Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
17415/20.0T8LSB-C.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: EUGÉNIA CUNHA
Descritores: INVENTÁRIO
IMPUGNAÇÃO DA COMPETÊNCIA DO CABEÇA DE CASAL
NOMEAÇÃO DO CABEÇA DE CASAL
Nº do Documento: RP2024040817415/20.0T8LSB-C.P1
Data do Acordão: 04/08/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMAÇÃO
Indicações Eventuais: 5. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O fundamento da “impugnação da competência do cabeça de casal, a que, adjetivamente, alude a al. c), do nº1, do art. 1104º, do CPC, que dá lugar a um incidente do processo de inventário, consiste na preterição da preferência definida na escala estabelecida substantivamente para o deferimento do cargo.
II - É o nº1, do art. 2080º, do Código Civil, que define a ordem pela qual deve ser escolhido o cabeça de casal, atribuindo o terceiro lugar aos parentes que sejam herdeiros legais do falecido (al. c)).
III - De entre os parentes que sejam herdeiros legais, preferem os de grau mais próximo (nº2). E estatuída se mostra, para o caso de herdeiros legais do mesmo grau de parentesco, a preferência dos que viviam com o falecido há, pelo menos, um ano à data da morte (nº3) e, nenhum preenchendo esse requisito de nomeação, a do herdeiro mais velho (nº4);
IV - Tais regras apenas podem ser afastadas em situação de escusa ou de remoção.
V - Não é admissível a subsunção ao nº3 de situações, com a do caso, em que, embora um herdeiro legal reúna melhores condições para o exercício do cargo que os demais, meramente conviva com a inventariada aos fins de semana e dias festivos.
VI - Limitando-se a cabeça de casal, cuja competência vem impugnada, a beneficiar da tutela que a lei lhe confere (no nº4), nenhuma situação de exercício abusivo do direito se mostra configurada, a justificar, o recurso à válvula de segurança do sistema consagrada no artigo 334º, do Código Civil, para excluir a nomeação.
VII - Ainda que assim não fosse, afastado um herdeiro legal, sempre se imporia averiguar a quem incumbiria o cargo, no respeito pela hierarquia imposta.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 17415/20.0T8LSB-C.P1
Processo da 5ª secção do Tribunal da Relação do Porto (3ª Secção cível)
Tribunal de origem do recurso: Juízo Local Cível de Aveiro – Juiz 1



Relatora: Des. Eugénia Cunha
1º Adjunto: Des. Manuel Fernandes
2º Adjunto: Des. Carlos Gil

Acordam os Juízes do Tribunal da Relação do Porto

Sumário (cfr.  nº 7, do art.º 663º, do CPC):

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I. RELATÓRIO

Recorrente: AA

Recorrida: BB


CC, interessado no inventário, em que foi nomeada cabeça-de-casal BB, por requerimento de 10-10-2018, apresentou-se a impugnar a competência da cabeça-de-casal, pugnando pela sua designação, como tal, nos termos do disposto no artigo 2080.º, n.º 3, do Código Civil.
Alega, para tanto e em síntese, ser o interessado CC quem se encontra em melhor posição para garantir a correta administração dos bens da herança, pois sempre esteve presente na vida dos inventariados, em especial da inventariada, acompanhando-a em todos os momentos da sua vida, vivendo, inclusivamente, com ela nos últimos anos, sendo que, mesmo após a inventariada ter ido para uma casa de repouso, continuou a passar fins de semana consigo, pernoitando e fazendo as refeições na casa de morada de família da inventariada, onde, também, vive parte do tempo o interessado, assim garantindo o acompanhamento pessoal e patrimonial dos interesses da inventariada e continuando a gerir os contratos de arrendamento, a emitir os respetivos recibos e a fazer obras necessárias/urgentes.

