito, o que igualmente consubstancia nulidade e fere a decisão também de forma mortal.

65. Parece-nos, Venerandos Juízes que a fundamentação das instâncias anteriores não é minimamente suficientemente precisa e exaustiva, como é imperativo de Lei, para causar convencimento nos seus destinatários, verificando-se também aqui nulidade processual que se invoca.

66. Ainda que assim não procedesse tal montante afigura-se ao arguido, ora recorrente, claramente desproporcional e infundado face às circunstâncias do caso concreto.

67. A indemnização à ofendida nos termos do disposto no artº 82º-A do Código penal, sempre terá de ser ajustada em função das circunstâncias do caso concreto; com as ressalvas e particularidades já evidenciadas nomeadamente o facto de o arguido ter parcas condições económicas e de a assistente praticamente não ter ficado com sequelas nem com qualquer incapacidade séria, o que lhe permite ter uma vida quase normal.

68. Logo, existe, sempre, clara insuficiência para a decisão concreta. E se chamarmos novamente critérios comparativos a nível jurisprudencial facilmente nos deparamos com decisões em que os arguidos são sentenciados com montantes indemnizatórios em muito inferiores em casos muito semelhantes.

69. Pelo que, ainda que se conceda e se aceite o direito da assistente a ser indemnizada, não se conforma o arguido com o montante arbitrado na decisão do acórdão recorrido, a qual deve ser substancialmente reduzida para montantes próximos dos aceites pelo arguido em sede de contestação ao pedido de indemnização formulado nos autos.

70. Essencialmente, são estas as razões da discordância do recorrente com o acórdão proferido nos autos pelo Tribunal da Relação de Coimbra. Pois, não se pode o mesmo conformar com ele, na medida em que encerra uma decisão injusta, desleal para com o recorrente e atentatória dos princípios legais e constitucionais da legalidade, igualdade, razoabilidade e proporcionalidade, pelos quais tem de se reger o Tribunal para convencer os destinatários, neste caso o arguido, de que agiu com certeza, segurança e em respeito da igualdade e da justiça.

71. Excelências, no caso em concreto, o arguido viu ser-lhe aplicada uma pena de prisão custosa, desajustada, desigual e desproporcional, como se tivesse praticado o crime de homicídio consumado, quando não o praticou.

72. O Tribunal recorrido em termos de pena concretamente aplicada, ao não fazer uma destrinça necessária objetiva e significativa entre o crime de homicídio na forma consumada e o crime de homicídio na forma tentada, como se verificou neste processo já que comparativamente com outros processos a pena aqui aplicada é similar a muitas condenações por homicídios consumados abre um precedente grave, passa uma mensagem errada para a sociedade de que é indiferente a verificação ou não da consumação.

73. E estamos a falar de vidas humanas Venerandos Juízes! E excesso de pretensa justiça transforma-se em injustiça como se nos parece que se verificou in casu.

74. Ademais, entende ainda o recorrente que a decisão é inconstitucional pela violação dos princípios da igualdade e proporcionalidade vertidos nos artigos 13º e 18º nº 2 da Constituição da República Portuguesa.

75. Efetivamente são muitas as decisões proferidas por vários Tribunais incluindo este Supremo Tribunal em que em situações em tudo semelhantes as penas concretas aplicadas não passam dos .../.../10 anos de prisão efetiva.

76. O arguido foi condenado Venerandos Juízes numa pena efetiva de 14 anos de prisão que à primeira vista e numa visão mais desatenta de leitura comum quase nos faria concluir que o arguido cometeu um crime de homicídio na forma consumada o que não sucedeu.

77. Veja-se que o Tribunal da Relação, no seguimento do pugnado pelo arguido em sede de recurso, não o condenou por via da agravante da reincidência mas mesmo assim manteve a pena exagerada, desigual e desproporcional de que se recorre.

78. Na senda das decisões acima transcritas outro destino, mais favorável, em termos de penas efetivas tiveram outros arguidos em casos em tudo semelhantes, veja-se por exemplo:

- Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto em 30.09.2015 no âmbito do processo 1223/14.0JAPRT.P1: Neste caso a arguida havia sido condenada pela prática, em autoria material e na forma tentada, de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos artgs 131.º e 132.°, n.ºs, 1 e 2, alínea b), por referência aos artigos 22.°, nºs 1 e 2, al. a), 23.°, nºs 1 e 2, e 73º, nº 1, als. a), e b), todos do Código Penal, com a agravante p. e p. pelo disposto no art. 86.º, n.º 3, da Lei n. 5/2006, de 23 de fevereiro, na pena de 8 (oito) anos de prisão, pena esta reduzida pelo Tribunal da Relação para 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão.

- Acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça em 11.03.2021 no âmbito do processo 75/20.6JAFAR.S1: Neste caso o arguido fora condenado por um crime de homicídio qualificado agravado, na forma tentada, p. e p. pelos artigos 131.º, 132.º, nºs. 1 e 2, alíneas b) e i), 22.º e 23.º, do CP e 86.º, n.ºs 3 e 4, da Lei 5/2006, de 24.02 - mínimo de 3 anos, 2 meses e 12 dias e máximo de 21 anos 10 meses e 2 dias, o recorrente foi condenado na pena de 10 (dez) anos de prisão, um crime de homicídio simples agravado, na forma tentada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 131.º, n. º1, 22.º, 23.º, do CP e 86.º, nºs. 3 e 4, da Lei 5/2006, de 24.02 - mínimo de 2 anos, 1 mês e 18 dias e máximo de 14 anos, 2 meses e 20 dias, o recorrente foi condenado na pena de 5 (cinco) anos de prisão. Sendo a pena concretamente aplicada de 12 anos de prisão.

- Acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça no âmbito do processo 134/19.8JAPRT.P1.S1 em 4.02.2021: O arguido, foi condenado pela prática dos seguintes crimes: (i) de um crime de dano, p. e p. nos termos do disposto no artigo 212.º n.º 1, do CP, na pena de 6 meses de prisão; (ii) de um crime de homicídio simples, na forma tentada, p. e p. nos termos do disposto nos artigos 22.º, 23.º nºs 1 e 2, 26.º, 73.º e 131.º, do CP, na pena de 3 anos e 8 meses de prisão; (iii) de um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, p. e p. nos termos do disposto nos artigos 22.º, 23.º nºs 1 e 2, 26.º, 73.º, 131.º e 132.º nºs 1 e 2 alíneas a) e j), do CP, na pena de 7 anos e 6 meses de prisão; (iv) de um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, p. e p. nos termos do disposto nos artigos 22.º, 23.º nºs 1 e 2, 26.º, 73.º, 131.º e 132.º nºs 1 e 2 alínea j), do CP, na pena de 5 anos de prisão; (v) de cada um de dois crimes de detenção de arma proibida, cada um p. e p. nos termos do disposto nos artigos 3.º nºs 4 alínea a) e 5 alínea c), e 86 n.º 1 alíneas c) e d), da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, na pena de 1 ano e 5 meses de prisão, e (vi) em cúmulo jurídico de tais penas parcelares, na pena única de 12 anos e 8 meses de prisão. Pena esta que veio a ser reduzida para 11 anos de prisão.

- Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa no âmbito do processo 1316/12.9PFLRS.L2-5 em 18.10.2016: Neste processo a arguida havia sido condenada na pena de 3 (três) anos de prisão pelo crime de violência doméstica, previsto e punido no art.º 152º, n.º 1, al. b) e n.º 2 do Código Penal, com a agravação prevista disposto no art. 86º, nºs 3 e 4 da Lei nº 17/2009, de 6 de Maio, na pena de 7 (sete) anos de prisão pelo crime de homicídio qualificado, na forma tentada, previsto e punido pelos arts. 22º, 23º, 73º, 131º, 132º, nºs. 1 e 2, al. b) do Código Penal, agravado nos termos do disposto no art. 86º, nº 3 da Lei 5/2006, de 23 de fevereiro, em cúmulo jurídico das penas parcelares aludidas em a) e b), na pena única de 8 anos de prisão, pena esta que veio a ser reduzida para 6 (seis) anos e 6 (seis) meses de prisão.

79. A decisão recorrida, em confronto com as atrás indicadas e muitíssimas outras, além de ilegal é também inconstitucional por violação do disposto nos artigos 13º e 18º nº 2 da Constituição da República Portuguesa.

80. Entende o arguido que a pena de prisão parcelar que lhe foi aplicada, pela prática do crime tentado de homicídio é injusta, desigual e desproporcional, devendo ser reduzida para montantes próximos do mínimo legal, com base, nos fundamentos acima elencados e comparativamente com aquelas decisões referidas, por ser a decisão mais justa para o presente processo, satisfazendo-se desta forma as exigências de prevenção e de modo a consentir e facilitar a reinserção social do arguido.

81. O princípio da proporcionalidade está consagrado no art. 18.º/2 da Constituição, o qual se analisa em três subprincípios: necessidade (ou exigibilidade), adequação e racionalidade (ou proporcionalidade em sentido restrito).

82. O Tribunal Constitucional tem entendido que, gozando o legislador ordinário de uma ampla liberdade na definição de crimes e na fixação de penas, apenas é de considerar violado o princípio de proporcionalidade, consagrado no artº 18º/2 da Constituição, em casos de inquestionável e evidente excesso, o que Venerandos Juízes se entende se verifica na decisão recorrida.

83. E assim terminamos estas alegações esperando o douto reparo deste Supremo Tribunal nos termos elencados e defendidos nestas alegações que em suma passam pela obtenção de uma decisão que reduza substancialmente a pena de prisão em que foi condenado o arguido.

84. O arguido está deveras convicto que o acórdão recorrido na pena concreta fixada o sentenciou por um crime que poderia ter praticado e não pelo que efetivamente praticou, razão pela qual não pode deixar de interpor recurso nos termos e com os fundamentos vertidos nestas alegações que se esperam ver julgados procedentes reduzindo-se substancialmente a pena concreta em que o arguido foi condenado por ser a única decisão justa que cabe ao presente processo.

Termina pedindo o integral provimento do recurso, revogando-se o douto acórdão recorrido, por violação, entre outros, do disposto nos artigos 40.°, 70.°, 71.º, 72.º, 73.º e 74.º do Código Penal, 13.º e 18.º da Constituição da República Portuguesa.

4.1. Na resposta ao recurso o Ministério Público na Relação concluiu:

1. Nos termos do artigo 434º do CPP, o recurso para o STJ visa exclusivamente questões de direito, sem prejuízo do disposto no artigo 410° nºs 2 e 3 do mesmo diploma legal deteção de vícios decisórios ao nível da matéria de facto emergente da simples leitura do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, referidos no artigo 410º nº 2 do Código de Processo Penal e/ou nulidade da decisão, nos termos do artigo 379° n°2 do CPP cfr. Art° 410 n°3 do CPP.

2. O recorrente suscita neste recurso as questões que colocara ao desembargo do tribunal da Relação, formulando acervo conclusivo com questões ora (re)suscitadas e que foram já bastamente dilucidadas no acórdão recorrido.

3. No recurso interposto o que salta à vista é que o arguido motiva como se estivesse a impugnar a decisão proferida em 1ª instância, mas não já o douto acórdão publicado pelo Tribunal da Relação de Coimbra do qual recorre.

4. O Tribunal da Relação encerrou o ciclo do conhecimento da matéria de facto, por um lado, e a decisão proferida não ostenta qualquer vício, ao nível dessa mesma matéria, que a torne uma decisão incorreta, ao ponto de vista da lógica jurídica, a impor qualquer conhecimento oficioso de vícios elencados no artigo 410°nº 2 do CP.

5. Por isso, entendemos que o recurso apresentado pelo arguido não pode manifestamente, proceder, razão pela qual deve o mesmo ser rejeitado (art. 420º, nº1 al. a) do CPP.

6. Sem conceder, sempre se dirá que o ponto 10 da factualidade provada, com a redação dada pelo acórdão desta Relação, encontra-se amplamente corroborado pelos elementos probatórios, nomeadamente por prova pericial e pelo depoimento da assistente e das testemunhas DD (filha da assistente e do arguido) e EE.

7. Está devidamente concretizada a qualificação do crime de violência doméstica, que resulta de uma análise séria sobre as circunstâncias que envolveram a formação da vontade de praticar o crime para se concluir legitimamente que tal crime foi cometido pelo arguido.

8. A medida da(s) pena(s) encontrada para o recorrente no acórdão objeto do recurso deverá ser mantida (pena unitária e penas parcelares), já que os bens jurídicos postos em crise, o dolo direto com que atuou e as suas concretas condições de vida permitem concluir que essa pena é adequada e se enquadra nos critérios legais, não se descortinando que preceito legal tenha resultado por ele violado, em perfeita harmonia com o disposto nos artigos 71° e 72° do Código Penal.

9. O acórdão recorrido deve ser confirmado, visto não padecer de qualquer vício, nem violar nenhum dos normativos invocados pelo recorrente, antes comportando uma decisão que se nos afigura justa, equilibrada e proporcional, traduzindo a resposta que a comunidade tem por adequada aos factos cometidos, sua gravidade e consequências.

4.2. Por sua vez, a assistente na resposta ao recurso do arguido concluiu da seguinte forma:

1. Em resposta ao recurso do arguido CC, afirmamos que a decisão da 5ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra foi meticulosamente fundamentada e justa.

2. O arguido foi condenado por homicídio qualificado tentado, detenção de arma proibida, violência doméstica agravada e ofensa à integridade física, numa pena única de 15 anos de prisão.

3. O Tribunal a quo julgou parcialmente procedente a apelação, reduzindo a pena para 14 anos de prisão, mantendo a condenação nos restantes termos.

4. O arguido recorre para este Supremo Tribunal de Justiça, apresentando 84 conclusões, o que é manifestamente excessivo e configura uma atuação processual inútil.

5. Entendemos que o acórdão recorrido não padece dos vícios alegados pelo recorrente, sendo a decisão clara e devidamente fundamentada.

6. A alegação de erro na apreciação da prova é infundada, pois o tribunal baseou-se em elementos lógicos e na análise crítica das provas apresentadas.

7. O arguido apresenta tão-somente uma narrativa alternativa à acusação, mas a decisão a quo é respaldada por provas testemunhais e circunstanciais.

8. As penas parcelares e a pena única aplicada foram devidamente fundamentadas, não havendo desproporção ou desajustamento na decisão.

9. Quanto à indemnização à vítima, o montante arbitrado é justificado pelas lesões sofridas e pelas graves sequelas, sendo adequado à compensação pelo dano não patrimonial.

10. Apelamos a Vossas Venerandas Excelências para ratificar a justiça da decisão aplicada, assegurando a segurança da vítima a paz social e a integridade do sistema judiciário.

11. Solicitamos máxima celeridade na análise deste recurso, considerando a urgência em proporcionar à vítima a paz e segurança que merece.

12. Em última análise, trata-se de vidas humanas e a justiça deve agir de forma a garantir a tranquilidade da vítima e a responsabilização do arguido.

Termina sustentando que o acórdão recorrido não violou qualquer disposição legal ou princípio jurídico, mostrando-se devidamente fundamentado, justo e adequado, não merecendo censura, devendo ser integralmente mantido e, consequentemente, deve declarar-se o recurso totalmente improcedente, por infundado.

5. Subiram os autos a este STJ e, o Sr. PGA emitiu parecer, acompanhando a posição do Ministério Público e sustentando, em resumo, que o recurso, por um lado é inadmissível (no que se relaciona com as questões novamente suscitadas, quer quando pede a absolvição pelo crime de violência doméstica, quer quando pede a redução da pena aplicada por esse crime, por haver “dupla conforme”, evidenciada pela inúmera jurisprudência que indica, para além de ser questionável a admissibilidade do recurso quanto à indemnização, apesar do MP não representar nenhuma das partes) e no mais deve ser julgado improcedente (quer por serem adequadas as penas aplicadas pelo crime de homicídio qualificado tentado, bem como a pena única imposta, quer por não se vislumbrar a violação de qualquer norma ou princípio constitucional, sendo carecida de fundamento a invocada inconstitucionalidade).

6. Na resposta ao Parecer do Sr. PGA, o arguido/recorrente discorda da posição ali sustentada, mantendo o alegado no recurso, argumentando, em resumo, que não existe “dupla conforme”, acrescentando que existe excesso de penas, o que é um flagrante exagero e que desde o início pugnou pela desproporcionalidade das penas que lhe foram impostas, padecendo a decisão recorrida, para além de outros vícios, dos que apontou quanto a inconstitucionalidades.

7. No exame preliminar a Relatora ordenou que fossem colhidos os vistos legais, tendo-se realizado depois a conferência e, dos respetivos trabalhos, resultou o presente acórdão.

II. Fundamentação

8. Factos

Consta da decisão sobre a matéria de facto do acórdão da 1ª instância, confirmada pelo Acórdão da Relação de ........2023, o seguinte:

A-Factos provados

1- O arguido foi condenado, por sentença proferida pelo extinto Tribunal Judicial de ..., no processo nº 90/09.0TARSD, transitada em julgado em 06.06.2011, pela prática, no período temporal compreendido entre meados de Setembro de 2004 a 12.05.2010, de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo 152º, n.º 1, al. a) e n.º 2, do Código Penal, na pena de 28 meses de prisão e de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152º, n.º 1, al. b) e n.º 2, do Código Penal, na pena de 32 meses de prisão e, em cúmulo jurídico, na pena única de 40 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período.

Por despacho, transitado em julgado em 10.11.2017, foi revogada a aludida suspensão da execução de pena.

2 - O arguido foi condenado pela prática, em 15.09.2013, de um crime de ofensa à integridade física grave p. e p. pelo art. 143º n.º 1 e 144º al. b) ambos do Código Penal, por sentença transitada em julgado, em 09.01.2017, proferida no proc. 205/13.4GACNF, do Juízo de Competência Genérica ..., na pena de 2 anos e 2 meses de prisão.

3 - O arguido esteve ininterruptamente preso em cumprimento sucessivo das aludidas penas de prisão desde 19.04.2017 até 19.12.2020.

4 - Por decisão de 17.12.2020 proferida pelo Tribunal de Execução de Penas de Coimbra, no âmbito do proc. 221/17.7TXCBR-A, foi concedida liberdade condicional ao arguido a 19.12.2020 com termo a 19.10.2022.

5 - No âmbito da execução das aludidas penas de prisão foram concedidas ao arguido licenças de curta duração nos períodos de 18 a 21.07.2019, 23 a 26.12.2019, 06 a 09.11.2020, licenças de saída jurisdicional nos períodos de 12 a 15.10.2018, 16 a 20.02.2019, 29.10.2019 a 04.11.2019, 22 a 27.06.2019, 05 a 12.03.2020, 25.09 a 02.10.2020 bem como licenças de saída administrativa extraordinária no período de 15.04.2020 a 13.07.2020 (data da interrupção da mesma por parte do arguido).

6 - O arguido e a vítima BB mantiveram um relacionamento análogo ao dos cônjuges, desde 2016 / 2017 a meados de 2020, residindo na Rua ..., concelho de ....

7 - Com o casal residiam os filhos da vítima, a saber, DD, GG, maiores de idade e HH, nascido a ........2008, II, nascido a ........2006 e JJ, filho comum do casal, nascido a ........2020, estes últimos menores de idade.

8 - No decurso da privação da liberdade do arguido, este e a vítima BB mantiveram a aludida relação amorosa que os unia, ficando o arguido na residência sita em ..., nos períodos em que saiu do estabelecimento prisional, nos termos descritos em 5.

9 - No decurso da coabitação, o arguido, por diversas vezes, imputou à vítima BB o manter relações amorosas com terceiras pessoas dizendo-lhe “andas sempre a pôr-me os cornos” e apelidou-a de “puta”.

10 - Nos períodos em que o arguido residiu com a vítima e motivado por ciúmes, em datas não concretamente apuradas, mas situadas no mês de Junho a Julho de 2020, em que o arguido se encontrava de licença de saída administrativa extraordinária, na residência comum, o arguido passou a controlar o telemóvel da vítima e a vigiá-la quando esta trabalhava nas vinhas, tendo numa dessas ocasiões estando a vítima BB grávida de seis meses e sentada no interior do veículo automóvel de matrícula ..-..-QA o arguido desferido uma pancada, com um cabo de uma enxada nas costas e sobre o ombro esquerdo da vitima, provocando-lhe dores e um hematoma na zona atingida.

11 - Na sequência dos factos descritos em 9- e 10-, a vitima BB terminou a relação com o arguido, tendo o mesmo ido residir para ... e após regressou ao estabelecimento prisional, em 13 Julho de 2020.

12- Em data não concretamente apurada, mas que se situa no mês de Março de 2021, a vitima BB e o arguido reataram a relação amorosa, tendo este voltado a residir com a mesma, como se de marido e mulher se tratasse, partilhando a mesma mesa, cama e habitação, na residência melhor descrita em 6.

13 - Desde finais de Abril de 2021, as discussões do arguido com a vítima BB, na presença dos filhos menores desta.

14 - No dia ... de ... de 2021, pelas 18h35m, no pátio exterior anexo à residência comum do casal, acima identificada, na presença dos filhos menores da vítima, o arguido, já embriagado, iniciou uma discussão com a mesma, imputando-lhe o manter uma relação amorosa com terceira pessoa, dizendo-lhe “és uma puta…andas-me a pôr os cornos”.

15 - Nesse momento, a vítima BB comunicou ao arguido que pretendia pôr termo à relação que que os unia e solicitou-lhe que abandonasse a residência, levando dois sacos de roupa do arguido para o veículo do mesmo, que se encontrava estacionado no exterior.

16 - Quando a vítima BB regressava ao pátio da aludida residência para junto dos seus familiares que lá se encontravam, o arguido dirigiu-se à mesma, segurou-a pelo braço e após colocou a mão no bolso de onde retirou uma pistola semi-automática, transformada, de cor preta, calibre 6,35mm, devidamente municiada, empunhou-a e efetuou cinco disparos na direção da cabeça e do tórax da vitima BB.

17 - Três dos projéteis disparados pelo arguido atingiram a vítima BB na zona auricular, no tórax do lado direito e região frontal do lado esquerdo, causando-lhe lesões nas zonas atingidas.

