Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1553/22.8PBPDL.L1.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: LOPES DA MOTA
Descritores: RECURSO PER SALTUM
CONCURSO DE INFRAÇÕES
ALTERAÇÃO DOS FACTOS
ALTERAÇÃO DA QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
NULIDADE
CÚMULO JURÍDICO
REGISTO CRIMINAL
MEDIDA CONCRETA DA PENA
PENA ÚNICA
PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
Data do Acordão: 02/21/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO EM PARTE
Sumário :
I – Estando em causa uma situação de concurso de crimes (artigos 30.º, n.º 1, e 77.º do CP), pode o STJ conhecer de todas as questões de direito relativas à pena única aplicada aos crimes em concurso e às penas aplicadas a cada um deles, englobadas naquela pena única, inferiores àquela medida, se impugnadas (acórdão de fixação de jurisprudência n.º 5/2017, DR I, de 23.6.2017), como sucede no caso presente.

II – A ausência de prova de um facto descrito na acusação, que se compreende no objeto do processo, não submete o resultado da prova ao regime de alteração dos factos; mas se os factos parcialmente provados preencherem um tipo de crime diferente daquele por que o arguido está acusado, isto é, se houver lugar a uma alteração da qualificação jurídica, impõe-se a observância do regime de alteração não substancial dos factos (artigo 358.º, n.ºs 1 e 3, do CPP), sob pena de nulidade da sentença condenatória nos termos do artigo 379.º, n.º 1, do CPP. O que obriga à formulação de um juízo de idoneidade e valoração dos factos provados no sentido da sua correspondência à descrição típica da previsão normativa de um concreto crime estabelecida na lei penal, com rigorosa indicação da norma incriminadora, para que possa ser adequadamente assegurada a garantia do contraditório.

III – Estando o arguido acusado da prática de um crime de coação na forma tentada, de cuja prática foi absolvido por falta de prova de elemento do facto típico, e faltando elementos da descrição de facto que permitam concluir que os bens patrimoniais eram de considerável valor e que a ameaça foi feita de forma adequada a provocar medo ou inquietação ou a prejudicar a liberdade de determinação do ofendido, ao apreciar a questão da culpabilidade (artigo 368.º do CPP) não podia o tribunal recorrido, por falta de base factual, concluir que se verificavam os «elementos constitutivos do crime» de ameaça (artigo 153.º do CP), o que dispensaria a comunicação a que se refere o n.º 1 do artigo 358.º do CPP, por os factos não serem passíveis de qualificação jurídica que devesse ser alterada.

IV – Sendo caso em que se imporia que fosse proferida decisão absolutória, deve ser dado provimento ao recurso, com revogação da decisão condenatória pelo crime de ameaça, ficando prejudicado o conhecimento da alegada questão da nulidade do acórdão por falta da comunicação a que se refere o artigo 358.º, n.º 3, do CPP.

V - A confissão parcial não se mostrou importante para o esclarecimento dos factos nem o comportamento posterior ou outros elementos permitem a conclusão pretendida pelo recorrente no sentido de a confissão ser reveladora de «arrependimento e assunção de responsabilidade».

VI – Das condições pessoais extrai-se que o arguido sofre, desde muito jovem, de problemas do foro psiquiátrico e de toxicodependência, resultantes de consumo de haxixe e heroína, vivendo na rua depois de se frustrarem várias tentativas de apoio médico e acolhimento institucional que o próprio recusou. É neste quadro de vida de conflito e sem apoio familiar, depois de já ter cumprido penas de prisão, que o arguido praticou os crimes, numa situação que, na sua ambivalência – enquanto fator suscetível de, por um lado, afetar a liberdade de determinação e de, por outro, aumentar a censurabilidade –, evidencia prementes necessidades de ressocialização, a satisfazer através da aplicação da pena de prisão, não sendo possível identificar elementos favoráveis à pretensão de redução da pena.

VII – Não ocorre motivo impeditivo da valoração das condenações anteriores constantes do registo criminal, pois que, tendo em conta o disposto no artigo 11.º («cancelamento definitivo»), n.º 1, al. a), da Lei n.º 37/2015, de 5 de maio (lei da identificação criminal), bem como a data do termo da liberdade condicional, com o efeito de extinção da pena (artigo 57.º do CP ex vi artigo 64.º), o registo da pena ainda se encontra «vigente».

VIII – Para além disto e das considerações de prevenção geral e do elevado grau de ilicitude do modo de execução do facto, pese embora o não elevado valor dos objetos furtados, há que considerar, também negativamente, as muito elevadas exigências de prevenção especial face à personalidade desvaliosa e à falta de preparação do arguido para manter uma conduta lícita, reveladas na prática dos factos, em função das evidenciadas necessidades de socialização, para que contribuem as desfavoráveis condições socioeconómicas e familiares.

IX – Considerando a moldura da pena aplicável ao crime de furto qualificado, de 2 a 8 anos de prisão, não se surpreendem elementos que permitam constituir base de um juízo de discordância relativamente à pena aplicada, de 4 anos de prisão, a justificar uma intervenção corretiva.

X – A redução do número de crimes em concurso, por deste conjunto se excluir o crime de ameaça, implica a diminuição do limite máximo da moldura da pena aplicável, descontados os 6 meses de prisão aplicados a esse crime.

XI – Tendo em conta a moldura da pena aplicável aos crimes em concurso, com o limite mínimo de 4 anos, correspondente à pena mais grave, e o máximo de 10 anos e 6 meses, correspondente à soma das penas concretamente aplicadas (artigo 77.º, n.º 2, do Código Penal), na consideração, em conjunto, da gravidade dos factos e da personalidade do arguido, julga-se adequado fixar a pena única em 6 (seis) anos e 6 (seis) meses de prisão, por, nesta medida, se conformar ao critério de proporcionalidade que deve presidir à determinação das penas, em vista da sua realização das finalidades de proteção dos bens jurídicos ofendidos com a prática dos crimes e de integração do agente na sociedade.

Decisão Texto Integral:

Acordam na 3.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça:


I. Relatório

1. AA, arguido, com a identificação que consta dos autos, interpõe recurso do acórdão de 30.03.2023, proferido pelo tribunal coletivo do Juízo Central Cível e Criminal de ... (Juiz 3), do Tribunal Judicial da Comarca dos Açores, que o condenou pela prática, em concurso, de:

a) um crime de furto simples, previsto e punido pelo artigo 203.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 1 anos e 4 meses de prisão (NUIPC 110);

b) um crime de furto qualificado, previsto e punido pelo artigo 204.º, n.º 2, alínea e), do Código Penal, na pena de 4 anos de prisão (NUIPC 1553);

c) um crime de furto simples, previsto e punido pelo artigo 203.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 1 anos e 2 meses de prisão (Apenso 124);

d) um crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punido pelo artigo 143.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 1 anos e 2 meses de prisão cada (Apenso 1583);

e) um crime de dano, previsto e punido pelo artigo 212.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 1 anos e 4 meses de prisão cada (Apenso 1583);

f) um crime de ameaça, previsto e punido pelo artigo 153.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 6 meses de prisão (Apenso 1583);

g) um crime de furto simples, previsto e punido pelo artigo 203.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 1 anos e 6 meses de prisão (Apenso 896); e

Em cúmulo jurídico, na pena única de 7 (sete) anos e 2 (dois) meses de prisão.

2. Discordando do decidido, quer quanto à condenação pelo crime de ameaça, quer quanto à medida da pena parcelar de 4 anos de prisão aplicada ao crime de furto qualificado (NUIPC 1553/22.8PBPDL apenso), quer quanto à pena única, apresenta motivação que termina com as seguintes conclusões (transcrição):

«1 - O Acórdão recorrido condenou o arguido:“(..)pela prática de um crime de furto simples, previsto e punido pelo artigo 203.º, nº 1, do Código Penal, na pena de 1 anos e quatro meses de prisão(NUIPC 110);(…)pela prática de um crime de furto qualificado, previsto e punido pelo artigo 204.º, nº 2, alínea e), na pena de 4 anos de prisão (NUIPC 1553);(…)pela prática de um crime de furto simples, previsto e punido pelo artigo 203.º, nº1,do Código Penal, na pena de 1 anos e 2 meses de prisão (Apenso 124);(…)pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punido pelo artigo 143.º,nº 1 do Código Penal, na pena de 1 anos e 2 meses de prisão (Apenso 1583);(…)pela prática de um crime de dano, previsto e punido pelo artigo 212.º, nº 1 do Código Penal, na pena de 1 anos e 4 meses de prisão (Apenso 1583);(…)pela prática de um crime de ameaça, previsto e punido pelo artigo 153.º, n.º 1 do Código Penal, na pena de 6 meses de prisão (Apenso 1583);(…)pela prática de um crime de furto simples, previsto e punido pelo artigo 203.º, nº 1, do Código Penal, na pena de 1 anos e 6 meses de prisão(Apenso 896);(…)Em cúmulo jurídico das penas(…)na pena única de 7 anos e 2 meses de prisão.”

2 - O Acórdão deu como provados os factos descritos em 5 a 59, e como não provados os descritos em i) quanto ao NUIPC 1583/20.4... - devidamente transcritos na Motivação deste recurso, para a qual nos remetemos e damos aqui por integralmente reproduzida.

3 - Quanto ao Proc. apenso 1583/20.4..., atentos tais factos não provados em i), o Acórdão considerou inexistir qualquer alegado crime de coacção de que vinha acusado o arguido, porém concluíu:“(…) estamos também perante um crime de ameaça, e não de coacção, pois o arguido diz a BB que lhe vai cortar os quatro pneus, não o estando a constranger a qualquer comportamento, pelo que, havendo queixa tempestiva, será condenado pela prática de um crime de ameaça (artigo 153º do Código Penal).” (pág. 18 do Acórdão)

4 - A Acusação Pública não imputa ao Arguido qualquer crime de ameaça, pelo que o arguido foi surpreendido com a condenação por tal tipo de ilícito p. no art.º 153º/1 CP na pena de 6 meses de prisão, quando o Acórdão não devia ter assim decidido.

5 - A Acusação não dispunha nem dispõe de qualquer enunciação ou imputação de qualquer elemento subjectivo desse tipo de ilícito ao arguido, sendo o crime de ameaça um tipo de ilícito que requer, por parte do agente, uma conduta dolosa, em qualquer uma das suas modalidades de dolo; e na Acusação nem sequer consta qualquer imputação objectiva ou subjectiva desse tipo de ilícito ao arguido AA.

6 - E o Tribunal Colectivo não pode completar a Acusação quanto a tais elementos fundamentais que preenchem objectiva e subjectivamente um qualquer tipo de ilícito, nem pode substituir-se ao MP quando uma qualquer Acusação padece de nulidade, atento o Princípio da vinculação temática a que o Tribunal está adstrito como reflexo da estrutura acusatória do Processo Penal, não podendo o Tribunal em Julgamento, sequer através dos arts. 358.º ou 359.º CPP, suprir ou integrar lacunas de uma Acusação que se verifiquem por não cumprimento do artº 283º/3 CPP(cfr. Acórdão STJ Uniformizador de Jurisprudência nº 17/07.4 GBORQ.E2-A.S1- 5ª Secção- Sr. Juíz Conselheiro Relator Rodrigues da Costa)

7 - Por outro lado, resulta da matéria de facto dada como provada no Acórdão, quanto a este NUIPC 1583/20.4..., que não foi dado como provado qualquer elemento objectivo (note-se que, nomeadamente, nem sequer os pneus são um bem de valor elevado para efeitos do tipo p. no art.º 153º/1CPP) nem qualquer elemento subjectivo do tipo p. no art.º 153º/1 CP, nem podia, pois da Acusação também nada consta a tal respeito como supra vimos.

