Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2861/23.6T8BRG.S1
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: PEDRO DE LIMA GONÇALVES
Descritores: AÇÃO DECLARATIVA
AÇÃO EXECUTIVA
OPOSIÇÃO À EXECUÇÃO
EXECUÇÃO PARA PAGAMENTO DE QUANTIA CERTA
EMBARGOS DE EXECUTADO
PRINCÍPIO DA CONCENTRAÇÃO DA DEFESA
PRINCÍPIO DA PRECLUSÃO
CAUSA DE PEDIR
PEDIDO
CASO JULGADO
DEFESA POR EXCEÇÃO
Data do Acordão: 04/10/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDER A REVISTA E ORDENAR O PROSSEGUIMENTO DOS AUTOS
Sumário :
I. É admissível a dedução de ação declarativa, após a dedução de oposição à execução, desde que com fundamentos (exceção) diversa da apresentada no processo executivo.

II. A causa eficiente do pedido indemnizatório nestes autos formulado - em brevíssima síntese, o incumprimento, pelo recorrido, da pactuada obrigação de obter a prestação de aval por parte de um terceiro e o consequente dano patrimonial - não constitui, como bem se percebe, um fundamento dotado de eficácia extintiva (parcial ou integral) - recorde-se que, como resulta do n.º 4 do artigo 732.º do Código de Processo Civil, essa é a única finalidade dos embargos de executado - da execução que corre termos no Juízo de Execução.

Decisão Texto Integral:

Acórdão


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

I. Relatório

1. AA intentou ação declarativa de condenação contra “Banco Bilbao Vizcaya Argentaria, S.A. – Sucursal em Portugal”, alegando, em suma, ter sido, até 8 de agosto de 2013, acionista da “A..., S.A.”, a qual, no dia 15 de dezembro de 2004, celebrara com o Réu um contrato de emissão de garantia bancária até ao montante de €650 000,00 e que, tendo, por aquele, sido, neste âmbito, emitidas duas garantias bancárias, estas vieram a ser acionadas, originando um crédito a favor do Réu no valor de €120 772,57.

No âmbito de um processo especial de recuperação daquela empresa, o Réu exigiu a restruturação dessa dívida, tendo, para tanto, o Réu apresentado uma minuta do contrato e uma nova livrança acompanhada de um pacto de preenchimento que deveria subscrito pelos anteriores avalistas.

A 20 de dezembro de 2013, foram celebrados dois contratos de mútuo - no valor de €87 181,34 e €16 074,57 - para liquidação das responsabilidades existentes, tendo sido imposto pelo Réu a manutenção das garantias pessoais de que beneficiava e foi solicitado ao Autor, em novembro de 2012, que desse o seu aval às livranças juntas aos autos, ao que este acedeu, tendo, nessa qualidade, assinado duas convenções extracartulares, das quais emergia que BB, CC e DD (na qualidade de avalistas) e EE também subscreveriam, como avalistas, as livranças. E, era do conhecimento do Réu que o Autor nunca teria aceitado dar o seu aval se soubesse que algum dos demais avalistas não o faria.

As ditas convenções apenas não vieram a ser assinadas por EE, tendo o Autor confiado que o Réu viria a obter essa assinatura, o que não sucedeu pois este terá prescindido do aval de EE e o mesmo nunca veio a apor o seu aval nas livranças, nem a assinar os acordos de preenchimento das livranças.

Não obstante, veio o Réu acionar o Autor pela totalidade do valor inscrito nas duas livranças mediante ação executiva que corre termos no Juízo de Execução de ..., Juiz ..., sob o n.º 4610/21.4..., o que estima atentar contra as suas legítimas expetativas, pois acreditava que poderia, em sede de direito de regresso, executar coercivamente o património pessoal de outros quatro co-avalistas, sendo que era precisamente no património de EE que o Autor depositava maior confiança, já que o tem como vastíssimo. Considera que poderia exercer contra ele direito de regresso pelo montante correspondente a 1/2 do que venha a pagar, valor em que calcula o dano sofrido em virtude da conduta inadimplente que imputa ao Réu.

Peticiona que o Réu seja condenado a pagar ao Autor, a título de indemnização, o correspondente a metade do valor que o Autor lhe vier a pagar por conta das livranças em causa nos autos.

2. O Réu contestou invocando, no que aqui releva, que, nos embargos de executados opostos à dita ação executiva, o Autor (que aí figura como Embargante) arguira a invalidade do título exequendo, tendo a sua argumentação sido desatendida pelo Tribunal de 1.ª instância e pelo Tribunal da Relação de Guimarães, encontrando-se pendente um recurso de revista excecional para este Supremo. Aduz que, em homenagem ao princípio da preclusão e da segurança jurídica, o Autor estava impedido de, em sede de ação declarativa, invocar novas questões respeitantes ao título dado à execução, estando verificados os pressupostos de que depende a exceção dilatória da litispendência (enquanto aqueloutra causa não estiver definitivamente decidida) e do caso julgado (caso a revista interposta não viesse a ser admitida ou viesse a ser julgada improcedente).

Pugnou, a final e ademais, pela procedência das referidas exceções.

3. Notificado para se pronunciar, o Autor pronunciou-se sobre a identificada matéria excetiva.

4. Foi proferido despacho saneador em que foi julgada procedente a exceção dilatória do caso julgado e o Réu absolvido da instância.

5. Inconformado com esta decisão, o Autor veio interpor recurso de revista per saltum, formulando as seguintes (transcritas) conclusões:

«I - O presente recurso tem por objeto decidir se o executado pode intentar contra o exequente uma ação declarativa em que invoque outros fundamentos distintos daqueles que invocou nos embargos ou, pelo contrário, fica impedido de invocar na ação declarativa posterior fundamentos que podia ter invocado nos embargos, como entendeu o Tribunal de Primeira Instância e que o levou a concluir pela verificação da exceção dilatória de caso julgado e, consequentemente, pela absolvição do Réu da instância.

II - Em primeiro lugar, a sentença recorrida considerou (mal!) existir uma sobreposição de pedidos e/ou de fundamentos formulados pelo Recorrente em sede de embargos de executado e na presente ação declarativa.