18 - Ato continuo, DD, filha da ofendida, abeirou-se da mãe com o menor FF ao colo, tentando defendê-la da atuação do arguido.

19 - Nesse momento, o arguido empunhou uma vassoura que lá se encontrava e desferiu uma pancada com a mesma no antebraço direito de DD, partindo o cabo da vassoura, causando-lhe dores e um ferimento na zona atingida.

20 - No chão do logradouro da residência comum, nas circunstâncias de tempo e lugar mencionadas em 14, encontravam-se três munições de marca GECO calibre 6,35mm Browning, pertencentes ao arguido, juntamente com dois invólucros de munição de marca GECO calibre 6,35 mm Browning.

21 Após, o arguido colocou-se em fuga ao volante do veículo ligeiro de mercadorias, marca Isuzu, cor branca, de matrícula ..-..-CZ, no sentido ..., desfazendo-se da arma de fogo, em local não concretamente apurado.

22 - Na sequência da conduta do arguido, e face à gravidade dos ferimentos, a vítima BB foi heli-transportada para o Centro ..., apresentando ferida penetrante na região frontal esquerda, feridas penetrantes cranianas bem como na região subclavicular direita e linha média clavicular, tendo sido submetida a intervenção cirúrgica, onde foi removido projétil alojado na região malar.

23 - Mercê da conduta do arguido, a vítima BB, ficou com as seguintes lesões/sequelas, verificadas em sede de avaliação de dano corporal:

- no crânio, na região frontal esquerda, apresenta uma área cicatricial hipopigmentada e de bordos avermelhados, ligeiramente anterior à linha de inserção do cabelo, de forma irregular, com 3,5 cm por 2 cm de maiores dimensões. Dor referida à palpação da referida área cicatricial.

Na região retroauricular direita, apresenta uma área cicatricial avermelhada, oval, com 0,8 cm por 0,5 cm de maiores dimensões.

- na face: na região da inserção da orelha esquerda, apresenta uma cicatriz nacarada, linear, arciforme, de concavidade inferior, com 7.5 cm de comprimento.

O terço proximal desta cicatriz fica parcialmente recoberto por cabelo. Presença de edema ligeiro de toda a hemiface esquerda. Dor ferida à palpação da região malar e zigomática. Sem alteração da mobilidade da mandíbula.

- no membro superior direito: na face anterior do ombro, apresenta uma área cicatricial avermelhada, oval com 0.9 cm por 0.7 cm de maiores dimensões. Dor referida à palpação da referida cicatriz e de toda a face anterior do ombro.

Mobilidade articular do ombro: flexão 0º-110º (vs 0º-180º contralateral); abdução 0º- 100º (vs. 0º-180º contralateral); sem limitação nas rotações interna e externa, mas com dor nos últimos graus de movimento.

- A vítima ficou com quatro cicatrizes, uma na região frontal esquerda; outra na região retroauricular direita; outra na região zigomática esquerda e outra na face anterior do ombro direito.

Tais cicatrizes são causa de queixas álgicas ao toque. Apresenta ainda dor e limitação da mobilidade articular do ombro direito.

As lesões evoluirão para a consolidação médico-legal, tendo até a data (da dedução da acusação) acarretado 77 dias de afetação da capacidade de trabalho geral, sendo que em 5 dias essa afetação foi total (internamento).

24 - Das lesões sofridas, na sequência da atuação do arguido, resultou perigo efetivo para a vida da vítima BB (na medida em que foi necessária entubação orotraqueal urgente e ventilação mecânica invasiva por compromisso da via área pela hemorragia) que apenas não redundou na sua morte dada a pronta assistência médica de que beneficiou.

25 - Mercê da conduta do arguido, DD sofreu as seguintes lesões:

- no membro superior direito, área escoriada em fase de cicatrização (4 cm por 6 cm) composta por grupo de escoriações lineares paralelas entre si localizada em face posterior de terço posterior de antebraço.

Tais lesões determinaram 8 dias para cura, sendo 1 dia com afetação da capacidade de trabalho geral e 8 dias com afetação da capacidade de trabalho profissional.

26 - O arguido não era titular de licença de uso e porte de arma ou licença de detenção e por inerência licença para detenção da referida arma e munições, que lhe pertenciam, não possuindo qualquer arma manifestada ou registada, o que o mesmo bem sabia, e mesmo assim, decidiu usá-la e praticar os factos acima referidos.

27 - Agiu o arguido com o propósito concretizado de deter consigo a referida arma e supra descritas munições, que lhe pertenciam, nas referidas circunstâncias de tempo e lugar, conhecendo a natureza e características de tais objetos, bem sabendo que não lhe era permitido conservá-los em seu poder, sem possuir a competente licença.

28 - Ao praticar os factos supra descritos, o arguido agiu com a intenção conseguida de atingir a vítima BB, sua companheira, na sua integridade psíquica e física bem como humilhá-la, atingindo-a na sua dignidade, honra e consideração, amedrontando-a e perturbando-a no seu dia-a-dia, coartando a sua liberdade de ação e movimentos, bem sabendo que tais comportamentos eram idóneos a provocar na mesma, como provocaram, marcas psicológicas que afetaram e afetam o seu equilíbrio emocional e psíquico, bem sabendo que sobre o mesmo impendia um dever especial de respeito, cuidado e proteção para com aquela, considerando o facto de ser sua companheira, o que lhe foi indiferente.

29 - Atuou ainda com o propósito de atingir a vitima na sua integridade física, causando-lhe ferimentos e dores, ao praticar os factos descritos em 10-.

30 - Logrou, dessa forma humilhar e vexar a ofendida, diminuindo-a no seio da relação familiar, bem sabendo que lhe devia respeito em virtude da relação que os unia.

31 - Sabia que, pelo facto de a ofender e proferir as citadas expressões dentro da residência comum, dificultava, se não impedia, que a ofendida fosse socorrida bem como, em algumas ocasiões, o fazia na presença dos filhos menores da vítima.

32 - Ao agir da forma supra descrita, munido de uma arma de fogo e disparando a mesma em direção à cabeça e tórax da vítima, o arguido agiu com o propósito de tirar a vida a BB e quis o arguido atingi-la nas zonas do corpo supra referidas, como foi, onde sabia que se encontravam alojados órgãos vitais e que ao serem atingidos por disparos de uma arma de fogo, provocaria necessária e inevitavelmente a morte da vítima BB, o que o arguido sabia, quis e representou e apenas não conseguiu por circunstâncias alheias à sua vontade, nomeadamente face à pronta intervenção dos familiares e por esta ter recebido rapidamente assistência médica.

33 - O arguido efetuou os disparos aludidos no ponto 16-, no seguimento de uma mera discussão, decidindo assim pôr termo à vida da ofendida BB, e fê-lo de forma inesperada, retirando de forma repentina uma arma de fogo do bolso e disparando de imediato em direção à sua companheira, sem que nada o fizesse prever, impossibilitando assim à vítima qualquer hipótese de defesa ou reação, do que o arguido tinha plena consciência, decisão que executou, com total indiferença e insensibilidade, utilizando para o efeito uma arma de fogo devidamente municiada, que era meio adequado e idóneo à satisfação do seu desiderato, conhecendo as características de tal objeto, sua especial perigosidade e idoneidade para causar ferimentos profundos e mortais, o que quis e representou.

34 - O arguido agiu com o propósito concretizado de molestar fisicamente o corpo e saúde da ofendida DD, causando-lhe ferimentos e dores.

35 - O arguido agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal, não se coibindo, porém, de assim atuar.

36 - A prática reiterada de tais atividades delituosas demonstra que o arguido nunca as pretendeu abandonar, com total alheamento, da decisão proferida no processo n.º 205/13.4GACNF em que o mesmo foi condenado em dois anos e dois meses de prisão.

37 - A condenação anteriormente sofrida pelo arguido foi insuficiente para a sua readaptação social, não tendo servido para prevenir a prática de outros crimes penais dolosos, existindo, nomeadamente, uma situação de violação de bens jurídicos da mesma natureza.

38 Assim, a condenação sofrida pelo arguido, e o facto de, desde 15 de Dezembro de 2020, se encontrar em liberdade condicional, não lhe serviram de suficiente advertência contra o crime, não o determinando a inibir-se de praticar novos crimes, quando devia e podia manter uma conduta lícita.

Da contestação do pedido cível e da acusação pública:

39- Consta do telemóvel do arguido uma mensagem de uma pessoa chamada “BB” datada de 27-04 pelas 7:22 do seguinte teor: “Não voltes a por cá os pés e manda vir cá vuscar as tuas coisas se vieres cá tu vais ver o que te Faso” (fls. 985).

40- O arguido reconheceu, inicialmente, a paternidade do menor FF.

41- Após dúvidas suscitadas quanto à sobredita paternidade, o arguido apresentou junto da Segurança Social pedido de apoio judiciário para instaurar uma ação de impugnação de paternidade a qual deu entrada e encontra-se a correr termos no Juízo de Família e Menores de ... (cfr gls 1144).

42- Em data não totalmente apurada a assistente comunicou ao arguido que estava grávida.

Do pedido de indemnização cível da Assistente:

43- Em resultado dos ferimentos provocados pelo arguido, a assistente foi submetida a cirurgia urgente, tendo-lhe sido identificado e detetado um corpo estranho (bala) alojada na região malar esquerda (…)”

44- A autonomia da assistente esteve condicionada com um Défice Funcional Permanente de Integridade Físico-Psiquica fixável em 12 pontos.

45- A data da consolidação médico-legal das lesões foi fixada em 03-09-2021.

46- O período de défice Funcional Temporário Parcial é fixável em 116 dias;

47- Quantum doloris: (valoração do sofrimento físico e psíquico vivenciado pela vítima durante o período de danos temporários isto é entre a data do evento e da cura ou consolidação das lesões): fixável no grau 6 numa escala de sete graus de gravidade crescente.

48- O dano estético permanente é fixável no grau 3 numa escala de sete graus de gravidade crescente: as 3 cicatrizes que apresenta na cabeça / face e no ombro direito e o edema da hemiface esquerda são visíveis à distância social.

49- A assistente está a ser seguida em consulta de ortopedia para realizar uma eventual extração do projétil alojado no ombro direito.

50- Tal remoção poderá alterar o estado funcional do ombro direito.

Das condições pessoais do arguido:

51-O arguido é o segundo dos sete filhos de uma modesta família de agricultores, que há muitos anos se radicou na localidade de ..., concelho de ....

O seu processo de desenvolvimento terá decorrido num contexto de carência económica e sido marcado por uma complexa dinâmica familiar, de onde sobressaía pela negativa a figura paterna, como pai violento e maltratante, de fraco envolvimento afetivo e com hábitos alcoólicos relevantes, com grande impacto no conjunto da dinâmica e das vivências familiares - a nível da comunidade são ainda hoje recordadas, as frequentes fugas de casa empreendidas pelo arguido e os longos períodos que chegava a passar no monte, como forma de fugir à severidade dos castigos do progenitor.

52- Em consequência disso e associado a uma desvalorização parental do processo educativo, o arguido seria chamado, desde muito cedo, a contribuir para a sobrevivência do núcleo familiar, razão pela qual acabaria por ser desvinculado do sistema de ensino, após a conclusão do 3 º ano de escolaridade, num processo antecedido por dificuldades de aprendizagem, desmotivação, absentismo e insucesso escolar.

53- Sem alternativas locais de emprego e sem aptidões específicas, o arguido manteve-se em termos profissionais sempre ligado ao setor agrícola, trabalhando em várias explorações vitivinícolas na região do ..., atividade que, sazonalmente e a partir de determinado período, passou a complementar com campanhas agrícolas no estrangeiro, mais precisamente em .... Paralelamente, foi-se mantendo ligado à criação de alguns animais, como cavalos, ovelhas e bois de luta, estes destinados às Chegas de Bois, interesse que alega ter herdado do pai e que nos períodos de verão lhe ocuparia muito do seu tempo disponível.

54- Em termos familiares, e depois de uma primeira relação mais consistente, que contudo, terá durado apenas alguns meses, o arguido viria a formalizar através de matrimónio uma nova relação, com KK, natural de ..., a qual terá igualmente terminado alguns meses depois de se ter iniciado, alegadamente pelo ao facto do seu cônjuge, ter já à data um filho de uma anterior relação, cuja existência terá reservado do seu conhecimento. Ora, dado que o casal nunca terá, em seu tempo, oficializado a separação, o arguido, perante a morte do seu cônjuge, ocorrida algum tempo depois, viria a ficar viúvo.

55- Ao longo de todo este período o arguido foi intensificando alguns comportamentos de risco, nomeadamente o consumo de álcool, problemática que associada a algumas características da personalidade que foi desenvolvendo e que o davam como uma pessoa extremamente violenta e impulsiva, começaram a colidir com a ordem social e jurídica, dando origem a diversos processos judiciais.

56- Em 2004, viria a assumir nova relação, desta feita, com LL, natural de ..., a qual terá durado cerca de 10 anos e fruto da qual viriam a nascer dois filhos, atualmente com 16 e 10 anos respetivamente. Segundo foi possível apurar, a história de vida do casal, terá desde muito cedo sido marcada, por episódios de extrema violência e de maus tratos, que atingiam indiscriminadamente não só a companheira, como o filho mais velho, mas também alguns dos animais que criava, tendo, inclusive, chegado a provocar a morte de alguns deles em alegados episódios de rara violência. A então companheira que reconheceu o caracter potenciador do álcool nestes acontecimentos, procurou ao longo de vários anos, gerir todos estes problemas na esfera privada, devido às suas fragilidades pessoais, mas sobretudo por receio das reações do arguido.

57- Na sequência da intervenção dos serviços da segurança social, o arguido acabaria por, em 2011, cumprir um internamento na Unidade de ..., o qual ele hoje desvaloriza em absoluto e que não viria a surtir qualquer efeito, uma vez que o mesmo rapidamente recaiu nos consumos. Perante o reiterar de episódios de violência doméstica e maus tratos, a companheira e os filhos, acabariam por ser encaminhados, em duas ocasiões, 2011 e 2015, pelos serviços da segurança social para Casas ... destinadas a vítimas de violência doméstica.

58- Por decisão transitada em julgado em janeiro de 2017, o arguido viria a ser condenado, no âmbito do Processo nº 205/13.4 GACNF, por crime de ofensa à integridade física grave, na pena de 2 anos e 2 meses de prisão, cujo cumprimento iniciou em 19 de abril de 2017, quando já vivia em situação de união de facto, com a nova companheira BB, natural de ..., vítima no presente processo.

Posteriormente, por revogação do Processo nº 90/09.0TARSD, veio igualmente a ser condenado pela prática de dois crimes de violência doméstica, sobre a pessoa de MM e do filho NN na pena de 40 meses de prisão.

59- Em sede de execução da pena de prisão e no âmbito da Lei nº9/2020, foi-lhe concedida uma Licença de Saída Administrativa Extraordinária, a qual iniciou a 13 de abril de 2020, no entanto, após duas renovações desta medida, interromperia a mesma, tendo-se apresentado voluntariamente no EP de ... a 13 de julho de 2020, alegando desentendimentos com a companheira.

60- Depois de ter sido colocado em situação de Liberdade Condicional em 19 de dezembro de 2020, o arguido foi acolhido pela irmã OO, na sua residência e PP, concelho de ..., no entanto, em ..., acabaria por se reconciliar com a ex-companheira, tendo o casal passado a residir na Rua da ....

61- A data dos factos o arguido já se havia reconciliado com a ofendida, residindo com esta e com o restante agregado composto pelos quatro filhos da companheira, fruto de relações anteriores, pelo filho de ambos, nascido a 9 de novembro de 2020 e pela mãe da companheira, na morada indicada no processo, numa habitação da qual esta última é proprietária.

62- O arguido, nessa data, já havia então regressado de mais uma campanha agrícola em ..., tendo passado a trabalhar com alguma regularidade, em quintas agrícolas na região do .... Por seu lado a companheira, trabalhava como empregada doméstica, sendo dos respetivos vencimentos e dos aforros que o arguido garantira no estrangeiro, que o casal e demais agregado subsistia.

63- O arguido encontrava-se em acompanhamento por parte da Equipa do ..., da Direção ..., no âmbito da medida de Liberdade Condicional, à qual iria manter-se subordinado até 19 de outubro de 2022, mas sem que tenha sido fixado na sentença que concedeu a liberdade condicional a obrigação de se submeter a tratamento dirigido à problemática alcoólica.

64- Junto da comunidade local de ..., não existe uma imagem concreta acerca do arguido, por o mesmo permanecer pouco tempo na referida freguesia. Junto da comunidade de ... de onde é natural, apesar de não lhe serem conhecidos quaisquer comportamentos mais violentos no quadro das suas relações locais, a sua imagem é todavia negativamente marcada pelos seus hábitos alcoólicos e por registar alterações graves de comportamento, tornando-se violento, quando alcoolizado. Aliás, à semelhança do progenitor, circunstância que terá levado a que, há já muitos anos, a mãe do arguido tivesse saído de casa, por alegadamente estar a ser alvo de violência doméstica.

65- Depois de um período de quarentena, deu entrada no Estabelecimento ..., a 07 de maio de 2021, tendo sido transferido para o Estabelecimento ..., em 27 de maio desse ano, onde ainda permanece detido à ordem dos presentes autos. Tem beneficiado no exterior do apoio de alguns irmãos, e do filho mais velho, que já o visitou no Estabelecimento Prisional.

66- O arguido assume com algum conformismo, e inevitabilidade, a sua atual condição, a qual faz naturalmente decorrer da acusação de que está a ser alvo.

Impacto da situação jurídico-penal

67-Não obstante as suas múltiplas condenações, o arguido parece evidenciar em relação à sua história de vida uma muito fraca ressonância crítica, pelo que todos estes contactos com o sistema de justiça, parecem não ter tido, até ao momento, qualquer tipo de impacto pedagógico e/ou dissuasor junto do mesmo, o qual continua a manter um discurso de não reconhecimento da problemática alcoólica, como elemento fortemente potenciador da prática criminal, desvalorizando também a esse nível as intervenções às quais foi constrangido a submeter-se, e que reputa de inúteis e esvaziadas de conteúdo.

Sobre o presente processo, o arguido reconhece a prática criminal que lhe é imputada, a qual contextualiza, num momento de grande tensão, em que terá reagido impulsivamente, num momento de total perda de controlo.

Manifestou estar conformado com a medida de coação a que se encontra sujeito, encarando com grande probabilidade a possibilidade de poder vir a ser condenado nos presentes autos, uma vez que considera o crime de que é acusado e perante o qual revela, algum distanciamento empático, como um crime grave.

68- No plano institucional, o arguido tem mantido um comportamento estável e conforme às normas da instituição, não tendo sido, até ao momento, alvo de qualquer tipo de procedimento disciplinar.

69- Do CRC do arguido junto de fls 1013 a 1019 consta que foi condenado:

1) No processo n.º 23/01 (n.º 84/99.2GCPRG), que correu termos no 2.º Juízo do Tribunal Judicial de Peso da Régua, por factos praticados em 17.10.1999, por sentença proferida em 13.02.2002, transitada em julgado em 11.04.2002, na pena de multa de € 500,00, pela prática de um crime de furto, substância explosiva e armas, e declarada extinta por cumprimento.

2) No processo n.º 91/01.7GARSD, que correu termos no Tribunal Judicial de ..., por factos praticados em 23.08.2001, por sentença proferida em 16.12.2002, transitada em julgado em 13.01.2003, na pena única de multa de 240 dias de multa à taxa diária de € 5,00, pela prática de um crime de introdução de lugar vedado ao público, de um crime de furto qualificado na forma tentada, e declarada extinta por cumprimento.

3) No processo n.º 59/03.9GBMDA, que correu termos no Tribunal Judicial de ..., por factos praticados em 10.10.2003, por sentença proferida em 27.02.2004, transitada em julgado em 15.03.2004, na pena de multa de 70 dias de multa à taxa diária de €4,50, pela prática de um crime de condução em estado de embriaguez, e declarada extinta por cumprimento.

4) No âmbito do processo n.º 90/09.0TARSD, que correu termos no Tribunal Judicial de ..., por factos praticados em 30.09.2009, por sentença proferida em 06.05.2011, transitada em julgado em 06.06.2011, na pena de 40 meses de prisão suspensa na sua execução por igual período, pela prática de um crime de violência doméstica.

5) No processo n.º 229/10.3GARSD, que correu termos no Tribunal Judicial de ..., por factos praticados em 10.10.2010, por sentença proferida em 12.05.2011, transitada em julgado em 13.06.2011, na pena de 8 meses de prisão substituída por 280 dias de multa à taxa diária de € 6,00, pela prática de um crime de resistência e coação sobre funcionário, e declarada extinta por cumprimento.

6) No processo n.º 71/14.2GARSD, que correu termos no Tribunal Judicial de ..., por factos praticados em 30.03.2014, por sentença proferida em 31.03.2014, transitada em julgado em 09.05.2014, na pena de multa de 110 dias de multa à taxa diária de € 6,00, e na pena acessória de 6 meses de proibição de conduzir veículos motorizados, pela prática de um crime de desobediência, e declarada extinta por cumprimento.

7) No processo n.º 247/13.0GARSD, que correu termos na Comarca de ..., por factos praticados em 22.04.2014, por sentença proferida em 14.01.2015, transitada em julgado em 18.02.2015, na pena de multa de 2 anos de prisão suspensa na sua execução por igual período, com regime de prova, pela prática de um crime de detenção de arma proibida.

8) No processo n.º 205/13.4GACNF, que correu termos na Comarca de ..., Juízo de ..., por factos praticados em 15.09.2013, por sentença proferida em 26.04.2016, transitada em julgado em 09.01.2017, na pena de 2 anos e 2 meses de prisão efetiva, pela prática de um crime de ofensa à integridade física.

B- Factos não provados

Com relevo para a decisão da causa inexistem factos por provar.2

9. Direito

Como sabido, o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação que apresentou (art. 412.º, n.º 1, do CPP).