8 - Seja porque da Acusação não consta qualquer menção aos elementos objectivos e subjectivos do tipo de ilícito p. no art.º 153º/1 CP, seja porque da matéria de facto provada no Acórdão também não constam tais elementos como provados, o Acórdão recorrido não podia ter condenado o arguido por tal tipo de ilícito, sob pena de incorrer na nulidade resultante da contradição entre a matéria de facto provada e a Decisão de Direito nos termos do art.º 410º/2,b) 2ª parte CPP - nulidade que se invoca para todos os efeitos legais, em que incorre o Acórdão ao ter condenado indevidamente o arguido por tal tipo de ilícito p. no art.º153º/1 CP, norma esta que o Acórdão assim violou.

9 - Deve pois ser decretada a referida nulidade do Acórdão recorrido, o qual deve ser revogado e afinal não condenado o arguido por qualquer crime de ameaça, por, desde logo, inexistência de qualquer menção na Acusação Pública aos elementos objectivos e subjectivos desse tipo concreto de ilícito.

10 - Caso assim não se entendesse, o que sob mera hipótese abstracta se suscita, mas sem concedermos sobre o supra exposto nestas Conclusões, atender-se-ia ao facto de só no momento da leitura do Acórdão o arguido ter tomado conhecimento de tal qualificação jurídica e condenação efectuadas, sem que antes o Tribunal tenha dado previamente conhecimento ao arguido de que iria ser-lhe imputado um crime de ameaça, não tendo o Tribunal dado cumprimento ao disposto no art.º 358º/1,3 ou 359º CPP, havendo nessa hipótese e no mínimo uma alteração da qualificação jurídica dos factos pelo Tribunal.

11 - O Tribunal não poderia qualificar o crime sem previamente fazer a comunicação ao arguido para o prevenir dessa qualificação, da qual este pode discordar, como “in casu” discorda. A defesa do arguido deve contemplar todas as expectativas admissíveis, tanto relativamente aos factos a apreciar, como à qualificação jurídica dos factos, tendo o arguido o direito de dela discutir e discordar, só assim assegurando-se a este o exercício pleno do contraditório constitucionalmente consagrado no art.º 32º/1, 5 CRP.

12 - Ao ter o Tribunal alterado o objecto do processo sem comunicar previamente ao arguido para o mesmo poder pronunciar-se, violou as garantias de defesa do arguido, o seu direito a um processo justo e equitativo e ao exercício pleno do contraditório, (arts. 20º/4 e 32º/1,5CRP), o Princípio da Legalidade (artº 9º/1CPP), o Princípio da Igualdade (artº 13ºCRP) na vertente da Justiça Relativa, e ainda incorreu na violação dos arts. 358º/1,3 e 359º CPP, incorrendo na consequente nulidade nos termos do artº 379º/1,b) CPP- nulidade que aqui se invoca para todos os efeitos legais.

13 - Deve o Acórdão recorrido ser revogado e decretada a sua nulidade, com as consequências legais; e, em todo o caso, não devendo o arguido ser condenado pelo tipo de ilícito de ameaça em que o Ac. recorrido o condenou, pois não estão preenchidos os elementos objectivos (que definem o conteúdo ou objecto da acção ou omissão tipificadas como crime) e subjectivos (que definem a relação do agente com essa acção ou omissão, compreendendo o tipo de culpa) constitutivos desse tipo legal de crime, os quais nem da Acusação constam expressos.

14 - Por conseguinte, não devia ter sido arguido condenado na pena de 6 meses de prisão que correspondentemente lhe foi aplicada, devendo o Acórdão recorrido ser revogado e substituído por outro que exclua tal condenação por tal tipo legal de crime, do qual o Arguido nem vinha acusado e cujos elementos objectivos e subjectivos não se encontram preenchidos.

15 - O Acórdão recorrido aplicou ao arguido uma pena parcelar de 4 anos de prisão pela prática de crime de furto qualificado p. art.º 204º/2, e) CP (NUIPC 1553/22.8PBPDL), pena que temos por excessiva, desproporcional e demasiado gravosa.

16 - O Acórdão recorrido considerou na determinação da medida da pena que aplicou de 4 anos de prisão relativamente a tais concretos factos: as exigências de prevenção geral elevadas, o grau mediano de ilicitude dos factos, a natureza e o valor dos bens subtraídos (no valor global de 1.145,00 euros), o dolo directo e a linha de continuidade criminosa (embora aliada a uma situação de toxicodependência), os antecedentes criminais do arguido e falta de apoio familiar.

17 - Com o devido respeito, que muito é, o Acórdão recorrido na determinação da medida da pena a respeito destes factos, não considerou a confissão parcial dos factos por parte do arguido, que só não confessou ter levado alguns dos bens mencionados pela Ofendida, no mais tendo confessado no essencial os factos, o que consubstancia arrependimento e assunção da responsabilidade - circunstâncias estas que, conjugadas com a situação de toxicodependência que motivou a prática do crime, ditavam já por si uma pena menos gravosa que a que foi aplicada.

18 - Por outro lado, o Tribunal “a quo” não devia ter dado tanta primazia aos antecedentes criminais do arguido, quando a maior parte destes se referem a factos praticados em 2011 e 2012, ou seja há mais de 10 anos.

19 - No caso “sub judice”, estas circunstâncias devem relevar a favor do arguido na determinação da pena e sua medida, sendo que a pena não pode ultrapassar a medida da culpa (artº 40º/2 CP). Porém, o Tribunal “a quo”, salvo o devido respeito que muito é, não fez uma ponderação equitativa destas circunstâncias em questão, que deviam ter merecido especial atenção na determinação da pena e sua medida, tendo assim incorrido o Acórdão recorrido na violação do disposto nos arts. 40º/2 e 71º/1,2,c),e) CP.

20 - Deve o Acórdão recorrido ser revogado quanto à medida da pena aplicada ao arguido pela prática do furto qualificado referenciado no NUIPC 1553/22.8PBPDL, devendo nesta parte operar-se uma redução da pena de prisão aplicada ao arguido, e por conseguinte ser reformulado o cúmulo jurídico efectuado, sendo que a pena de prisão decorrente do cúmulo jurídico deve ser a final inferior a 7 anos de prisão.

21 - Sem prejuízo da matéria por nós supra exposta, e sem prescindir, sempre se diria, por conseguinte e em todo o caso que, a pena aplicada em cúmulo jurídico a este arguido – 7 anos e 2 meses de prisão efectiva – se mostra excessiva e por demais gravosa.

22 - É certo que são fortes as exigências de prevenção geral. Porém, quanto à prevenção especial, é de considerar as circunstâncias em que o arguido praticou os factos num quadro de situação pessoal de toxicodependência (consumidor de drogas) e precária a todos os níveis e por isso propícia à solicitação para a prática de actividades ilícitas; e ainda as demais circunstâncias que depõem a favor do arguido, como a recuperação da maior parte dos bens furtados, o valor em regra não elevado destes, e a confissão pelo arguido da maioria dos factos, que desde que detido não mais consumiu drogas.

23 - Estas circunstâncias devem relevar a favor do arguido na determinação da medida da pena, porém o Tribunal “a quo”, salvo o devido respeito, não as considerou devidamente, a nosso ver, incorrendo o Acórdão recorrido na violação do disposto nos arts. 40º/2, e 71º/1,2,c),e) CP.

24 - O Acórdão recorrido invocou, muito genericamente, ter atendido na aplicação em cúmulo j. da pena de 7 anos e 2 meses de prisão: “aos factos e à personalidade do agente, apreciados conjuntamente (artigo 77º, nº1, parte final do Código Penal), que revelam uma tendência criminosa (aliada à toxicodependência)”, “a gravidade do ilícito global, atento modo de execução dos crimes, o período temporal e os valores em causa”, às exigências pessoais e sociais - mas ao fixar a pena tão elevada de 7 anos e 2 meses de prisão em cúmulo jurídico, consideramos que o Acórdão recorrido levou mais em conta os antecedentes criminais do arguido quando estes se referem a factos praticados há muito tempo, em 2011 e 2012.

25 - Deve avaliar-se globalmente os factos e a personalidade do arguido, sendo que analisando-se globalmente os factos em questão e suas circunstâncias, verifica-se que não há uma tendência criminosa por parte deste arguido, mas houve apenas uma pluriocasionalidade de crimes de furto de bens, de valor em regra não elevado e na maioria recuperados nestes autos, de gravidade moderada e ilicitude mediana, praticados por causa exclusivamente da sua então toxicodependência.

26 - O Arguido encontra-se desde 23-09-2022 sujeito a medida de coacção de prisão preventiva, o que por si, embora não seja teórica nem praticamente o mesmo que cumprimento de pena, acaba sempre por ter o efeito de “lição” dissuasor de qualquer comportamento ilícito, e simultaneamente não estigmatizante relativamente a este arguido que a tem cumprido até hoje com o máximo rigor e disciplina, não mais tendo consumido drogas desde que detido nestes autos.

27 - Condenar este arguido neste momento em 7 anos e 2 meses de prisão efectiva - e perante os factores supra referidos que deviam ter sido considerados e melhor ajuizados pelo Acórdão recorrido e a favor deste arguido - seria estigmatizá-lo irremediavelmente e impedir uma atempada reinserção social.

28 - Não devemos esquecer que as penas devem visar sempre a reinserção social do condenado (artº 40º CP) e não apenas o castigo puro e simples. Actualmente, as cadeias estão sobrelotadas, não tendo por conseguinte condições adequadas, sendo autênticas escolas de crime, e as penas de prisão nem sempre reinserem, porém são sempre estigmatizantes.

29 - Por outro lado, os antecedentes criminais já foram tidos em conta pelo Legislador na fixação da moldura penal abstracta a aplicar a cada ilícito e também já foram valorados e ponderados pelo Tribunal “a quo” na determinação das respectivas medidas concretas das penas aplicadas (que não podem ultrapassar a medida da culpa), nos termos do artº 71º/1,2 CP como factores desfavoráveis ao arguido.

30 - O Acórdão recorrido ao ter decidido como decidiu, tendo aplicado em cúmulo jurídico uma pena de 7 anos e 2 meses de prisão efectiva ao arguido, não considerou todas estas circunstâncias concretas e supra referidas nestas Conclusões. Incorreu assim o Acórdão recorrido na violação do disposto nos artigos 40º, 71º/1,2, c),e) CP.

31 - Pelo que, considerando todas essas circunstâncias pessoais do arguido e analisando globalmente os factos objecto destes autos, deve ser revogado o Acórdão recorrido no que diz respeito à pena de 7 anos e 2 meses aplicada em cúmulo jurídico de penas, o qual deve ser reformulado e reduzida a pena a aplicar em cúmulo jurídico, a qual deve ser a final fixada em medida inferior a 7 anos de prisão.