III - Contudo, no caso concreto, em sede de embargos de executado deduzidos na execução que o Recorrido instaurou contra o Recorrente – que vieram a ser julgados improcedentes por sentença entretanto já transitada em julgado –, este peticionou que fosse declarada a insuficiência do título exequendo; que fosse julgado desobrigado da obrigação exequenda por abuso de direito ou que fosse julgado desobrigado da obrigação exequenda por impossibilidade de exercício do direito de regresso; e, em consequência, que os embargos fossem julgados procedentes, por provados, declarando-se extinta a execução relativamente a si, o que fez invocando (i) a insuficiência do título executivo pelo facto de no requerimento executivo não terem sido alegados os factos constitutivos da relação material subjacente às livranças dadas à execução; (ii) a circunstância de a dívida exequenda ser posterior à data em que o Recorrente deixou de ser sócio e gerente da sociedade ACF, facto que comunicou ao aqui Recorrido, nunca tendo obtido deste qualquer informação acerca da dívida; (iii) o facto de o Recorrido apenas ter exigido do Recorrente a dívida depois de os demais obrigados terem dissipado o seu património, tornando abusivo o preenchimento das livranças pelo aqui Recorrido; e (iv) a circunstância de o Recorrido não ter reclamado os créditos emergentes das livranças no processo de insolvência da ACF, o que impediu o Recorrente de exercer os seus direitos contra esta sociedade (…)

IV - Na presente ação declarativa, o Recorrente pede a condenação do Recorrido no pagamento àquele de uma indemnização correspondente a metade do valor que vier a pagar ao Recorrido por conta das livranças que servem de título executivo na ação executiva por força das garantias prestadas e acionadas naquela instância executiva, tendo, para tanto, invocado que celebrou com o Recorrido convenções extracartulares referentes às duas livranças que avalizou e que foram dadas à execução no processo supra identificado, nos termos das quais o Recorrido se obrigou perante o Recorrente a obter também o aval de BB, CC, EE e DD àquelas livranças e que o Recorrido veio, posteriormente e em violação do acordado com o Recorrente, a prescindir do aval de EE, o que causou ao Recorrente prejuízos decorrentes da circunstância de não poder exigir de EE, em direito de regresso, a parte que lhe caberia na dívida referentes às duas livranças se este as tivesse avalizado também.

V - Ao contrário do que o Tribunal a quo sustenta e, com o devido respeito, se nos afigura verdadeiramente inequívoco, estão em causa duas questões totalmente distintas e que originaram, numa e noutra sede, pedidos também eles diferentes por parte do Recorrente, por serem diversas as consequências jurídicas a retirar de uma e de outra situação.

VI - Com efeito, nos embargos de executado, o Recorrente não alegou as convenções extracartulares que celebrou com o Recorrido relativamente às duas livranças em branco dadas à execução, nomeadamente quanto à circunstância de, além dele próprio, também prestarem aval àquelas livranças BB, CC, DD e EE e que este último acabaria por não o fazer.

VII - A defesa deduzida pelo Recorrente em sede de embargos de executado assentou, assim, nas circunstâncias de facto verificadas, isto é, que as livranças apenas foram avalizadas pelo Recorrente e por BB, CC e DD (e já não por EE).

VIII - Nesse contexto, o Recorrente alegou que o facto de o Recorrido apenas ter exigido do Recorrente a dívida depois de os demais obrigados – aqueles que efetivamente vieram a prestar o seu aval às livranças, ou seja, BB, CC e DD – terem dissipado o seu património, tornava abusivo o preenchimento das livranças pelo Recorrido.

IX - Dessa circunstância, a consequência jurídica a extrair da aplicação do instituto do abuso do direito seria, como o Recorrente ali peticionou, a sua desoneração da obrigação exequenda por abuso de direito ou por impossibilidade de exercício do direito de regresso, em face da existência de um facto que impede ou extingue o efeito jurídico dos factos alegados pelo Recorrido na ação executiva.

X - Ou seja, a exceção perentória de abuso de direito invocada pelo Recorrente na ação executiva, a ser procedente, atingiria a exequibilidade intrínseca da prestação e impediria in totum a sua realização coativa, determinando, logicamente, a extinção da execução.

XI - Tal pedido e causa de pedir não se confundem com aquele que o Recorrente formulou na presente ação com vista à condenação do Recorrido no pagamento ao primeiro de metade dos valores que este lhe viesse a pagar no âmbito da ação executiva com fundamento na violação pelo Recorrido das convenções extracartulares que celebrou com o Recorrido em virtude de as livranças dadas à execução não terem sido avalizadas também por EE.

XII - Aqui, ao contrário do que aconteceu na instância executiva, o Recorrente, não só invocou as convenções extracartulares celebradas com o Recorrido, como foi no pressuposto da sua existência, validade e violação pelo último que formulou o pedido de condenação que dirigiu contra o Recorrido.

XIII - Na verdade, o que aqui está em causa é uma indemnização pelo incumprimento contratual que não se confunde com o pedido formulado em sede de embargos de executado;

XIV - Simplesmente, na presente ação, o prejuízo sofrido pelo Recorrente está quantitativamente ligado àquilo que este vier a ter de pagar ao Recorrido por força das livranças dadas à execução, na medida o prejuízo pelo qual o Recorrido é responsável perante o Recorrente se reconduz aos montantes pelos quais o Recorrente não poderá ser reembolsado, em via de regresso, pelo facto de o Recorrido ter incumprido com a obrigação de obter o aval de EE.

XV - O Tribunal a quo fez uma análise meramente formal (e não substancial) e simplista das questões subjacentes a uma e outra ação, tendo extraído a conclusão (equívoca e errónea) de que haveria uma sobreposição daquelas questões e uma coincidência entre os pedidos formulados numa e noutra.

XVI - Porém, nesta ação está em causa um pedido (e uma causa de pedir) verdadeiramente diferente e autónomo daquele que foi peticionado em sede de embargos de executado, ainda que a quantificação do pedido nesta ação esteja intimamente ligada aos valores que o Recorrente pagará ao Recorrido no âmbito da ação executiva.

XVII - Não é correto dizer-se, como a sentença recorrida faz, que o que o Recorrente verdadeiramente pretende nestes autos é o afastamento parcial do título executivo, limitado a metade do que vier a pagar, ao passo que nos embargos pretendia o seu afastamento na totalidade.

XVIII - Coisa diferente é dizer-se que o benefício económico para o Recorrente resultante da procedência dos embargos de executado ou da presente ação, na prática, vai redundar no mesmo, o que, de todo o modo, também não é verdade pelas consequências a que o Recorrente está sujeito, de se ver desapossado de bens e direitos para fazer face ao pagamento da totalidade da quantia exequenda, antes de vir a ser ressarcido de algum montante.