Os poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça restringem-se exclusivamente ao reexame da matéria de direito (art. 434.º do CPP), sem prejuízo do disposto nas alíneas a) e c) do n.º 1 do art. 432.º

Analisadas as conclusões do recurso do acórdão da Relação de ... apresentado pelo arguido para o STJ - que apesar de extensas e não cumprirem integralmente o estabelecido no art. 412.º, n.º 1, do CPP, quanto ao seu significado, como resumo do pedido, ainda assim, como bem refere o Sr. PGA, não justificam que seja feito convite ao aperfeiçoamento nos termos do art. 417.º, n.º 3, do CPP (e não do art. 639.º, n.º 3, CPC, como requer a assistente, por tal disposição legal não ser aqui aplicável uma vez que no processo penal existe norma própria, precisamente a que referimos), por se perceber o que é pretendido com o recurso - verifica-se que coloca as seguintes questões:

1ª- erro na apreciação da prova, no que se refere à sua condenação pelo crime de violência doméstica agravado consumado p. e p. no art. 152.º. n.º 1, al. b), n.º 2, al. a), n.º 4, e n.º 5, todos do CP (alegando, em resumo, que foram dados como provados factos que não encontram assento em qualquer meio de prova, designadamente, produzido em audiência, procurando descredibilizar as declarações da assistente nos segmentos que indica, como sendo os que mereceram crédito ao tribunal, concluindo pela absolvição do arguido desse crime);

2ª- erro e desproporcionalidade nas penas aplicadas pelo crime de violência doméstica e pelo crime de homicídio qualificado agravado pelo uso de arma de fogo tentado pelos quais foi condenado, considerando as circunstâncias concretas que resultam dos factos provados a seu favor e que não foram tidas em atenção (em resumo, caso não seja absolvido do crime de violência doméstica, deve ser-lhe aplicada pena pelo mínimo legal, sendo que a pena a aplicar pelo crime de homicídio qualificado agravado pelo uso de arma de fogo tentado, nunca deveria ser superior a 6 anos);

3ª- erro e desproporcionalidade na fixação da pena única (em resumo, não só por distante dos limites mínimos, como por não ter atendido a circunstâncias que lhe são favoráveis, assim como por ter ultrapassado o grau de culpa do arguido);

4ª- erro na fixação do quantum indemnizatório, por falta de fundamentação, o que gera nulidade ou, caso assim se não entenda, por desproporcionalidade do montante fixado à ofendida, devendo o seu valor ser substancialmente reduzido;

5ª- inconstitucionalidade da decisão recorrida por violação dos princípios da igualdade e da proporcionalidade vertidos nos arts. 13.º e 18.º, n.º 2, da CRP.

9.1. Apreciação

Compulsado o teor do acórdão do Tribunal da Relação sob recurso verifica-se que o mesmo analisou e decidiu (além do mais), as questões que foram repetidas pelo recorrente no recurso para o STJ (designadamente, relativas ao preenchimento do crime de violência doméstica agravada, à pena aplicada por esse crime, à decisão relativa à indemnização arbitrada, falta de fundamentação, quantum indemnizatório fixado) e, além de confirmar parcialmente a decisão da 1ª instância, decidiu favoravelmente ao arguido, quando baixou as penas individuais e única que ali lhe haviam sido aplicadas.

Com efeito, no recurso que o mesmo arguido apresentara da decisão da 1ª instância para o Tribunal da Relação, formulou as seguintes questões, conforme ali foram identificadas:

1. Omissão de pronúncia quanto a parte do pedido cível;

2. Falta de fundamentação no que respeita à fixação das penas e à fixação da indemnização;

3. Sindicância da matéria descrita sob os pontos 9.º e 10.º da factualidade provada;

4. Do preenchimento do tipo de violência doméstica;

5. Excesso das penas;

6. Excesso do quantum indemnizatório.

Pois bem.

A decisão do TRC ora em análise resultou da procedência parcial do recurso interposto pelo aqui recorrente da decisão da 1ª instância, no qual foram analisadas e decididas as questões acima referidas, colocadas pelo recorrente.

Lendo o acórdão do TRC impugnado verifica-se, quanto à ação penal que, para além da confirmação da decisão de culpabilidade (sem haver qualquer alteração da decisão sobre a matéria de facto e da decisão relativa ao enquadramento jurídico-penal dos factos apurados), houve um duplo juízo condenatório quanto às questões colocadas no recurso, sendo certo que foram confirmadas in mellius pela Relação, as penas individuais impostas (foi eliminada a agravante da reincidência e, consequentemente, em todos os crimes cometidos, as penas individuais foram reduzidas, respetivamente, a do crime de homicídio qualificado agravado pelo uso de arma de fogo, tentado, baixou de 11 anos de prisão para 10 anos e 6 meses de prisão, a do crime de detenção de arma proibida baixou de 2 anos e 10 meses de prisão para 2 anos e 4 meses de prisão, a do crime de violência doméstica agravado consumado baixou de 3 anos e 6 meses de prisão para 2 anos e 9 meses de prisão e a do crime de ofensa à integridade física simples baixou de 1 ano e 2 meses de prisão baixou para 1 ano de prisão) e a pena única aplicada ao recorrente (que baixou de 15 anos para 14 anos) e foi mantido o mais decidido no acórdão condenatório, no que aqui interessa, quanto à parte cível, foi mantido o montante da indemnização arbitrada à assistente (40.000,00 euros a titulo de danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora, à taxa legal, devidos desde a decisão condenatória em 1ª instância até integral pagamento).

No que respeita à pena, individual e única, a confirmação in mellius significa que decisão da Relação confirma o acórdão da 1ª instância, beneficiando a situação do condenado.

Esta tem sido, a jurisprudência unânime do STJ, já há vários anos, o que se coaduna com o conceito de “dupla conforme” ínsito ao art. 400.º, n.º 1, al. f), do CPP, quando se tratam de acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem decisão de 1.ªinstância e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos.

Aliás, como esclarece Eduardo Maia Costa, no acórdão de 26.02.2014 (proc. n.º 851/08.8TAVCT. G1. S1), “a confirmação não significa nem exige a coincidência entre as duas decisões. Pressupõe apenas a identidade essencial entre as mesmas, como tal devendo entender-se a manutenção da condenação do arguido, no quadro da mesma qualificação jurídica, e tomando como suporte a mesma matéria de facto.” E esta confirmação admite “a redução da pena pelo tribunal superior; ou seja, haverá confirmação quando, mantendo-se a decisão condenatória, a pena é atenuada, assim se beneficiando o condenado.3

Isto significa que quanto à ação penal, visto o disposto nos arts. 400.º, n.º 1, al. f) e 432.º, n.º 1, al. b), do CPP, que o acórdão do Tribunal da Relação é irrecorrível na parte em que confirma a condenação da 1ª Instância (princípios da dupla conforme condenatória4 e da legalidade), salvo quanto à pena individual pelo crime de homicídio qualificado agravado pelo uso de arma de fogo, tentado e quanto à pena única que lhe foram impostas, por cada uma delas ser superior a 8 anos de prisão.

Considerando o disposto no art. 400.º n.º 1, als. e) e f) do CPP, a não admissibilidade do recurso vale separadamente para as penas parcelares e para a pena conjunta, podendo acontecer que não sejam recorríveis todas ou algumas daquelas, o mesmo sucedendo com a pena única que, dependendo do seu quantum, poderá ou não ser recorrível5.

Aliás, decidiu-se no Ac. do TC (plenário) n.º 186/2013, “Não julgar inconstitucional a norma constante da alínea f), do n.º 1, do artigo 400.º, do Código de Processo Penal, “na interpretação de que havendo uma pena única superior a 8 anos, não pode ser objeto do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça a matéria decisória referente aos crimes e penas parcelares inferiores a 8 anos de prisão.”

Portanto, não pode o recorrente pretender uma terceira apreciação das questões colocadas, particularmente a nível da ação penal (v.g. no que se relaciona com o crime de violência doméstica agravado consumado, designadamente, reapreciação da respetiva matéria de facto, erro notório na apreciação da prova, erro na condenação, erro na qualificação jurídica, erro na pena individual imposta, por a considerar desproporcionada, injusta, violar os princípios da igualdade e da proporcionalidade), nos casos em que há limitações legais.

Assim, se o recorrente pretende impugnar o acórdão do Tribunal da Relação, apenas deve e pode apresentar as razões pelas quais discorda dessa decisão, na parte em que é suscetível de recurso (que neste caso é apenas quanto à pena individual imposta pelo crime de homicídio qualificado agravado pelo uso de arma de fogo, tentado e quanto à pena única), de forma a que a sua argumentação possa ser apreciada por este Supremo Tribunal.

A repetição de questões e argumentação que estão já definitivamente decididas, por haver “dupla conforme” não impõem, nem levam à sua reapreciação.

Com efeito, o acórdão da Relação de Coimbra é definitivo quanto às questões que apreciou e que o recorrente volta a colocar (sob diversas formas) no recurso para o STJ, ressalvado as questões indicadas que este tribunal pode conhecer quanto às penas individual e única superiores a 8 anos (uma vez que se verifica o condicionalismo previsto nos arts. 400.º, n.º 1, al. f) e 432.º, n.º 1, al. b), do CPP).

Assim, as questões de facto, as questões processuais, as questões de direito, as questões de constitucionalidade suscitadas nesse âmbito em que não é admissível o recurso para o STJ, porque já foram decididas definitivamente pela Relação, não podem ser conhecidas, nem sindicadas por este Supremo Tribunal, como sucede com as questões colocadas em relação ao crime de violência doméstica agravado consumado pelo qual foi condenado em pena inferior a 8 anos.

Por sua vez, o arguido volta a recorrer na parte cível, colocando as mesmas questões que já colocara quando recorreu da decisão da 1ª instância, sendo que, nessa parte, o acórdão da Relação impugnado negou provimento ao recurso.

Ora, tendo sido garantido ao arguido um grau de recurso para a Relação, quando recorreu da parte cível da decisão da 1ª instância, apesar da decisão da Relação que agora pretende impugnar, nessa parte (cível) lhe ter sido totalmente desfavorável, não obstante se verificarem os pressupostos do art. 400.º, n.º 2, do CPP (considerando o seu valor superior à alçada da Relação, bem como o valor da sucumbência superior a € 15 000,00 - conforme artigo 400.º, n.º 2, do CPP e artigos 629.º, n.º 1, do CPC, ex vi do artigo 4.º, do CPP, e artigo 44.º, da LOSJ), a verdade é que de acordo com a jurisprudência pacífica deste STJ, para aferir da admissibilidade do recurso para este Supremo Tribunal de Justiça quanto à decisão em matéria civil da Relação há que convocar as regras processuais civis e verificar se a decisão será passível de recurso segundo tais regras, “de modo que o demandado civil no âmbito do processo penal tenha as mesmas possibilidades recursórias que teria caso a ação fosse julgada em separado”6.

Assim sendo, visto o disposto no art. 671.º, n.º 3, do CPC7, temos de concluir que não é admissível o recurso de acórdão da Relação, na parte cível, por se verificar “dupla conforme” das decisões da Relação e da 1ª instância nos estritos limites ali referidos (ver arts 434.º, 414º n.º 2, 420º n.º 1, al. b), do CPP e 671.º, n.º 3, do CPC, aplicável ex vi do art. 400.º, n.º 2 e n.º 3 do CPP)8.

Assim, por inadmissibilidade legal, uma vez que há “dupla conforme”, não se toma conhecimento do recurso em apreciação, quanto às matérias acima referidas, ressalvadas:

1ª- a questão suscitada relativa à pena individual que lhe foi aplicada pelo crime de homicídio qualificado agravado pelo uso de arma de fogo, tentado, por ser superior a 8 anos de prisão;

2ª- a questão suscitada relativa à pena única em que o recorrente foi condenado, igualmente por ser superior a 8 anos;

3ª- a questão suscitada da inconstitucionalidade da decisão recorrida, por violação dos princípios da igualdade e da proporcionalidade, previstos respetivamente nos arts. 13.º e 18.º, n.º 2, da CRP, no que se relaciona com as duas penas acima referidas de que podemos conhecer, que considera exageradas.

8.2. De seguida, vamos então analisar as questões colocadas pelo recorrente, quanto à matéria que pode ser sindicada por este STJ, acima indicada, tendo presente que, não ocorrendo os vícios previstos no art. 410.º, n.º 2, do CPP, nem nulidades ou irregularidades de conhecimento oficioso, considera-se definitivamente fixada a decisão proferida sobre a matéria de facto acima transcrita, a qual se mostra devidamente sustentada e fundamentada.

Pois bem.

Sobre a medida das penas individuais e única escreveu-se no acórdão da Relação sob recurso o seguinte no que aqui interessa9:

5. EXCESSO DAS PENAS

No entender do recorrente, Tribunal recorrido não cuidou de aferir a conexão entre o crime determinante da aplicação do regime da reincidência e os crimes objeto dos autos (máxime do crime de homicídio qualificado na forma tentada), não se justificando a agravação das molduras penais aplicáveis.

Sustenta, ainda o recorrente que são desproporcionais as penas de prisão aplicadas:

- Pela prática do crime de violência doméstica, face às reais circunstâncias do caso concreto que resultaram provadas em audiência de julgamento, uma vez que apenas poderia ter sido dado como provado que o arguido e, poucas vezes, apelidou a assistente de “puta”, que as discussões eram conversas normais de casal, que por vezes era a própria assistente quem as provocava, e que era assistente o elemento desestabilizador do casal adotando perante o arguido uma postura autoritária e agressiva;

- Pela prática do crime de homicídio na forma tentada, que foi, efetivamente punido, como se tivesse sido consumado, em termos desiguais comparativamente a outras tantas decisões proferidas pelos nossos Tribunais, e sem que tenham sido ponderados os sentimentos manifestados no crime e que foram explicados pelo arguido em audiência de julgamento, nem a ausência de sequelas relevantes para a vítima.

Conclui que o recorrente que a penas aplicadas haveriam de ser reduzidas para medida próxima do mínimo legal.

Vejamos.

Dispõe o nº 1 do artigo 75º do Código Penal que, «é punido como reincidente quem, por si só ou sob qualquer forma de comparticipação, cometer um crime doloso que deva ser punido com prisão efetiva superior a seis meses, depois de ter sido condenado por sentença transitada em julgado em pena de prisão efetiva superior a seis meses por outro crime doloso, se, de acordo com as circunstâncias do caso, o agente for de censurar por a condenação ou as condenações anteriores não lhe terem servido de suficiente advertência contra o crime».

Acrescenta o n.º 2 do mesmo artigo que: «o crime anterior por que o agente tenha sido condenado não releva para a reincidência se entre a sua prática e a do crime seguinte tiverem decorrido mais de cinco anos; neste prazo não é computado o tempo durante o qual o agente tenha cumprido medida processual, pena ou medida de segurança privativas da liberdade»

São, assim, pressupostos formais da reincidência, para além da prática de um crime, «por si só ou sob qualquer forma de participação», 1º - que o crime agora cometido seja um crime doloso; 2º - que este crime, sem a incidência da reincidência, deva ser punido com pena de prisão efetiva superior a 6 meses; 3º - que o arguido tenha antes sido condenado, por decisão transitada em julgado, também em pena de prisão efetiva superior a 6 meses, por outro crime doloso. 4º - que entre a prática do crime anterior e a do novo crime não tenham decorrido mais de 5 anos, prazo este que se suspende durante o tempo em que o arguido tenha estado privado da liberdade, em cumprimento de medida de coação, de pena ou de medida de segurança.

Com relevo para o que apreciaremos de seguida, deixamos aqui expresso que, no que respeita ao 3.º pressuposto divergimos do entendimento daqueles que entendem bastar a revogação de pena de prisão superior a 6 meses suspensa na sua execução (cf. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 4.ª edição atualizada, Universidade Católica Editora, p. 403) para considerarmos, que ao exigir a condenação do anterior crime «por sentença transitada em julgado em pena de prisão efetiva superior a 6 meses», a lei afasta os casos em que, na sentença, a pena de prisão tenha sido suspensa na sua execução, ainda que, posteriormente o agente venha a cumprir pena na sequência da revogação da pena de substituição (cf. Jorge de Figueiredo, in «Direito Penal Português - Parte Geral II – As Consequências Jurídicas do 36 Crime», Aequitas, Editorial Notícias, 1993, p. 265).

Por outro lado, relativamente ao 4.º pressuposto, importa considerar que embora, o prazo de cinco anos se contabilize tendo em conta os diversos crimes relevantes para a reincidência (cf. Paulo Pinto Albuquerque, na obra citada, pp 403-404), naturalmente que tal pressupõe (passe o pleonasmo) a relevância agravativa de cada um dos crimes que antecedem o último crime.

Ou seja, não basta que a relevância do crime inicial seja mediada por um percurso criminoso até ao crime cuja pena será agravada, antes se revela necessário que entre o crime inicial e o crime atual não tenham decorrido mais de 5 anos (descontado o tempo de privação de liberdade), ou que entre ambos (o crime inicial e o crime atual) ocorram outros crimes relevantes, e que entre cada um deles não tenham decorrido 5 anos (descontado o tempo de privação de liberdade).

Importa, por outro lado atender, que a punição agravada pela reincidência só tem lugar «se, de acordo com as circunstâncias do caso, o agente for de censurar por a condenação ou as condenações anteriores não lhe terem servido de suficiente advertência contra o crime».

Trata-se, aqui, do pressuposto material da reincidência. Tal como escreve Jorge de Figueiredo Dias, in «Direito Penal Português - Parte Geral II - As Consequências Jurídicas do 36 Crime», Aequitas, Editorial Notícias, p. 268: «É no desrespeito ou desatenção do agente por esta advertência que o legislador vê fundamento para uma maior censura e, portanto, para uma culpa agravada relativa ao facto cometido pelo reincidente. E continua «o critério essencial da censura ao agente por não ter atendido a admonição contra o crime resultante da condenação ou condenações anteriores, se não implica regresso à ideia de que a verdadeira reincidência é só homótropa, exige, de todo o modo uma íntima conexão de entre os crimes reiterados, que deva considerar-se relevante do ponto de vista daquela censura e da consequente culpa. Uma tal censura poderá, em princípio afirmar-se relativamente a factos de natureza análoga, segundo os bens jurídicos violados, os motivos, a espécie e a forma de execução, se bem que, ainda qui, possam intervir circunstâncias (v.g., o afeto, a degradação social e económica, a experiência, especialmente criminógena, da prisão, etc.) que sirvam para excluir a conexão, por terem impedido de atuar a advertência resultante da condenação ou condenações anteriores. Mas já relativamente a factos de diferente natureza será muito difícil (se bem que de nenhum modo impossível) afirmar a conexão exigível». Esta doutrina tem sido sufragada, sem dissidências pelos Tribunais Superiores.

A reincidência não opera automaticamente, exigindo-se a demostração que as anteriores condenações não tiveram suficiente força dissuasória para afastar o delinquente do crime, pois só através do caso concreto se consegue reconhecer uma culpa agravada, em que o arguido deva ser censurado por a condenação anterior não ter servido de advertência suficiente

Recentemente, no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça datado de 19.01.2022, no processo n.º 3/20.9FCOLH.S1 (Cons. Helena Fazenda), pode ler-se que: «não operando a qualificativa por mero efeito das condenações anteriores, a comprovação da íntima conexão entre os crimes não se basta com a simples história criminosa do agente»; «sem colocar em causa tal posição unânime é evidente que, estando em causa uma reincidência homogénea, (…) se o arguido foi condenado anteriormente por crimes do mesmo tipo e agora volta a delinquir pela mesma prática, é liminar a inferência de que lhe foi indiferente o sinal transmitido, não o inibindo de renovar o seu propósito de delinquir»].

Retomemos o nosso caso. Da análise dos antecedentes criminais do arguido verifica-se que apenas no processo n.º 205/13.4GACNF, o arguido foi sentenciado com pena de prisão efetiva.

Portanto, todos os demais crimes anteriores, por não se verificar o 3.º pressuposto formal da reincidência, são, para o que ora nos ocupa, irrelevantes.

E não se diga que, também no processo nº 90/09.0TARSD, o arguido foi condenado, na pena única de 40 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, suspensão, esta, revogada em 10.11.2017.

Como já deixamos expresso: o art.º 75.º n.º 1 do CP exige a condenação na sentença em prisão efetiva, o que manifestamente não aconteceu no processo n.º 90/09.0TARSD.

Ainda que assim não se entendesse, sempre haveria a considerar que:

- Os crimes pelos quais o arguido foi condenado no processo nº 90/09.0TARSD, foram cometidos no período temporal compreendido entre meados de setembro de 2004 e 12 de maio de 2010;

- Decorreram mais de cinco anos desde essa data sem que o arguido tenha cumprido medida processual, pena ou medida de segurança privativas da liberdade;

- Os crimes dos nossos autos foram praticados decorridos após esse período de cinco anos.

Claramente, mostra-se esgotado o prazo de 5 anos, entre os crimes dos nossos autos e aqueles que foram objeto de condenação no processo n.º nº 90/09.0TARSD.

Portanto, a eventual relevância para efeitos de reincidência dos crimes pelos quais o arguido foi condenado no processo nº 90/09.0TARSD, sempre dependeria do reconhecimento da relevância do crime objeto da condenação no processo n.º 205/13.4GACNF.

Ora, nos autos n.º 205/13.4GACNF., o arguido foi condenado pela prática de um crime de ofensa à integridade física grave, p.p. pelo art.º 143.º n.º 1 e 144º al. b) do Código Penal, ou seja, por um crime doloso (1.º formal pressuposto da reincidência). Foi punido com prisão efetiva de dois anos e dois meses, portanto, em medida superior a 6 meses (3.º pressuposto formal da reincidência). E, não questiona o recorrente a condenação em prisão efetiva superior a 6 meses, por qualquer dos crimes dos presentes autos que tenham sido cometidos (2.º pressuposto formal da reincidência).

Está, ainda, demonstrado que entre a data da prática do crime anterior da condenação no processo n.º 205/13.4GACNF e a data da prática dos crimes destes autos, não decorreram mais de 5 anos, sem que o arguido tenha estado privado da liberdade (4.º pressuposto formal da reincidência).

Concluímos que relativamente ao crime pelo qual o arguido foi condenado no processo n. 205/13.4GACNF se encontram presentes todos os pressupostos formais da reincidência.

Resta apreciar da verificação do requisito material da reincidência.