32 - Pelo supra exposto nestas Conclusões, acrescendo à violação dos artigos 13º, 32º/1,5 e 20º/4 CRP, 9º/1, 358º/1,3 e 359º do CPP, 40º,71º/1,2,c),e) e 153º/1 CP em que incorre o Acórdão recorrido, deve ser decretada a nulidade deste nos termos dos arts. 410º/2,b) 2ªparte e 379º/1,b) CPP com as consequências legais, devendo o Acórdão recorrido ser revogado e substituído por Acórdão que, e em todo o caso: não condene o arguido por qualquer crime de ameaça (de que não vinha sequer acusado) no NUIPC 1583/20.4...; reduza a pena parcial de 4 anos de prisão aplicada ao arguido pelo furto qualificado referente ao NUIPC 1553/22.8PBPDL; e em todo o caso e modo, reformule o cúmulo jurídico efectuado pelo Tribunal “a quo”, e a final aplique em cúmulo jurídico ao arguido uma pena de prisão inferior a 7 anos, o que satisfará as exigências de prevenção geral e especial no caso.

Nestes termos e nos melhores de direito, (…) deverá ser dado provimento ao presente recurso e por conseguinte, ser decretada a nulidade do Acórdão Recorrido nos termos dos artigos 410º/2, b) 2ªparte e 379º/1,b) CPP, devendo ser revogado o Acórdão recorrido e ser substituído por outro Acórdão que:

a) não condene o arguido por qualquer crime de ameaça (de que não vinha sequer acusado) no NUIPC 1583/20.4...;

b) reduza a pena parcial de 4 anos de prisão aplicada ao arguido pelo furto qualificado referente ao NUIPC 1553/22.8PBPDL;

c) e em todo o caso e modo, reformule o cúmulo jurídico antes efectuado, e a final aplique em cúmulo jurídico ao arguido uma pena de prisão inferior a 7 anos -

tudo nos termos e com os fundamentos atrás expostos nesta Motivação e Conclusões de recurso.»

3. O Ministério Público, pelo Senhor Procurador da República no tribunal recorrido, apresentou resposta, no sentido da improcedência do recurso, dizendo, em conclusões (transcrição):

«1. A prova feita em Tribunal foi devidamente ponderada pelo Tribunal recorrido, que aplicou corretamente ao caso a lei aplicável, e encontrou o sancionamento devido, termos em que nenhuma censura merece o douto acórdão.

2. Contrariamente ao entendimento perfilhado pela recorrente, o Tribunal recorrido não completou a acusação quanto a tais elementos fundamentais que preenchem objetivamente e subjetivamente do crime de ameaça p. e p. pelo artigo 153.º, n.º 1 do Código Penal.

3. Perante esta factualidade que deu origem ao processo 1583, é inequívoco que a conduta do arguido integra o crime de ameaça simples e não o crime de coação.

4. Contudo, ao contrário de que defende o recorrente, o tribunal recorrido não tinha que dar cumprimento ao disposto nos artigos 358.º e 359.º do Código do Processo Penal, não estamos assim perante uma nulidade de sentença nos termos do artigo 379º, n.º 1, alínea b) do Código do Processo Penal.

5. Pois o que o Tribunal a quo procedeu, foi como bem defende Germano Marques da Silva, “por razões de economia processual, mas também no próprio interesse da paz do arguido, a lei admite geralmente que o tribunal atenda a factos ou circunstâncias que não foram objeto da acusação, desde que daí não resulte insuportavelmente afetada a defesa, enquanto o núcleo essencial da acusação se mantém o mesmo” (Curso de Processo Penal, Lisboa, Verbo, III, 2.ª edição, p. 273).

6. No caso em apreço não há qualquer alteração substancial de factos embora o crime seja diverso e a moldura penal abstrata é menor (estava pronunciado pelo crime de coação e as variações que foram feitas apenas se apurou a prática de um crime de ameaça).

7. O que o Tribunal recorrido fez foi uma pormenorização e clarificação mais rigorosa dos factos constantes da acusação quanto à expressão proferida pelo arguido ao ofendido BB: “que lhe vai cortar os pneus”, sendo certo que esta expressão já constava da acusação e por isso não consubstancia qualquer alteração essencial do sentido da ilicitude típica do comportamento do arguido.

8. Nesta situação, não surgem vulneradas as garantias de defesa do arguido, ora recorrente, na vertente do princípio do contraditório, porquanto não existe uma heterogeneidade da qualificação jurídica que o apanhe de surpresa e lhe cause um prejuízo grave – e isto porque o núcleo essencial do tipo base persiste, havendo antes um deslizamento da qualificação jurídica para um tipo legal de crime “inferior”, tendo sempre a sua defesa abrangido o centro irredutível da qualificação jurídica que identifica o tipo base.

9. Pelo que o Tribunal recorrido não violou o artigo 379º nº1 b) do Código do Processo Penal, por violação do disposto no artigo 359º do Código do Processo Penal.

10. No nosso caso, as alterações pontuais introduzidas pelo Tribunal na descrição dos factos dados como provados, revelam-se, aos nossos olhos, como inócuas e absolutamente irrelevantes para a decisão da causa, que nem sequer atinge o patamar de uma alteração não substancial, que devesse ser comunicada ao arguido/recorrente, nos termos previstos no artigo 358.º do Código do Processo Penal.

11. Por fim, quanto à determinação da pena concreta a mesma foi feita dentro destes limites legais. A pena concreta não ultrapassou a medida da culpa, e atendeu às exigências da prevenção geral e especial.

12.Perante este quadro a pretensão do arguido/recorrente no sentido da redução de pena não deve proceder, não devendo ser alterada, já que se situa junto ao limite mínimo da pena, muito aquém do seu meio, e longínqua do limite máximo.

13.Assim, no caso concreto, atendendo a toda a factualidade, entendemos que não se verificam circunstâncias suscetíveis de mitigar a responsabilidade do arguido, concluindo que a pena aplicada é justa e adequada, sendo de manter.

14.Como consequência o douto acórdão não viola os preceitos legais invocados pela recorrente.»

4. Recebidos, foram os autos com vista ao Ministério Público para os efeitos do disposto no artigo 416.º do CPP, tendo o Senhor Procurador-Geral Adjunto neste Tribunal emitido parecer de concordância com o Ministério Público na 1.ª instância, a que adere, e, «subscrevendo na íntegra os fundamentos exarados no acórdão condenatório», conclui pronunciando-se pela improcedência do recurso e pela manutenção do decidido.

5. Notificado para responder, nos termos do artigo 417.º, n.º 2, do CPP, o arguido nada disse.

6. Colhidos os vistos e não tendo sido requerida audiência, o recurso foi à conferência – artigos 411.º, n.º 5, e 419.º, n.º 3, alínea c), do CPP.

Decidindo.

II. Fundamentação

Factos provados

7. O tribunal coletivo deu como provados os seguintes factos (transcrição):

«1. No dia 1 de julho de 2022, pelas 12h48, o Arguido AA dirigiu-se ao CONTINENTE da freguesia dos ..., ..., sito na Rua ..., n.º 21, com o propósito de dali subtrair todos os bens e objetos que lograsse.

2. Em execução dos seus intentos, o Arguido apoderou-se dos seguintes bens, que escondeu na roupa que trajava: 3 packs de lâminas de barbear da marca “GILLETTE FUSION 5”, no valor unitário de €35,99 e global de €107,97 e 1 máquina de barbear “GILLETTE King C, de cor laranja, no valor de €34,99.

3. De seguida, dirigiu-se para as portas de saída, sem passar pelas caixas de pagamento e foi intercetado pelo vigilante CC, tendo devolvido os referidos packs de lâminas de barbear.

4. No entanto, AA logrou desenvencilhar-se do vigilante que o havia intercetado e colocou-se em fuga, na posse da referida máquina

(NUIPC 1553/22.8PBPDL)

5. No dia 8-9-2022, pelas 3h00, o Arguido AA dirigiu-se à residência de DD, sita na Rua ..., nº 2, em ..., ..., com o propósito de dali subtrair todos os valores e bens que lograsse.

6. Ali chegado, o Arguido descalçou-se, para não fazer ruído e, quando a Ofendida estava a dormir no seu quarto de cama, transpôs uma janela do rés-do-chão da habitação, acedeu ao seu interior e apoderou-se dos seguintes bens no valor global de cerca de €1145,00:

• 1 máquina fotográfica da marca SONY” modelo Alfa 500, de cor preta, no valor de €150,00 e mala de transporte de cor preta;

• 1 casaco impermeável, da marca LIDL, de cor preta. Com o forro de cor roxa, no valor de €20,00;

• 1 anel em ouro branco, com símbolo “infinito”, incrustado com zircónicas, no valor de €400,00;

• 6 pendentes em prata, da marca PANDORA, cada um avaliado em €40,00, no valor global de €240,00;

• 1 relógio dourado com bracelete em metal da mesma cor, da marca DANIEL WELLINGTON, no valor de €190,00;

• 1 mala própria de cor preta, com alça para colocar no ombro e na zona do fecho com formato de meia-lua, da marca MISSGUIDED, no valor de €30,00;

• 1 mochila de cor preta da marca DECATHLON, no valor de €15,00;

• 1 par de auscultadores sem fios de cor cinzento da marca HAMA, no valor de €30,00;

• 1 carteira em pele artificial de cor verde, no valor de €10,00, contendo 3 cartões multibanco, 1 do Millennium BCP e 1 da Revolut;

• 1 powerbank de características e valor não apurados;

7. O Arguido ainda acedeu ao quarto da Ofendida, quando a mesma ali dormia e, ao sair daquela divisão, fechou a porta, o que acordou a Ofendida.

8. De imediato, a Ofendida foi até à janela e viu o Arguido na parte exterior da habitação, a calçar-se, altura em que o confrontou aos gritos, com o furto que praticava, exigindo-lhe a restituição dos bens.

9. O Arguido respondeu-lhe, em inglês, que não tinha nada, mas, perante a insistência da Ofendida, referiu que lhe devolvia os bens.

10. A Ofendida saiu da janela e foi até à entrada da habitação para reaver os seus bens.

11. No entanto, quando ali chegou, apercebeu-se de que o Arguido se tinha ausentado do local na posse daqueles bens.

(NUIPC 493/22.8...)

12. Entre as 12h00 e as 13h00 do dia 22-3-2022, o Arguido e a sua progenitora EE, dirigiram-se à loja do Clube Desportivo de ..., sita na Rua ..., n.º 44, em ..., ..., com o propósito de dali subtraírem todos os bens que lograssem.

13. Ali chegado, sem atentar que estava a ser filmado, o Arguido aproximou-se dos expositores de peças de vestuário alusivas ao referido clube e apoderou-se de 1 t-shirt e 1 par de calças de fato-de-treino, da marca KELME, no valor global de €90,00, que dissimulou dentro das calças que trajava.

14. Após, abandonaram o local na posse dos referidos bens.

15. Pela prática destes factos, foi proferido despacho de arquivamento prévio e parcial com fundamento na inadmissibilidade do procedimento criminal.