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O interessado AA, por requerimento de 08-02-2019, veio declarar que acompanha a impugnação apresentada pelo interessado CC, afirmando que este viveu com a inventariada durante, pelo menos, os últimos dez anos da sua vida e tratou de todos os assuntos de carácter familiar, pessoal e patrimonial da inventariada ainda em sua vida, sendo que, mesmo após a sua entrada no lar, a inventariada passava os fins de semana e dias festivos na sua residência e confiou ao interessado CC a gestão do seu património, só ele tendo efetivo conhecimento do estado, circunstâncias e diligências necessárias à boa gestão do mesmo.
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A cabeça de casal respondeu, impugnando os factos invocados pelos cointeressados CC e AA e sustentando que é a si que compete exercer o cargo de cabeça de casal, por força do disposto no artigo 2080.º, n.º 4, do Código Civil.
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Realizou-se audiência final, no âmbito da qual foi junta aos autos certidão do assento de nascimento da cabeça de casal e o tribunal determinou a junção aos autos das certidões dos assentos de nascimentos dos demais interessados.
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Foi proferida decisão com a seguinte

parte dispositiva:

“Termos em, julgo improcedente a impugnação da competência do cabeça-de-casal e, em consequência, mantenho a nomeação da interessada BB como cabeça-de-casal no presente inventário.
Valor do incidente: valor da causa principal (artigo 304.º, n.º 1, do Código de Processo Civil).
Custas do incidente a cargo dos interessados CC e AA, fixando a taxa de justiça em 2 UC”.

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Notificado da decisão do incidente de impugnação da competência do cabeça de casal, interpôs o interessado AA recurso de apelação de tal decisão, pretendendo a substituição da mesma por outra, a nomear o interessado CC cabeça de casal, com base nas seguintes

CONCLUSÕES:
1. O Tribunal a quo, na sentença recorrida, dá como provada a relação de inquestionável proximidade entre o interessado CC e a inventariada – uma “comunhão de vida intensa e duradoura”, nas palavras da nossa jurisprudência – chegando mesmo a citar algumas das decisões transcritas, mas acabando por abandonar o derradeiro esforço de interpretação habilitada da norma, recorrendo erradamente ao critério seguro e literal da idade.
2. Apesar de vislumbrar a boa decisão da causa e, como tal, a única que se afigura possível, o Tribunal a quo opta por uma tese que anula a ratio legis e esvazia a lei do seu espírito, falhando em seguir a mais competente e justa jurisprudência superior;
3. o que está verdadeiramente em causa, o que deve estar verdadeiramente em causa, é a “ideia de vivência em comum”, isto é, a existência ou não de uma “comunhão de vida mais ou menos intensa e duradoura” sempre que esta se verifique,
4. e não o critério frio da idade que deverá ser aplicado apenas quando mais nenhum critério se verifique;
5. da matéria provada conclui-se que o interessado CC, é quem “mais conhecimento [tem] da vida financeira e patrimonial d[a] inventariad[a] e, portanto, [aquele que] estará em melhores condições para exercer o cabeçalato”, sendo aliás esta, segundo o Tribunal da Relação do Porto, a razão de ser do critério plasmado no n.º 3 do artigo 2080.º CC;
6. existindo, em pleno, uma comunhão de vida, uma proximidade efetiva e uma partilha sincera e duradoura entre a falecida e o interessado CC, não poderá ser a circunstância formal de não se ter verificado a “mera coabitação” (apenas no último período de vida da falecida) que justificará o afastamento da aplicação da norma;
7. os contornos específicos de um caso devem sempre ser considerados por um Tribunal que pugne pela boa aplicação da lei e, neste caso em particular, não considerar esta circunstância criaria um efeito inaceitável e até – impõe-se dizê-lo! – perverso;
8. a simples aplicação do critério supletivo da idade, fundado numa igualdade de circunstâncias comprovadamente inexistente, conduziria a um exercício ilegítimo do direito por parte da interessada BB, devendo, pois ser aplicado em última ratio o artigo 334º do código civil, desconsiderando-se os interessados BB e DD, e entregando-se o cabeçalato a quem comprovadamente sempre manteve a afectividade, e a coabitação possível face às especificidades de saúde da inventariada”,


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A interessada BB apresentou-se a responder às alegações de recurso, sustentando a inadmissibilidade do recurso, por o recorrente não possuir legitimidade nem interesse em agir, devendo, a ser o caso, subir em separado, e sustentando que, face à matéria apurada, se verifica a inexistência do pressuposto do nº 3 do art. 2080º do CC, devendo aplicar-se, à situação sub judice, o disposto no nº 4 do mesmo artigo e, consequentemente, confirmar-se na íntegra a decisão recorrida.