XIX - Como quer que seja, a circunstância vinda de referir nunca seria fundamento para julgar verificada a exceção perentória de caso julgado, a qual, como é sabido, pressupõe três requisitos cumulativos: a identidade de sujeitos, a identidade de pedido e a identidade de causa de pedir (cfr. artº. 581.º, n.º 1, do CPC).

XX - Há identidade de pedido quando numa e noutra ação se pretende obter o mesmo efeito jurídico – cfr. artº. 581.º, n.º 3, do CPC.

XXI - Ora, com os embargos de executado deduzidos no âmbito da ação executiva que o Recorrido lhe moveu, o Recorrente pretendeu ver declarada a insuficiência do título executivo e absolvido do pagamento do crédito do Recorrido contra o Recorrente fundado nos avales por este prestados.

XXII - No âmbito da referida ação executiva, o Recorrente contestou a sua responsabilidade no pagamento da dívida exequenda.

XXIII - Por sua vez, nos presentes autos, o que o Recorrente pretende é obter a condenação do Recorrido no pagamento àquele de determinado montante indemnizatório.

XXIV - Apesar de o montante indemnizatório peticionado pelo Recorrente nos presentes autos corresponder a metade do valor que o Recorrente vier a pagar ao Recorrido por conta das livranças que servem de título executivo na ação executiva, os pedidos formulados pelo Recorrente numa e noutra ação não se confundem, nem quanto à natureza, nem quanto ao montante.

XXV - O efeito jurídico visado nos embargos de executado correspondia à desvinculação do Recorrente no pagamento de uma dívida por si garantida ou, por outras palavras, a absolvição do Recorrente relativamente ao direito de crédito do Recorrido.

XXVI - Ao passo que o efeito jurídico subjacente ao pedido formulado nos presentes autos corresponde à condenação do Recorrido no pagamento ao Recorrente de uma indemnização correspondente a metade do valor da dívida que vier a pagar por força das garantias prestadas.

XXVII - Como se sabe e resulta do disposto no n.º 2 do artº. 580.º do CPC, tanto a exceção da litispendência como a do caso julgado têm por fim evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior, o que nunca se verificaria no caso concreto, desde logo porque o Tribunal no julgamento dos embargos de executado nunca foi colocado na posição de apreciar um qualquer direito indemnizatório do aqui Recorrente sobre o Recorrido, nem o fez efetivamente, muito menos com base na violação de convenções extracartulares celebradas entre ambos que nem sequer foram invocadas naquela sede;

XXVIII - E, enquanto na ação executiva se decidiu relativamente ao direito de crédito do Recorrido sobre o Recorrente, na presente ação será objeto de decisão o direito de indemnização do Recorrente sobre o Recorrido em virtude do incumprimento das obrigações por este assumidas perante aquele no âmbito das convenções extracartulares entre ambos celebradas e que não foram alegadas e/ou apreciadas na ação executiva.

XXIX - Tanto assim é que uma decisão de procedência da presente ação nunca seria incompatível ou contraditória com uma decisão de improcedência dos embargos de executado na referida ação executiva – pelo contrário, só a improcedência dos embargos e a manutenção do título e da exigibilidade da dívida exequenda permitem a procedência desta ação com a efetiva condenação do Recorrido no pagamento da indemnização peticionada.

XXX - A causa de pedir é o acervo de factos concretos de onde o autor pretende retirar o efeito pretendido, independentemente da qualificação jurídica que se atribua a esses mesmos factos.

XXXI - Nos presentes autos, o Recorrente invocou ter celebrado com o Recorrido convenções extracartulares referentes às duas livranças que avalizou e que foram dadas à execução, nos termos das quais o Recorrido se obrigou perante o Recorrente a obter também o aval de BB, CC, EE e DD àquelas livranças e que o Recorrido veio, posteriormente e em violação do acordado com o Recorrente, a prescindir do aval de EE, o que causou ao Recorrente prejuízos decorrentes da circunstância de não poder exigir de EE, em direito de regresso, a parte que lhe caberia na dívida referentes às duas livranças se este as tivesse avalizado também – convenções extracartulares que nem sequer foram alegadas nos embargos de executado.

XXXII - Acresce que, não assiste razão ao Tribunal recorrido no paralelismo que faz entre as causas de pedir subjacentes a uma e outra ação e na sobreposição que afirma existir nos pedidos formulados pelo Recorrente numa e noutra.

XXXIII - Assim, não se verificam dois dos três requisitos para que se possa afirmar a verificação da exceção de caso julgado: a identidade de pedido e a identidade de causa de pedir.

XXXIV - Sem prejuízo do que ficou dito, ainda que se entendesse, como a sentença recorrida, que o pedido em causa nos presentes autos, apesar de formulado cuidadosamente de forma a criar a aparência de que não se confunde com o pedido que era formulado nos embargos de executado, é, na verdade, o mesmo do formulado nos embargos de executado – o que não se concede, mas por mera hipótese de raciocínio se admite –, sempre se dirá, por um lado, que continua a falhar um dos três requisitos cumulativos para que se verifique a exceção de caso julgado: a identidade da causa de pedir.

XXXV - E, por outro lado, que a corrente que defende a não preclusão do direito de intentar uma nova ação (declarativa) com base em fundamentos diferentes daqueles que foram os invocados na ação executiva, defende precisamente a possibilidade de se obter, por via da ação declarativa, o mesmo objetivo: afastamento da responsabilidade pelo pagamento da quantia exequenda por via da repetição do indevido, isto é, do valor satisfeito na ação executiva.

XXXVI - Isto posto, em segundo lugar, o Tribunal a quo julgou defendeu que o Recorrente, tendo deduzido embargos de executado na ação executiva movida pelo Recorrido, ficou impedido de invocar nesta ação declarativa fundamentos que podia ter invocado nos embargos, seguindo, assim, a orientação que não é aquela que maioritariamente tem sido adotada pela doutrina e pela jurisprudência.

XXXVII - Na sentença recorrida, o Tribunal a quo sustentou a solução adotada na circunstância de os embargos de executado se destinarem a permitir ao executado afastar, no todo ou em parte, o título executivo, finalidade esta que, no seu entender, acarreta particularidades quanto ao efeito de caso julgado da sentença que aí venha a ser proferida.