Perscrutando o Acórdão recorrido, a factualidade provada, com relevo para a resolução da questão que ora nos ocupa é a seguinte:

«- 36 - A prática reiterada de tais atividades delituosas demonstra que o arguido nunca as pretendeu abandonar, com total alheamento, da decisão proferida no processo n.º 205/13.4GACNF em que o mesmo foi condenado em dois anos e dois meses de prisão.

37 - A condenação anteriormente sofrida pelo arguido foi insuficiente para a sua readaptação social, não tendo servido para prevenir a prática de outros crimes penais dolosos, existindo, nomeadamente, uma situação de violação de bens jurídicos da mesma natureza.

38 Assim, a condenação sofrida pelo arguido, e o facto de, desde 15 de Dezembro de 2020, se encontrar em liberdade condicional, não lhe serviram de suficiente advertência contra o crime, não o determinando a inibir-se de praticar novos crimes, quando devia e podia manter uma conduta lícita».

Constata-se, que não se encontram enunciados os factos concretos relativos ao crime objeto da condenação no processo n.º 205/13.4GACNF, seja quanto ao modo de execução, seja quanto ao contexto de atuação, seja quanto à motivação, seja quanto ao tipo de vítimas (familiares ou «parafamiliares»), seja quanto à influência das condições pessoais da personalidade do arguido.

Claramente não é possível estabelecer uma íntima conexão entre os crimes de detenção de arma proibida, homicídio tentado e violência doméstica objeto dos presentes autos e o crime ofensa à integridade física grave pelo qual o arguido foi condenado no processo n.º 205/13.4GACFN.

Resta o crime de ofensa à integridade física na pessoa de DD.

Este crime foi cometido quando DD, com o menor FF ao colo, se abeirou da sua mãe (BB) para defendê-la da atuação do arguido. E, nesse momento, o arguido empunhou uma vassoura que lá se encontrava e desferiu uma pancada com a mesma no antebraço direito de DD, partindo o cabo da vassoura, causando-lhe dores e um ferimento na zona atingida.

Entendemos, que perante este específico circunstancialismo, e desconhecendo-se aquele que rodeou o crime pelo qual o arguido foi condenado no processo n.º 205/13.4GACNF, não é possível extrair que existe uma «íntima conexão» entre os crimes, por forma a que se possa concluir que o recorrente não se sentiu suficientemente advertido ou intimado com aquela condenação para se manter fiel ao direito.

Ou seja, relativamente a todos os crimes dos presentes autos, falha a relevância para efeitos de reincidência do crime objeto de condenação no processo n.º 205/13.4GACNF, por ausência do requisito material da reincidência.

Como assim é, o prazo de cinco anos entre os crimes objeto dos presentes autos e o cometimento dos crimes objeto da condenação no processo nº 90/09.0TARSD decorreu sem qualquer suspensão e sem que o arguido tenha praticado qualquer crime relevante.

Falta, portanto, relativamente aos crimes objeto da condenação no processo nº 90/09.0TARSD, o 4.º requisito formal da reincidência.

Não havendo quaisquer crimes anteriores relevantes para a reincidência, importa determinar, nos termos do n.º 3 do art.º 403.º do CPP, todas as penas parcelares (e não apenas aquelas cujas medidas foram impugnadas) sem a correspondente agravação.

Assim.

O crime de homicídio qualificado, p. e p. pelo art 131º e 132º, nºs1 e 2, als b) e i) do CP é punível com uma pena de 12 a 25 anos de prisão.

Por via da agravação pelo uso de arma de fogo, nos termos do art. 86º n.º 1 al. c), n.º 3 e 4 da Lei 5/2006 de 23 de Fevereiro, é punido com pena de prisão compreendida entre o limite mínimo de 16 anos a 25 anos de prisão. Por via da tentativa a sobredita moldura aplicável passa a ser de prisão compreendida entre 3 anos, 2 meses e 12 dias a 16 anos e 8 meses.

Ao crime de detenção de arma proibida é aplicável prisão de 1 a 5 anos ou com pena de multa até 600 dias.

Ao crime de violência doméstica agravado na forma consumada, previsto e punível pelo art. 152.º, n.º 1, al. b), n.º 2 al. a), 4 e 5, do CP é aplicável uma pena de 2 a 5 anos de prisão.

Ao crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punível, pelos artigos 143º, n.º 1, do CP entre um mínimo de 1 mês a 3 anos de prisão e 10 dias a 360 dias de multa.

Dispõe o art.º 40.º do CP que a aplicação de penas «visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração social do agente» (nº 1), não podendo a pena em caso algum «ultrapassar a medida da culpa» (nº 2).

Portanto, a pena assume entre nós, um cariz utilitário, no sentido de eminentemente preventivo, não lhe cabendo, como finalidade, a retribuição «qua tale» da culpa.

Não questiona o recorrente a opção pela pena de prisão (relativamente aos crimes que preveem a pena de multa em alternativa).

Tal como, aliás, bem se compreende.

Atenta a gravidade dos ilícitos e as condições pessoais do arguido, não se revela nem suficiente, nem adequada às exigências de prevenção geral e especial a aplicação de pena não detentiva.

No que respeita à determinação das penas parcelares de prisão, no interior das molduras legais aplicáveis, importa considerar que tal como se escreve no Acórdão do Supremo Tribunal da Justiça, datado de 18.12.2008, no processo 08P2837 (rel. Cons. Souto de Moura):

«Quando, pois, o art. 71.º do CP nos vem dizer, no seu n.º 1, que “A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção”, não o podemos dissociar daquele art. 40.º. Daí que a doutrina venha a defender, sobretudo pela mão de Figueiredo Dias, (Cfr. Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, Coimbra Editora, 2005, pags. 227 e sgs.) que, se as finalidades da aplicação de uma pena residem primordialmente na tutela dos bens jurídicos, e, na medida do possível, na reinserção do agente na comunidade, então, o processo de determinação da pena concreta a aplicar reflectirá, de um modo geral, a seguinte lógica: A partir da moldura penal abstrata procurar-se-á encontrar uma “sub-moldura” para o caso concreto, que terá como limite superior a medida ótima de tutela dos bens jurídicos e das expectativas comunitárias, e como limite inferior, o “quantum” abaixo do qual “já não é comunitariamente suportável a fixação da pena sem pôr irremediavelmente em causa a sua função tutelar (Cfr. Idem, pág. 229). Ora, será dentro dos limites consentidos pela prevenção geral positiva que deverão atuar os pontos de vista da reinserção social. Quanto à culpa, para além de suporte axiológico- normativo de toda e qualquer repressão penal, compete-lhe, como se viu já, estabelecer o limite inultrapassável da medida da pena a aplicar».

A medida concreta da pena, para além de determinada em função da culpa do agente e das exigências de prevenção geral e especial que se fazem sentir, deve atender às circunstâncias atípicas que deponham a favor e contra o arguido (cf. art.º 71º n.º 1 e 2 do CP).

Tal como pode ler-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, datado de 20.01.2021, no processo n.º 469/18.7JAVRL.G1.S1 (rel. Cons. Gabriel Catarino): «Conforme decorre da lição da melhor doutrina (Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, ..., 1993, pág. 196-197, §255) e constitui jurisprudência uniforme do STJ (cfr., v.g. os Acs do STJ de 9-11-2000, in Sumários STJ de 29-1-2004, proc.º n.º 03P1874, rel. Cons.º Pereira Madeira e de 27-5-2009, proc.º n.º 09P0484, rel. Cons.º Raul Borges, disponíveis in www.dgsi.pt), também seguida pela segunda instância (cfr. v.g. o Ac. da Rel. de Lisboa de 31-10-2019, proc.º n.º 989/17.0PZLSB.L1-9, rel. Abrunhosa de Carvalho, os Acs da Rel. do Porto de 6-1-2013, proc.º n.º 201/10.3GAMCD.P1, rel. Ernesto Nascimento e de 2-10-2013, proc. n.º 180/11.0GAVLP.P1, rel. Joaquim Gomes, e o Ac. da Rel. de Guimarães de 13-5-2019, proc.º n.º 348/18.7GAVLP.G1 Ausenda Gonçalves, todos disponíveis in www.dgsi.pt) que, a intervenção do tribunal de recurso pode incidir na questão do limite ou da moldura da culpa assim como na atuação dos fins das penas no quadro da prevenção; mas já não na determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exato da pena, salvo se tiverem sido violadas regras de experiência ou se a quantificação se revelar de todo desproporcionada».

Nesta linha de orientação escreve-se no Acórdão da Rel. do Porto de 06.01.2013, no processo n.º 201/10.3GAMCD.P1 (rel. Ernesto Nascimento):

«Acerca da questão da cognoscibilidade, controlabilidade da determinação da pena, no âmbito do recurso, há que dizer que a intervenção do tribunal nesta sede, de concretização da medida da pena e do controle da proporcionalidade no respeitante à sua fixação concreta, tem de ser necessariamente parcimoniosa, porque não ilimitada.

Vem-se entendendo que se pode sindicar a decisão de determinação da medida da pena, quer quanto à correção das operações de determinação ou do procedimento, à indicação dos fatores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, à falta de indicação dos fatores relevantes, ao desconhecimento pelo tribunal ou à errada aplicação dos princípios gerais de determinação, quer quanto à questão do limite da moldura da culpa, bem como a forma de atuação dos fins das penas no quadro de prevenção, mas já não a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exato da pena, salvo perante a violação das regras da experiência, ou a desproporção da quantificação efetuada».

Dito isto.

Analisando o Acórdão recorrido verifica-se que o Tribunal a quo para fixar as penas agravadas pela reincidência (art.º 76.º do CP) procedeu à determinação das penas que, concretamente, deveriam caber ao agente se ele não fosse reincidente, seguindo, para tanto o procedimento «normal» de determinação.

Foram as seguintes as penas determinadas pelo Tribunal recorrido (não fora a agravação):

a) pela prática do crime de homicídio qualificado, na forma tentada, previsto e punível, nos termos dos artigos 22.º, 23.º, 131.º e 132.º, n.º 1 e 2, al. b) e i), todos do Código Penal agravado por uso de arma de fogo, nos termos do art. 86º n.º 1 al. c), n.º 3 e 4 da Lei 5/2006 de 23 de Fevereiro, a pena de 10 (dez) anos e 6 (seis) meses de prisão;

b) pela prática do crime de detenção de arma proibida, previsto e punível, pelo art. 86º n.º 1 al. c) e e) conjugado com o art. 2º n.º 1 al. j) x) n.º 3 al. p), art. 3º n.º 1 e 2 al. l) todos da Lei 5/2006, de 23 de Fevereiro, a pena de 2 (dois) anos e 4 (quatro) meses de prisão;

c) pela prática do crime de violência doméstica agravado na forma consumada, previsto e punível pelo art. 152.º, n.º 1, al. b), n.º 2 al. a), 4 e 5, todos do Código Penal, a pena de 2 (dois) anos e 9 (nove) meses de prisão;

d) pela prática do crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punível, pelos artigos 143º, n.º 1, 75º e 76º todos do Código Penal, a pena de 1 (um) de prisão.

No que respeita aos crimes de detenção de arma proibida e de ofensa à integridade física, o recorrente não põe em causa as penas aplicadas pelo Tribunal recorrido, mesmo levando em consideração a agravação da reincidência.

Como neste Tribunal de Recurso se afastou o regime da reincidência, importa, nos termos do n.º 3 do art.º 403.º do CPP, aplicar ao agente, mesmo relativamente aos crimes de detenção de arma proibida e de ofensa à integridade física, as penas sem agravação.

Não detetamos incorreção nas operações realizadas pelo Tribunal recorrido na determinação destas penas sem agravação, seja por o quantum alcançado violar as regras da experiência, seja por se revelar desproporcionado.

Não foram questionadas pelo recorrente as medidas obtidas nesta operação (aliás, sem sequer o foram as medidas resultantes da agravação).

Assim, neste Tribunal de Recurso, condena-se o arguido:

- Pela prática do crime de detenção de arma proibida, previsto e punível, pelo art. 86º n.º 1 al. c) e e) conjugado com o art. 2º n.º 1 al. j) x) n.º 3 al. p), art. 3º n.º 1 e 2 al. l) todos da Lei 5/2006, de 23 de Fevereiro, na pena de 2 (dois) anos e 4 (quatro) meses de prisão;

- Pela prática do crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punível, pelos artigos 143º, n.º 1, 75º e 76º todos do Código Penal, na pena de 1 (um) de prisão.

Cumpre, agora, determinar as penas cuja medida foi questionada pelo recorrente, e que são as aplicadas aos crimes de violência doméstica e de homicídio na forma tentada.

As exigências de prevenção geral são manifestas, considerando os bens tutelados por estes dois tipos de crime (a vida de outrem, no crime de homicídio, a saúde e a dignidade, no crime de violência doméstica).

Resultam exacerbadas, no que respeita ao crime de violência doméstica pela frequência da sua prática na comunidade.

O crime de homicídio na forma tentada, pelo perigo criado para a vida de outra pessoa, é obviamente gerador de enorme insegurança na sociedade.

No caso, o crime de violência doméstica consubstanciou-se na agressão infligida à companheira grávida causadora de hematoma, e nos insultos diários desde finais de abril a 5 de maio de 2021.

A diversidade de modos de atuação no crime de violência doméstica desfavorece o arguido.

Prevê a alínea a) do n.º 2 do art.º 152.º do CP a agravação decorrente de o agente praticar o facto contra o menor, na presença do menor, no domicílio comum, ou no domicílio da vítima, bastando o preenchimento alternativo.

Parte dos insultos foram proferidos, na habitação do casal e na presença dos filhos menores da vítima, pelo que, não sofre dúvidas que este preenchimento cumulativo revela uma intensidade do ilícito que pode ser ponderado em desfavor do arguido qualquer risco de dupla valoração (art.º 72.º n.º 2 CP).

BB foi afetada na sua integridade física, amedrontada, humilhada, diminuída no seio da relação familiar, perturbada no seu dia-a-dia, coatada na sua liberdade de ação e movimentos, sendo-lhe causadas marcas psicológicas que afetaram e afetam o seu equilíbrio emocional e psíquico.

A vítima foi atingida em diversos bens pessoais e continua a sofrer consequências do comportamento do arguido, o que não pode deixar de o desfavorecer.

No crime de homicídio na forma tentada foram cinco os disparos efetuados, três dos quais vieram a atingir a vítima, na presença de membros da família.

A vítima sofreu ferimentos que demandaram a intervenção de atos médicos e hospitalares, sofreu lesões, padeceu de dores, ficou com cicatrizes e queixas álgicas ao toque, e dor e limitação da mobilidade articular do ombro direito.

Pesa em desfavor do arguido a intensidade com que o bem foi atingido no crime de homicídio, pois não fora a intervenção médica a vítima teria falecido.

Em resultado da atuação do arguido a vítima sofreu as lesões e sequelas, e mantém a necessidade de acompanhamento em consultas, o que também exacerba as necessidades de prevenção geral.

O dolo direto do arguido, que atuou de modo consciente, determinado e orientado por uma vontade de preenchimento de ambos os tipos de ilícito eleva, em ambas os crimes, a culpa.

Os antecedentes criminais, com condenações diversas, aumentam as exigências de prevenção especial, seja quanto ao crime de homicídio, seja quanto ao crime de violência doméstica.

Os crimes dos autos foram praticados quando o arguido se encontrava em liberdade condicional, o que não pode deixar de o desfavorecer.

Provou-se que, não obstante as suas múltiplas condenações, o arguido «parece evidenciar em relação à sua história de vida uma muito fraca ressonância crítica, pelo que estes contactos com o sistema de justiça, parecem não ter tido, até ao momento, qualquer tipo de impacto pedagógico e/ou dissuasor junto do mesmo, o qual continua a manter um discurso de não reconhecimento da problemática alcoólica, como elemento fortemente potenciador da prática criminal, desvalorizando também a esse nível as intervenções às quais foi constrangido a submeter-se, e que reputa de inúteis e esvaziadas de conteúdo».

Consta ainda da factualidade provada que o arguido «reconhece a prática criminal que lhe é imputada no presente processo, a qual contextualiza, num momento de grande tensão, em que terá reagido impulsivamente, num momento de total perda de controlo».

Nas suas relações locais, «a imagem do arguido é negativamente marcada pelos seus hábitos alcoólicos e por registar alterações graves de comportamento, tornando-se violento, quando alcoolizado».

Obviamente que as condições pessoais do arguido são reveladoras de fortíssimas exigências de prevenção especial.

As alegações recursivas- respeitantes a pretensos sentimentos manifestados pelo arguido, ao início e razão das discussões, e à postura da assistente na relação do casal - referindo-se em termos genéricos a matéria que teria resultado provada ou não provada, (sem, aliás, ser cumprido minimamente o ónus da impugnação especificada (art.º 412.º n.º 3 e 4 do CPP), resulta irrelevante.

No que respeita ao crime de homicídio invoca o recorrente diversos Acórdãos de Tribunais Superiores alegadamente justificativos da redução da pena de prisão pela prática do crime de homicídio.

Naturalmente, terem os arguidos nesses outros processos e nos presentes autos cometido o mesmo, ou os mesmos tipos de crime, não basta para se concluir que resultou violado o princípio da igualdade (art.º 13.º do Constituição da República Portuguesa).

Depende das circunstâncias dos casos, que o recorrente não alegou, nem provou serem as mesmas.

Também não se detetam razões, para a invocada violação ao disposto nos artigos 72º (atenuação especial), 73º (termos da atenuação especial) e 74º (dispensa da pena) do Código Penal.

Tudo considerado não merecem censura, não violando as regras da experiência, nem se revelam desproporcionadas, as penas parcelares que foram determinadas pelo Tribunal recorrido (desconsiderando o regime da agravação).

Concluímos pela condenação do arguido:

- Pela prática do crime de homicídio qualificado, na forma tentada, previsto e punível, nos termos dos artigos 22.º, 23.º, 131.º e 132.º, n.º 1 e 2, al. b) e i), todos do Código Penal agravado por uso de arma de fogo, nos termos do art. 86º n.º 1 al. c), n.º 3 e 4 da Lei 5/2006 de 23 de Fevereiro, na pena de 10 (dez) anos e 6 (seis) meses de prisão;

- Pela prática do crime de violência doméstica agravado na forma consumada, previsto e punível pelo art. 152.º, n.º 1, al. b), n.º 2 al. a), 4 e 5, todos do Código Penal, a pena de 2 (dois) anos e 9 (nove) meses de prisão;

Posto isto.

«Quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa pena única. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente» (art.º 77º nº 1 do CP).

No caso, a soma das penas aplicadas é de 16 anos e 7 meses. Portanto, a moldura do concurso tem o limite mínimo de 10 anos e 6 meses (a pena mais elevada das concretamente aplicadas) e o limite máximo de 16 anos e 7 meses.

O comando do art.º 77º nº 1 do CP determina que sejam considerados, na medida da pena única a aplicar, «em conjunto, os factos e a personalidade do agente».

No dizer de Jorge de Figueiredo Dias, «a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique. Na avaliação da personalidade - unitária - do agente relevará, sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma “carreira”) criminosa, ou tão só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta. De grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização)» -Cf. Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas Editorial Notícias, 1993, pág, 291.

No caso vertente considera-se a imagem global do facto é marcada pela natureza e número dos crimes em causa, essencialmente crimes que ofendem bens jurídicos pessoais (ou que representam um perigo, designadamente, para bens jurídicos pessoais); o período temporal em que ocorreram os crimes em concurso; o teor das palavras proferidas e as lesões/sequelas causadas.

Escreve-se no Acórdão recorrido:

«O arguido agrediu a companheira grávida com uma sachola nas costas. Agrediu a filha da companheira quando esta pretendia defender a mãe e estava com o irmão (nascido a ........2020) ao colo.

Efetuou cinco disparos na direção da cabeça e do tórax da companheira logrando atingi-la na zona auricular, no tórax do lado direito e região frontal do lado esquerdo, causando-lhe lesões nas zonas atingidas

O que fez de forma inesperada, retirando de forma repentina uma arma de fogo do bolso e disparando de imediato em direção à sua companheira, sem que nada o fizesse prever, impossibilitando assim à vítima qualquer hipótese de defesa ou reação, do que o arguido tinha plena consciência, decisão que executou, com total indiferença e insensibilidade.

Não obstante as suas múltiplas condenações, o arguido parece evidenciar em relação à sua história de vida uma muito fraca ressonância crítica, pelo que todos estes contactos com o sistema de justiça, parecem não ter tido, até ao momento, qualquer tipo de impacto pedagógico e/ou dissuasor junto do mesmo, o qual continua a manter um discurso de não reconhecimento da problemática alcoólica, como elemento fortemente potenciador da prática criminal, desvalorizando também a esse nível as intervenções às quais foi constrangido a submeter-se, e que reputa de inúteis e esvaziadas de conteúdo».

Tendo presente a moldura do concurso, reputamos como justo e adequado aplicar ao arguido uma pena única de 14 anos de prisão.

Vejamos então as questões que este STJ pode sindicar, já acima enunciadas.

1ª Questão (relativa à pena individual que lhe foi aplicada pelo crime de homicídio qualificado agravado pelo uso de arma de fogo, tentado)

Argumenta, em resumo, o recorrente, que o tribunal não teve em atenção que se tratou de uma tentativa e que aplicou uma pena exagerada, como se tivesse cometido um crime consumado, o que não sucedeu, devendo a pena situar-se próximo do limite mínimo (e não do limite máximo) da moldura penal, até considerando casos semelhantes (mesmo em casos consumados são aplicadas penas inferiores), não se mostrando a pena individual de 10 anos e 6 meses de prisão aplicada minimamente fundamentada, sendo desproporcionada, excessiva e injusta, devendo ser consideradas as concretas circunstâncias atenuantes que favorecem o arguido e ser-lhe aplicada pena nunca superior a 6 anos, por ser a decisão mais justa e desse modo se satisfazer as exigências de prevenção e ficar facilitada a sua reinserção social.