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Admitido o recurso, na consideração da legitimidade e interesse do recorrente, já que, por requerimento de 08-02-201, declarou acompanhar a impugnação apresentada pelo interessado CC e ficou vencido na decisão (artigo 631.º, n.º 1, do Código de Processo Civil) - cfr. a parte dispositiva acima citada -, subiu a apelação em separado, cumprindo, após os vistos, apreciar e decidir o mérito do recurso interposto.

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II. FUNDAMENTOS

- OBJETO DO RECURSO

Apontemos, por ordem lógica, as questões objeto do recurso, tendo presente que o mesmo é balizado pelas conclusões das alegações do recorrente, estando vedado ao tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que se imponha o seu conhecimento oficioso, acrescendo que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do ato recorrido - cfr. arts 635º, nº3 e 4, 637º, nº2 e 639º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil -, ressalvado o estatuído no artigo 665º, de tal diploma legal.


Assim, as questões a decidir são as seguintes:

1- Do erro da decisão de mérito:
1.1- por preterição da preferência definida na escala substantiva para o deferimento do cargo de cabeça de casal.
1.2- por se verificar situação de exercício abusivo por parte da cabeça de casal.


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II.A – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
1- Factos provados:
1. O interessado CC esteve sempre presente na vida dos inventariados, em especial da inventariada, acompanhando-a em todos os momentos da sua vida.
2. Em 2013, quando começou a precisar de mais apoio, a inventariada deu entrada em estrutura residencial para idosos.
3. Após ter sido integrada em estrutura residencial para idosos, a inventariada passava os fins de semana e as datas festivas com o interessado CC no apartamento onde residira, sito na Rua ..., Aveiro, fazendo as refeições juntos.
4. Ao longo dos últimos anos de vida da inventariada, o interessado CC dividiu o seu tempo e vida entre as cidades de Aveiro (essencialmente aos fins de semana) e Lisboa.
5. Em Lisboa, assegurava a gestão dos bens dos inventariados, que se situam maioritariamente nessa cidade, nomeadamente executando e/ou mandando executar as obras necessárias, sendo administrador dos condomínios na qual a inventariada tinha frações.
6. Em 2 de janeiro de 2013, a inventariada outorgou procuração a favor dos interessados CC e AA – cfr. procuração junta como documento n.º 1 com o requerimento de 10-10-2018, cujo teor se dá por reproduzido.
7. O interessado CC tratava dos assuntos de carácter familiar, pessoal e patrimonial da inventariada.
8. A inventariada confiou a gestão do seu património ao interessado CC.
9. No ano de 2014, o interessado CC foi o responsável pela criação do condomínio do prédio sito na Rua ..., ... e 56-C – cfr. documento n.º 2 junto com o requerimento de 10-10-2018, cujo teor se dá por reproduzido.
10. Entre 2014 e 2016, o interessado CC exerceu as funções de administrador do condomínio do prédio sito na Rua ..., ... – cfr. documento n.º 3 junto com os requerimentos de 10-10-2018, cujo teor se dá por reproduzido.
11. A inventariada não tinha qualquer relação de proximidade com os interessados BB e DD, com quem não mantinha contacto.
12. Só o interessado CC tem efetivo conhecimento do estado e necessidades de gestão do património dos inventariados, continuando, após o falecimento da inventariada, a fazer as obras necessárias/urgentes e a receber rendas.
13. A interessada BB nasceu no dia ../../1969 – cfr. certidão de assento de nascimento junta em audiência em 06-12-2022, cujo teor se dá por reproduzido.
14. O interessado DD nasceu no dia ../../1970 – cfr. assento de nascimento junto em 28-04-2023, cujo teor se dá por reproduzido.
15. O interessado AA nasceu no dia ../../1977 – cfr. assento de nascimento junto em 28-04-2023, cujo teor se dá por reproduzido.
16. O interessado CC nasceu no dia ../../1980 – cfr. assento de nascimento junto em 28-04-2023, cujo teor se dá por reproduzido.
17. A inventariada faleceu no dia ../../2017 e teve a sua última residência no ... – cfr. certidão de habilitação junta com o requerimento inicial em 08-01-2018, cujo teor se dá por reproduzido.
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2. Factos não provados:
a) O interessado CC viveu com a inventariada pelo menos os últimos dez anos da sua vida.
b) Após dar entrada na estrutura residencial para idosos, a inventariada pernoitava na Rua ... aos fins de semana.
c) Quando estava em Aveiro, o interessado CC garantia o acompanhamento próximo do dia a dia da inventariada, cuidando pessoalmente dela.
d) O interessado CC assegurava a gestão dos bens dos inventariados, outorgando os contratos de arrendamento e respetivas renovações.
e) O interessado CC, após o falecimento da inventariada, continuou a celebrar contratos de arrendamento e a emitir os respetivos recibos, a tratar de todos os assuntos junto das instituições públicas e privadas e a administrar os condomínios.
f) Todos os interessados aceitaram que CC tratasse dos assuntos relacionados com os imóveis que compõem o acervo hereditário dos inventariados.