16. Decorridas cerca de duas semanas, em meados de abril de 2022, o Arguido AA e EE voltaram à referida loja.

17. Uma vez que ambos estavam já referenciados pela gerência daquela loja como sendo autores de furtos, ao aperceberem-se de que tinham sido identificados pelos funcionários FF, GG e HH, de imediato abandonaram o local, em passo de corrida, dirigindo-se para a Rua de ..., em ..., sem levarem qualquer bem ou equipamento.

18. Ato contínuo, os referidos funcionários foram, em passo de corrida, no encalço de AA e de EE.

19. Quando FF estava quase a alcançar AA, o mesmo, de forma inusitada, empunhou uma navalha de características não concretamente apuradas na sua direção.

20. Decorridos breves instantes, quando estavam na Rua de ..., em ..., AA parou subitamente de correr e, apontando uma navalha, de características não concretamente apuradas, na direção de HH e de GG dirigiu-lhes as seguintes expressões: “O que é que vocês querem? Vocês que nos larguem da mão que eu vos largo uma facada! Já decorei a vossa cara! Já vos marquei! Vou-vos apanhar!”,

21. O Arguido agiu sempre de forma livre, voluntária, deliberada e consciente, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.

(Processo apenso 1583/20.4...)

22. No dia 21 de outubro de 2020, pelas 11h15, quando se encontrava junto ao n.º 26 da Rua ..., em ..., ..., o Arguido AA abeirou-se do veículo ligeiro de passageiros com a matrícula ..-AV-.., pertencente ao Ofendido BB,

23. E, sem que nada o fizesse prever, desferiu entre 1 a 2 pontapés na porta lateral esquerda frontal, causando uma amolgadela na referida porta e um prejuízo de cerca de €640, 50.

24. Decorridos alguns instantes, naquele arruamento, o BB confrontou AA com o sucedido,

25. O Arguido replicou “Passa-se alguma coisa” e o Ofendido verbalizou “Não, a polícia trata disso…” e virou-lhe costas.

26. Decorridos breves instantes o Arguido abeirou-se do Ofendido, pelas costas, em passo de corrida e, de seguida, atingiu-o com 2 a 3 socos na face esquerda, junto à orelha, causando-lhe dores.

27. O Ofendido verbalizou que ia queixar-se à polícia e o Arguido retorquiu “Vais à polícia? Não tenho medo da polícia, quando voltares vou cortar-te os quatro pneus!”.

28. AA agiu com o propósito concretizado de amolgar e causar danos à porta do veículo do Ofendido, causando-lhe um prejuízo,

29. Bem como com a intenção lograda de molestar fisicamente o Ofendido, de lhe causar sofrimento físico,

30. AA agiu sempre de forma livre, voluntária, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.

(Processo apenso 124/22.3...)

31. A S.P.D.A.D., Unipessoal, Lda. – Decathlon Portugal é uma sociedade comercial que se dedica à venda de material desportivo.

32. Um dos seus estabelecimentos comerciais fica situado na Rua ..., 2, ....

33. No dia 20 de julho de 2021, pelas 16h48m, encontrava-se o arguido no interior da referida loja, tendo decidido apoderar-se de diversos artigos sem proceder, intencionalmente, ao seu pagamento.

34. O arguido apossou-se dos seguintes artigos, escondendo-os na sua roupa: dois conjuntos de pilhas AAA, no valor de 10,00€ e três relógios da marca Kalengy, dois no valor de 18,00€ cada e outro no valor de 25,00€.

35. Em obediência ao seu intento premeditado de subtração de tais artigos sem proceder ao correspetivo pagamento, o arguido passou deliberadamente a linha de caixa, sem liquidar, conforme lhe competia, o valor daqueles bens.

36. Foi então acionado o dispositivo de segurança e o vigilante da assistente, apercebendo-se do sucedido, abordou e confrontou o arguido, o qual tinha os objetos escondidos debaixo da sua roupa.

37. Tendo ainda o arguido tentado se evadir do estabelecimento, na posse dos artigos, antes da abordagem pelo vigilante que logo de seguida contactou as autoridades policiais.

38. Artigos que a assistente conseguiu recuperar, não tendo ficado danificados.

39. Com o seu comportamento, o arguido agiu com o intuito premeditado de integrar no seu património os referidos objetos (fazendo-os seus), o que conseguiu, bem sabendo que os mesmos não lhe pertenciam e que atuava contra a vontade e sem a autorização do seu dono, procedendo livre e conscientemente e bem sabendo que a sua atuação era proibida e contrária à lei.

(Processo apenso 896/22.5...)

40. No dia 07 de junho de 2022, entre as 13h00 e as 13h20, o arguido entrou na “Mercearia L.......”, sita Rua ..., em ..., a fim de fazer seus objetos de valor que encontrasse no interior da mesma e que conseguisse transportar consigo.

41. Já no seu interior, retirou e levou consigo os seguintes objetos: 8 embalagens de manteiga de amendoim, 1 EDT Nike, 4 embalagens de perfume – de marca Nike, 6 after shaves, 4 embalagens de Nivea, 1 desodorizante de marca axe gold e 8 gomas fingers, tudo no valor de € 111,61 (cento e onze euros e sessenta e um cêntimos).

42. Após, abandonou o local na posse dos aludidos objetos.

43. O arguido AA agiu com o propósito concretizado de fazer seus os aludidos objetos, bem sabendo que os mesmos não lhe pertenciam e que agia contra a vontade e sem o consentimento do seu proprietário II.

44. O arguido agiu de modo livre, deliberado e consciente, bem sabendo que o seu comportamento era proibido e punido por lei penal.

(Das condições socioeconómicas do arguido):

45. AA é natural de ..., sendo o mais velho de três irmãos, tendo ao longo dos primeiros onze anos de vida estado integrado no agregado familiar de origem e, posteriormente, no agregado familiar dos avós maternos. Desde cedo, revelou graves lacunas ao nível do cumprimento de regras e normas, apresentando um comportamento agressivo e violento para com os familiares.

46. Durante a infância, AA não manteve relação afetiva com o progenitor, em virtude de este nunca ter vivido maritalmente com a progenitora, nem efetivado qualquer contacto com o filho. Teve como figura de referência masculina o avô materno, com quem mantinha um relacionamento mais adequado, reconhecendo naquele, alguma autoridade. Com a mãe, o relacionamento era caracterizado essencialmente pela compensação em bens materiais face às lacunas afetivas existentes entre mãe e filho. Mais tarde, AA chegou a ser companheiro de cela do respetivo progenitor no Estabelecimento Prisional de ....

47. AA ingressou no sistema de ensino em idade própria, mantendo um percurso pautado pelo absentismo e dificuldades de aprendizagem, apresentando também um comportamento agressivo para com colegas e professores. Frequentou a escola até ao 6º ano, que não concluiu.

48. Aos 11 anos de idade e na sequência de alguns registos de ocorrência relacionados com o absentismo escolar, comportamento agressivo para com terceiros e falta de capacidade familiar para impor regras e normas ao arguido, AA foi colocado no Lar de Jovens em Risco da Santa Casa da Misericórdia de ..., no qual permaneceu até completar os 18 anos de idade. Durante o período de acolhimento, o arguido registou algumas ocorrências disciplinares, sendo referenciados parcos aspetos positivos da permanência do jovem na instituição. Beneficiou mais tarde de saídas autorizadas para passar fins-de-semana e épocas festivas com a família.

49. Ainda durante a permanência do jovem na Instituição e face às sucessivas atitudes agressivas que apresentou, AA beneficiou de acompanhamento do Serviço de Pedopsiquiatria do Hospital ... de ... em regime ambulatório. Além desta problemática, o arguido regista desde cedo consumos de substâncias estupefacientes, tendo numa primeira fase consumido haxixe e, depois, heroína.

50. Após saída da Instituição, AA regressou ao agregado materno, tendo continuado a frequentar a habitação da avó materna, sita no Bairro ..., com melhores condições de habitabilidade, onde realizava algumas refeições e higiene pessoal.

51. Aquando da concessão de liberdade condicional em 05 de novembro de 2018 aos 5/6 da respetiva pena, AA ficou acolhido em Valência da Associação “...” – CATE – Centro de Acolhimento de Emergência Temporário (acolhe indivíduos sem-abrigo), contudo, estabelecendo como prioridade o arrendamento de um quarto. Solicitou junto dos serviços de segurança social a atribuição do Rendimento Social de Inserção.

52. Aquando da primeira apresentação na Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais em 06-11-2018 comprometeu-se a realizar inscrição na Agência para a Qualificação e Emprego, o que ocorreu no dia 14 seguinte, tendo sido encaminhado para vertente formativa através da “Rede Valorizar”, cujo início verificou-se em 03 de dezembro.

53. Entretanto, em janeiro de 2019, AA mudou-se para a freguesia de S. Roque, mantendo contactos e sendo alvo de algum acompanhamento por parte da Associação “...”, mediante apoio médico, medicamentoso e financeiro, tendo sido alvo de consulta psiquiátrica (devido a instabilidade psicológica e emocional) e prescrição de medicação. Realizava também testes de despiste dos consumos de drogas, referindo AA consumos regulares de haxixe.

54. Em maio de 2019 e segundo AA, mantinha-se a residir na freguesia de S. Roque e tinha concluído o 6º ano pela Rede ... aguardando eventual reintegração para obtenção do 9º ano. Já não tomava a medicação psiquiátrica, mediante redução gradual da dosagem.

55. Em termos de ocupação, AA ia conseguindo prestar alguns dias de trabalho como pintor da construção civil. Nesse mesmo mês solicitou autorização de alteração de morada, uma vez que em S. Roque residia na mesma residência que a progenitora e uma irmã, esta com problemas de saúde do foro mental, para a Travessa ..., em .... Nesta morada, AA estabeleceu relação de namoro com uma jovem, toxicodependente, com a autorização de alteração de morada – Rua do ..., ..., ainda antes do termo do prazo da liberdade condicional que se verificou em 05 de fevereiro de 2020.

56. Em termos ocupacionais, mantinha alguns dias de trabalho no setor da construção civil, tendo sido orientado para realizar novamente inscrição na Agência para a Qualificação e Emprego, o que veio a concretizar.

57. Em julho de 2020, AA foi sinalizado pelo Hospital de ..., mediante ida ao serviço de urgência, à Associação “...”, contudo recusou acolhimento por parte desta Instituição.

58. Assim e segundo o apurado, AA continuava a privilegiar uma vivência de rua e os convívios sociais muito problemáticos, não usufruindo de suporte familiar minimamente consistente, até porque não mantém relacionamento equilibrado com qualquer dos familiares próximos, incluindo a progenitora.