XXXVIII - Afigura-se-nos, no entanto, com o devido respeito, que o entendimento perfilhado pelo Tribunal a quo confunde o caso julgado com o efeito preclusivo que decorreria do ónus de embargar, que não está consagrado na lei.

XXXIX - Na verdade, o efeito do caso julgado limita-se a impedir que se volte a discutir os pedidos e causas de pedir que já foram objeto de uma ação e de uma decisão judicial, não podendo daí retirar-se efeitos preclusivos relativamente a pedidos e causas de pedir que não foram deduzidos e alegados na primeira ação (no caso, nos embargos de executado) e, portanto, aí objeto de decisão.

XL - Assim, uma tal limitação que impedisse que se voltasse a discutir o direito de crédito do exequente com base em causas de pedir distintas das que foram objeto de uma decisão judicial nos embargos de executado, para existir, teria de assentar na consagração de um princípio da concentração da defesa idêntico ao previsto no n.º 1 do artº. 573.º do CPC e de um ónus de embargar a cargo do executado, de onde resultasse um efeito preclusivo relativamente aos factos que constituem a causa de pedir alegada pelo exequente, semelhante ao ónus de impugnação previsto no artº. 574.º do CPC para a contestação de uma ação declarativa, o que manifesta e inequivocamente não foi consagrado pelo legislador nacional.

XLI - Por outro lado, as normas previstas no n.º 1 do artº. 573.º e no artº. 574.º do CPC para a ação declarativa, não são aplicáveis ao processo executivo porque o legislador não previu normas idênticas para o processo executivo, nem diretamente, nem por remissão.

XLII - Note-se, inclusivamente, que, na ação executiva, o executado ao ser citado ou notificado para deduzir oposição, não lhe é feita qualquer advertência acerca de um qualquer efeito cominatório resultante da não oposição ou da não impugnação dos factos alegados pelo exequente.

XLIII - Se tivesse pretendido optar pela consagração de um regime legal que impedisse o executado de discutir o pedido e a causa de pedir num outro processo, fora da execução, o legislador certamente tê-lo-ia feito de forma clara e inequívoca, ainda para mais quando a questão é, há muito, discutida na doutrina e na jurisprudência.

XLIV - Concorde-se ou não com a tese consagrada na lei, designadamente com a justeza da mesma, não foi essa a opção do legislador nacional.

XLV - Por outro lado, a sentença recorrida retira uma conclusão errada da circunstância de o legislador não se ter limitado a estabelecer que a sentença proferida nos embargos tinha efeito de caso julgado nos termos gerais, mas lhe ter acrescentado que este efeito respeitava à existência, validade e exigibilidade da obrigação exequenda, o que, no seu entender, seria desnecessário e reforça a ideia de que não mais seria possível discutir essas questões noutro processo, porquanto não é o caso julgado que produz o efeito preclusivo da invocação de outros fundamentos que não foram anteriormente alegados.

XLVI - O cerne da questão, não está nos efeitos do caso julgado, mas sim no efeito preclusivo, que opera de forma autónoma e em momento anterior ao caso julgado e, para que se pudesse afirmar existir aquele efeito preclusivo, seria necessário que existisse uma norma aplicável aos embargos de executado que o consagrasse expressamente, o que não acontece nem decorre do disposto no artº. 732.º, n.º 6, do CPC.

XLVII - Assim, o caso julgado que se forma é restrito aos fundamentos que foram invocados, discutidos e decididos pela decisão de mérito dos embargos, ou seja, há mesmo caso julgado material sobre a existência, validade e exigibilidade da obrigação exequenda, mas esse caso julgado é restrito à causa de pedir invocada, não havendo preclusão em relação ao que não foi invocado/discutido nos embargos.

XLVIII - Por todos os motivos vindos de referir, dúvidas não existem de que a decisão que se coaduna com o regime legal vigente no nosso ordenamento jurídico é a que admite que o executado que deduziu embargos de executado na ação executiva possa, em ação declarativa autónoma instaurada contra o exequente, invocar fundamentos distintos daqueles que alegou nos embargos para afastar o direito de crédito do exequente.

XLIX - Em face de tudo quanto ficou exposto, é necessário concluir que, ao contrário do decidido na sentença recorrida, o direito que o Autor, aqui Recorrente, pretende fazer valer nos presentes autos não se mostra precludido pelos embargos de executado que deduziu na ação executiva.

L - Em primeiro lugar, porque, apesar de o aqui Recorrente ter deduzido embargos de executado à ação executiva que o Recorrido lhe moveu, naquele âmbito não invocou os fundamentos que servem de causa de pedir à presente ação declarativa, os quais não foram, por isso, apreciados e objeto de decisão judicial nos embargos de executado e, consequentemente, não mostram cobertos pelo caso julgado material que se formou naquela ação.

LI - Em segundo lugar, porque, além de numa e noutra ação terem sido invocadas causas de pedir inequivocamente diferentes, também os pedidos formulados foram distintos, conforme acima melhor se expos.

LII - De todo o modo, salienta-se que a doutrina e a jurisprudência que defendem a tese da não preclusão do direito de o executado contestar o direito de crédito do exequente por motivos diversos dos que invocou em sede de embargos de executado aceita pacificamente que o efeito jurídico que o executado pretende obter, por via da ação declarativa, seja a repetição do indevido, isto é, do valor satisfeito na ação executiva, pelo que, ao contrário do que entendeu o Tribunal a quo, a entender-se que o que o ora Recorrente verdadeiramente pretende através da presente ação é afastar, ainda que parcialmente, o título executivo, tal não constituiria um óbice ao prosseguimento e procedência desta ação.

LIII - Em terceiro lugar, porque, como vimos, o regime legal estatuído aplicável à ação executiva não faz recair sobre o executado nenhum ónus de embargar, não prevê o princípio da concentração da defesa, nem um ónus de impugnação de onde pudesse resultar um efeito preclusivo que impeça o executado de invocar, em ação declarativa autónoma, fundamentos diversos dos alegados em sede de embargos de executado para contestar o direito de crédito do exequente.

LIV - Assim, e em suma, ao decidir como decidiu, a sentença recorrida violou o disposto nos artº.s 580.º, 581.º, 573.º, n.º 1, 574.º, 728.º, n.ºs 1 e 2, e 732.º, n.º 6, do CPC, bem como violou os princípios da certeza e segurança jurídicas ao adotar uma solução que não tem qualquer respaldo na lei.