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II.B - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

1- Do erro na escolha da cabeça de casal.

Insurge-se o apelante contra a decisão que julgou improcedente a impugnação da competência da cabeça de casal e, em consequência, manteve a nomeação da interessada BB como cabeça de casal no inventário, por entender não dever ser atendido ao critério da idade, mas ao critério da maior proximidade com a inventariada, revelando-se a referida interessada, cabeça de casal, contra essa posição e considerando que face à matéria apurada, se verifica a inexistência do pressuposto do nº 3, do art. 2080º, do CC, devendo aplicar-se, à situação sub judice, o disposto no nº 4 do mesmo artigo.

Decidiu o Tribunal a quo dever manter-se no cargo de cabeça de casal[1] a interessada BB, a mais velha de entre os herdeiros legais, todos quatro netos da inventariada, ao abrigo do disposto no n.º 4 do artigo 2080.º do Código Civil, por o caso não poder ser subsumido ao nº3. Com efeito, debruçando-se sobre a questão da aplicação das referidas regras e sobre a ratio deste preceito nos seguintes termos:

“O acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 15-12-2021, proferido no processo n.º 959/21.4T8VNG-A.P1, acessível em www.dgsi.pt, dá o seguinte contributo:

Claramente a razão de que o herdeiro que viva com o inventariado há pelo menos um ano terá, em princípio, mais conhecimento da vida financeira e patrimonial do inventariado e, portanto, estará em melhores condições para exercer o cabeçalato. Se assim é na prática ou não é algo que pode variar de caso para caso, mas esse é o critério eleito pela norma legal.

Não se trata, de modo algum, de presumir que se o inventariado vivia com aquele herdeiro a sua vontade conjeturável seria a de este herdeiro viesse a exercer as funções de cabeça de casal no futuro inventário para partilha do seu património. Se assim fosse então fazia sentido que a primeira regra estabelecida no artigo 2080.º fosse a da atribuição do cargo ao herdeiro designado, expressa ou tacitamente pelo inventariado, o que não sucede de todo. (…)

O critério é apenas o de haver entre o inventariado e o herdeiro uma relação de vida em comum. Não é necessário, porque a norma não o exige, que estejamos perante uma vida em economia comum, basta que estejamos perante uma vida na mesma habitação, no mesmo espaço, no fundo uma situação de convivência diária, quotidiana, normal, na medida em que essa convivência permite a partilha de informações que agilizarão o exercício do cargo.

(…) são estes os critérios eleitos pela disposição legal e que devem ser observados, sendo inclusive irrelevante a vontade dos inventariados (…).

In casu, é sobremaneira relevante a interpretação do critério mencionado, especialmente do que contende com o conceito de residência. Cabe ao tribunal, no caso concreto e por referência ao acervo factual provado, começar por aferir onde residia a inventariada no ano anterior à data da sua morte.

Para os efeitos previstos no artigo 2080.º do Código Civil, o conceito de residência não se confunde com a morada indicada para efeitos fiscais ou com a morada de determinado imóvel que seja da propriedade do falecido. O que significa que, para preenchimento do n.º 3 do artigo 2080.º do Código Civil, é irrelevante a morada fiscal da falecida, a morada indicada junto da autoridade tributária como sendo a habitação própria permanente ou a morada dos imóveis que são da sua propriedade.