59. Já foi julgado e condenado:

a) por sentença de 09/03/2011, pela prática de um crime de furto a 09/03/2012, na pena de 60 dias de multa, tendo cumprido 40 dias de prisão;

b) por sentença de 10/07/2012, pela prática de um crime de furto a 09/07/2012, na pena de 3 meses de prisão, suspensa por 1 ano;

c) por acórdão de 28/09/2012, pela prática de um crime de introdução em lugar vedado ao público a 07/10/2011 e de um crime de furto qualificado a 30/11/2011, na pena de 14 meses de prisão, suspensa por igual período de tempo;

d) por sentença de 21/12/2012, pela prática de um crime de furto qualificado a 19/05/2012, na pena de 2 anos e 4 meses de prisão;

e) por acórdão de 25/01/2013, pela prática de um crime de recetação a 23/01/2012 e de um crime de furto a 02/04/2012, na pena de 1 ano e 4 meses de prisão;

f) por sentença de 24/04/2012, pela prática de um crime de furto qualificado a 13/10/2011, um crime de ameaça a 18/02/2012 e um crime de furto a 17/09/2011, na pena de 2 anos e 1 mês de prisão e ainda de 80 dias de multa pelo crime de ameaça;

g) por sentença de 15/05/2013, pela prática de um crime de violência após subtração a 04/05/2012, na pena de 1 ano e 1 mês de prisão, tendo cumprido 53 dias de prisão subsidiária;

h) por sentença de 16/05/2013, pela prática de um crime de furto a 31/07/2012, na pena de 8 meses de prisão;

i) em cúmulo jurídico de 03/10/2013, na pena única 5 anos e 10 meses de prisão [processos mencionados em f), d), e), c), e b)];

j) por sentença de 10/12/2013, pela prática de um crime de furto qualificado tentado a 01/11/2011, na pena de 8 meses de prisão;

k) por sentença de 02/05/2014, pela prática de um crime de ameaça agravada a 20/07/2012, na pena de 3 meses de prisão;

l) em cúmulo jurídico de 17/03/2013, na pena única de 9 meses de prisão [processos mencionados em k) e j)].

8. E deu como não provado que:

(…)

(Processo apenso 1583/20.4...)

i) O arguido agiu ainda com a intenção de constranger o ofendido a suportar a sua conduta, não o denunciando à PSP, fazendo-o o crer que se o fizesse o Arguido iria cortar os pneus da sua viatura, o que, todavia, não logrou concretizar por motivos alheios à sua vontade.»

Como se confirma pelo acesso à acusação proferida no processo 1583/20.4..., que, após a apensação, passou a constituir o apenso E deste processo 1553/22.8PBPDL, este facto não provado corresponde ao facto 9 da acusação deduzida naquele processo.

Âmbito e objeto do recurso

9. O recurso tem, pois, por objeto um acórdão proferido pelo tribunal coletivo que aplicou uma pena de prisão superior a 5 anos, diretamente recorrível para o Supremo Tribunal de Justiça [artigo 432.º, n.º 1, al. c), do CPP]

Limita-se ao reexame de matéria de direito (artigo 434.º do CPP), não vindo invocado qualquer dos vícios ou nulidades referidos nos n.ºs 2 e 3 do artigo 410.º do CPP, nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 432.º, na redação introduzida pela Lei n.º 94/2021, de 21 de dezembro, que passou a admitir recurso da 1.ª instância para o Supremo Tribunal de Justiça com estes fundamentos.

O âmbito do recurso, que circunscreve os poderes de cognição deste tribunal, delimita-se pelas conclusões da motivação (artigos 402.º, 403.º e 412.º do CPP), sem prejuízo dos poderes de conhecimento oficioso, se for caso disso, em vista da boa decisão de direito, de vícios da decisão recorrida a que se refere o artigo 410.º, n.º 2, do CPP (acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/95, DR-I, de 28.12.1995), de nulidades não sanadas (n.º 3 do mesmo preceito) e de nulidades da sentença (artigo 379.º, n.º 2, do CPP, na redação da Lei n.º 20/2013, de 21 de fevereiro).

Estando em causa uma situação de concurso de crimes (artigos 30.º, n.º 1, e 77.º do Código Penal), pode este tribunal conhecer de todas as questões de direito relativas à pena conjunta aplicada aos crimes em concurso e às penas aplicadas a cada um deles, englobadas naquela pena única, inferiores àquela medida, se impugnadas (acórdão de fixação de jurisprudência n.º 5/2017, DR I, de 23.6.2017), como sucede no caso presente.

10. Em síntese, tendo em conta as conclusões da motivação do recurso, este Tribunal é chamado a apreciar e decidir:

(a) Se factos provados do processo apenso 1583/20.4... (pontos 22-30, supra, 7), atento o facto não provado descrito em i) (supra, 8), constituem crime de ameaça da previsão do artigo 153.º, n.º 1, do Código Penal, por que o recorrente vem condenado e se, sendo o caso, face à alteração dos factos, o acórdão se encontra, nesta parte, ferido de nulidade (conclusões 2 a 14);

(b) Se a pena de 4 anos de prisão aplicada pela prática do crime de furto qualificado objeto do processo apenso 1553/22.8PBPDL é excessiva (conclusões 15 a 20);

(c) Se a pena única, de 7 anos e 2 meses de prisão, é excessiva e, sendo-o, deverá ser reduzida para medida inferior a 7 anos de prisão (conclusões 21 a 31).

Quanto ao crime de ameaça [supra 10 (a)]

11. Nesta parte, o acórdão recorrido encontra-se assim fundamentado:

«É imputada ao arguido a prática de quatro crimes de coação, um deles na forma tentada, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 154º, nº 1 e 22 do Código Penal.

Dispõe o artigo 154º, nº1 do Código Penal que comete um crime de coação Quem, por meio de violência ou de ameaça com mal importante, constranger outra pessoa a uma ação ou omissão, ou a suportar uma atividade”, acrescentando no seu nº 2, que a tentativa é punível.

Constituem elementos do tipo objetivo em análise, o uso pelo agente, de violência (seja física, seja psíquica) ou o anúncio com um mal importante, de forma a forçar a vontade do coagido a agir ou proceder de determinada forma.

O crime de coação desenha-se, portanto, como um crime de execução vinculada. O conceito indeterminado mal importante deve ser preenchido em face das circunstâncias do caso concreto avaliadas sob o prisma do homem médio (critério objetivo-individual), exigindo-se que a ameaça ou a violência utilizada sejam objetivamente adequadas a atingir o fim visado.

A violência ou a ameaça utilizada pelo agente tanto podem visar diretamente a pessoa a coagir, como terceiros ou mesmo bens de natureza patrimonial.

Revela-se este ilícito como um crime de resultado pelo que, visando tutelar a liberdade de ação e de determinação individual, consuma-se, quando o visado pela violência ou a quem a ameaça tenha sido dirigida, tenha sido, de facto, limitado na sua liberdade de determinação.

A sua consumação ocorre, assim no momento em que alguém é violentado a fazer ou a suportar o que não quer ou a omitir o que quer, pelo que a perduração do constrangimento para além desse momento releva não para a consumação do crime, mas para a determinação do ilícito.

Impõe-se ainda que o constrangimento do coagido tenha resultado precisamente da conduta do agente infrator, por adequação desta última, e não por qualquer outro facto estranho ou alheio à vontade deste, caso que configurará mera tentativa.

No que respeita ao tipo subjetivo, este pressupõe, por parte do agente, uma conduta dolosa, em qualquer uma das suas modalidades.

Subsumindo os factos ao direito e ponderada a circunstância de a tentativa ser punível, concluímos que, relativamente ao processo 1553, não estão preenchidos os elementos do tipo em questão, pois o ofendido FF já havia chamado a Polícia de Segurança Pública quando o arguido exibiu a navalha e proferiu as expressões. Estaríamos, eventualmente, perante a prática do crime de ameaça (artigo 153º), mas, perante a ausência de queixa tempestiva (artigo 115º do Código Penal), será o arguido absolvido pela prática destes três crimes.

Já quanto ao processo 1583, estamos também perante a prática de um crime de ameaça, e não de coação, pois o arguido diz a BB que lhe vai cortar os quatro pneus, não o estando a constranger a qualquer comportamento, pelo que, havendo queixa tempestiva, será condenado pela prática de um crime de ameaça (artigo 153º do Código Penal).

12. Discorda o arguido desta última conclusão, pois que, diz em síntese, para além de este crime não lhe ser imputado na acusação, omissa quanto aos elementos objetivos e subjetivos do tipo de crime de ameaça – o que, alega, sem cumprimento do disposto no artigo 358.º, n.ºs 1 e 3, e 359.º do CPP, geraria a nulidade do acórdão, impedindo a condenação –, a matéria de facto provada não preenche tal tipo de crime.

Expondo as razões da discordância, diz na motivação que:

«(…) a Acusação do Ministério Público não imputa ao Arguido qualquer crime de ameaça, pelo que o arguido foi surpreendido com a condenação sem mais por tal tipo de ilícito p. no artº 153º/1 CP na pena de 6 meses de prisão.

Na verdade, a Acusação não dispunha nem dispõe de qualquer enunciação ou imputação de qualquer elemento subjectivo desse tipo de ilícito ao arguido, sendo o crime de ameaça um tipo de ilícito que requer, por parte do agente, uma conduta dolosa, em qualquer uma das suas modalidades de dolo. E na Acusação nem sequer consta qualquer imputação objectiva ou subjectiva desse tipo de ilícito ao arguido AA.

Logo, o Acórdão recorrido não podia ter condenado o Arguido por tal tipo de ilícito de ameaça (…). E como sabemos o Tribunal Colectivo não pode completar a Acusação quanto a tais elementos fundamentais que preenchem objectivamente e subjectivamente um qualquer tipo de ilícito, nem pode substituir-se ao Ministério Público nesta matéria quando uma qualquer Acusação padece de nulidade, atento o Princípio da vinculação temática a que o Tribunal está adstrito como reflexo da estrutura acusatória do Processo Penal, não podendo o Tribunal em Julgamento, sequer através dos arts. 358º ou 359º CPP, suprir ou integrar lacunas de uma Acusação que se verifiquem por não cumprimento do artº 283º/3 CPP (cfr. Acórdão STJ Uniformizador de Jurisprudência nº 17/07.4 GBORQ.E2-A.S1- 5ª Secção- Sr. Juíz Conselheiro Relator Rodrigues da Costa: “A falta de descrição na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada em julgamento por recurso ao mecanismo previsto no art.º 358.º do CPP.” [acórdão n.º 1/2015, DR 1.ª Série, n.º 18, de 27.01.2015]

Por outro lado, resulta da matéria de facto dada como provada no próprio Acórdão, no que respeita a este Proc. apenso nº 1583/20.4..., que não foi dado como provado qualquer elemento objectivo (note-se que, nomeadamente, nem sequer os pneus são um bem de valor elevado para efeitos do preenchimento do tipo de ilícito p. no artº 153º/1 CPP) nem qualquer elemento subjectivo do tipo concreto de ilícito p. no artº 153º/1 CP, nem podia, pois da Acusação também nada consta a tal respeito, como supra referimos.

Assim, (…) o Acórdão recorrido não podia ter condenado o arguido por tal tipo de ilícito, sob pena de incorrer na nulidade resultante da contradição entre a matéria de facto provada e a Decisão de Direito nos termos do artº 410º/2,b) 2ª parte CPP - nulidade que aqui se invoca para todos os efeitos legais e em que acabou por incorrer o Acórdão ao ter condenado indevidamente o arguido por tal tipo de ilícito p. no artº 153º/1 CP, cujo dispositivo legal também assim o Acórdão recorrido violou. Deve pois o Acórdão ser revogado, ser decretada a referida nulidade, e afinal não condenado o arguido por qualquer crime de ameaça, por, desde logo, inexistência de qualquer menção na Acusação Pública aos elementos objectivos e subjectivos desse tipo de ilícito.