LV - Termos em que a sentença recorrida deve ser revogada e substituída por outra que julgue improcedente a exceção dilatória de caso julgado invocada pelo Recorrido e ordene o prosseguimento dos autos…”

6. O Réu contra-alegou, pugnando pela improcedência do recurso.

7. Cumpre apreciar e decidir.

II. Delimitação do objeto do recurso

Como é jurisprudência sedimentada, e em conformidade com o disposto nos artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.ºs 1 e 2, ambos do Código de Processo Civil, o objeto do recurso é delimitado em função das conclusões formuladas pelo recorrente, pelo que, dentro dos preditos parâmetros, da leitura das conclusões recursórias formuladas pelo A. / ora Recorrente decorre que o objeto do presente recurso está circunscrito à questão de saber se:

em ação declarativa intentada contra credor munido de título executivo, é, por existir um ónus de embargar, defeso ao Autor invocar, como causa de pedir, factos que não fez constar da petição inicial de embargos de executado opostos a ação executiva contra ele instaurada com base nesse título.

III. Fundamentação

1. Dos factos:

Para apreciação da questão solvenda e além do enunciado vertido no precedente relatório, revela-se pertinente concitar a causa de pedir e pedidos vertidos na petição inicial de embargos de executado que deu origem ao processo n.º 4610/21.4... e que foram assim sumariadas na sentença e Acórdão da Relação de Guimarães ali proferidos (cfr. os documentos juntos com a contestação):

«(…)

i) a insuficiência dos títulos executivos (livranças);

ii) que de acordo com a interpelação que recebeu do Exequente o crédito ora exigido resulta de dois contratos de mútuo celebrados em 2013.12.20 e concedidos à sociedade A..., S.A. (doravante apenas designada por ACF), um no montante de €87.181,34 e outro no montante de € 16.074,57, contratos esses nos quais o Embargante não interveio;

iii) que o ora Embargante foi acionista e administrador da ACF apenas e só até 2013.04.18, tendo-se, nessa data, desvinculado totalmente da sociedade; perdendo qualquer poder de influência na gestão dessa sociedade e desconhecendo se esta estava a honrar os seus compromissos;

iv) que em junho de 2013, o Embargante comunicou, por escrito, ao Exequente/Embargado a sua desvinculação da ACF e das garantias que havia prestado à sociedade ACF, enquanto acionista e administrador da mesma, sendo certo que, como era e é do conhecimento do Embargado, tais garantias prestadas só o foram porquanto estava ligado e fazia parte dos corpos sociais da Devedora;

v) que nunca pretendeu dar o seu aval ou de qualquer modo garantir o cumprimento das operações de crédito realizadas sem o seu conhecimento ou consentimento expresso; pelo que o seu património não pode responder pela dívida exequenda;

vi) que o Exequente atua, assim, em abuso de direito por pretender obter dele o pagamento de uma obrigação constituída já após a sua desvinculação da sociedade avalizada, tendo-se o Embargante legitimamente desvinculado do pacto de preenchimento das livranças oferecidas à execução por alteração e modificação das circunstâncias em que se fundou a decisão de prestar garantia de aval à sociedade subscritora da livrança, nos termos do disposto no artº. 239.º do Código Civil;

vii) a sociedade devedora apresentou, de 2012 a 2016 três processos especiais de recuperação, os quais correram termos no Juízo de Comércio de ..., sob os nºs. 3695/12.9..., 1394/15.9..., 5405/16.2...,

viii) acabando a ACF por ser declarada insolvente por sentença de 2020.01.28, proferida no âmbito do Proc. n.º 5468/19.9..., a correr termos no Juiz ... do Juízo de Comércio de ..., do Tribunal Judicial da Comarca de Braga;

ix) o Exequente reclamou créditos nesses processos, mas nunca os valores reclamados na presente execução;

x) nunca foi interpelado pelo Exequente para o pagamento nem informado de que as livranças iriam ser preenchidas até abril de 2021, pelo que criou a convicção, no Embargante, que este estava totalmente desobrigado de quaisquer garantias que pudesse ter prestado aquando da sua ligação à Devedora,

xi) tanto mais que, tendo interpelado o Exequente em março de 2015, solicitando-lhe o envio de informação a respeito, nunca recebeu, da parte desta qualquer resposta;

xii) tendo sido exaurido o património dos coobrigados fica o Embargante impedido de agir em sub-rogação, devendo ser aplicado ao caso concreto o regime previsto no art.º 653º do Código Civil.

Peticionou que os presentes embargos fossem «julgados procedentes, por provados, declarando-se extinta a execução relativamente ao Embargante».

2. Apreciação do recurso

O despacho saneador recorrido, depois de extensamente concitar ensinamentos doutrinais e jurisprudenciais louvou a decisão tomada no seguinte discurso motivador:

«Analisando os fundamentos da presente acção verifica-se que estão em causa fundamentos que o autor podia facilmente ter invocado nos embargos de executado que deduziu. Aliás, o autor invocou que o réu actuava em abuso de direito porque estava impedido de exercer o seu direito de sub-rogação contra os restantes quatro avalistas, uma vez que foram declarados insolventes e não tinham qualquer património, o que, de alguma forma, inclui a pretensão de o réu pagar metade das quantias que venha a ter que pagar na execução por ter aceite que o irmão EE não fosse avalista e que o aval fosse prestado apenas pelos restantes avalistas. Estas duas questões sobrepõem-se, sendo a diferença bem mais aparente e formal do que substancial.

Por outro lado, verifica-se também que a verdadeira pretensão do autor consiste em limitar a sua responsabilidade na execução que o réu intentou a metade ou, o que é o mesmo, em afastar parcialmente a livrança que o réu apresentou como título executivo.

É certo que o pedido que é formulado na presente acção foi cuidadosamente elaborado para criar a aparência de que não se confunde com o pedido que era formulado nos embargos de executado. Todavia, o que ocorre verdadeiramente é que nos embargos o autor pretendia o afastamento do título executivo na totalidade e através da presente acção pretende o seu afastamento apenas em parte, limitado a metade do que vier a ter que pagar.

Estando em causa na presente acção fundamentos que o autor podia ter invocado nos embargos de executado e que não se distinguem verdadeiramente daqueles que foram invocados, verificando-se uma notória sobreposição, e consistindo o pedido que foi formulado pelo autor verdadeiramente no afastamento do título executivo que foi apresentado pelo réu na execução que intentou, embora limitado apenas a metade, entendemos que se verifica a excepção dilatória de caso julgado que foi invocada pelo réu, o que implica que a sua absolvição da instância (art. 576º nº1 e 2 e 577º al. i) do Cód. de Processo Civil)».