O legislador não prevê o conceito de residência, no entanto, é comummente aceite que tal conceito implica a existência de um local físico onde o residente ali pernoita, faz as suas refeições diárias, guarda os seus objetos pessoais, recebe amigos e familiares. Ou seja, uma permanência estável e duradoura num local que está logística e economicamente organizado para ser o centro de vida do próprio e do seu agregado familiar.

O que releva no caso, é saber de entre os herdeiros legais do mesmo grau de parentesco, existirá ou não algum deles que vivesse com a falecida no período correspondente ao ano anterior ao seu falecimento, assim preferindo na atribuição do cargo de cabeça-de-casal.

Viver com alguém expressa a ideia de identidade de domicílio, lugar da sua residência habitual (CCiv., art. 82.º-1), pressupõe, por assim dizer, o viver em comum, posto que em economia separada, ou em quartos separados do mesmo hotel ou pensão – Lopes Cardoso, in Partilhas Judiciais, volume I, 5.ª edição, Almedina, 2006, página 324.

(…) nenhum dos herdeiros legais residia com a falecida (…). Assim sendo, torna-se inaplicável o critério previsto no n.º 3 do artigo 2080.º do Código Civil.

É certo que o interessado CC era o neto mais próximo da inventariada e aquele que melhor conhece o património hereditário dos inventariados, por assegurar a sua gestão, desde a vida da inventariada. Mas, como referido, é irrelevante a vontade hipotética ou presumida dos inventariados quanto ao exercício de tal cargo por um ou outro herdeiro, nem a lei atribui relevância à circunstância de um dos herdeiros estar em melhor condições do que outro para assegurar o cabeçalato – pressupõe essa circunstância se o herdeiro viver com o falecido há pelo menos um ano à data da morte, mas não prescinde dessa vivência em comum (que, como vimos, não se verifica nestes autos)” (negrito nosso),
temos que bem observou a ordem de preferência legalmente estabelecida na escolha que efetuou.
            Vejamos.
Conclui o apelante que o Tribunal a quo recorreu erradamente ao critério da idade e não atendeu ao espírito da lei, sendo que o que está verdadeiramente em causa é a “ideia de vivência em comum” e o interessado CC, é quem mais conhecimento tem da vida financeira e patrimonial da inventariada, sendo, por isso, ele quem está em melhores condições para exercer o cabeçalato, razão de ser do critério plasmado no n.º 3, do artigo 2080.º, do Código Civil, e existindo uma proximidade efetiva e uma partilha duradoura entre a falecida e o interessado CC, não poderá a circunstância formal de não se ter verificado a “coabitação” no último período de vida da falecida a justificar o afastamento da aplicação da norma.
E que, de qualquer modo, a aplicação do critério da idade, fundado numa igualdade de circunstâncias, inexistente, conduziria a um exercício ilegítimo do direito por parte da interessada BB, devendo, pois ser aplicado, em última ratio, o artigo 334º do Código Civil, desconsiderando-se os interessados BB e DD, e entregando-se o cabeçalato a quem comprovadamente sempre manteve a coabitação possível face às especificidades de saúde da inventariada.
Ora, não podemos seguir nenhum dos pretendidos caminhos, como passamos a analisar.

1.1 - Da preterição da preferência

O fundamento da impugnação da competência do cabeça de casal, que dá lugar a um incidente do processo de inventário, consiste na preterição da preferência definida na escala estabelecida pela lei substantiva para o deferimento do cargo[2], o que não se confunde com o pedido de substituição ou de remoção do cabeça de casal a que se reporta o art. 1103º[3]
Substantivamente, o nº1, do art. 2080º, do Código Civil, define a ordem pela qual deve ser escolhido o cabeça de casal, atribuindo o primeiro lugar ao cônjuge sobrevivo (al. a)), o segundo lugar ao testamenteiro (al. b)), o terceiro lugar aos parentes que sejam herdeiros legais do falecido (al. c)) e em quarto lugar os herdeiros testamentários (al. d)).    

De entre os parentes que sejam herdeiros legais, preferem os mais próximos em grau (nº2).

De entre os herdeiros legais do mesmo grau de parentesco, ou de entre os herdeiros testamentários, preferem os que viviam com o falecido há, pelo menos, um ano à data da morte (nº3).