Caso assim não se entendesse, (…) atender-se-ia ao facto de só no momento da leitura do Acórdão final o arguido ter tomado conhecimento de tal qualificação jurídica e condenação efectuadas pelo Tribunal Colectivo, sem que antes o Tribunal tenha dado previamente conhecimento ao arguido de que iria ser-lhe imputado um crime de ameaça, não tendo o Tribunal dado cumprimento ao disposto no artº 358º/1,3 ou 359º CPP, havendo nessa hipótese e no mínimo uma alteração da qualificação jurídica dos factos operada pelo Tribunal “a quo”.

Ou seja, o Tribunal não deu ao arguido a oportunidade para se pronunciar, querendo, sobre o novo enquadramento jurídico dos factos. O Acórdão absolveu-o do crime de coacção, e concluindo por nova qualificação jurídica condenou-o por alegado crime de ameaça do qual nem vinha acusado o arguido. Note-se que, são esses dois tipos de ilícitos bem distintos entre si, quer na configuração jurídica objectiva e subjectiva de cada um.

(…) o Tribunal não poderia qualificar o crime sem previamente fazer a comunicação ao arguido para o prevenir dessa qualificação, da qual este pode discordar, como “in casu” discorda conforme resulta desta Motivação de recurso. (…)

Ao ter (…) alterado o objecto do processo sem comunicar previamente ao arguido para o mesmo poder pronunciar-se, violou, pois, as garantias de defesa do arguido, o seu direito a um processo justo e equitativo e ao exercício pleno do contraditório, (arts. 20º/4 e 32º/1,5 CRP), o Princípio da Legalidade (artº 9º/1 CPP), o Princípio da Igualdade (artº 13º CRP) na vertente da Justiça Relativa, e ainda incorreu na violação dos arts. 358º/1,3 e 359º CPP, incorrendo na consequente nulidade nos termos do art.º 379º/1, b) CPP - nulidade que aqui se invoca para todos os efeitos legais. (…)».

13. No apenso 1583/20.4..., estava, pois, o arguido acusado da prática de um crime de coação na forma tentada, de que foi absolvido [dispositivo do acórdão recorrido, ponto 3, onde se lê: «(…) acordam os Juízes que compõem este Tribunal Coletivo: (…) 3. Absolver AA pela prática de um crime de coação na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 154º, nº1 e 22º do Código Penal (Apenso 1583)].

Porém, em vez disso, o arguido foi condenado, por factos descritos na mesma acusação, pela prática de um crime de ameaça. Como se viu, diz o acórdão: «(…) quanto ao processo 1583, estamos também perante a prática de um crime de ameaça, e não de coação, pois o arguido diz a BB que lhe vai cortar os quatro pneus, não o estando a constranger a qualquer comportamento, pelo que, havendo queixa tempestiva, será condenado pela prática de um crime de ameaça (artigo 153º do Código Penal).

A divergência em questão entre os factos descritos na acusação, pelo qual era imputada a prática de um crime de coação na forma tentada, e os descritos nos factos provados enumerados na sentença, que fundamenta a condenação pelo crime de ameaça, resulta apenas de não ter sido dado como provado um ponto da matéria de facto descrito na acusação e que, na sentença, consta da alínea i) dos factos não provados: «i) O arguido agiu ainda com a intenção de constranger o ofendido a suportar a sua conduta, não o denunciando à PSP, fazendo-o o crer que se o fizesse o Arguido iria cortar os pneus da sua viatura, o que, todavia, não logrou concretizar por motivos alheios à sua vontade

Pelo que se questiona se esta alteração corresponde a uma alteração de factos – a uma alteração substancial, tendo em conta a definição da alínea f), do artigo 1.º do CPP, segundo a qual se considera «alteração substancial dos factos aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis», com os efeitos previstos no artigo 359.º do CPP (não ser levada em conta para efeito de condenação, salvo acordo do arguido e do Ministério Público), ou uma «alteração não substancial dos factos da acusação», que pode ser levada em conta, cumprido o contraditório, nos termos do n.º 1 do artigo 358.º do CP.

Antecipando a conclusão, a resposta a esta questão é negativa.

14. Sendo o crime de coação previsto no artigo 154.º, n.º 1, punível com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa até 360 dias (artigo 47.º, n.º 1), à tentativa, que é punível por força do disposto no artigo 154.º, n.º 2, corresponde a pena de prisão até 2 anos ou de multa até 240 dias, por redução de um terço nos seus limites máximos, nos termos do artigo 77.º, n.º 1, alíneas a) e c), aplicável por força do artigo 23.º, n.º 2, todos do Código Penal. Ao crime de ameaça p. e p. pelo artigo 153.º, n.º 1, do Código Penal corresponde a pena de prisão até um ano ou a pena de multa até 120 dias.

Uma vez que esta pena é de limite máximo inferior ao da pena do crime constante da acusação, estaria, desde logo, afastada a alteração substancial dos factos pelo critério de agravação da pena.

E o mesmo sucederia pelo critério da imputação de um «crime diverso».

15. Como se tem entendido na jurisprudência e na doutrina, imputação de «crime diverso» não significa apenas a «imputação» de um outro tipo legal de crime, que terá de ser punível com pena igual ou inferior à correspondente ao tipo legal de crime imputado na acusação, uma vez que, sendo a pena de moldura superior, a alteração substancial resultaria, desde logo, da agravação dos limites máximos. Imputação de «crime diverso» significa imputação de novos factos e que «os novos factos conhecidos pelo tribunal vão além do objeto do processo fixado pela acusação ou pela pronúncia» (Maria João Antunes, Direito Processual Penal, 3.ª ed., Almedina, 2012, p. 206-207).

Esta questão da identificação de «crime diverso» reconduz-se, como tem sido notado, à problemática do objeto do processo na fase de julgamento, definido e delimitado pelos factos «alegados» («narrados» ou «descritos») na acusação ou na pronúncia, havendo-a [artigos 283.º, n.º 3, al.), e 308.º, n.º 2, do CPP], pela defesa e pelos que resultarem da prova produzida em audiência, nos termos em que se expressa o n.º 4 do artigo 339.º do CPP, o qual dispõe que, «[s]em prejuízo do regime aplicável à alteração dos factos, a discussão da causa tem por objecto os factos alegados pela acusação e pela defesa e os que resultarem da prova produzida em audiência, bem como todas as soluções jurídicas pertinentes, independentemente da qualificação jurídica dos factos resultante da acusação ou da pronúncia, tendo em vista as finalidades a que se referem os artigos 368.º e 369.º». Objeto do processo, que deve ser julgado na sua totalidade, com todas as garantias de defesa, é um «recorte, um pedaço de vida, um conjunto de factos em conexão natural», na formulação de Figueiredo Dias (id., ibid.), delimitado pelos descritos na acusação, sujeitos a prova e a contraditório, a partir dos quais, usando a definição de «crime» constante da alínea a) do CPP, se constituem os pressupostos de aplicação de uma pena, e que, por subsunção, se exprimem, desde logo, num tipo legal de crime.

16. No caso, não está em causa qualquer facto que não se inscreva no objeto do processo. O que se discutiu e submeteu a prova em julgamento foi o «pedaço de vida» descrito na acusação, os factos nela narrados na sua «conexão natural», do conhecimento do arguido, que sobre eles pôde exercer em plenitude o seu direito de defesa e sobre os quais o tribunal da condenação se pronunciou, a final, considerando-os provados ou não provados.

Como se tem entendido, a ausência de prova de um facto que se compreende no objeto do processo não submete o resultado da prova ao regime de alteração dos factos. A redução da matéria de facto da acusação não põe em causa as garantias constitucionais, pois não coloca o problema da reformulação da defesa e do contraditório, já exercido, quanto a essa matéria de facto (assim, o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 330/97). O conceito legal abrange apenas as situações em que está em causa a imputação de factos que não integram o objeto do processo (assim, Henrique Salinas, Os Limites Objetivos do Ne Bis In Idem, UC Editora, 2014, p. 362-364, e doutrina e abundante jurisprudência aí citadas).

De todo o modo, assinala-se, se os factos assim parcialmente provados preencherem um tipo de crime diferente daquele por que o arguido está acusado (ou pronunciado), isto é, se houver lugar a uma alteração da qualificação jurídica, impõe-se a observância do regime de alteração não substancial dos factos – a comunicação da alteração ao arguido e a concessão, se ele o requerer, do tempo estritamente necessário a preparar a defesa, nos termos do n.º 1 do artigo 358.º do CPP, por remissão do respetivo n.º 3, sob pena de nulidade da sentença condenatória nos termos do artigo 379.º, n.º 1, al. b) do CPP, segundo o qual é nula a sentença «[q]ue condenar por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, fora dos casos e das condições previstos nos artigos 358.º e 359.º» (neste sentido, em concordância, também com citação de abundante jurisprudência e doutrina, Oliveira Mendes, Código de Processo Penal Comentado, Henriques Gaspar et alii, Almedina, 4.ª ed., 2022, p. 1112; Maria João Antunes, loc. cit., p. 207, Sandra Oliveira e Silva e Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, Vol. II, UCP Editora, 5.ª ed., 2023, p. 419, e António Gama et alii, Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Tomo IV, 2.ª ed., 2023, p. 645).

Estabelece o n.º 3 do artigo 358.º do CPP que o n.º 1 é correspondentemente aplicável quando o tribunal alterar a qualificação jurídica dos factos descritos na acusação ou na pronúncia. O que obriga – sob pena de, não sendo o caso, se praticarem atos inúteis, não permitidos (artigo 130.º do CPC ex vi artigo 4.º do CPP) – à formulação de um juízo de idoneidade e valoração dos factos provados no sentido da sua correspondência à descrição típica da previsão normativa de um concreto crime estabelecida na lei penal, com rigorosa indicação da norma incriminadora, para que possa ser adequadamente assegurada a garantia do contraditório.

17. Como se viu, o acórdão recorrido, eliminando o facto i) dos factos não provados, por virtude do qual a acusação imputava ao arguido um crime de coação na forma tentada, limitou-se a dizer que «estamos também perante a prática de um crime de ameaça, e não de coação, pois o arguido diz a BB que lhe vai cortar os quatro pneus, não o estando a constranger a qualquer comportamento, pelo que, havendo queixa tempestiva, será condenado pela prática de um crime de ameaça (artigo 153º do Código Penal)».

Dos factos provados, com relevância para a verificação dos elementos constitutivos do tipo de crime de ameaça, apenas se extrai o que consta do ponto 27: «O Ofendido verbalizou que ia queixar-se à polícia e o Arguido retorquiu “Vais à polícia? Não tenho medo da polícia, quando voltares vou cortar-te os quatro pneus!”.»

O que é manifestamente insuficiente.

Com efeito, dispondo o artigo 153.º, que «[q]uem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias», faltam elementos da descrição de facto que permitam concluir que os bens patrimoniais (no caso, os «quatro pneus» que o arguido ameaçava cortar) eram de considerável valor e que a ameaça foi feita de forma adequada a provocar medo ou inquietação ou a prejudicar a liberdade de determinação do ofendido.