O Recorrente, em apertada síntese, conclui pela inexistência da tríplice identidade de que depende a procedência da exceção dilatória do caso julgado e pela inexistência de um ónus de embargar.

Por manterem plena pertinência e acuidade para a apreciação do caso dos autos, retomam-se as considerações perfilhadas por este STJ no acórdão proferido a 24 de maio de 2022 (processo n.º 327/20.5...) e redigido por este mesmo relator.

Assim:

«Tem entendido este Tribunal que é admissível a dedução de ação declarativa, após a dedução de oposição à execução, desde que com fundamentos (exceção) diversa da apresentada no processo executivo.

Como se referiu no Acórdão do STJ, de 6/12/2016 (processo n.º1129/09.5TBVRL-H.G1.S2), seguindo os ensinamentos de Miguel Teixeira de Sousa (Preclusão e Caso Julgado), “a preclusão pode ser definida como a inadmissibilidade da prática de um ato processual pela parte depois do prazo perentório para a sua realização, sendo que uma das funções que realiza é a de estabilização: uma vez inobservado o ónus de praticar o ato, estabiliza-se a situação processual decorrente da omissão do ato, não mais podendo esta situação ser alterada ou só podendo ser alterada com um fundamento específico. Quando referida a factos, a preclusão é correlativa não só de um ónus de alegação, mas também de um ónus de concentração: de molde a evitar a preclusão da alegação do facto, a parte tem o ónus de alegar todos os factos relevantes no momento adequado. A correlatividade entre ónus de concentração e a preclusão significa que, sempre que seja imposto um ónus de concentração, se verifica a preclusão de um facto não alegado, mas também exprime que a preclusão só pode ocorrer se e quando houver um ónus de concentração. Se não for imposto à parte nenhum ónus de concentração, então a parte pode escolher o facto que pretende alegar para obter um determinado efeito e, caso não o consiga obter, pode alegar posteriormente um facto distinto para procurar conseguir com base nele aquele efeito. Na oposição à execução, o embargante tem o ónus de concentrar na petição todos os fundamentos que podem justificar o pedido por ele formulado. A inobservância deste ónus de concentração implica a preclusão dos fundamentos não alegados naquela petição.

Após o trânsito em julgado da decisão proferida na oposição à execução, aquela preclusão, em vez de operar per se, atua através da exceção de caso julgado, apesar de não existir entre a primeira e a segunda ação identidade de fundamentos e, portanto, identidade de objetos. A preclusão extraprocessual pode operar num outro processo antes de se constituir qualquer caso julgado nesse processo: portanto, os efeitos da preclusão não estão dependentes do caso julgado. O caso julgado e a exceção de caso julgado não produzem nenhum efeito preclusivo distinto daquele que, quanto aos factos não alegados, se verifica no processo em que é proferida a decisão transitada em julgado. Depois de haver no processo uma decisão transitada em julgado, a preclusão extraprocessual deixa de operar per se se, passando atuar através da exceção de caso julgado. Em suma: pode falar-se de “preclusão e caso julgado”, mas não de “caso julgado e preclusão”.

- cf. Acórdão do STJ, de 19/03/2019 – (…)

Como se afirmou no citado Acórdão de 4 de abril de 2017, “De acordo com entendimento corrente (assim, Lebre de Freitas, A Acção Executiva, 4.ª edição, pp. 190 e 191; Anselmo de Castro, A Acção Executiva Singular, Comum e Especial, 3.ª ed., pp. 303 a 305; e, de certa forma, Castro Mendes, Acção Executiva, p. 54), o executado não está sujeito a qualquer ónus de oposição à execução (aliás, não é citado ou notificado sob qualquer cominação para o caso de não deduzir oposição), e daqui que, não deduzindo oposição, tal não acarreta uma cominação, mas tão só a preclusão, no processo executivo, de um direito processual cujo exercício se poderia revelar vantajoso, mas sem que se possa falar de caso julgado a impor-se noutra ação posterior ou de um efeito preclusivo para além do próprio processo executivo. Nessa medida, será de entender (e é o que, no fundo, significam os dois supra citados autores) que deixando o executado de deduzir oposição, nada impedirá que venha depois a invocar em outro processo (isto com vista à restituição da quantia injustamente recebida pelo exequente na execução) os fundamentos (exceções) que podia ter invocado na oposição.

… o decurso do prazo para a oposição à execução tem apenas efeitos dentro do processo, não existindo fundamento legal para que se possa entender que a respetiva preclusão produz efeitos fora do mesmo, e daqui que a não dedução de oposição à execução não impede o executado de propor ação declarativa que vise a repetição do indevido…

Este ponto de vista assume toda a lógica desde que, como parece dever ser o caso, se encare a oposição à execução, não como uma contestação ao pedido executivo (e, assim, não se lhe aplica a regra do n.º 1 do art. 573.º do CPCivil), mas como uma petição de uma ação declarativa autónoma cujo objeto é definido pelo executado (valendo cada um dos fundamentos materiais invocados como verdadeiras causa de pedir).

Diferentes serão as coisas se o executado enveredar pela dedução da oposição à execução, e a oposição for objeto de decisão de mérito. Pois que nos termos do n.º 5 do art. 732.º do CPCivil … a decisão de mérito proferida na oposição constituirá, nos termos gerais, caso julgado quanto à existência, validade e exigibilidade da obrigação exequenda…”

Também Carlos Oliveira refere: “O decurso dos prazos processuais para a prática da oposição à execução tem apenas efeitos dentro do processo; impede, dentro desse processo, a prática do acto. Mas não existe fundamento legal para que se possa entender que essa preclusão produz efeitos fora do processo.” (O Caso Julgado na Acção Executiva, Themis, ano IV, n.º7, 2003, A Reforma da Acção Executiva, pp. 243 a 251)..

Acaba por concluir, em adesão aos argumentos do Prof. Lebre de Freitas, que:

- não devemos assimilar a oposição à execução a uma contestação, pelo que não existirá para o executado nem o ónus de impugnação nem de alegar exceções perentórias;

- a atribuição da força de caso julgado material a uma decisão, nos termos do atual artigo 619.º do Código de Processo Civil, pressupõe que esse acto constitua o julgamento de uma controvérsia entre as partes que tenha decorrido no âmbito de um procedimento tendente a atingir esse resultado, o que não acontece na ação executiva devido à autonomia da oposição à execução.