 Em igualdade de circunstâncias, prefere o herdeiro mais velho (nº4).

Com a expressão da lei “Em igualdade de circunstâncias”, pretendeu o legislador englobar duas situações possíveis:

i) a de vários herdeiros legais do mesmo grau e mais próximo (ou herdeiros testamentários) viverem com o falecido há, pelo menos, um ano à data da morte;

ii) a de nenhum destes viver com o falecido há, pelo menos, um ano à data da morte.

Na primeira situação, a preferência legal é a do herdeiro mais velho dos que viviam com o falecido há, pelo menos, um ano à data da morte, sendo na segunda a do herdeiro mais velho.

No caso, sendo os herdeiros netos da inventariada, verifica-se que se provou que a mesma faleceu no dia ../../2017 e teve a sua última residência no ..., onde já se encontrava desde 2013. Resulta, pois, provado que a falecida não vivia com nenhum dos seus netos, residindo, no referido lar. Embora passasse fins de semana e as datas festivas com o interessado CC no apartamento onde residira, sito na Rua ..., Aveiro, fazendo as refeições juntos, certo é que este não vivia com a mesma, pelo que se não encontra constituída a preferência consagrada no nº3, do art. 2080º, a favor deste interessado, não tendo o referido preceito aplicação ao caso concreto, que, por isso, se subsume ao nº4, do referido artigo, como bem considerou o Tribunal a quo.

Com efeito, assim se vem entendendo na Jurisprudência, bem se tendo considerado que “O cargo de cabeça de casal deve ser, prioritariamente, exercido – mesmo no caso de cumulação de inventários, e respeitada a hierarquia do artº 2080º do CC -, pelo interessado que, por razões objetivas ou subjetivas – familiares, de relacionamento pessoal, de conhecimento do acervo a partilhar, etc - maiores e melhores condições reúna para bem administrar e gerir tal acervo até à sua partilha”[4]. Aí se analisa:

Dimana deste preceito que o cargo de cabeça de casal deve ser, prioritariamente, exercido, pelo interessado que, por razões objetivas ou subjetivas – familiares, de relacionamento pessoal, de conhecimento do acervo a partilhar, etc - maiores e melhores condições reúna para bem administrar e gerir tal acervo até à sua partilha.

O exercício do cargo não concede privilégios ao respetivo interessado, e nem sequer atribui apenas direitos; concede-lhe alguns, mas, também, lhe impõe deveres.

Assume-se, afinal, como um cargo que atribui qualidades consubstanciadas em poderes/deveres funcionais tendentes à consecução do seu fito primordial: boa administração/gestão/preservação dos bens com vista a uma partilha célere e equitativa. (…) Neste caso, como nos demais, são estes os pressupostos que devem alicerçar a nomeação do cabeça de casal, posto que cumprida a hierarquia prevista no artº 2080º”.

Impõe-se, na verdade, a observância de tal hierarquia pese embora situações existam de nomeação de cabeça de casal fora da sua rigorosa observância, mas, ainda assim, tal tem de suceder no respeito por outras disposições legais, como é o caso do artº 2083º, do Código Civil, que prevê que “Se todas as pessoas referidas nos artigos anteriores se escusarem ou forem removidas, é o cabeça de casal designado pelo tribunal, oficiosamente ou a requerimento de qualquer interessado”.

 Não se desconhece a posição assumida no Ac. RC de 7/11/2023, proc. 46/20.2T8AGN.C1, que entendeu, como consta do sumário, que “A lei, com vista a um inventário célere e equitativo, pretende que seja nomeado cabeça de casal a pessoa que melhor conhecimento tenha do de cujus, do seu património e da organização/administração do mesmo, refletindo o artº 2080º do CPC uma hierarquia, por ordem decrescente, nesse sentido” e “Assim, a parte final do nº3 de tal preceito deve ser objeto de uma interpretação declarativa lata ou até extensiva, no sentido de ele abarcar a pessoa, que mesmo não vivendo sob o mesmo teto com o falecido, tenha tido uma relação vivencial de proximidade com o mesmo que lhe confira os aludidos conhecimentos, tudo com vista à consecução dos mencionados fitos; e preferindo pois, nestas condições, ao parente do mesmo grau, mesmo que este seja mais velho, mas que não tem tais conhecimentos”[5].