Assim sendo, ao apreciar a questão da culpabilidade, não podia o tribunal recorrido, por falta de base factual, concluir que se verificavam os «elementos constitutivos do crime» [artigo 368.º, n.º 2, al. a), do CPP].

O que dispensaria a comunicação a que se refere o n.º 1 do artigo 358.º do CPP, por os factos não serem passíveis de qualificação jurídica que devesse ser alterada.

18. Termos em que, sendo caso em que se imporia que fosse proferida decisão absolutória, deve ser dado provimento ao recurso, com revogação da decisão condenatória pelo crime de ameaça pelos factos dados como provados no processo apenso 1583/20.4... Ficando prejudicado o conhecimento da alegada questão da nulidade do acórdão, nesta parte.

Em consequência, haverá que retirar a condenação por este crime de ameaça do conjunto dos crimes em concurso, o qual deve ser reformulado nesta conformidade (infra).

Quanto á pena aplicada pela prática do crime de furto qualificado objeto do processo apenso 1553/22.8PBPDL [supra, 10 (b)]

19. O acórdão recorrido concluiu que o arguido praticou 7 crimes, entre os quais 1 crime de furto qualificado p. e p. artigo 204.º, n.º 2, alínea e), do Código Penal, a que aplicou uma pena 4 anos de prisão, que o arguido impugna.

Fundamentou a decisão de determinação da medida de todas as penas parcelares, incluindo, portanto, a correspondente ao crime de furto qualificado, nos seguintes termos:

«(…)

O crime de furto qualificado, previsto pelo artigo 204º, nº2, alínea e) do Código Penal, é punido com pena de prisão de dois a oito anos (NUIPC 1553). (…)

Em conformidade com o disposto no artigo 70º do Código Penal, a escolha da pena deve ser feita dando preferência à pena não privativa da liberdade sempre que esta se mostre suficiente para promover a ressocialização do delinquente e satisfaça a proteção dos bens jurídicos (artigo 40º do Código Penal), sendo alheias, neste momento, considerações relativas à culpa que apenas funciona como limite (e não como fundamento) no momento da determinação da medida concreta da pena já escolhida.

A aplicação de penas visa, por um lado, reafirmar na comunidade a manutenção da validade das normas violadas, repondo a confiança dos cidadãos na validade e vigência da norma violada sempre que a mesma tenha sido abalada pela prática de um crime (prevenção geral positiva) e, por outro, a reintegração do agente na sociedade através da “prevenção da reincidência” (prevenção especial positiva). (…)

Importa, agora, determinar a medida concreta da pena a aplicar.

Nesses moldes, a prevenção geral positiva ou de integração está incumbida de fornecer o limite mínimo, que tem como fasquia superior o ponto ótimo de proteção dos bens jurídicos e inferior o ponto abaixo do qual já não é comunitariamente suportável a fixação da pena sem pôr em causa a sua função tutelar. Por seu turno, a culpa, entendida em sentido material e referida à personalidade do agente expressa no facto, surge como limite inultrapassável de toda e qualquer consideração preventiva (artigo 40º, nº 2, do Código Penal). Ora, dentro desses limites, cabe à prevenção especial a determinação da medida concreta da pena, sendo de atender à socialização do agente, considerando ainda as demais circunstâncias favoráveis e desfavoráveis ao arguido na medida em que se mostrem relevantes para a culpa ou para as exigências preventivas, que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra o arguido, como preceitua o artigo 71º, nº 2, do Código Penal, encontrando-se assim a pena adequada e justa.

Nessa perspetiva, as exigências de prevenção geral são elevadas, na medida em que os crimes contra o património e as pessoas continuam a ser os que registam mais ocorrência em território nacional (sendo disso expressão o Relatório Anual de Segurança Interna de 2021), pelo que urge reafirmar a validade das normas violadas. Por outro lado, a comunidade reputa de relevante a frequência com que estes crimes são praticados, sendo certo que os bens protegidos por este tipo incriminador revestem importância no dia-a-dia da comunidade.

Deverá ainda ter-se presente o grau de ilicitude dos factos, que é mediano, atenta a forma de execução dos crimes (um deles com a ofendida a dormir) e a natureza e o valor dos bens subtraídos. Também elevada é a culpa do arguido, atento o dolo direto e a linha de continuidade criminosa (embora aliada a uma situação de toxicodependência). Não podemos ainda ignorar os antecedentes criminais daquele. A favor do arguido nada abona, não dispondo aquele de apoio familiar que o ajude a inverter o rumo e tendo o mesmo ainda recusado ajuda institucional.

Assim, o Tribunal Coletivo decide aplicar as seguintes penas: (…) NUIPC 1553: 4 anos de prisão (…).»

20. Nos termos do artigo 40.º do Código Penal, que se refere às finalidades das penas, “a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade” e “em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa”.

Seguindo o que repetidamente se tem afirmado em acórdãos anteriores (por todos, o acórdão de 21.06.2023, Proc. n.º 257/13.7TCLSB.L1.S1, em www.dgsi.pt, que agora se segue de perto), estabelece o n.º 1 do artigo 71.º do Código Penal que a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, devendo o tribunal atender a todas as circunstâncias relacionadas com o facto praticado (facto ilícito típico) e com a personalidade do agente (manifestada no facto) – fatores relativos à execução do facto, à personalidade do agente e à conduta do agente, anterior e posterior ao facto –, relevantes para avaliar da medida da pena da culpa e da medida da pena preventiva, que, não fazendo parte do tipo de crime (proibição da dupla valoração), deponham a favor do agente ou contra ele considerando, nomeadamente, as indicadas no n.º 2 do mesmo preceito.

Para a medida da gravidade da culpa há que, de acordo com o artigo 71.º, considerar os fatores reveladores da censurabilidade manifestada no facto, nomeadamente, nos termos do n.º 2, os fatores capazes de fornecer a medida da gravidade do tipo de ilícito objetivo e subjetivo – indicados na alínea a), primeira parte (grau de ilicitude do facto, modo de execução e gravidade das suas consequências), e na alínea b) (intensidade do dolo ou da negligência) – e os fatores a que se referem a alínea c) (sentimentos manifestados no cometimento do crime e fins ou motivos que o determinaram) e a alínea a), parte final (grau de violação dos deveres impostos ao agente), bem como os fatores atinentes ao agente, que têm que ver com a sua personalidade – indicados na alínea d) (condições pessoais e situação económica do agente), na alínea e) (conduta anterior e posterior ao facto) e na alínea f) (falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto).

Na consideração das exigências de prevenção, destacam-se as circunstâncias relevantes em vista da satisfação de exigências de prevenção geral – traduzida na proteção do bem jurídico ofendido mediante a aplicação de uma pena proporcional à gravidade dos factos, reafirmando a manutenção da confiança comunitária na norma violada – e, sobretudo, de prevenção especial, as quais permitem fundamentar um juízo de prognose sobre o cometimento, pelo agente, de novos crimes no futuro, e assim avaliar das suas necessidades de socialização. Incluem-se aqui as consequências não culposas do facto [alínea a), v.g. frequência de crimes de certo tipo, insegurança geral ou pavor causados por uma série de crimes particularmente graves], o comportamento anterior e posterior ao crime [alínea e), com destaque para os antecedentes criminais] e a falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto [alínea f)]. O comportamento do agente [circunstâncias das alíneas e) e f)] adquire particular relevo para determinação da medida concreta da pena em vista da satisfação das exigências de prevenção especial, em função das necessidades individuais e concretas de socialização do agente, devendo evitar-se a dessocialização.

Como se tem sublinhado, é na determinação e na consideração destes fatores que deve avaliar-se a concreta gravidade da lesão do bem jurídico protegido pela norma incriminadora, materializada na ação levada a efeito pelo arguido pela forma descrita nos factos provados, de modo a verificar se a pena aplicada respeita os critérios de adequação e proporcionalidade que devem pautar a sua aplicação, constitucionalmente impostos (artigo 18.º, n.º 2, da Constituição; assim, entre outros, os acórdãos de 8.6.2022, Proc. 430/21.4PBPDL.L1.S1, de 26.06.2019, Proc. 174/17.1PXLSB.L1.S1, de 9.10.2019, Proc. 24/17.9JAPTM-E1.S1, e de 3.11.2021, Proc. 875/19.0PKLSB.L1.S1, cit.).

21. Em síntese, discorda o arguido pelas circunstâncias de a seu ver não ter sido considerada a «confissão parcial» dos factos, «a situação de toxicodependência que motivou a prática do crime» e de o tribunal «ter dado tanta primazia aos antecedentes criminais do arguido, quando a maior parte destes se referem a factos praticados em 2011 e 2012, ou seja há mais de 10 anos

22. Resulta da decisão recorrida que o arguido confessou parcialmente os factos, embora negando que tenha levado todos os objetos indicados pela ofendida, que os especificou, indicando os respetivos valores. Não se mostra que o tribunal não tenha considerado a confissão, sendo que esta foi parcialmente contrariada pelas declarações da ofendida, que o tribunal valorou para fundamentar a decisão. De todo o modo, tal confissão não se mostrou importante para o esclarecimento dos factos, nem o comportamento posterior ou outros elementos permitem a conclusão pretendida pelo recorrente no sentido de a confissão parcial ser reveladora de «arrependimento e assunção de responsabilidade».

Das condições pessoais reveladas pelo relatório social extrai-se que o arguido, nascido a 6.11.1991, sofre, desde muito jovem, de problemas do foro psiquiátrico e de toxicodependência, resultantes de consumo de haxixe e heroína, vivendo na rua depois de se frustrarem várias tentativas de apoio médico e acolhimento institucional que o próprio recusou. É neste quadro de vida de conflito e sem apoio familiar, depois de já ter cumprido penas de prisão, que o arguido praticou os crimes, numa situação que, na sua ambivalência – enquanto fator suscetível de, por um lado, afetar a liberdade de determinação e de, por outro, aumentar a censurabilidade – evidencia prementes necessidades de ressocialização, a satisfazer através da aplicação da pena de prisão, não sendo possível identificar elementos favoráveis à pretensão de redução da pena por via da alegada toxicodependência.

23. Quanto aos antecedentes criminais importa levar em conta a data em que o registo das condenações anteriores deixa de produzir efeito.

Como alerta Figueiredo Dias, a existência de condenações anteriores, que constituem uma circunstância atinente à conduta anterior ao facto [artigo 71.º, n.º 1, al. e), do CP] que pode servir para agravar a medida da pena, só deverá ser considerada se puder «ligar-se ao facto praticado e constituir índice de uma culpa mais grave e (ou) exigências acrescidas de prevenção»; se no registo criminal tiverem sido objeto de cancelamento não poderão ser valoradas, pois que, «apesar da falta de norma expressa nesse sentido, a finalidade socializadora do cancelamento e a lógica dos próprios mecanismos de proibição de acesso às inscrições conduzem a considerar que existe aqui uma autêntica proibição de prova (proibição de valoração de prova) que o juiz não pode infringir» (Direito Penal, As Consequências Jurídicas do Crime, Coimbra Editora, 3.ª reimp., 2011, p. 253).