Por fim, conclui Carlos Oliveira Soares que numa situação em que, na ação executiva, o crédito exequendo é satisfeito e o executado não deduz oposição à execução, e o executado intenta ação declarativa para restituição do indevido, com fundamento na existência de uma causa extintiva da obrigação exequenda que poderia ter alegado em oposição à execução, o caso julgado não poderá servir de fundamento à defesa do réu na ação declarativa.

Atente-se, igualmente, no n.º 5 do artigo 732.º do Código de Processo Civil, introduzido no novo Código de Processo Civil que prevê expressamente o seguinte, “Para além dos efeitos sobre a instância, a decisão de mérito proferida nos embargos à execução constitui, nos termos gerais, caso julgado quanto à existência, validade, e exigibilidade da obrigação exequenda”. Esta era já a posição defendida por Lebre de Freitas (In A acção executiva à Luz do Novo Código Revisto, Coimbra Editora, Coimbra 1997, 2.ª Edição, pp. 159 a 163.), e bem assim por Miguel Teixeira de Sousa (In Acção Executiva Singular, Lex, Lisboa, 1998, p. 191), conforme aponta Carlos Oliveira Soares, no citado artigo.

O prof. Miguel Teixeira de Sousa (In Preclusão e Caso Julgado, Maio de 2016, https://blogippc.blogspot.com/2016/05/paper-199.html.), por seu lado, porém, vai mais longe e entende que (…) do disposto no art. 732.º, n.º 5, não decorre que é o caso julgado da decisão proferida nos embargos que preclude a invocação de um fundamento diverso daquele que o executado invocou nos embargos à execução. Na verdade, a preclusão da invocação de um outro fundamento de inexistência, de invalidade ou de inexigibilidade da pretensão exequenda não ocorre no momento do trânsito em julgado da decisão, mas no momento em que o executado apresenta a petição de embargos. É a partir deste momento que, ressalvada a admissibilidade da alteração da causa de pedir da oposição à execução (cf. art. 265.º, n.º 1), o executado não pode invocar nenhum outro fundamento de inexistência, invalidade ou inexigibilidade da obrigação exequenda. A referência temporal da preclusão que afecta o executado não é o trânsito em julgado da decisão de embargos, mas o anterior momento da entrega da petição inicial dos embargos à execução.

Posto isto, supõe-se que o sentido do estabelecido no art. 732.º, n.º 5, só pode ser este: a partir do momento em que se verifica o trânsito em julgado da decisão de improcedência da oposição à execução deduzida com um certo fundamento de inexistência, invalidade ou inexigibilidade da obrigação exequenda, a preclusão da invocação de um fundamento distinto daquele que foi alegado pelo executado passa a operar através da excepção de caso julgado. Quer dizer: a preclusão da alegação de um fundamento distinto que já se verificava a partir do momento da entrega da petição inicial dos embargos de executado passa a actuar através da excepção de caso julgado, se esse fundamento for indevidamente alegado numa acção posterior. Portanto, a excepção de caso julgado não origina a preclusão do fundamento não alegado nos embargos de executado, antes é um meio para impor a estabilização decorrente da preclusão desse fundamento num outro processo.

Lebre de Freitas (In A Ação Executiva – À luz do Código de Processo Civil de 2013, Coimbra Editora, pp. 214 e 215), em análise ao CPC de 2013, na sua versão original, entende que nada impede a invocação de uma exceção, fora do processo executivo, com vista à restituição do indevido, caso essa exceção não tenha sido invocada nos embargos de executado. Justifica a sua posição com o facto de não se tratar de uma contestação, na qual a falta de invocação de todas as exceções determinaria a preclusão deste direito. Mas, por se tratar da oposição à execução/embargos de executado o princípio da preclusão não atua de modo tão efetivo. (…)

Em face da mais recente jurisprudência, os Acórdãos do STJ de 19-03-2019 (Revista n.º 751/16.8T8LSB.L2.S1), e de 4-04-2017 (Revista n.º 1329/15.9T8VCT.G1.S1), pelos fundamentos aí apontados:

- o executado, ao deduzir oposição à execução/embargos de executado, não está obrigado a concentrar nos embargos toda e qualquer defesa, ao contrário do se impõe ao réu quando apresenta contestação numa ação declarativa. Na ação executiva, o executado ao ser citado/notificado para deduzir oposição, não lhe é feita qualquer cominação, pelo que o efeito preclusivo da falta de oposição ou da não dedução de todos os fundamentos, ocorre apenas no processo executivo. Conforme se aduz no citado Ac. do STJ de 19-03-2019, não representando a oposição à execução uma contestação da ação executiva (e não estando por isso sujeita aos ónus de contestação, de impugnação especificada e de preclusão), esta (a ação de restituição do indevido) se deve ter sempre como admissível e acessível ao executado que, mesmo por negligência, não deduziu qualquer oposição;

- a oposição à execução não deve ser perspetivada como uma contestação ao pedido executivo, pelo que não lhe será aplicável a norma prevista no artigo 573.º, n.º 1, do Código de Processo Civil. Ao entendermos a oposição à execução como uma petição de uma ação declarativa autónoma, em que o seu objeto é definido pelo executado, cada um dos fundamentos que invoca são verdadeiras e autónomas causas de pedir;

- o artigo 732.º, n.º 6, do Código de Processo Civil (anterior 732.º, n.º 5), prevê que a decisão de mérito ocorrida numa oposição à execução constitui, nos termos gerais, caso julgado quanto à existência, validade e exigibilidade da obrigação exequenda, mas não coloca qualquer óbice à dedução de ação declarativa em diferente causa de pedir, pois tão só as decisões transitadas em julgado e que incidam sobre o mérito da causa, através da apreciação da relação material controvertida discutida na ação é que são suscetíveis de adquirir força de caso julgado material e, como tal de adquirir força obrigatória fora do processo em que foram proferidas, cf. artigos 619.º, 620.º e 621.º do Código de Processo Civil (…)».

Esta linha de orientação veio ulteriormente a ser seguida e reforçada noutros arestos deste Supremo:

• Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 3 de maio de 2023 (proc. n.º 1704/21.0T8GRD.C1.S1), em cujo sumário consta que «I- Julgados improcedentes embargos opostos a uma execução, o ali executado pode, em processo posterior, vir invocar meios de defesa que podia ter invocado (e não invocou) nos embargos que opôs à anterior execução e, a partir daqui, obter a restituição do pagamento que, no âmbito da anterior execução, haja efetuado ao ali exequente.