Contudo, consagrando o artigo 2080º, de modo hierarquizado, as pessoas que o legislador considerou assumirem, por ordem decrescente, as melhores capacidades para alcançar os fins pretendidos no inventário, não pode o aplicador da lei, efetuando uma interpretação extensiva, englobar no nº3, toda e qualquer situação de maior convivência entre um herdeiro e os inventariados. E não se assemelham as circunstâncias do caso, de meros convívios em fins de semana e datas festivas, à situação versada no mencionado Acórdão, de contínuos e próximos convívios diários, não sendo, in casu, de alterar a ordem estabelecida, dada a falta da proximidade exigida na lei.

Continuando a lei, no nº4, a hierarquia, pela mencionada “ordem decrescente”, respeitado deve ser o critério, objetivo, seguido pelo legislador não sendo de, através de interpretação extensiva, abrir portas a subjetivismos em matéria exaustivamente regulada pelo legislador. 

O critério legal para a nomeação é o da vivência em comum com o de cujus por um período não inferior a um ano. Se porventura o legislador pretendesse que o critério radicasse no maior conhecimento das coisas referentes à administração do património hereditário ou na competência do candidato a cabeça de casal a previsão legal teria que ser construída de modo totalmente diverso. Acresce, mesmo, que a vivência em comum com o de cujus não constitui qualquer garantia de maior conhecimento das coisas atinentes à administração do património hereditário, pois se o de cujus fosse pessoa capaz ou desconfiada não tinha que transmitir tais conhecimentos a quem com ele vivesse.

Temos, pois, que estão todos os herdeiros legais da falecida, seus netos, em igualdade de circunstâncias, dado nenhum viver com a falecida, preferindo, pois, nos termos consagrados, imperativamente, na lei, o herdeiro mais velho.

É, assim, a lei a estatuir quem exercerá as funções de cabeça de casal: no caso o mais idoso dos netos da inventariada.

E determinando-o a lei, de modo geral e abstrato, não se encontra na disponibilidade do aplicador da mesma discutir o critério legal e estabelecer outro, seja ele qual for, que julgue mais adequado ao caso concreto.

Não constitui, pois, o preenchimento das melhores condições para o exercício do cargo critério de nomeação nem a falta dessas condições causa de afastamento/exclusão da preferência estatuída na lei.

Destarte, o critério de escolha, a observar, resulta da lei, que consagra situações objetivas, não de convicções ou juízos subjetivos do aplicador da mesma, não resultando, pois, ter havido preterição da preferência estabelecida por lei.


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1.2 – Do exercício abusivo do direito

Outrossim, não cabe afastar a cabeça de casal nomeada por aplicação ao caso do instituto do abuso do direito.
Com efeito, não se pode configurar a verificação dos pressupostos do abuso do direito no exercício do cargo pela interessada nomeada cabeça de casal, pois que nenhum exercício abusivo vem alegado.
Estatui o art. 334º, do Código Civil:
“É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.
O abuso do direito, cuja aplicação depende de terem sido alegados os factos a densificar os referidos pressupostos e da respetiva prova, de conhecimento oficioso, é uma válvula de segurança do sistema, sendo que “As regras jurídicas não se aplicam isoladamente. Em cada caso, é sempre a ordem jurídica, no seu todo, que é chamada a depor. Esta, através da boa-fé e dos princípios da tutela da confiança e da primazia da materialidade subjacente, está sempre disponível para o controlo interno do exercício dos direitos. Quando atuadas em contradição com a boa-fé (com o sistema, no seu essencial), há abuso, normalmente manifestado através de algum dos tipos abusivos. (…) O abuso é, hoje, um instituto objetivo. Não depende de culpa do agente ou de quaisquer intenções suas”[6].
A verificação de “desproporção entre a vantagem auferida pelo titular do direito e o sacrifício por ele imposto a outrem constitui … abuso de direito, por atentado à boa fé. Está em especial jogo o princípio da primazia da materialidade subjacente. As valorações subjacentes à atribuição de um direito subjetivo nunca são absolutas”[7]

Ora, limitando-se a cabeça de casal a beneficiar da tutela que a lei lhe confere, nenhuma situação de abuso se configura a justificar o recurso a válvula de segurança do sistema para, afastando a norma legal no nº4, do art. 2080º, excluir a sua nomeação.