No caso dos autos, não ocorre motivo impeditivo da valoração das condenações anteriores.

Com efeito, dispõe o artigo 11.º (sob a epígrafe «cancelamento definitivo»), n.º 1, al. a), da Lei n.º 37/2015, de 5 de maio (lei da identificação criminal), que as decisões (inscritas no registo) que tenham aplicado pena de prisão com duração entre 5 e 8 anos – como é o caso [está fundamentalmente em causa uma pena única de 5 anos e 10 meses de prisão, aplicada em 30.10.2013, que incluiu as penas anteriores aplicadas em 2012 e 2013 – supra, 7 (59)] – «cessam a sua vigência» no registo criminal depois de decorridos 7 anos «sobre a extinção da pena», não sobre a data dos factos a que respeitam.

Tendo em conta a data do termo da liberdade condicional [em 5.2.2020 – supra, 7 (55)], com o efeito de extinção da pena (artigo 57.º do CP ex vi artigo 64.º), o registo da pena ainda se encontra «vigente».

Pelo que se impunha ao tribunal da condenação que, como ocorreu, a tivesse em conta na determinação da medida da pena, nos termos do artigo 71.º do Código Penal.

24. Para além disto, e para além das considerações de prevenção geral e do elevado grau de ilicitude do modo de execução do facto, pese embora o não elevado valor dos objetos furtados, sempre haverá que considerar, também negativamente, as muito elevadas exigências de prevenção especial face à personalidade desvaliosa e à falta de preparação do arguido para manter uma conduta lícita, reveladas na prática dos factos, em função das evidenciadas necessidades de socialização, para que contribuem as desfavoráveis condições socioeconómicas e familiares.

25. Assim, considerando a moldura da pena aplicável, de 2 a 8 anos de prisão, não se surpreendem elementos que, por não terem sido adequadamente ponderados, permitam constituir base de um juízo de discordância relativamente à pena aplicada, de 4 anos de prisão, a justificar uma intervenção corretiva.

Pelo que improcede o recurso nesta parte.

Quanto à pena única [supra, 10 (c)]

26. O acórdão recorrido, em decisão que, à exceção do crime de ameaça, não merece censura quanto à qualificação jurídica dos factos, condenou o arguido pela prática de 7 crimes, sendo 3 de furto simples (em penas de 1 ano e 4 meses de prisão, 1 ano e 2 meses e de 1 ano e 6 meses), 1 de furto qualificado (com 4 anos de prisão), 1 de dano (pena de 1 ano e 4 meses), 1 de ofensa à integridade física simples (pena de 1 ano e 2 meses) e 1 de ameaça (pena de 6 meses de prisão).

Realizando o cúmulo jurídico destas penas, aplicou a pena única de 7 anos e 2 meses de prisão.

Fundamentou a decisão de determinação da pena nos seguintes termos:

“Verificando-se, um concurso real e efetivo de infrações a punição deve realizar-se de acordo com o disposto no artigo 77º do Código Penal.

Nos termos do nº 2 da norma acima referida, a pena única deverá ter como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas (11 anos de prisão) e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas a todos os crimes (4 anos de prisão).

Dentro desta moldura, há também que atender aos factos e à personalidade do agente, apreciados conjuntamente (artigo 77º, nº 1, parte final do Código Penal), que revelam uma tendência criminosa (aliada à toxicodependência), e realizando uma análise genérica e consequencial de toda a factualidade (nomeadamente a gravidade do ilícito global, atento o modo de execução dos crimes, o período temporal e os valores em causa), de modo a fazer corresponder a punição aos factos e às exigências pessoais e sociais que a sua prática suscitou, com o máximo rigor e acerto, demonstra-se adequada a fixação da pena única em 7 anos e 2 de prisão.»

27. Nos termos do artigo 77.º, n.º 1, do Código Penal, que estabelece as regras da punição do concurso de crimes (artigo 30.º, n.º 1), quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena, formada a partir da moldura do concurso, para cuja determinação, seguindo-se os critérios da culpa e da prevenção atrás mencionados (artigo 71.º), são considerados, em conjunto, como critério especial, os factos e a personalidade do agente (n.º 1 do artigo 77.º, in fine), com respeito pelo princípio da proibição da dupla valoração. Aqui se incluem, designadamente, as condições económicas e sociais, reveladoras das necessidades de socialização, a sensibilidade à pena, a suscetibilidade de por ela ser influenciado e as qualidades da personalidade manifestadas no facto, nomeadamente a falta de preparação para manter uma conduta lícita (Figueiredo Dias, As Consequências Jurídicas do Crime, 3.ª reimp., 2011, p. 248ss; por todos, o acórdão de 8.6.2022, Proc. 430/21.4PBPDL.L1.S, cit. e de 16.2.2022, Proc. 160/20.4GAMGL.S1).

Recordando jurisprudência constante deste Supremo Tribunal de Justiça e o que se tem consignado em acórdãos anteriores, com a fixação da pena conjunta pretende-se sancionar o agente, não só pelos factos individualmente considerados, mas também, e especialmente, pelo seu conjunto, enquanto revelador da dimensão e gravidade global do seu comportamento. É o conjunto dos factos descritos na sentença que evidencia a gravidade do ilícito perpetrado (o “grande facto”), sendo decisiva, para a sua avaliação, a conexão e o tipo de conexão que se verifique entre os factos que constituem os tipos de crime em concurso.

Há que atender ao conjunto de todos os factos e ao fio condutor presente na repetição criminosa, estabelecendo uma relação desses factos com a personalidade do agente, ter em conta a caracterização desta pela sua projeção nos crimes praticados, levando-se em consideração a natureza dos crimes e a verificação ou não de identidade dos bens jurídicos violados, tudo isto «tendo em vista descortinar e aferir se o conjunto dos factos praticados é a expressão de uma tendência criminosa, isto é, se significará já a expressão de algum pendor para uma “carreira”, ou se, diversamente, a repetição emergirá antes e apenas de fatores meramente ocasionais» [assim, o acórdão de 25.10.2023, Proc. 3761/20.7T9LSB.S1, em www.dgsi.pt, e jurisprudência nele mencionada, retomando-se o que se afirmou em anteriores acórdãos].

Repetindo uma citação recorrente, «Na avaliação da personalidade relevará, sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma «carreira») criminosa, ou tão-só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido a atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta». «A personalidade do agente – se bem que não a personalidade no seu todo, mas só a personalidade manifestada no facto», – «é um factor da mais elevada importância para a medida da pena e que para ela releva, tanto pela via da culpa como pela via da prevenção» (Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Coimbra Editora, p. 291).

28. Na alegação do recorrente, que igualmente considera elevadas as necessidades de prevenção geral, a pena única é excessiva porque não tomou em conta a situação de toxicodependência, a sua precária condição socioeconómica, a recuperação da maior parte dos objetos furtados, o valor não elevado destes, a confissão da maior parte dos factos, o abandono de consumo de estupefacientes após a detenção e as circunstâncias de não se revelar uma tendência criminosa e de os antecedentes criminais já terem sido atendidos na determinação das penas parcelares.

29. A redução do número de crimes em concurso, por deste conjunto se excluir o crime de ameaça, implica, desde logo, a diminuição do limite máximo da moldura da pena aplicável, de 11 anos para 10 anos e 6 meses de prisão, descontados os 6 meses de prisão aplicados a esse crime.

O conjunto dos seis crimes em concurso é agora constituído por cinco crimes contra a propriedade (três crimes de furto simples, um de furto qualificado e um de dano) e um crime de ofensa à integridade física.

O valor total dos objetos furtados é de 1488,57 euros. Foram devolvidos objetos no valor de 107,97 euros, ficando o arguido na posse de um objeto no valor de 34,99 euros do furto no supermercado Continente. Foram recuperados todos os objetos furtados na loja Decathlon, no valor de 89 euros. Ficou o arguido na posse dos objetos furtados na residência da ofendida DD, no valor de 1145 euros (furto qualificado), e na Mercearia L......., no valor de 111,62 euros.

O valor dos danos causados pelos pontapés na porta do veículo do ofendido BB (crime de dano) foi de 640,50 euros.

O crime de ofensa corporal realizou-se pelo desferimento de 2 ou 3 murros na face do ofendido que apenas causaram dores.

Ressalta, assim, um comportamento de reduzido grau de ilicitude, em particular o correspondente aos crimes de furto praticados no Continente e no Decathlon, em que os objetos furtados e as consequências dos crimes são de valores insignificantes.

As circunstâncias de determinação da medida das penas individuais não poderão ser de novo tidas em conta, sob pena de violação da proibição da dupla valoração, sem prejuízo de poderem ser consideradas com referência ao ilícito global. Sucede, porém, que as relativas à confissão, à toxicodependência e aos antecedentes criminais, não consideradas anteriormente, também aqui não poderão ser convocadas para determinação da pena única.

As elevadas exigências de prevenção, resultantes do comportamento anterior e posterior aos crimes, da revelada falta de capacidade para manter uma conduta lícita e das condições pessoais, sociais e familiares, reveladores de uma personalidade desvaliosa, têm de se aferir em função do grau de ilicitude dos factos praticados, em que a personalidade se revela.

Assim, tendo em conta a moldura da pena aplicável aos crimes em concurso, com o limite mínimo de 4 anos, correspondente à pena mais grave, e o máximo de 10 anos e 6 meses, correspondente à soma das penas concretamente aplicadas (artigo 77.º, n.º 2, do Código Penal), na consideração, em conjunto, da gravidade dos factos e da personalidade do arguido, julga-se adequado fixar a pena única em 6 (seis) anos e 6 (seis) meses de prisão, por, nesta medida, se conformar ao critério de proporcionalidade que deve presidir à determinação das penas, em vista da realização das finalidades de proteção dos bens jurídicos ofendidos com a prática dos crimes e de integração do agente na sociedade.

É, pois, procedente o recurso nesta parte.

Quanto a custas

30. Nos termos do disposto no artigo 513.º do CPP (responsabilidade do arguido por custas), só há lugar ao pagamento da taxa de justiça quando ocorra condenação em 1.ª instância e decaimento total em qualquer recurso. O que não é o caso.

III. Decisão

31. Pelo exposto, acorda-se em conferência da secção criminal do Supremo Tribunal de Justiça em, na procedência parcial do recurso:

a) Absolver o arguido da prática do crime de ameaça, previsto e punido pelo artigo 153.º, n.º 1, do Código Penal, por que vem condenado na pena de 6 meses de prisão (Apenso 1583), revogando, nesta parte, a decisão recorrida;

b) Julgar improcedente o recurso quanto à pena de 4 anos de prisão aplicada pela prática do crime de furto qualificado objeto do processo apenso 1553/22.8PBPDL, mantendo a decisão recorrida;

c) Julgar procedente o recurso quanto à pena única aplicada aos crimes em concurso, dele retirando a condenação pelo crime de ameaça e fixando a pena única em 6 (seis) anos e 6 (seis) meses de prisão.

Sem custas.

Supremo Tribunal de Justiça, 21 de fevereiro de 2024.

José Luís Lopes da Mota (relator)

Ernesto Vaz Pereira

Maria do Carmo Silva Dias