II- Efetivamente, não existe no CPC um qualquer preceito legal que estabeleça o ónus de embargar e tal ónus também não é extraível, por interpretação, dos artigos 728.º/1 e 2 e 732.º/6, ambos do CPC, o que significa, não estando consagrado tal ónus de embargar, que não ficam precludidos os fundamentos não invocados (e que não há preclusão decorrente da não dedução de embargos).

III- O sentido do atual art. 732.º/6 do CPC é o de deixar claro que uma decisão de mérito proferida nos embargos é dotada da força geral do caso julgado material em relação à causa de pedir e aos fundamentos que ali foram invocados (não impedindo nova ação de apreciação baseada em outra causa de pedir), ou seja, o caso julgado que se constitui é restrito à causa de pedir invocada e, em consequência, não há preclusão em relação ao que não foi invocado/discutido nos embargos.»

• O Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9 de maio de 2023 (processo n.º 3803/19.9T8STB-A.E1.S1) em cujo sumário consta que I - O demandado que, estando em condições de invocá-la, omite a invocação de compensação de créditos no processo, não pode mais tarde arguir a compensação com o objetivo de alcançar a improcedência do peticionado pelo demandante, nomeadamente em sede de execução.

II - Porém, com isso perde, tão-só o poder de alcançar a extinção do crédito do demandante, ou seja, o direito de se livrar da sua obrigação por meio da compensação, mas não o poder de exigir o pagamento da quantia alegadamente em dívida através de uma ação independente.»

Posto isto, cumpre relembrar que o Tribunal, no cumprimento da obrigação de julgar os feitos que sejam submetidos à sua apreciação, deve, além da obediência à lei e ao Direito, considerar as soluções previamente dadas a casos análogos, a fim de alcançar uma interpretação e aplicação uniformes do Direito (n.º 3 do artigo 8.º do Código Civil)

- Assim Antunes Varela e Pires de Lima, Código Civil Anotado, Coimbra, vol. I, 4.ª edição, p. 57, dando nota de que este preceito completa o dever de obediência à lei e constitui uma reação legislativa à equidade enquanto justiça do caso concreto, em desacordo com a justiça do princípio geral).

Assim, na indeclinável tutela dos valores da certeza e da segurança jurídica na aplicação da lei, deve-se, desde logo, reafirmar, pelos motivos expostos, o entendimento por nós professado no referido aresto, tanto mais que foram então devidamente ponderados os argumentos aduzidos em sentido oposto.

Acresce, por outro lado, que as particularidades do caso concreto não impõem a consideração de solução diversa.

Se não, vejamos.

A causa eficiente do pedido indemnizatório nestes autos formulado - em brevíssima síntese, o incumprimento, pelo recorrido, da pactuada obrigação de obter a prestação de aval por parte EE e o consequente dano patrimonial - não constitui, como bem se percebe, um fundamento dotado de eficácia extintiva (parcial ou integral) - recorde-se que, como resulta do n.º 4 do artigo 732.º do Código de Processo Civil, essa é a única finalidade dos embargos de executado - da execução que corre termos sob o n.º 4610/21.4... no Juízo de Execução de..., Juiz....

Por isso, atenta a patente inocuidade dessa argumentação em sede de embargos de executado, nenhum proveito retiraria o Autor da sua invocação.

Incorreu-se, nessa medida, em erro de julgamento ao assumir-se que estamos perante fundamento que o Autor podia «(…) facilmente ter invocado nos embargos de executado que deduziu (…)».

Esbate-se, pois, a força persuasiva do principal argumento professado pela tese oposta àquela que ora se reafirma.

E, de resto, não se verifica, de modo algum, a tríplice identidade de que depende o acolhimento da exceção dilatória do caso julgado.

O cotejo entre a enunciação da causa de pedir constante da petição inicial e a enunciação dos fundamentos fácticos vertidos na petição de embargos de executado - que o Mmo. Juiz a quo preteriu no despacho saneador sob censura - evidencia dissemelhanças notórias que não podem ser desprezadas em benefício de uma assimilação, nitidamente forçada, de argumentos e posições.

E, como se alcança pela mesma via, a invocação de que o Réu atuou abusivamente (que é salientada no despacho recorrido) assenta, num e noutro contexto, em fundamentos fácticos essencialmente discrepantes, neles não se divisando qualquer relação de inclusão qualitativa como aquela que ali se enuncia.

Inverifica-se, pois, a identidade da causa de pedir (a identidade de causa de pedir verifica-se quando a pretensão deduzida nas duas ações procede do mesmo facto jurídico concreto, simples ou complexo, de que emerge o direito do autor, constituindo um elemento definidor do objeto da ação) que subjaz à exceção dilatória do caso julgado (cf. n.º 4 do artigo 581.º do Código de Processo Civil).

E, igualmente, não se deteta qualquer coincidência entre os efeitos jurídicos pretendidos pelo Autor numa e noutra causa e/ou entre os direitos cuja tutela se visa assegurar por seu intermédio. Nestes autos, pretende-se a condenação no pagamento de indemnização, naqueloutros autos almejava-se a extinção da execução.

Como facilmente se alcança, estas pretensões não são, quer no plano jurídico quer no plano prático, reciprocamente identificáveis ou, sequer, equiparáveis. Atente-se que a pretensão nestes autos deduzida não se reduz aos títulos dados à execução nem a eles está intrinsecamente ligado, reconduzindo-se antes a um efeito externo daqueles - os pagamentos que irá efetuar em sede de execução coerciva da prestação.

Carece, pois, de fundamento a confundibilidade que se discerniu entre os pedidos em confronto.

Resta, pois, concluir que o direito do Autor não se mostra afastado por força da preclusão, nem por força de caso julgado material formado nos referenciados embargos de executado.

Deste modo, o recurso tem de proceder, devendo os autos prosseguir os seus termos.

IV. Decisão

Posto o que precede, acorda-se em conceder a revista, e, consequentemente, em revogar a sentença recorrida, ordenando-se o prosseguimento dos autos.

Custas pelo Recorrido.

Lisboa, 10 de abril de 2024

Pedro de Lima Gonçalves (Relator)

Jorge Arcanjo

Jorge Leal