Invoca ainda o recorrente, algumas decisões, quer das Relações, quer do Supremo Tribunal de Justiça, e também a propósito da 3ª questão, alega que a pena que lhe foi imposta de 10 anos e 6 meses de prisão pelo crime de homicídio tentado é injusta e ofende o princípio da igualdade previsto no art. 13.º da CRP e o princípio da proporcionalidade previsto no art. 18.º, n.º 2, da CRP, devendo ser o excesso desigual que lhe foi aplicado corrigido pelo Supremo, para evitar a inconstitucionalidade da decisão recorrida, quanto a essa pena ilegal e desajustada que lhe foi imposta, como se tivesse praticado um crime consumado que não cometeu.

Vejamos então.

Como sabido, as finalidades da pena são, nos termos do artigo 40.º do Código Penal, a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade 10.

Na determinação da pena, o juiz começa por determinar a moldura penal abstrata e, dentro dessa moldura, determina depois a medida concreta da pena que vai aplicar, para, de seguida, escolher a espécie da pena que efetivamente deve ser cumprida 11.

Nos termos do artigo 71.º, n.º 1 e n.º 2, do Código Penal, a determinação da medida da pena, dentro dos limites fixados na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, atendendo-se, em cada caso concreto, a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a seu favor ou contra ele.

Diz Jorge de Figueiredo Dias 12, que “só finalidades relativas de prevenção, geral e especial, não finalidades absolutas de retribuição e expiação, podem justificar a intervenção do sistema penal e conferir fundamento e sentido às suas reacções específicas. (...) Prevenção geral, porém, não como prevenção geral negativa, de intimidação do delinquente e de outros potenciais criminosos, mas como prevenção positiva ou de reintegração, isto é, de reforço da consciência jurídica comunitária e do seu sentimento de segurança face à violação da norma ocorrida.”

Mais à frente 13, esclarece que “culpa e prevenção são os dois termos do binómio com o auxílio do qual há-de ser construído o modelo da medida da pena em sentido estrito”.

Acrescenta, também, o mesmo Autor 14 que, “tomando como base a ideia de prevenção geral positiva como fundamento de aplicação da pena, a institucionalidade desta reflecte-se ainda na capacidade para abranger, sem contradição, o essencial do pensamento da prevenção especial, maxime da prevenção especial de socialização. Esta (…) não mais pode conceber-se como socialização «forçada», mas tem de surgir como dever estadual de proporcionar ao delinquente as melhores condições possíveis para alcançar voluntariamente a sua própria socialização (ou a sua própria metanoia); o que, de resto, supõe que seja feito o possível para que a pena seja «aceite» pelo seu destinatário - o que, por seu turno, só será viável se a pena for uma pena suportada pela culpa pessoal e, nesta acepção, uma pena «justa». (…) A pena orientada pela prevenção geral positiva, se tem como máximo possível o limite determinado pela culpa, tem como mínimo possível o limite comunitariamente indispensável de tutela da ordem jurídica. É dentro destes limites que podem e devem actuar pontos de vista de prevenção especial - nomeadamente de prevenção especial de socialização - os quais, deste modo, acabarão por fornecer, em último termo, a medida da pena. (…) E é ainda, em último termo, uma certa concepção sobre a ordem de legitimação e a função da intervenção penal que torna tudo isto possível: parte-se da função de tutela de bens jurídicos; atinge-se uma pena cuja aplicação é feita em nome da estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada; limita-se em seguida esta função pela culpa pessoal do agente; para se procurar atingir a socialização do delinquente como forma de excelência de realizar eficazmente a protecção dos bens jurídicos”.

Depois, sendo aplicada pena de prisão, consoante o seu quantum (caso seja aplicada pena de prisão até 5 anos) impõe-se ao tribunal determinar se é caso de a substituir por uma pena não detentiva ou por uma pena detentiva prevista na lei.

Feitas estas considerações teóricas e analisando a decisão sob recurso no que respeita à fundamentação da referida pena aplicada ao arguido recorrente pelo crime de homicídio qualificado, agravado pelo uso de arma de fogo, tentado p. e p. nos arts. 22.º, 23.º, 131.º, 132.º, n.º 1, al. b) e i), todos do CP e nos termos do art. 86.º, n.º 1, al. c), n.º 3 e n.º 4, da Lei n.º 5/2006, de 23.02, com moldura abstrata de pena de prisão de 3 anos 2 meses e 12 dias a 16 anos e 8 meses, percebe-se bem a razão pela qual a Relação aplicou a pena de 10 anos e 6 meses de prisão, o que corresponde a pouco mais do triplo do mínimo legal da moldura abstrata do crime tentado por si cometido, a qual ao mesmo tempo se situa um pouco acima da metade do limite máximo da mesma moldura abstrata e, portanto, estando um pouco acima do ponto médio da moldura abstrata desse crime tentado cometido.

A Relação, tendo considerado não se verificar a agravante da reincidência e, por isso, afastando esse regime, concordou com a pena aplicada pela 1ª instância, mas sem a agravante da reincidência, de 10 anos e 6 meses de prisão, pelos motivos que indicou na decisão sob recurso, sendo certo que não detetou incorreções, nem que tivesse sido violado o princípio da igualdade (art. 13.º da CRP), nem tão pouco que houvesse razões para a invocada violação do disposto nos artigos 72.º (atenuação especial), 73.º (termos da atenuação especial) e 74.º (dispensa da pena) do Código Penal, tendo igualmente considerado que não havia violação das regras da experiência comum, nem que a pena aplicada se revelasse desproporcionada.

E, de facto, não merece censura a decisão sob recurso ora em apreciação, evidenciando-se que foram observados os princípios e normas aplicáveis, nomeadamente o disposto nos artigos 40.º, 70.º e 71.º do CP.

Assim.

Importava considerar que o arguido agiu com dolo direto e com consciência da ilicitude da sua conduta.

Essa culpa e dolo são intensos, tendo presente a ação concreta em questão nos autos, por si praticada.

A ilicitude dos factos apurados é elevadíssima, atento o seu modo de atuação, impondo-se que agisse de outro modo com a sua companheira.

Aliás, sem se utilizarem, para a escolha da pena, elementos que serviram para a qualificar o crime, a verdade é que dos factos apurados resulta manifesta a gravidade da atuação e forma como o arguido agiu em relação à vítima, quando a segurou pelo braço e disparou contra ela, na direção da sua cabeça e do tórax, 5 tiros, dos quais 3 a atingiram da forma referida nos factos provados, atuando de forma inesperada, repentina, impossibilitando-a de se defender ou reagir, sendo certo que não tinha motivos para essa sua atuação (nem havia motivos que justificassem minimamente a sua atuação).

A forma como atuou é muito grave, revelando uma maior desatenção à advertência de conformação ao direito.

De ponderar igualmente as consequências da sua conduta, que assumiram elevada gravidade, como se vê pelas lesões sofridas pela ofendida, dadas como provadas, que permanecem e não se mostram ultrapassadas, destacando-se, além do mais, que tem ainda uma bala alojada que não lhe foi retirada e, o que é certo é que, da conduta do arguido não redundou a sua morte (sendo certo que foi necessária entubação orotraqueal urgente e ventilação mecânica invasiva por compromisso da via área pela hemorragia) dada a pronta assistência médica de que beneficiou.

São muito elevadas as exigências de prevenção geral (necessidade de restabelecer a confiança na validade da norma violada), tendo em atenção o bem jurídico violado (a vida) no crime de homicídio qualificado tentado cometido, com arma de fogo transformada, que deve ser combatido com maior severidade, embora de forma proporcional à danosidade que causa e tendo em atenção as particulares circunstâncias do caso.

São também muito elevadas as razões de prevenção especial, atendendo ao que se apurou em relação às condições de vida do recorrente e personalidade desajustada aos valores sociais e à comunidade em que se insere, manifestando indiferença pelos bens jurídicos violados, destacando-se os de natureza pessoal, como sucedeu, com o desprezo manifestado pelo bem supremo da vida humana.

Pondera-se igualmente o seu comportamento anterior aos factos (com antecedentes criminais, designadamente, por crimes que envolveram violência física para com pessoas próximas, do seu anterior agregado familiar, a revelar uma personalidade violenta e desconforme em relação ao direito), bem como o comportamento posterior (sendo que, entretanto, esteve preso).

De notar que cometeu o crime ora em apreciação, quando gozava de liberdade condicional, o que evidencia que tem uma personalidade avessa ao direito e que não se deixou influenciar pelas condenações anteriores que sofreu.

Embora tendo como limite a medida da sua culpa, a necessidade de prevenir a prática de futuros crimes é essencial, sendo que o tipo de crime cometido, na forma tentada, ora em análise, revela bem as carências de socialização do recorrente e sua personalidade propensa ao crime que cometeu.

Considera-se igualmente o que se apurou em relação às suas condições pessoais, familiares (nomeadamente toda a fase de crescimento e percurso que foi seguindo), profissionais e situação económica, as quais não o impediam de ter escolhido uma vida conforme ao direito.

Igualmente se atenderá à respetiva idade (nasceu em 8.12.1977), quer à data do cometimento do crime, quer à data em que foi proferida a decisão da 1ª instância, ao tempo entretanto decorrido e, ao efeito previsível da pena sobre o seu comportamento futuro.

Ao contrário do que alega em sede de recurso, pelo que resulta do texto do acórdão recorrido, tendo em atenção a sua idade, crime cometido e posicionamento em relação ao crime cometido (não havendo sequer sinais exteriores de arrependimento ativo), verifica-se que, além de manifestar indiferença pelo bem jurídico violado, ainda não interiorizou o desvalor da conduta que praticou, não revelando sentido crítico.

Ainda, diferentemente do que invoca na motivação de recurso, as declarações que o arguido prestou em audiência, pelo que resulta do acórdão sob recurso, mostram que procurou desresponsabilizar-se em relação aos factos que praticou, não sendo relevantes para a descoberta da verdade, não tendo praticado atos demonstrativos de arrependimento ativo, nem tão pouco sendo reveladoras de estar determinado a mudar o seu rumo de vida.

Portanto, a 1ª instância ponderou todas as circunstâncias favoráveis ao arguido, sendo que a avaliação que este faz das suas declarações e propósitos em sede de recurso não encontram apoio nos factos apurados.

Também, faz-se notar que a jurisprudência citada pelo recorrente não tem aplicação neste caso concreto, até considerando as particularidades de cada um desses processos citados, os quais devem ser lidos com atenção, para melhor se perceber as diferenças em relação às circunstâncias particulares do sucedido nestes autos, como melhor se pode verificar da leitura dos factos dados como provados na decisão sob recurso.

Ora, como já se salientou da matéria de facto provada, ressaltam dois elementos que revelam, de forma impressiva, o caráter traiçoeiro da conduta do arguido, a sua fuga do local, abandonando a vítima à sua sorte, o que esvazia qualquer verbalização de arrependimento que, de qualquer modo, mostra-se desacompanhado da manifestação de atos de arrependimento ativo, para que pudesse ser atribuído diferente valor à sua atitude em relação aos factos ilícitos que cometeu.

Nota-se que o arguido tem antecedentes criminais, além de outros, por crimes contra a integridade física, tendo já cumprido penas de prisão, revelando ter uma personalidade violenta contra aqueles que lhe são próximos e que também já fizeram parte do seu agregado familiar.

No caso em apreciação, a aplicação de uma pena superior ao ponto médio da moldura penal abstrata encontra-se bem fundamentada e justificada, tendo sido (ao contrário do que alega o recorrente), adequadamente valoradas e, até de forma proporcional, as circunstâncias atenuantes e agravantes apuradas, não se justificando qualquer intervenção corretiva na pena individual aqui em causa que lhe foi aplicada pela Relação.

E, não houve qualquer confusão ou tratamento deste caso como se o crime cometido ora em análise tivesse sido considerado consumado em vez de tentado, como argumenta o recorrente.

Como se adianta no acórdão sob recurso, mesmo que em casos de crimes consumados ou até tentados, outros arguidos tivessem sido condenados em penas inferiores por decisões superiores, como invoca o recorrente, quando cita vários acórdãos, isso não significava que se tivesse de concluir pela violação do princípio da igualdade (art. 13.º da CRP).

É que tudo depende (como se refere no acórdão sob recurso) das circunstâncias de cada caso, sendo certo que “o recorrente não alegou, nem provou serem as mesmas”.

Lendo com atenção a jurisprudência citada pelo recorrente, até considerando as particularidades de cada um desses processos citados, melhor se percebe as diferenças em relação às circunstâncias particulares do sucedido nestes autos, como se pode verificar da leitura dos factos dados como provados na decisão sob recurso (sendo fácil de concluir que não há qualquer violação do invocado princípio da igualdade previsto no art. 13.º da CRP).

O facto de o tribunal não dar a mesma relevância que o arguido pretendia quanto às circunstâncias que se apuraram, não significa que tivesse feito uma avaliação errada ou incorreta.

O que se passou é que o arguido/recorrente parte de pressupostos errados, inclusive de factos não apurados e sobrevaloriza circunstâncias a seu favor indevidamente e de forma subjetiva, portanto, sem razão.

Assim, ao contrário do que alega o recorrente, todas as circunstâncias apuradas, inclusive as que lhe eram favoráveis foram devidamente ponderadas na decisão sob recurso, sendo-lhes atribuído o valor adequado e ajustado, não merecendo censura a avaliação que deles foi feita pela Relação.

Também, considerando todas as circunstâncias apuradas, igualmente não transparece que estejamos perante qualquer caso especial que justifique a atenuação especial da pena (cf. art. 72.º do CP) em relação ao recorrente.

Como ensina Jorge de Figueiredo Dias, «as situações a que se referem as diversas alíneas do nº 2 não têm, por si só, na sua existência objectiva, um valor atenuativo especial, tendo de ser relacionadas com um determinado efeito que terão de produzir: a diminuição acentuada da ilicitude do facto, da culpa do agente ou da necessidade da pena»15.

E, não é esse o caso dos autos (sendo de afastar qualquer atenuação especial da pena), como facilmente se alcança das considerações acima efetuadas, tendo presente os factos dados como provados, que também revelam a inadequação da aplicação de uma pena inferior à aplicada pela 1ª instância (como pretendia o recorrente), que se situa um pouco acima do meio do limite máximo da moldura abstrata do crime cometido ora em análise.

Como bem diz o Sr. PGA, no seu parecer, “o alegado (que consiste em insistência face ao pedido que anteriormente realizou junto do Tribunal da Relação) é totalmente inconsequente para os fins que o recorrente tem em vista: -- sendo errado no que se refere a ter sido punido como se tratasse de um homicídio consumado, pois que o acórdão partiu dos limites do crime tentado, agravado por utilização de arma, não os ultrapassando; -- estando igualmente errado quanto à comparação que efetua perante casos que apelida de similares, como se houvesse uma qualquer tabela a que devam obediência os julgadores, esquecendo que as penas são determinadas com base em inúmeras variantes que levam a que cada caso seja um caso; -- errado estando ainda quando afasta a relevantíssima função preventiva das penas, duma forma até algo estranha, ao pretender conferir apenas à sociedade funções preventivas da prática de novos crimes pelo arguido; e -- não podendo justificar com um simples apelo ao seu «estado de espírito» um pedido de condenação pelo mínimo previsto em abstrato para o crime.”

De qualquer modo, tudo ponderado, olhando aos factos apurados e tendo presente o limite máximo consentido pelo grau de culpa do arguido/recorrente, bem como os princípios político-criminais da necessidade e da proporcionalidade, julga-se adequada e ajustada a pena aplicada pela Relação, de 10 anos e 6 meses de prisão, que se mostra devidamente justificada e fundamentada.

Na perspetiva do direito penal preventivo, essa pena de 10 anos e 6 meses de prisão, mostra-se adequada, equilibrada e proporcionada em relação à elevada gravidade dos factos cometidos em apreciação, satisfazendo as finalidades das penas.

A pretendida redução da pena de prisão (sendo certo que, ao contrário do pretendido pelo recorrente, apenas podem ser atendidos os factos dados como provados e ao que deles se pode extrair) mostra-se desajustada perante as gravosas circunstâncias do caso concreto e comprometiam irremediavelmente a crença da comunidade na validade das normas incriminadoras violadas, não sendo comunitariamente suportável aplicar pena inferior à que lhe foi imposta na decisão sob recurso.

Em conclusão: improcede quanto a esta questão o recurso do arguido, sendo certo que não foram violados os princípios e preceitos legais por ele citados.

2ª Questão (relativa à pena única que lhe foi imposta)

Argumenta o recorrente que há erro e desproporcionalidade na fixação da pena única imposta (que foi de 14 anos de prisão), que considera excessiva, em resumo, não só por estar distante do limites mínimo da respetiva moldura abstrata, como por não ter atendido a circunstâncias que lhe são favoráveis, assim como por ter ultrapassado o grau de culpa do arguido.

Vejamos então.

Pressuposto essencial do concurso de penas (tal como decorre do disposto nos arts. 77.º, n.º 1 e 78.º, n.º 1, do CP) é a prática de diversos crimes pelo mesmo arguido antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles.

O designado “cúmulo jurídico de penas” não é uma forma de execução de penas parcelares, mas antes um caso especial de determinação da pena16.

A exigência de realização de cúmulo jurídico neste caso tem a sua explicação: basta atentar no disposto no art. 77.º, n.º 1, do CP, sobre as regras de punição do concurso, onde se estabelece um regime especial de punição, que consiste na condenação final numa única pena, considerando-se, “na medida da pena, em conjunto, os factos e a personalidade do agente”.

A justificação para este regime especial de punição radica nas finalidades da pena, exigindo uma ponderação da culpa e das razões de prevenção (prevenção geral positiva e prevenção especial), no conjunto dos factos incluídos no concurso, tendo presente a personalidade do agente17.

Na determinação da pena única a aplicar, há que fazer uma nova reflexão sobre os factos em conjunto com a personalidade do arguido, pois só dessa forma se abandonará um caminho puramente aritmético da medida da pena para se procurar antes adequá-la à personalidade unitária que nos factos se revelou (a pena única é o resultado da aplicação dos “critérios especiais” estabelecidos no mesmo art. 77.º, n.º 2, não esquecendo, ainda, os “critérios gerais” do art. 71.º do CP18).

Neste caso concreto, a pena aplicável (a moldura abstrata do concurso de penas, conforme o art. 77.º, n.º 2, do CP) tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos crimes em concurso (ou seja, 16 anos e 7 meses de prisão que corresponde à soma das penas de prisão individuais aplicadas) e como limite mínimo a mais elevada das penas individuais concretamente aplicadas aos mesmos crimes em concurso (neste caso 10 anos e 6 meses de prisão), o que significa que a pena única terá de ser encontrada na moldura abstrata entre 16 anos e 7 meses de prisão e 10 anos e 6 meses de prisão.

Repare-se que está em causa o concurso de um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, p. e p. nos artigos 22.º, 23.º, 131.º e 132.º, n.º 1 e 2, al. b) e i), todos do Código Penal agravado por uso de arma de fogo, nos termos do art. 86.º n.º 1 al. c), n.º 3 e 4 da Lei 5/2006, de 23 de Fevereiro, um crime de detenção de arma proibida, p. e p. no art. 86.º n.º 1 al. c) e e) conjugado com o art. 2.º n.º 1 al. j) x) n.º 3 al. p) e art. 3º n.º 1 e 2 al. l) todos da Lei 5/2006, de 23 de Fevereiro, um crime de violência doméstica agravado na forma consumada, p. e p. no art. 152.º, n.º 1, al. b), n.º 2 al. a), 4 e 5, todos do Código Penal e um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. nos artigos 143º, n.º 1 do Código Penal, devendo ter-se presente que o arguido já tinha antecedentes criminais, particularmente por crimes de violência doméstica (condenado em 40 meses de prisão suspensa que depois foi revogada, passando a cumprir a prisão), por detenção de arma proibida (condenado em multa de 2 anos suspensa com regime de prova) e por crime de ofensa à integridade física (condenado em 2 anos e 2 meses de prisão), chegando a cumprir penas de prisão, que o não motivaram a alterar o seu comportamento, como se viu pelo que se apurou nos factos dados como provados.

O desvalor das condutas do recorrente, o seu desprezo perante pautas mínimas de convivência societária, o facto de ter cometido o conjunto dos crimes em apreciação nestes autos no período indicado nos factos provados, apesar do que se apurou quanto às suas condições de vida (particularmente condições pessoais, familiares, laborais, sociais e económicas), revelam bem como o ilícito global agora em apreciação foi determinado pela sua propensão ou tendência criminosa, aliada à sua personalidade violenta.

De facto, considerando a sua idade e o seu comportamento (anterior e contemporâneo aos factos), vista a natureza e total de crimes cometidos (como decorre da globalidade dos factos em conjunto), modo como os executou e período de tempo em que desenvolveu a globalidade dos factos em apreciação, podemos afirmar que há uma adequação da sua personalidade aos factos cometidos, manifestada igualmente na indiferença que mostrou pelos bens jurídicos violados, reveladora de uma certa tendência para a prática dos tipos de ilícitos criminais cometidos.

A conexão entre os crimes em concurso, é de elevada gravidade, tendo de ser vistos no seu conjunto, considerando o espaço de tempo da sua atuação e a personalidade do arguido (avessa ao direito), que se mostra adequada aos factos cometidos, revelando tendência para a prática dos tipos de ilícitos criminais que executou, bem como não esquecendo, relativamente ao ilícito global, as elevadas exigências de prevenção geral (para reafirmar, perante a comunidade, a validade das normas violadas) e de prevenção especial (considerando todo o seu percurso de vida, apesar das oportunidades que foi tendo, mas que foi desaproveitando), sendo certo que nem sequer chegou a reparar os prejuízos causados, apesar das consequências gravosas causadas à vítima.

E, no juízo de prognose a fazer pelo tribunal não se vê que haja razões para reduzir a pena única (14 anos de prisão) que lhe foi imposta, considerando as suas carências de socialização e tendo presente o efeito previsível da mesma (pena única aplicada) sobre o seu comportamento futuro, a qual não é impeditiva da sua reintegração social, sendo conveniente e útil que vá interiorizando o desvalor da sua conduta, adote uma postura socialmente aceite e faça um esforço no sentido da sua auto-ressocialização.

Da consideração global de todos os factos apurados e da personalidade do arguido/recorrente não se extrai que se possa formular um juízo mais favorável ou que se justifique efetuar qualquer correção.