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Destarte, resulta que, nem do nº4, do art. 2080º decorre ser a idade um critério supletivo (mas o critério imposto por lei, na falta da verificação de situação que se subsuma ao preceito anterior, manifestamente o caso) nem estamos perante situação de exercício ilegítimo do direito por parte da interessada BB (que demande a aplicação do artigo 334º, do Código Civil, para afastar a aplicação ao caso daquele nº4, por falta de verificação dos pressupostos), nenhum fundamento existindo a justificar o afastamento, a exclusão, dos interessados BB, DD e do próprio apelante e a entrega do cabeçalato ao irmão deste. Sendo o irmão do recorrente, neto mais novo dos quatro da inventariada, verifica-se não preencher o mesmo os requisitos legais para ser nomeado cabeça de casal. Apesar da maior proximidade havida entre a inventariada e o interessado CC e de este poder reunir melhores condições para o exercício do cargo, certo é que não preenche os requisitos legais, para tanto, impostos, nenhuma atuação ilegítima de exercício do direito por parte da interessada BB resulta demonstrada, sequer alegada, não se justificando a exclusão de herdeiro mais velho.   

Improcedem, por conseguinte, as conclusões da apelação, não ocorrendo a violação de qualquer dos normativos invocados pela apelante, devendo, por isso, a decisão recorrida ser mantida.


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Responsabilidade Tributária

As custas do recurso são da responsabilidade da recorrente dada a total improcedência da sua pretensão recursória (nº1 e 2, do artigo 527º, do Código de Processo Civil).


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III. DECISÃO

Pelos fundamentos expostos, os Juízes do Tribunal da Relação do Porto acordam em julgar a apelação improcedente e, em consequência, confirmam, integralmente, a decisão recorrida.


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Custas pelo apelante.



Porto, 8 de abril de 2024
Assinado eletronicamente pelos Senhores Juízes Desembargadores
Eugénia Cunha
Manuel Domingos Fernandes
Carlos Gil

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[1] Esclarecendo: “Como refere o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 11-05-2021, no âmbito do Processo n.º 67/20.5T8LSA-A.C1, disponível em www.dgsi.pt:
O exercício do cargo não concede privilégios ao respetivo interessado, e nem sequer atribui apenas direitos; concede-lhe alguns, mas também lhe impõe deveres. Assume-se, afinal, como um cargo que atribui qualidades consubstanciadas em poderes/deveres funcionais tendentes à consecução do seu fito primordial: boa administração/gestão/preservação dos bens com vista a uma partilha célere e equitativa”.
[2] Ac. da RC de 3/12/2013, proc. 1752/12.oTBVNO-A.C1, in dgsi.net, citado in Abílio Neto “Direito das sucessões e Processo de Inventário Anotado”, 2017, Ediforum, Edições Jurídicas, Lda, pág. 166.
[3] António Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, O Código de processo Civil Anotado, vol. II, Almedina, pág. 570.
[4] Ac. da RP de 23/11/2023, proc. 2435/20.3T8MTS-H.P1, acessível in dgsi
[5] Aí se considerou: “As pessoas que hierarquicamente são referidas no artº 2080º assumem -  ou é presumido pelo legislador que assumam -, por ordem decrescente, maiores e melhores qualidades e conhecimentos com vista à consecução no inventário dos aludidos desideratos.
A assim ser, a parte final do nº3 de tal preceito não deve ser interpretada com o rigor decorrente dos seus exatos termos - «viviam com o falecido há pelo menos um ano à data da morte» -  com o significado de que apenas preferem os herdeiros que habitavam a mesma casa do de cujus.
Mas antes deve ser objeto de uma interpretação declarativa lata, ou até extensiva, no sentido de também abarcar os herdeiros que, apesar de não viverem com o falecido sob o mesmo teto, com ele conviviam em termos tais que lhe proporcionavam um conhecimento do mesmo como pessoa, do seu modus vivendi e da existência e organização/administração dos seus bens e do seu  património em geral”.
[6] António Menezes Cordeiro (Coord.), Código Civil Comentado, I – Parte Geral, Almedina, pág. 941.
[7] Ibidem, pág. 940.