Na perspetiva do direito penal preventivo, julga-se na medida justa, sendo adequado, ajustado e proporcional manter a pena única de 14 anos de prisão (que não ultrapassa a medida da sua culpa, que é elevada), assim contribuindo para a sua futura reintegração social e satisfazendo as finalidades das penas.

A pretendida redução da pena única mostra-se desajustada e não era comunitariamente aceitável fazer qualquer correção à mesma, tanto mais que, como se viu, não padece de qualquer erro, tendo sido observados todos os critérios legais atendíveis e aplicáveis ao caso.

3ª Questão (inconstitucionalidade da decisão recorrida)

Invoca o recorrente que a decisão recorrida padece de inconstitucionalidade, por violação dos princípios da igualdade e da proporcionalidade, previstos respetivamente nos arts. 13.º e 18.º, n.º 2, da CRP.

Como já referimos a questão suscitada apenas poderá ser apreciada no que se relaciona com as duas penas acima referidas de que este STJ podia conhecer.

Pois bem.

Como decorre do que já acima referimos (que aqui se dá por reproduzido), não existe qualquer violação dos princípios da igualdade e da proporcionalidade, previstos respetivamente nos arts. 13.º e 18.º, n.º 2, da CRP, pelo que é errada a conclusão do recorrente no sentido da decisão recorrida padecer de inconstitucionalidade.

Em suma: improcede o recurso do arguido na parte que era possível analisar, sendo certo que não foram violados os princípios e as disposições legais respetivas invocadas pelo recorrente.

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III - Decisão

Pelo exposto, acordam nesta Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em:

- não tomar conhecimento do recurso do arguido AA, por inadmissibilidade legal, na parte em que foi impugnado o Acórdão da Relação, quanto à sua condenação pelo crime de violência doméstica agravado e quanto à sua condenação cível (face ao disposto nos arts. 399.º, 400.º, n.º 1, als. e) e f), 432.º, n.º 1, al. b), 420.º, n.º 1, al. b), e 414.º, n.ºs 2 e 3, do CPP e 671.º, n.º 3, do CPC, aplicável ex vi do art. 400.º, n.º 2 e n.º 3 do CPP);

- no mais, negar provimento ao recurso interposto pelo mesmo arguido.

Custas pelo recorrente/arguido, fixando-se a taxa de justiça em 7 UC`s.

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Processado em computador e elaborado e revisto integralmente pela Relatora (art. 94.º, n.º 2 do CPP), sendo assinado pela própria e pelas Senhoras Juízas Conselheiras Adjuntas.

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Supremo Tribunal de Justiça, 20.03.2024

Maria do Carmo Silva Dias (Relatora)

Ana Barata Brito (Juíza Conselheira Adjunta)

Teresa Almeida (Juíza Conselheira Adjunta)

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1. Transcrição, mas sem negritos.

2. Sobre a motivação da decisão de facto escreveu-se: C-MOTIVAÇÃO

  A convicção do tribunal formou-se no conjunto das declarações e prova testemunhal produzida em julgamento com os documentos e perícias juntas aos autos, conjugada com regras de experiência comum e do normal acontecer (cfr. art.º 127º do CPP).

  Assim, da prova documental junta aos autos cujo teor se dá qui por integralmente reproduzido, destacam-se:

  - Informação clínica de fls. 154 a 162 (episódio de urgência); fls. 200 (entrega do projétil retirado da face do lado esquerdo da assistente para entrega à Policia Judiciária); - Relatório de exame pericial de fls. 237 e ss de exame e recolha de eventuais resíduos de disparo efetuadas na viatura ligeira de mercadoria com matrícula ..-..-CZ; - Relatório de exame pericial do LPC de fls. 502 onde se concluiu pela presença de partículas compatíveis com disparo, manipulação ou proximidade a disparo por parte do arguido, sendo elas do mesmo tipo das partículas municiais deflagradas da marca Geco, calibre 6,35 mm Browning; - Relatório de exame pericial do LPC de fls. 505 e ss referentes a invólucros e munições; um deles com vestígios hemáticos na sua superfície, exibindo referências de ter sido retirado de BB, em 2021-05-06 e a sua escala de conclusão balística. - Relatório de perícia de avaliação de dano corporal de fls. 376 e ss./474 e ss/559 e ss. e relatório de avaliação de dano corporal final junto aos autos a fls 1128 e ss. Documental: A dos autos, designadamente: - Auto de notícia de fls. 23 e ss.; - Informação da PSP de fls. 30 relativamente à inexistência de registo de qualquer licença de uso e porte de arma ou autorização de detenção no domicílio, nem qualquer registo de arma em nome do arguido; - Relatório de ocorrência de fls. 31; - Relatório preliminar de exame ao local, de fls. 95 e ss; - Reportagem fotográfica de fls. 112 e ss., com destaque para a fotografia de fls 111 do braço de DD após agressão com vassoura pelo arguido; - Autos de apreensão de fls. 195 e 203; - Documento de fls. 200 (de entrega da bala alojada no rosto da vitima) e informação - Relatório de exame ao local de fls. 255 e ss.; - Auto de reconstituição de fls. 317 e ss com o qual foram confrontadas as testemunhas no decorrer do julgamento.; - Reportagem fotográfica de fls. 330 e ss.; - Elementos clínicos de fls. 359 e ss; 369 e ss./ 401 e ss./407 e ss./420 e ss./524 e ss./578 e ss./ fls. 780; - Assentos de nascimento de fls. 592 a 597-C; - Informação e documentos do TEP de fls. 604 a 645, 707 e ss.; - Certidão de fls. 719 e ss.; - Certidão de fls. 804 e ss. e de fls. 810 e ss.

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  - Relatório social e certificado do registo criminal do arguido devidamente atualizado, todos reproduzidos nos factos dados como provados.

  No tocante à prova pericial, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido, o Tribunal considerou os relatórios de avaliação do dano corporal em direito penal, realizado à ofendida, nomeadamente o último, de onde resulta, entre o mais, que a data da consolidação médico-legal das lesões é fixável em 03/09/2021; as lesões sofridas, também elas reproduzidas nos factos provados: no crânio, face e membro superior.

  No exame objetivo realizado em 18/06/2022, a examinanda apresentava 3 cicatrizes na cabeça, na face e no ombro direito e edema da hemiface esquerda visíveis a distância social.

  Por fim no relatório da perícia de avaliação do dano corporal em direito penal, o Quantum doloris fixável no grau 6/7 e o dano estético permanente fixável no grau 3/7.

  No tocante às declarações do arguido, será de referir que o mesmo não prestou declarações no 1º interrogatório judicial de arguido detido e, em sede de audiência de julgamento só o fez, a final, depois de produzida a prova.

  A assistente BB, solteira, desempregada, de 42 anos, ex-companheira do arguido, prestou declarações, explicou que no dia 5 de maio de 2021, tinha vindo do trabalho e a discussão foi por causa de uns papéis em que ela tinha mexido. Há 4 anos que viviam juntos. O arguido esteve preso em ... e a assistente ia visitá-lo. Os papéis eram dos “pagamentos” (vencimento) do trabalho que ele prestou. O arguido pedia nesses papéis, dinheiro adiantado aos patrões, mas não contribuía para as despesas da casa. O arguido foi a ... em dezembro, tendo regressado antes da Páscoa: tinha que vir para registar o menino (filho que têm em comum) com 14 meses. A assistente referiu que o arguido sempre lhe disse que filho não era dele “mas eu tenho a consciência tranquila”. No domingo anterior, o arguido levou-lhe o seu filho (com 15 anos) para um sítio onde decorriam “luta de animais” o levar a assistir a isso e que o arguido veio de lá embriagado. Nesse dia, o arguido disse à assistente que “acorda estava a rebentar para o seu lado”. Pouco tempo depois de estar na cadeia, o arguido veio assim, alterado, foi preso por uma outra queixa. Ao final da tarde, começou a dizer que não tinha obrigação de registar filho, chamando a assistente desde “puta” e “vadia”. A assistente estava sentada e “só lhe respondia” por ele não ajudar “nem com leite para o menino”. Tratou-a tão mal que a assistente começou a por as coisas dele para a carrinha em dois sacos. Dirigiu-se à carinha e quando foi buscar mais roupa, o arguido apontou-lhe uma pistola e, agarrando-a, dá-lhe um tiro por de trás. A assistente lembra-se do dia, à noite, em que viu o arguido a chegar ao pé dela com a arma e mostrando-a dizer “isto é a nossa salvação”. Passados uns tempos viu umas pessoas a rondar a carrinha. Foi quando o arguido saiu em liberdade condicional; a assistente conhecia a pessoa em questão por o ter visitado no Estabelecimento Prisional. Naquele momento, o arguido apontou-lhe com a arma e a assistente sentiu o barulho logo atrás da orelha. Sentiu que levou o tiro, deu passos e levou um segundo tiro no ombro e um terceiro foi na cabeça. Chamou a mãe que estava mais a frente e que não se apercebeu logo do que se estava a passar. Foi então que teve um “apagão”. Disse para chamarem a ambulância pois tinha levado um tiro. Quando a sua mãe passou, a assistente já tinha levado 3 tiros. No hospital acordou do estado de coma, “foi quando voltou a acordar”. No helicóptero teve dificuldades na traqueia, pressão como

  “se fosse fechar”. Naquele momento só sentia o “eco do seu filho a chorar”. Só se lembra do impacto das balas e de dizer à sua filha, “ajuda-me que eu já não aguento mais”. Permaneceu 4 a 6 dias em estado de coma. Ainda tem a segunda bala alojada. Antes deste episódio, durante o período da Covid, quando o arguido teve uma saída precária e ficou 30 dias em casa, a assistente estava grávida de 6 meses e ficava mal disposto, só de vir para o sofá da cozinha e o arguido trancava-lhe a porta do quarto. Para não se chatear, assistente não ligou a isso. Mas uma vez, o seu telemóvel estava bloqueado (por o arguido ter mexido nele) e como a assistente não tinha o PUK teve de comprar outro cartão. Foi logo motivo de discussão “pega lá isso”, tendo sido nessa ocasião que o arguido lhe deu com uma sachola nas costas. Estava grávida de 6 meses. A assistente estava dentro do seu carro, quando o arguido lhe bateu com um “sacho”. “Era nessas precárias ele tinha que estar lá, não podia sair de casa.”

  Referiu que os palavrões era muitas vezes. O arguido ligava à assistente, só para ver se ela estava a trabalhar, dizendo-lhe “vem à janela” para a controlar. Quando a assistente conheceu arguido não sabia que ele tinha processos em tribunal. Nas saídas precárias ou jurisdicionais, umas vezes vinha bem, mas depois, por qualquer motivo, havia logo discussão. Bastava a assistente falar com o vizinho, para o arguido já dizer que era o seu amante. Passado um tempo, o arguido pedia-lhe desculpa e prometia que ia melhorar. Referiu que o arguido veio para a sua casa antes de ficar preso. As despesas era a assistente quem as suportava. A situação da sachola nas costas, o arguido chamou a assistente de “puta” acusando-a de: “andas sempre a por me os cornos” sendo que, até quando a assistente saía à consulta com o menino, o arguido desconfiava dela.

  Ultimamente não havia um dia que o arguido não chegasse embriagado a casa. Quando veio de ... vinha “mais ou menos”, depois começou a desvairar. O motivo era os ciúmes. O período das saídas extraordinárias de prisão (ponto 10) foi durante o Covid. Quando terminaram a relação (ponto 11) a assistente esteve sem contacto com o arguido, até

  dezembro 2020 (cerca de meio ano), mas o arguido mandava-lhe cartas. A assistente tinha um número de telefone novo (teve comprar novo cartão) e o arguido mandava-lhe recados a dizer que precisava de falar com ela.

  Quando saiu em liberdade Condicional começou a “rondar” para “fazerem as pazes”, “criarem a criança que tem em comum”. A assistente não ligou e ele foi em finais de dezembro para .... Quando teve que ir a tribunal reconheceu a paternidade “voltou e os ciúmes também”. Refere que violento o arguido sempre foi, só que nessa altura, refere que já nem o reconheceu. Chamava-a “Puta” que “ia ter com outros homens”. Os nomes, expressões injuriosas proferidas, ou era no quarto ou à frente da sua mãe. Esta, ao princípio, não ouvia conversas e gostava muito dele. Só agora é que passou a dará razão à sua filha. Na presença dos filhos era quando eles vinham da escola. No dia em que a assistente quis por termo à relação (ponto 15), o arguido veio da “tasca” mais embriagado e muito sorrateiro, abeirou-se da assistente, dando-se a impressão que ao apertar o ombro, foi para lhe dar tiro por detrás. Não o viu a tirar a arma do bolso, só sentiu os 3 tiros. Só mais tarde soube que houve 5 tiros. A sua filha foi a primeira a chegar. Ouviu o enfermeiro a dizer que a sua filha tinha levado com uma vassoura e que precisava de ajuda. Não chegou a ver a arma. A assistente foi “aberta” do lado do maxilar para lhe ser tirada a bala. Só sentia a traqueia a fechar-se. A instâncias do Ministério Público explicou que conheceu o arguido antes de ele ir para a cadeia. Passado 3 meses, o arguido foi viver para casa dela, em .... A única discussão mais violenta foi só quando o arguido deu bofetada nos seus filhos. O arguido esteve 2 anos sem sair. Cumpriu mais de um terço da pena e começou a poder gozar de saídas. Havia lá um primo do seu ex marido que “lhe encheu a cabeça” e o arguido tinha ciúmes. Não sabe dizer datas, a discussão por causa de ciúmes, era por o arguido dizer que a assistente passava a vida fora de casa, o que não correspondia à verdade, pois refere que estava sempre no quarto à noite. Nessas alturas, o arguido não bebia. À frente da sua mãe, “era outra coisa”. Só agora é que a mãe tem a noção do que eu passava. A assistente descreveu o local onde levou os tiros, o primeiro tiro foi perto da cerejeira. Depois virou-se e levou segundo tiro no ombro, depois levou terceiro tiro perto do

  tanque. Virou para o lado dele outra vez e levou o terceiro tiro na cabeça e ai pediu ajuda a sua filha, que estava com o menino ao colo. A assistente ficou a estancar o sengue: nesse momento teve a noção que estava o QQ e o II, seus filhos. O seu menino estava ao colo da filha. Não se lembro de o ver mais. Os outros 2 tiros não se lembra deles. Com o tiro pensou que tinha ficado sem a orelha: o 1º tiro sentiu arma encostada a cabeça. Os outros não. Confrontada com fls 340, disse que da 1ª vez se agachou, foi quando levei o terceiro tiro na cabeça. Depois foi como se tivesse tido um apagão. A fls 329 reconheceu a carrinha de mercadorias, de caixa aberta, tela azul. Teve noção que podia perder a sua vida. Não há meio de se defender de um ato daqueles. O eco da sua cabeça era tanto que pensou ter perdido a orelha, conforme acima referido. Teve medo, sentiu o filho a chorar e a traqueia a tapar-se.

  No braço, ainda hoje, parece que “levou um choque” não o conseguindo levantar, com qualquer barulho, assusta-se logo. Do hospital regressou a casa mas sempre com medo do vento, como de alguém a passar à sua janela, Pedia ao filho para ir com ela ao quintal; o meio é pequeno é só a assistente e o seu vizinho. Muita gente se admirou com o que lhe aconteceu por não ser pessoa de confusões. A assistente manifestou ainda sentimentos de culpa como é próprio deste tipo de casos, dizendo que a culpa foi sua: “burrice minha, por estar a perdoar e chegar a este ponto”.

  Hoje o ambiente familiar não é o mesmo, os filhos têm medo. Na escola eram abordados pelos amigos e isso “faz-me sentir mal, eles não tem culpa”.

  A instâncias da Defesa, foi-lhe perguntado se quando o arguido regressava de ... se recebia dinheiro, tendo a assistente respondido que “nunca viveu à custa dele”. O dinheiro que o arguido tinha, era para ele ter dinheiro, para levar tabaco para cadeia. O arguido esteve 3 anos na cadeia e “estoirou dinheiro todo na borga com amigos”. O dinheiro que assistente la deixou foi para o seu tabaco. No que respeita à paternidade, a assistente exasperada, disse-lhe que se tivesse “dúvidas, que fosse fazer teste”. Dizia que o filho não era dele, mas no dia em que o arguido foi ao tribunal não pôs nada em causa.

  No dia 5 de maio (dia da discussão) os papeis em que esteve a mexer eram adiantamentos dos dias que trabalhava. Vinha la mencionado que ele pediu 300 euros adiantados.

  Reportada de novo, ao incidente da sachola disse de novo que estava sentada e o arguido deu-lhe me com sachola nas costas do lado do condutor para o outro lado. Filha tinha foto no telemóvel disso, das marcas com que ficou. Estava grávida de 6 meses (mais ou menos). Depois de acabarem a relação, o arguido foi para casa da sua irmã e depois para a cadeia. Voltou aborda-la quando saiu da cadeia. Depois do episodio da sachola, disse que nunca mais se deu com o arguido. A assistente sentia se a sufocar quando ele a perseguia no trabalho para saber dela. Era como quando lhe mandava SMS para ele ira buscar coisas a casa. Relativamente ao SMS que consta dos autos (junto com a contestação) não se lembra do seu contexto.

  *

  A testemunha DD de 22 anos, ..., solteira, referiu que o arguido vivia lá em casa há cerca de 6 anos. Não estava lá há muito tempo. Não se lembra quando foi preso. Não morava lá quando foi preso. Moravam na Rua .... Quando vinha da cadeia corria bem, sem conflitos. Passado uns tempos, começavam os conflitos, a discussão, os ciúmes, ficando o arguido alcoolizado em casa. A testemunha não estava em todas as discussões, “só ouvia”. Era no quarto deles: dizia à assistente que ela andava com outros homens. “Sei que andas a meter-me os cornos” que “andava com outras pessoas” que nem faziam parte do nosso quotidiano. Ás vezes, mesmo não estando alcoolizado, insultava a assistente chamando-a “puta” e de “vaca” e que a sua mãe não respondia.

  Com a pandemia, foi quando passou mais tempo em casa. Aquilo (precária) era renovado de 30 em 30 dias e o motivo era sempre o mesmo: a pulseira eletrónica era outro motivo de discussão. O arguido telefonava, mandava SMS. Saiu da cadeia e foi lá para casa. Sempre houve discussão, homens, dinheiro, comportamento dos seus irmãos, as saídas da assistente…

  O arguido saiu de casa por desconfianças e discussões. A testemunha nunca o presenciou a agredir a mãe. Testemunhou, contudo, o hematoma com que a sua mãe ficou por ter tirado fotografia às marcas com que ficou - com o seu telemóvel, quando esta foi agredida pelo arguido estando grávida, não sabendo se a apagou foto do seu telemóvel.

  Não sabe (não se recorda) quando é que o arguido saiu de casa, nem quando ele voltou. Costumava ouvir discussão. No dia 5 de maio: saiu do trabalho, discussão era por causa do dinheiro. Quem começou foi o arguido. Em casa comia e bebia. A testemunha também ajudo ao sustento da casa. A sua mãe entrou, foi buscar coisas ao quarto. Só se apercebeu quando a sua irmã gritava. Estava perto da janela mas não se apercebeu de o arguido a disparar. Já tudo tinha acontecido. Foram 5 disparos e a mãe foi atingida por 3 deles. Estava com menino ao colo e foi a correr dirigindo-se para o arguido. Apercebeu-se que ele tinha uma arma, e virou-se de frente a proteger o menino. Ficou com um corte no ombro (consignando-se que a testemunha apontou para o cotovelo) fez rasgo no braço presumindo que foi com uma vassoura que levou a pancada. Acudiu em auxilio da sua mãe e quando o arguido lhe bateu no braço, a ideia acha que era para acertar no menino. Ele não se dirigiu à testemunha. Mais ninguém a atingiu. A seguir ele foi se embora. A pistola era pequena. Não sabe em que mão o arguido a empunhava. O arguido fugiu e, nesse momento, o seu irmão fica com o menino e a testemunha vai ajudar a sua mãe.

  Foi confrontada com a Fotografia de fls 112 e a de fls 258: da carrinha cá fora. Fls 268: da cadeira de plástico branca ao fundo; a mãe estava na fotografia de fls 262 e o arguido estava de frente, um pouco mais para trás. Colocou-se no meio deles os dois. E foi atingida quando ele veio com a vassoura. Entregou então o menor e foi logo em auxilio da

  sua mãe, ajudando-a a ir em direção para caixote de lixo, a sangrar da cabeça, dando-lhe conselhos “para cada um seguir a sua vida”. Pensava que eram discussões banais. Nunca ouvi ameaças. Não contava com esse desfecho. A sua mãe ficava muito abalada com a situação, sentida. No que toca ao estado da mãe, no momento da intervenção médica teve medo, preocupada com os filhos. Tinha dor cabeça onde foi baleada, no ombro. Abalada psicologicamente, preocupada. Sentiu crise de ansiedade, teve de avançar com a sua vida. No que toca à vassoura partida pensa que houve propósito de atingir menino e que não era para si. Estavam todos a lanchar. Depois do barulho um dos seus irmãos meteu-se, antes de ela chegar. Quando chegou, o arguido já tinha disparado. A avó entrou em pânico. Mandou o arguido embora e que se continuasse ali podia acontecer algo á sua mãe.

  Referiu ainda que quando o arguido fugiu, ia com arma a apontar para todo lado.

  - II, 15 anos, estudante no liceu de ..., disse que a sua mãe levou tiros. Estava a chegar da escola, ouviu-os os dois a discutir.

  - EE, viúva, reformada 74 anos, conhece o arguido, a sua filha mora consigo na rua da ... e os seus 5 netos (DD, II, RR, FF e GG). O arguido morou lá desde que “começaram a andar”. Esteve 1 ano a morar lá em casa, Depois esteve preso 4 anos e quando saía de precária ficava sempre lá em casa. No Covid esteve lá 90 dias em casa.

  Quando acabou, teve isso com ela: “deu-lhe com enxada e depois pôs-se a andar.” Ele era ciumento. Quando a sua filha ficou grávida e quando ia às consultas e demoravam porque tinha que ficar repousada, quando chegavam a casa, o arguido dizia “a tua mãe foi fazer-te companhia, porque já foste com outro”, dizendo “Puta” e outros nomes. A testemunha nem acreditava, pois ele a si nunca a tratou mal e quando a sua filha lhe contava, ela nem acreditava. Uma vez o arguido estava a discutir com a sua filha e com a Nera (GG) e disse “porque queres essa merda” põe-no daqui para fora e ele foi às galinhas buscar enxada para lhe dar e a testemunha disse “por onde vai com enxada? Para dar na minha neta tem que me dar a mim”. Palavrões à frente dos netos e do pequenino que não percebia nada. A filha tinha que vir à janela de onde trabalhava, em frente perto de sua casa, por causa dos seus ciúmes. Discutiam “de vez em quando” e apelidava a assistente de “puta” tinha ciúmes dela. “Era o feitio dela”. No dia dos tiros, o arguido ainda lhe disse “nunca queres fazer paz comigo”. Dele a bater não viu. A única vez que viu, foi no dia em que ela se sentiu mal, grávida e veio beber água para a sala, ele trancou-se no quarto e tirou-lhe cartão do telemóvel, ele bloqueou-o por andar a mexer nele. Ele chegou a ir junto do carro (que a testemunha não viu, só ouviu vozes estranhas). “Pega lá o cartão e ela respondeu “mete-o pelo cu acima” a filha tinha o ombro negro e isso viu.

  Ela já tinha feito os sacos para ele se ir embora por não se portar bem: porque chegou bêbado na carrinha com o filho da ofendida. Nessa altura ele foi embora e passado um tempo, até que a sua filha “voltou a cair na asneira outra vez”. Estava lá para aí há 2 meses “quando foram os tiros.” A testemunha estava à entrada da cozinha. A filha e a neta GG estavam à direita. Os sacos estavam feitos desde no quarto desde domingo. A filha ia “dar umas horas numa casa de Turismo” e disse-lhe “estou cheia de o aturar” enquanto que o arguido dizia “Tu não queres é fazer as pazes por já teres outro”. A filha foi então buscar os sacos ao quarto e foi pô-los na carrinha. O arguido vai então ao encontro dela e foi por trás do lado direito. Viu a sua filha cheia de sangue e vê o neto dependurado numa enxada. Agarrada à parede foi ter com o neto dizendo ao arguido “deixa o meu neto”, altura em que o arguido foi para a carrinha com arma “virada para mim que nunca lhe fiz nada”. Ouviu o estrondo dos 5 tiros e só viu sangue a correr pela cara abaixo. Chamaram logo o INEM e ele fugiu logo. Não o viu a atingir a DD com vassoura, mas o cabo ficou partido no chão, no pátio de casa. O primeiro disparo foi a 5 m de distância da testemunha.

  Foi confrontada com a fls 95, da rua, fls 96, da entrada, 2ª foto do corredor, fls 98 carrinha que estava no início do corredor e a testemunha ao fundo, ao pé do caixote do lixo, sentada numa cadeira de plástico. Fls 100: sitio onde ocorreram os tiros. O arguido veio da porta do quarto deles do fundo e a filha veio com o saco de roupa para a carrinha. Quando a filha saiu, o arguido veio logo atrás dela, foi ao encontro dela, deixando-a passar e vai depois atrás dela, por trás, e foi quando lhe deu tiro. A 10 m do quarto. A testemunha viu tudo, a filha levou tiros e o arguido veio (fls 112) dependurar-se no “chasso” do neto. A Fls. 98 onde se vê seta no chão, o arguido estava aí com as mãos dependuradas na enxada do seu neto, não sabe quem agarrou primeiro. Ficou atordoada, pensou que a sua filha tinha morrido naquele momento. Confrontada com fls 107 disse que o arguido não disparou para si (na sua direção) mas que ainda lhe apontou. As vezes o arguido “até me virava contra a minha filha”. Depois é que veio a aperceber-se que ela tinha razões de o por fora de casa e que nem devia lá ter entrado. A testemunha disse, “Tão bem lhe fizemos, cheguei a depositar dinheiro para ele”. As arrelias começaram por ele não contribuir para as despesas da casa. Esteve em ... comprou carrinha, gastou dinheiro todo. A testemunha é que ia às compras com a sua filha e era ela quem pagava. A instancias do Advogado da Assistente disse que o arguido tinha ciúmes: a filha não se sentia bem, tinha vergonha, andava aborrecida sempre. Quando chegava a cara e dava-lhe um beijo o arguido chamava “impostora” se não dava, “desconfiava dela”. Ainda hoje se sente constrangida: se tiver de sair de casa “ela sente o fulano sempre atrás dela”. Ainda hoje não se sabe se vai ser operada para tirar a bala do “peito”, na cara ainda sente dor. O ambiente agora até ficou mais calmo, mas ela tem medo que um dia ele volte a fazer o mesmo. A instâncias da defesa disse que os ouvia discutir. Ele já esta “em estorno na casa”. As filhas também se apercebiam. Nunca se pôs atrás da porta para ouvir o que diziam. Era tudo na base dos ciúmes, começava a zaragata: ele não dava dinheiro para a casa. Ela não precisava que ele desse para os seus filhos, mas para o seu próprio filho, sim, “em vez de ir para a borga com os colegas”. A discussão começada pela filha, era quando ela já não o queria lá. Era muitas vezes que ele bebia uns copitos. No dia 5 de maio discussão começou cá fora. Ela não entrou no quarto nesse dia, veio com filha e sentou-se ao pé da testemunha. Não discutiram “nada de “nada” só pelo papel do patrão e ele disse que o tinha filmado (a posição do papel) para saber se ela tinha mexido no papel. Ele depositava dinheiro quando estava em ..., dois meses 2000 euros mas ele recebeu mais quando andou lá. A filha ainda lhe carregava telemóvel dele com o dinheiro dela, quando ele vinha tinha o dinheiro todo contado “certinho”. Na cadeia ele nem dinheiro tinha para o tabaco já o tinha gasto todo. A instâncias do Tribunal, questionada sobre o episodio do ombro, a testemunha disse que a marca no ombro, a ofendida explicou à Testemunha que tinha sido com uma enxada que o arguido lhe fez aquilo.

  *

  -- SS, solteiro, inspetor da PJ, instrutor do processo, acompanhou reconstituição e os Colegas da Policia Marítima no ...: houve outras coisas apreendidas, vassoura partida, toalhas sujas, fotos tiradas pelo perito de criminalista na sua presença TT. A arma não estava no local, eventualmente, foi atirada ao rio, devido à proximidade do ..., mas nunca mais foi localizada.

  Através das munições conseguiu-se apurar que seria uma arma que disparava munições 6,35 mm, por os invólucros serem desses. Não sabe quantos invólucros, mas que consta da reconstituição. Nela, esteve presente (assim como a ofendida, as testemunhas, os advogados das partes, o Ministério Público). Os disparos foram quase “à queima roupa”.

  Não se recorda da distância específica, mas consta dos autos. O arguido não estava lá, mas entregou-se voluntariamente às autoridades nos dias seguintes.

  *

  A testemunha de Defesa UU casado, empreiteiro agrícola nas vinhas do ..., 41 anos, amigo do arguido. Conhece-o de ..., do concelho, por ter trabalhado para si, no ..., há um ano, depois foi preso, respeitador com colegas. Sabe que tem companheira, a si nunca lhe contou nada, pedia-lhe dinheiro para as necessidades, não se sabe se para tabaco. Soube o sucedido pelas noticias. Nunca lhe passou pela cabeça que tal pudesse acontecer. Quando tem trabalho, está disposto a dar-lhe.

  VV, casado aposentado da GNR militar. Conhece o arguido de ..., há muitos anos, saúdam-se, dá-se com a toda a gente, não tinha nada que dizer dele. Recentemente, por ter um estabelecimento de bebidas, café, costumava vê-lo por lá por ser frequentador, o Café fica próximo da casa dele, a cerca de 7 a 8 km. Quando saia do trabalho, ia lá, ultimamente sozinho. Nunca me faltou ao respeito, pedia “minisita”, tabaco. “Bêbado”, nunca o viu. No dia dos tiros esteve no seu Café, pediu-lhe uma cuca (cerveja média de 33 cl).

  Esporadicamente levava dois meninos consigo, mas ultimamente ia sozinho.

  *

  Já depois de toda a prova produzida, o arguido quis prestar declarações para dizer que está arrependido, “assumindo os crimes que cometi”, “o dos tiros”. Disse conhecer a assistente desde 2016, uns dias antes das Festas ... em agosto tendo, desde então, passado a viver juntos na Rua... em ..., até ..., com os

  quatro filhos e juntamente com a mãe da assistente, EE. Referiu que depois passou a andar a trabalhar no “pinhão” (na apanha) e que tinha “uma gaiola de pombas à porta de casa” e que ficou preso desde 2017 a 2020. Em 2016, o arguido disse que terminaram o relacionamento e que a assistente “dois ou três minutos depois já lhe estava a mandar SMS”. Durante a reclusão, nas “saídas precárias” (e nas jurisdicionais) vinha a casa da assistente. Refere que numa altura a assistente teve uma discussão com uma irmã do arguido e que depois disso, só lhe chamava nomes (ao arguido). Este contudo, nega que lhe tenha chamado nomes e que a tenha atingido, no interior do carro, com um ferro nas costas, estando ela grávida.

  Nesse dia, 12-07-2020, o arguido disse ter mandado os seus dois filhos a casa da ofendida para estes lhe trazerem as suas coisas, foi de sábado para domingo e a ofendida não dormiu no quarto.

  O telemóvel da ofendida estava sempre a tocar na mesinha de cabeceira e o arguido diz que conseguiu ler um SMS com a palavra “amor” escrita, mas como o telemóvel tinha código não pôde ver mais nada. A ofendida “pelas suas contas” estava grávida de 4 meses (e não de 6 meses) começou então aos berros a chamar-lhe “este filho da puta” e mentindo à sua mãe, disse-lhe que o arguido lhe tinha batido. Foi aí que terminou a relação e o arguido foi para o Estabelecimento Prisional.

  Já em março de 2020, pelo telefone, reataram a relação e em 19-12-2020 o arguido foi trabalhar para .... Em ...-...-2020 o filho já tinha nascido. Não bebeu no dia dos factos, pois diz que o seu trabalho implicava conduzir um trator. No dia 24 de abril recebeu um SMS da BB que andava no quintal com a sua mãe e foi então que ouviu esta última a dizer “não digas nada ao homem”. Na segunda feira antes a assistente tinha discutido consigo dizendo “que saísse” (de casa) tendo-lhe o arguido respondido que “para debaixo da ponte não vou”. Disse ainda que no dia 05-05 pelas 16h20 tinham combinado ir à mata. A mãe da ofendida, EE, estava à porta de casa dela, sentada no banco dos cepos, dizendo “deixe para lá isso”. Aí o arguido diz que quando vai para o quarto, a BB “começa aos berros comigo”. Nesse momento, a DD estava na cozinha com o menino (o FF). O arguido dirige-se então ao quarto da BB e que as suas coisas estavam ao monte, enquanto a ofendida dizia “já é hoje.”

  O arguido foi então até à mata e “ela sempre em cima de mim”, “fui então a um Café comprar tabaco, deviam ser 17h00”, e que foi então que a BB começou a dizer “tunem pai deste és”; “foi aí que fui buscar a arma, fui “encoimado” e quis o dinheiro que lhe mandei para a conta”.

  Enquanto isso, disse que a ofendida continuava a chamar “Ó corno do caralho, é agora que te vais embora” e foi aí que eu dei “pum pum” no momento em que passavam um pelo outro, esclarecendo que “se ela passasse sem dizer nada, isto não aconteceria”. Disse também que foi buscar a arma “porque a queria levar comigo”. Nega ter agarrado a ofendida (nesse momento): “ela vinha a caminhar na minha direção e eu ia para baixo, a 2 metros de distância.” “ Aquilo foi sempre a andar”. Admite ter disparado 5 tiros, “estava ceguinho de todo” (querendo significar que estava obnubilado pela irritação). Admite ter atirado para a ofendida, para a atingir, mas que não sabe onde acertou. Seguiu depois para a carrinha e quando olha para trás, aí só vê a EE com os braços ao ar. Não se lembra da DD aparecer com o bébé ao colo. Nega que nesse momento tivesse “dado no braço desta, com o cabo da vassoura”. Levou a arma consigo e “botei-a ao ...”, num sítio que fica debaixo da ponte a 1, 5 Km / 2 km. Não tinha licença de porte e uso da arma, esta ciente disso. Diz que tinha a arma desde 2011 / 2012.

  Depois disso, perguntou ao irmão como é que estava a assistente e um sobrinho conseguiu “falar estava bem” apesar dos 5 tiros. Disse ainda que ligou para o ... e que se ela “tivesse morrido, também me tinha matado”, “são horas”. Disparou a 2 m dela: “foi um momento de cabeça perdida”. Quanto à arma, questionado, disse que a comprou na feira, mas que não sabia se era uma arma transformada, “não sei o que quer dizer.” Custou-lhe € 120,00 “das boas era 100 e tal contos”, o que dizem “é modificada”. A arama estava guardada junto ao carneiro. “Eu ia em direção à carrinha e ela para casa.” “O tiro foi assim de lado”, “não foi atrás dela” disseram-lhe os filhos).

  Disse também que não lhe bateu com a sachola, nem lhe bloqueou o telemóvel: “aquilo tinha códigos e eu não sabia os códigos”. A ofendida começou a berrar consigo e a EE dizia “sempre a berrar com o homem”. Não lhe viu marca no ombro. Disse que pediu dinheiro adiantado ao seu patrão para não ter de pedir a ofendida. Nega ter regressado a casa alcoolizado com o filho da assistente, II. Os sacos estavam feitos no dia 5 de maio. Quando a ofendida berrava consigo, o arguido fazia de conta que não ouvia (por isso nega discussões) “foi sempre ela que me provocou”.

  A instâncias da sua ilustre defensora disse que foi perfilhar o menino ao tribunal de ... e aí a relação piorou entre ambos: “todos os dias me chamava nomes, fazia de mim um cão.” “Mudou radicalmente, o comportamento dela, a desprezar-me”. Se lhe perguntasse onde ela ia, a ofendida respondia-lhe “a cheirar-me o cu”. O arguido, acabou por instaurar uma ação de impugnação de paternidade para dissipar dúvidas. A arma disse que a comprou, juntamente com outra, ao WW “cigano” quando lhe comprou um cavalo, “por ficar em conta”. A outra arma entregou-a à GNR.

  *

  Aqui chegados, enumeradas todas as provas produzidas, das quais se deu nota do respetivo conteúdo, no que se reporta, em concreto aos factos descritos nos pontos 9- e ponto 10- dos factos provados, pese embora o arguido tenha negado ter “chamado nomes” à assistente e que a tenha atingido com um ferro ou um sacho nas costas, estando ela grávida, acrescentando mesmo que esta mentiu à sua mãe, ao dizer-lhe que o arguido lhe tinha batido, na verdade a versão do arguido não mereceu credibilidade, tendo em conta a restante prova produzida, conforme passamos a explicar.

  Desde logo, diga-se que o arguido não deixou de ser ele próprio a descrever episódios que o levaram a desconfiar da sua companheira e a gerar cenários de discussão (v.g. o SMS com a palavra “amor” que ele diz ter visto passar no visor do telemóvel da assistente), além de ter descrito diversas outras situações que o levaram a discutir com a assistente e a bloquear o telemóvel da assistente (ao tentar aceder ao teor das mensagens, sem código), gerando-se discussões, ás vezes presenciadas ou indiretamente assistidas ou ouvidas pelos restantes membros da família, o que nos levou a perceber que o arguido começou a desenvolver ciúmes relativamente à assistente, o que nos leva a acreditar mais na versão da assistente do que na do arguido, em matéria de expressões injuriosas de que a mesma foi alvo.

  O mesmo se dirá relativamente ao episodio indicado em 10-: a assistente disse que estava sentada no seu carro, quando o arguido se abeirou da mesma, desferindo-lhe uma pancada com o cabo de uma sachola (ou um sacho) nas suas costas, junto ao ombro, tendo o gesto do arguido sido perpetrado do lado do condutor, em direção ao outro lado; a assistente estava grávida de cerca de 6 meses e a sua filha DD tirou-lhe uma fotografia ao hematoma com que ficou no ombro na zona das costas. Ora, a testemunha DD, de 22 anos, apesar de ser filha da assistente e também ela ofendida nos autos, prestou um depoimento isento, imparcial que mereceu em tudo credibilidade, nomeadamente, quando confirmou, além de tudo o mais, ter tirado fotografia ao hematoma com que a mãe ficou, só

  não sabendo se ainda tinha guardado tal fotografia. Também a testemunha EE, mãe da assistente, também ela isenta e credível, admitiu que no inicio, nem queria acreditar e evitava meter-se na “relação deles” e intrometer-se nas suas discussões. Contudo, a instâncias do Tribunal, quando questionada sobre o episódio do ombro, esta testemunha viu o hematoma no ombro da assistente, tendo-lhe dito a sua filha que foi com uma enxada que o arguido lhe fez aquilo. No que respeita ao episódio ocorrido no dia 5 de maio (pontos 14- a 21- dos factos provados) temos para nós que cada um dos intervenientes processuais trouxe um recorte dos factos que vivenciou, o que nos permitiu dar como provados a globalidade destes factos.

  Não será de somenos relembrar que nestes episódios que envolvem a prática de atos violentos e com a utilização de uma arma de fogo, quem os presenciar, vive e descreve o momento conforme o seu ressentir.

  No caso presente, o arguido quando quis prestar declarações depois da prova produzida, foi para dizer que estava arrependido, “assumindo os crimes que cometi”, a saber “o dos tiros”.

  Quanto ao facto de o arguido dizer que no dia dos factos não estava “bêbado”, porque “o seu trabalho implicava conduzir um trator” não nos convenceu: os factos do dia 5 de maio ocorreram às 18h35 e todos contrariaram tal facto.

  Foi o próprio arguido que fez um somatório de todos os factos e situações que antecederam aquele dia, num crescendo que o levaram a reagir daquela maneira: a assistente tinha-o mandado sair de sua casa, pondo a sua roupa em sacos, ao monte, referindo ainda que esta chegou mesmo a pôr em causa a própria paternidade do filho, levando-o a suspeitar disso mesmo e a instaurar uma ação de impugnação da paternidade e que, já há alguns dias, andava a ouvir comentários sobre isso. Por isso, não nos convenceu o arguido quando declarou que “só fui buscar a arma para a levar comigo”. De facto, o arguido foi dizendo que naquele dia, em que a arguida lhe ordenou que saísse de casa, a assistente “estava sempre em cima de mim” e que por isso “fui então a um Café comprar tabaco, deviam ser 17h00” e que “foi então que a BB começou a dizer “tu nem pai deste, és” e que “foi aí que fui buscar a arma, fui “encoimado” e naquele momento só queria dinheiro que lhe mandei para a conta”, o que logo indicia que o arguido estava já demasiado irritado e que com “a cabeça quente”, daí decorrendo que se poderiam seguir atos da natureza daqueles que vieram efetivamente a ocorrer. É o próprio arguido que diz que a assistente continuava a chamá-lo “Ó corno do caralho, é agora que te vais embora” e que “foi aí que eu dei “pum pum” no momento em que passavam um pelo outro, acrescentando que “se ela passasse sem dizer nada, isto não aconteceria”. O arguido admite ainda ter disparado para a assistente, para a atingir, mas que não sabe onde acertou, e ainda que negue ter segurado a assistente no momento do disparo, tudo o resto o contradiz.

  De igual modo, o facto de o arguido negar os factos 18- e 19- reportados à ofendida DD, quando existem relatórios da perícia de avaliação do dano corporal em direito penal de fls 359 e ss e bem assim uma fotografia de uma lesão bem visível no antebraço direito, conforme resulta do relatório de reportagem fotográfica de fls 112 realizado pela Polícia Judiciária, são bem reveladores de que a sua versão não merece qualquer credibilidade.

  No toca à forma como os factos ocorreram, as regras da experiência ditam que os factos tenham nesta parte ocorrido, tal como os descreveu a ofendida DD, que acudiu ao local em socorro de sua mãe, sendo de referir que a testemunha EE, apesar de referir que não viu o arguido a desferir a pancada na DD, a mesma não deixou

  de precisar que viu o cabo da vassoura partido no chão (do crime).

  Isto para concluir que as declarações da assistente, como da ofendida DD, neste caso encontram-se amplamente corroboradas por todos os restantes elementos probatórios, nomeadamente por prova pericial.

  No mais, a prova produzida em geral contradiz as declarações de negação do arguido, de alguns dos factos, desde logo por não só, não encontrarem o mínimo de sustentação, como surgem grande parte das vezes contrariadas por outros elementos de prova fidedignos, bem como pelas regras da experiência comum.

  Por fim, dir-se-á que o arguido, ao escolher prestar declarações a final, no final da prova produzida, acabou por admitir todos os factos que evidentemente não pôde negar.

  Todos os demais factos dados como provados dos pontos 1- a 5- resultam de certidões e de informação relevante atinente aos diversos períodos de privação da liberdade em cumprimento de pena de prisão pelo arguido prestada pelo TEP e que permitiram ao tribunal aferir da verificação dos pressupostos formais da reincidência, com relevo também para a prova dos períodos de concessão de saídas precárias, jurisdicionais e para o período extraordinário de Covid, em que o arguido se manteve, ininterruptamente, estes num total de 90 dias em casa da assistente com toda a sua família. Período este muito conturbado, defluindo do depoimento da testemunha DD que quando o arguido vinha da cadeia corria bem, sem conflitos. Passado uns tempos, só havia conflitos, discussão, ciúmes do arguido, alcoolizado em casa. Esta testemunha não estava presente em todas as discussões, como ouvia: “Sei que andas a meter-me os cornos”, insinuando que a assistente andava com outras pessoas, “que nem faziam parte do nosso quotidiano” e que às vezes, mesmo não estando alcoolizado, insultava a assistente chamando-a “puta” e de “vaca” e que a sua mãe não respondia. Com a pandemia, foi quando passou mais tempo em casa: “aquilo (da precária) era renovado de 30 em 30 dias e o motivo era sempre o mesmo: a pulseira eletrónica era outro motivo de discussão. O que nos convenceu sobre a veracidade dos factos descritos em 9-, já sobejamente descritos e invocados pela própria assistente.

  Todos os demais factos referentes à coabitação e à forma como a relação decorreu entre o arguido e a assistente, são factos confessados pelo próprio arguido e consentâneos com a prova produzida pelos restantes membros da família.

  A prova do dolo do arguido fez-se a partir da análise do conjunto da prova produzida e com as regras da experiência comum e da normalidade da vida, em face das atuações desenvolvidas pelo arguido e das circunstâncias em que as mesmas tiveram lugar.

  Por isso, face ao manancial de elementos probatórios constantes dos autos e à prova produzida a que supra se fez referência detalhada, se considerou que a mesma foi apta a formar a convicção do Tribunal quanto à verosimilhança dos factos considerados como provados.

  Relativamente aos factos provados do pedido cível, o Tribunal ponderou e considerou o depoimento da assistente e das testemunhas acima referidas prestados em audiência de julgamento, com destaque para o facto de, termos de levar em consideração que, em resultado do disparo, foi identificada e detetada uma bala alojada na região malar esquerda

  da assistente, sendo de referir que a assistente estava a ser ainda seguida em consultas de ortopedia para realizar uma eventual extração de projétil alojado no ombro direito, sem que soubesse ainda se tal remoção poderia ou não alterar o estado funcional de tal membro.

  De resto, tendo em conta os factos objetivos apurados relativos aos tipos de ilícito em causa, concluímos que os mesmos se mostram absolutamente justificados pelas regras da experiência comum, sendo, ademais, concatenados com o teor dos documentos clínicos e prova pericial realizada.

  Quanto ao demais vertido quer na acusação, quer no pedido de indemnização civil deduzido pela assistente, quer ainda na contestação (à acusação e ao pedido cível), que não se encontre elencado nos factos provados ou não provados, deve-se ao facto de se tratar ou de repetição dos factos constantes da acusação ou de considerações de direito ou conclusivas, desacompanhada de prova documental, nalguns casos (nomeadamente quanto a datas) sendo que sobre tais matérias não poderá recair qualquer juízo probatório.

3. Entre a variada jurisprudência citada no parecer do Sr. PGA, destacam-se, os acórdãos do STJ de 24.11.2022, relatado por Helena Moniz e de 30.11.2022, relatado por Lopes da Mota. Como se assinala neste último citado acórdão “Em jurisprudência firme, tem o Tribunal Constitucional sublinhado que o artigo 32.º, n.º 1, da Constituição «não consagra a garantia de um triplo grau de jurisdição», isto é, de «um duplo grau de recurso», «em relação a quaisquer decisões condenatórias» (cfr. por exemplo, os acórdãos 64/2006, 659/2011 e 290/2014 do TC; assim, nomeadamente, os acórdãos de 9.10.2019 cit., de 14.03.2018, ECLI:PT:STJ:2018:22.08. 3JALRA.E1.S1.48 e de 12.12.2018, Proc. 211/13.9GBASL.E1.S1, www.stj.pt/wp-content/uploads/2019/06/criminal_ sumarios _ 2018.pdf, bem como o acórdão de fixação de jurisprudência n.º 14/2013, n.ºs 11 e 12).”

4. O juízo confirmativo garante o duplo grau de jurisdição consagrado pelo art. 32.º, n.º 1 da CRP, não havendo, assim, violação do direito ao recurso, nem tão pouco dos direitos de defesa do arguido (arts. 32.º, n.º 1 e 20.º, n.º 1, da CRP).

5. Ver Ac. TC (Plenário) n.º186/2013, acessível no site do Tribunal Constitucional. O mesmo entendimento é seguido, por exemplo, nos Ac. do TC n.º 212/2017 e n.º 599/2018.

6. Ver, entre outros, Ac. do STJ de 9.06.2023 (Helena Moniz) e ac. do STJ de 18.11.2020 (Nuno Gonçalves), consultados no site do ITIJ.

7. Artigo 671.º (art.º 721.º CPC 1961) Decisões que comportam revista

  1 - Cabe revista para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão da Relação, proferido sobre decisão da 1.ª instância, que conheça do mérito da causa ou que ponha termo ao processo, absolvendo da instância o réu ou algum dos réus quanto a pedido ou reconvenção deduzidos.

  2 - Os acórdãos da Relação que apreciem decisões interlocutórias que recaiam unicamente sobre a relação processual só podem ser objeto de revista:

  a) Nos casos em que o recurso é sempre admissível;

  b) Quando estejam em contradição com outro, já transitado em julgado, proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, salvo se tiver sido proferido acórdão de uniformização de jurisprudência com ele conforme.

  3 - Sem prejuízo dos casos em que o recurso é sempre admissível, não é admitida revista do acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida na 1.ª instância, salvo nos casos previstos no artigo seguinte.

  4 - Se não houver ou não for admissível recurso de revista das decisões previstas no n.º 1, os acórdãos proferidos na pendência do processo na Relação podem ser impugnados, caso tenham interesse para o recorrente independentemente daquela decisão, num recurso único, a interpor após o trânsito daquela decisão, no prazo de 15 dias após o referido trânsito.

8. Consta da decisão da Relação sobre as questões colocadas em matéria cível:

  1. OMISSÃO DE PRONÚNCIA QUANTO A PARTE DO PEDIDO CÍVEL

  Lido o Acórdão se constata que apenas foi fixada indemnização resultantes dos disparos, e não também dos insultos e da agressão com a sachola, tal como se pretende no requerimento de indemnização cível.

  Como assim é, verifica-se a nulidade prevista na alínea c) do n.º 1 do art.º 379.º do CPP, a qual se impõe suprir neste Tribunal de Recurso, que para o efeito, como se verá (na apreciação da questão 6), dispõe dos necessários elementos para a decisão.

  2. FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO NO QUE RESPEITA À ESCOLHA E FIXAÇÃO DAS PENAS E À FIXAÇÃO DA INDEMNIZAÇÃO

  No entender do recorrente o Acórdão recorrido enferma de nulidade por falta de fundamentação no que respeita à escolha e fixação das penas parcelares e única e à fixação das penas acessórias.

  (…)

  Por fim, alega o recorrente que o Tribunal a quo «apesar de ter tecido várias considerações de direito» quanto ao instituto da reparação em direito penal, «acabou por fundamentar a referida decisão de forma insubsistente e parca, inexistente, na verdade, o que equivale, em termos jurídicos, a falta de fundamentação», o que, a seu ver «consubstancia uma nulidade processual». Vejamos.

  Tal como pode ler-se no Acórdão desta Relação proferido a 30.11.2022 (266/21.2JAVRL. C1): «Sinteticamente, e no que respeita à fundamentação jurídica, consideramos que, «fundamentar uma decisão é construir um raciocínio válido logicamente onde uma premissa faz referência a uma norma jurídica geral, outra a considerações empíricas que se devem basear nos factos provados, sendo a conclusão a própria decisão»- Cf. Sara Rodrigues, O dever de fundamentação das decisões proferidas pela Autoridade da Concorrência em Processo Sancionatório, disponível in Julgar.pt/wp- content/uploads/2014/07/dever-defundament-das-decisoes-proferidas-pela-autorid-concorrenc.pdf,p. 8.

  O caso particular deve ser interpretado, analisados os seus elementos e identificados aqueles que podem ser os fatos operativos de uma ou mais normas do ordenamento jurídico.

  Se as circunstâncias do caso particular corresponderem aos fatos operativos previstos na norma de direito, ou seja, se o caso particular for um exemplar da norma geral, a conclusão será a consequência normativa dessa norma. Nem sempre a fundamentação longa e exaustiva é necessária.

  Esta possibilidade, contudo, não significa ausência de fundamentação, mas, sim, motivação suficiente na medida da importância do thema decidendum, considerando-se, sempre a situação concreta.

  Manifestação de insuficiência na indicação das razões de decidir consiste na referência genérica a dispositivos de lei sem a presença de um discurso legitimador da intervenção judicial que indique claramente o substrato fático que o juiz está subsumindo à regra referida.

  Assim, não se considera decisão judicial fundamentada aquela que se limita a reproduzir o texto legal, sem qualquer explicação (por concisa e breve que seja) de sua relação com a causa ou a questão a decidir, deixando de referi-lo aos factos provados, sendo a subsunção imprescindível para que, por um lado, seja adequadamente interpretado o entendimento do julgador e, por outro, seja feito o controle crítico do ato decisório. Dito isto. (…)

  (fixação da indemnização)

  Relativamente à invocada nulidade do Acórdão recorrido por falta de fundamentação quanto à fixação da indemnização, tal como pode ler-se no Acórdão desta Relação de 26.04.2023 (266/21.2JAVRL. C2):

  «No Acórdão desta Relação datado de 30.11.2022 escreveu-se:

  «Constata-se, linear e claramente, da mera leitura do Acórdão, quer no que respeita à factualidade provada (pontos 43 a 50), quer relativamente à sua fundamentação jurídica, que, foram feitas constar, as razões de facto e de direito que motivaram a fixação da indemnização (cf. IV- Do pedido de indemnização cível deduzido contra o arguido).

  Dispensando-nos, embora de reproduzir, novamente, todas as considerações constantes do Acórdão recorrido quanto ao pedido de indemnização cível, salientamos as seguintes que passamos a citar:

  No caso presente, as condições pessoais e económicas do arguido, são as resultantes do relatório social. No caso dos autos, o arguido praticou factos ilícitos, culposos e causadores de danos (danos que são uma consequência direta, necessária da sua conduta) de natureza não patrimonial. Atenta a matéria de facto dada como provada, entendemos que, efetivamente, se verificam os pressupostos de que depende a obrigação de indemnizar, dado que o arguido praticou factos ilícitos geradores de responsabilidade civil extracontratual consubstanciados na prática, entre outros, do crime de homicídio qualificado na forma tentada pelo qual será condenado. Por outro lado, e atenta também a matéria de facto dada como provada, não restam quaisquer dúvidas de que a sua conduta foi adequada a causar danos à demandante. No caso sob analise, como já referimos, a demandante veio pedir indemnização por danos não patrimoniais. No caso o demandante ficou com 3 cicatrizes, no crânio, face e ombro, as quais são percetíveis à distância de contacto social, sendo o dano estético fixável no grau 3 numa escala de 7 graus de gravidade crescente. Por sua vez, o sofrimento físico e psíquico da demandante entre a lesão (evento) e a cura ou consolidação das lesões danos temporários, considerando o tipo de lesões, o período de recuperação funcional, o tipo de traumatismo e os tratamentos efetuados, é fixável no grau 6 numa escala de 7 graus de gravidade crescente (quantum doloris). No caso que nos ocupa, o direito violado foi, além do mais, a integridade física da demandante e a violação sob a forma tentada do direito à vida que, por via da lesão, sofreu com sequelas, quer a nível psicológico, quer a nível corporal, as quais foram causa de dores, sofrimento e angústia. A demandante esteve internado durante o período em que foi submetido a intervenção cirúrgica, para lhe retirar uma bala na face, sentiu a angústia de não conseguir respirar por sentir a traqueia a fechar-se quando seguia no helicóptero a caminho do hospital». No confronto do trecho ora citado com a fundamentação do Acórdão recorrido supra transcrita, constata-se que, nesta parte, e bem, a decisão da primeira instância não sofreu alteração. Pois, tal como já se concluíra no Acórdão desta Relação datado de 30.11.2022: «Da leitura do Acórdão recorrido, e designadamente no trecho que ora citamos resulta que o Tribunal recorrido interpretou e, analisou os elementos do caso sub iudice, identificou aqueles que podem ser os fatos operativos de normas do ordenamento jurídico relativas à fixação da indemnização por danos não patrimoniais, extraindo aquela que, no seu entender, é a consequência normativa, ao concluir pela fixação de um montante indemnizatório a pagar à demandante.

  Não se verifica, nesta parte, nulidade por falta de fundamentação». Não vislumbramos quaisquer razões para nos afastarmos de idêntica conclusão, no que respeita ao Acórdão recorrido». Novamente.

  Tendo presente o Acórdão ora recorrido não vislumbramos razões para nos afastarmos de tal entendimento. Tudo considerado, julgamos, que o Acórdão em crise não enferma de nulidade por falta de fundamentação (nos termos do art.º 379.º n.º 1 al. a) do CPP), seja no que respeita às penas fixadas, seja no respeitante à indemnização atribuída. Concluímos, nesta parte, pela improcedência da defesa.

  6. EXCESSO DA INDEMNIZAÇÃO

  No entender do recorrente, é excessiva a indemnização € 40.000,00 fixada pelos danos não patrimoniais sofridos pela ofendida, em resultado dos disparos de que foi alvo por parte do arguido, alegando que este dispõe de parcas condições económicas e que a assistente praticamente ficou com sequelas nem apresenta qualquer incapacidade séria, o que lhe

  permite ter uma vida quase normal.

  Vejamos, então.

  Em relação à fixação do quantum indemnizatório, é de referir que se encontram em causa danos não patrimoniais. Os danos não patrimoniais compreendem os prejuízos (tais como as dores físicas, a perda de prestígio e reputação, os vexames, os desgostos morais, etc.) que sendo insuscetíveis de avaliação pecuniária, por derivarem de lesão de bens (como a saúde, o bem-estar, a liberdade, a honra ou o bem nome) que não integram o património do lesado. (cfr., Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, I, 10.ª ed., reimp., Almedina, Coimbra, 2011, p. 601). Dispõe o art.º 496º do Código Civil que: «1.Na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito. 2. (...) 3. O montante da indemnização será fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no art. 494.º (…)».

São, portanto, indemnizáveis, com base na equidade, os danos não patrimoniais que «pela sua gravidade mereçam a tutela do direito» (nºs 1 e 3 do art.º 496º do Código Civil), devendo atender-se, ao grau de culpabilidade do agente, à situação económica do lesante e do lesado, e às demais circunstâncias do caso (cf. art.º 494.º do Código Civil).

Encontramo-nos perante prejuízos sem equivalente monetário, e que apenas podem ser «compensados», pela atribuição de uma justa reparação comandada por um juízo equitativo que deve atender às circunstâncias referidas no art.º 494.º do Código Civil.

 No tocante à determinação do quantum indemnizatório, a lei aponta, nitidamente para a ponderação das especificidades e particularidades do caso concreto, orientada por critérios de equidade (art.º 494.º, ex vi art.º 493.º, 1ª parte, do Código Civil) - Cf. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, datado de 21.03.2013, no processo n.º 703/07.4TBAND.C1 (rel. Des. Henrique Antunes).

 Naturalmente que o primeiro dos fatores a ponderar será o dano que fundamenta a compensação, limita o montante a compensar, e cuja gravidade constitui um dos pressupostos da obrigação de indemnizar. Na aferição da gravidade do dano relevam a natureza da lesão sofrida, a intensidade das suas consequências, e os bens jurídicos ou interesses atingidos. A culpabilidade do agente afere-se na apreciação da intensidade da violação dos deveres jurídicos ou da omissão dos deveres de diligência, e da intervenção da vontade do agente em tal atuação e causação. Não deixa, por um lado, de estar aqui presente uma certa função punitiva ou sancionatória da indemnização, podendo, por outro lado, a culpa pouco intensa do agente face à extensão dos danos causados, justificar a redução do montante indemnizatório a atribuir. O critério da situação económica do lesante e do lesado releva essencialmente para correção de resultados injustos em casos de significativa desproporção entre as condições económicas de ambos. Mostrando-se o lesado detentor de condições económicas muito superiores às do lesante, poderá justificar-se a redução do montante fixado.

 «Em qualquer caso, a ponderação sobre a gravidade do dano não patrimonial e, correspondentemente, do valor da sua reparação deve ocorrer sob o signo do princípio regulativo da proporcionalidade de harmonia com o qual a danos mais graves deve corresponder uma indemnização mais generosa e numa perspetiva de uniformidade: a indemnização deve ser fixada tendo em conta os parâmetros jurisprudenciais geralmente adotados para casos análogos (art.º 8 nº 3 do Código Civil)» - Cf. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, datado de 21.03.2013, processo 793/07TBAND.C1 (rel. Des. Henriques Antunes). Dito isto e revertendo ao caso dos autos.

  A agressão, com o cabo de enxada nas costas, de modo a causar um hematoma, foi praticada pelo lesante, contra a mulher com quem vivia e quando esta se encontrava grávida. Os insultos foram praticados pelo lesante, diariamente, entre finais de abril de 2021 e 5 de maio do mesmo ano, no seio de uma relação de «casal», na habitação onde vivia com a lesada, e na presença dos filhos desta. Foram cinco os disparos com que o demandado visou a companheira, logrando com três deles atingi-la, na zona auricular, no tórax do lado direito e região frontal do lado esquerdo, causando-lhe lesões. Face à gravidade dos ferimentos, a vítima foi heli-transportada para o Centro .... Foi submetida a intervenção cirúrgica, onde foi removido projétil alojado na região malar. Foi necessária entubação orotraqueal urgente e ventilação ... invasiva por compromisso da via área pela hemorragia. E a demandada está a ser seguida em consulta de ortopedia para realizar uma eventual extração do projétil alojado no ombro direito. O Défice Funcional Temporário Parcial é fixável em 116 dias. A data da consolidação médico-legal das lesões foi fixada em ...-...-2021. Mercê da conduta do arguido, a vítima BB, ficou com as lesões/sequelas, verificadas em sede de avaliação de dano corporal apresentando: - Quatro cicatrizes, uma na região frontal esquerda; outra na região retroauricular direita; outra na região zigomática esquerda e outra na face anterior do ombro direito; - Queixas álgicas ao toque (nas cicatrizes); - Dor e limitação da mobilidade articular do ombro direito.

  - Défice Funcional Permanente de Integridade Físico-Psiquica é fixável em 12 pontos. O quantum doloris: (valoração do sofrimento físico e psíquico vivenciado pela vítima durante o período de danos temporários, isto é entre a data do evento e da cura ou consolidação das lesões) é fixável no grau 6 numa escala de sete graus de gravidade crescente. O dano estético permanente é fixável no grau 3 numa escala de sete graus de gravidade crescente: as 3 cicatrizes que apresenta na cabeça / face e no ombro direito e o edema da hemiface esquerda são visíveis à distância social. BB foi atingida na sua integridade física e na sua saúde, amedrontada humilhada, diminuída no seio da relação familiar, perturbada no seu dia-a-dia, coatada na sua liberdade de ação e movimentos, sendo-lhe causadas marcas psicológicas que afetaram e afetam o seu equilíbrio emocional e psíquico. Foi sujeita a intervenções médicas e hospitalares (continuando a ser acompanhada em consultas). Após um período de défice funcional temporário fixável em 116 dias, apresenta um défice funcional permanente de integridade físico-psíquica fixável em 12 pontos. Exibe cicatrizes, queixas álgicas, dor e limitação da mobilidade articular. O quantum doloris sofrido entre a data do evento e a data da consolidação é elevadíssimo (6 numa escala crescente de 7). Por certo será uma memória negativa que acompanhará a lesada ao longo da sua vida. Também o dano estético permanente (de 3 numa crescente de 7) constituirá uma recordação permanente da tentativa de homicídio, e é suscetível de prejudicar o percurso pessoal e social da lesada. Foram atingidos bens pessoais e direitos de personalidade e os comportamentos do arguido assumem relevância a criminal. As culpas são intensas e as condutas foram cometidas dolosamente. Nada indicia que a situação económica da lesada seja de tal forma mais abonada do que a do lesante, que uma ideia de proporcionalidade deva intervir como fator de correção da extensão indemnizatória. A indemnização por danos não patrimoniais visa contrabalançar o mal sofrido, e sendo caso disso, servir acessoriamente, uma função sancionatória, e terá que ser verdadeiramente significativa, devendo o seu quantitativo traduzir a justiça no caso concreto, cabendo, pois, ao julgador ter em conta as regras da prudência, o bom senso e a justa medida das coisas. A jurisprudência vem-se afastando decisivamente de indemnizações simbólicas. Apenas foi fixada indemnização resultantes dos disparos, e não também dos insultos e da agressão com a sachola, tal como se pretende no requerimento de indemnização cível (v. questão apreciada em 1)). No entanto, esta nulidade pode e deve ser suprida neste Tribunal de Recurso, que para o efeito, como se vê, dispõe de todos os elementos necessários para a decisão. Tudo considerado, entendemos que não se justifica reduzir o montante indemnizatório pelos danos não patrimoniais sofridos que foi fixado de € 40.000,00.

9. Transcrição integral, sem sublinhados, por interessar para se perceber a decisão da Relação quanto à pena única.

10. Anabela Rodrigues, «O modelo da prevenção na determinação da medida concreta da pena», in RPCC ano 12º, fasc. 2º (Abril-Junho de 2002), 155, refere que o art. 40.º CP condensa “em três proposições fundamentais, o programa político-criminal - a de que o direito penal é um direito de protecção de bens jurídicos; de que a culpa é tão só um limite da pena, mas não seu fundamento; e a de que a socialização é a finalidade de aplicação da pena”.

11. Neste sentido, Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal Português, Parte geral II, As consequências jurídicas do crime, Editorial Notícias, 1993, p.198.

12. Jorge de Figueiredo Dias, ob. cit., p. 72.

13. Jorge de Figueiredo Dias, ob. cit., p. 214.

14. Jorge de Figueiredo Dias, "Sobre o estado actual da doutrina do crime”, RPCC, ano 1º, fasc. 1º (Janeiro-Março de 1991), p. 29.

15. Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal Português, Parte geral II, As consequências jurídicas do crime, p. 302.

16. Ver Ac. do TC nº 3/2006, DR II Série de 7/2/2006.

17. Neste sentido, Germano Marques da Silva, Direito Penal Português, Parte Geral, III, Teoria das Penas e das Medidas de Segurança, Editorial Verbo, 1999, p. 167 e Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal Português, Parte Geral, II, As consequências jurídicas do crime, Editorial Notícias, 1993, p. 291. Acrescenta este último Autor que “tudo se deve passar como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique. Na avaliação da personalidade – unitária – do agente relevará, sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma «carreira») criminosa, ou tão só, a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta. De grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização).

18.Ver Jorge de Figueiredo Dias, ob. cit., p. 291.