Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
4157/20.6T8VNG-H.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: LINA BAPTISTA
Descritores: INCIDENTE ANÓMALO
QUALIFICAÇÃO DE REQUERIMENTO COMO INCIDENTE
Nº do Documento: RP202403194157/20.6T8VNG-H.P1
Data do Acordão: 03/19/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 2. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O critério decisivo para a qualificação de um incidente como anómalo para os fins previstos no art.º 7.º, n.º 8, do Regulamento das Custas Processuais prende-se, apenas, com a sua conformidade ou desconformidade com a tramitação típica do processo concreto. Este critério não pode, em qualquer situação, assumir uma função punitiva a qual, diversamente, poderá justificar a aplicação de uma taxa sancionatório excecional (cf. Art.º 531.º do Código de Processo Civil) ou a condenação como litigante de má fé (cf. Art.º 542.º e ss. do Código de Processo Civil).
II – A situação processual de falta de pagamento das competentes taxas de justiça devidas pela interposição de recursos e/ou reclamações e, num momento subsequente, das multas legais esgota-se na aplicação das sanções consagradas no art.º 642.º do Código de Processo Civil, tendo somente por efeito o desentranhamento dos requerimentos, não podendo considerar-se um incidente anómalo, tributado como tal.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 4157/20.6T8VNG-H.P1
Comarca: [Juízo de Comércio de Vila Nova de Gaia (J4); Comarca do Porto]


Relatora: Lina Castro Baptista
Adjunto: Rodrigues Pires
Adjunta: Anabela Andrade Miranda

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SUMÁRIO
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Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I - RELATÓRIO

AA foi declarada insolvente, por sentença proferida em 12/07/2021.

Com data de 12/01/2022, e em face do óbito da Insolvente, proferiu-se despacho a determinar que o processo passava a correr contra a herança aberta por morte da devedora, que se manterá indivisa até ao encerramento do mesmo.

Com data de 25/10/2022, foi proferido despacho que, entre o mais, decidiu: “(…) Atenta a não oposição dos credores, nada tem também o tribunal a opor à desistência do referido processo de inventário.”

Com a mesma data de 15/11/2022, a Herança Jacente da Insolvente, através da herdeira BB, veio interpor recurso de apelação desta decisão, pedindo a sua revogação.

Juntou comprovativo de pedido de proteção jurídica.

BB, em 15/11/22, requereu, em nome da Herança Jacente da Insolvente proteção jurídica junto da Segurança Social, na modalidade de dispensa de pagamento de taxa de justiça e demais encargos do processo.

Com data de 21/11/2022, foi proferido despacho que, entre o mais, decidiu: “(…) Daí que não se vislumbre fundamento legal para que BB, filha da falecida AA, se apresente em juízo em representação da herança jacente, tanto mais que não foi nomeada para o efeito. (…) Pelo mesmo motivo, não admito as alegações de recurso por si apresentadas em representação da Herança Jacente – ref.ª 33877687 de 15/11/2022.

Custas pelo incidente anómalo a que deu causa por BB, fixando-se a taxa de justiça em 2 Ucs.

Tendo o tribunal agora conhecimento que a Herança da falecida insolvente se encontra jacente, nos termos do art.º 2048.º do Código Civil, nomeio curador especial à mesma o cônjuge sobrevivo CC (que sempre seria o cabeça de casal da herança) (…).”

Com data de 09/12/22, a Herança Jacente da Insolvente, através da herdeira BB, veio, na sequência do despacho acima referido de 21/11/22 que não admitiu o seu recurso, apresentar reclamação para este Tribunal da Relação.

Com data de 13/12/22, a Herança Jacente da Insolvente, através da herdeira BB, veio apresentar recurso de apelação do acima transcrito despacho de 21/11/22, pedindo a revogação do mesmo.

Com data de 15/12/22, a mesma Herança Jacente da Insolvente, representada pelo curador especial nomeado, veio apresentar recurso de apelação do mesmo despacho de 21/11/22, pedindo a revogação do mesmo.

Com a mesma data de 15/12/22, a mesma Herança Jacente da Insolvente, representada pelo curador especial nomeado, veio apresentar recurso de apelação do despacho de 25/10/22, pedindo a revogação do mesmo.

Com data de 04/01/23, foi proferido despacho relativamente a estes recursos apresentados nos seguintes termos: “Refªs 34176643 e 34176639 de 15/12/2022: notifique a subscritora do requerimento em apreço a fim de juntar a competente procuração forense ratificando o processado se necessário, no prazo máximo de 5 dias, sob pena de ficar sem efeito tudo o que tiver sido praticado pela mandatária, sendo condenada nas custas respetivas e, se tiver agido culposamente, na indemnização dos prejuízos a que tenha dado causa – art. 48º, nºs 1 e 2 do Código de Processo Civil ex vi art. 17º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.” E “Refª 34148394 de 13/12/2022: pelos mesmos fundamentos já expostos na decisão proferida a 21/11/2022 (refª 442362786), ou seja, por falta de legitimidade de BB para agir em representação da Herança Jacente, não admito as alegações de recurso por si apresentadas em representação daquela Herança. Custas pelo incidente anómalo a que deu causa por BB, fixando-se a taxa de justiça em 2 UCs.”

Com data de 16/01/23, a Herança Jacente da Insolvente, representada pelo curador especial nomeado veio juntar aos autos Procuração Forense com poderes gerais, datada de 30 de novembro de 2022.

Com data de 19/01/23, a Herança Jacente da Insolvente, através da herdeira BB, veio, na sequência do despacho acima referido de 04/01/23 que não admitiu o seu recurso, apresentar reclamação para este Tribunal da Relação.

Com data de 31/01/23, foi proferido despacho que, quanto às reclamações apresentadas em 09/12/22 e 19/01/23, determinou que se aguardasse por informação da Segurança Social quanto ao pedido de apoio judiciário; quanto à Procuração junta a 16/01/23, refere “vi a junção da procuração que se encontrava em falta.” e quanto aos 02 recursos interpostos pela Herança Jacente da Insolvente, representada pelo curador especial nomeado, em 15/12/22, determinou “Notifique o requerente a fim de proceder ao pagamento da taxa de justiça acrescida da legal multa – art. 642º, nº 1 do Código de Processo Civil.”

No Apenso de Liquidação, com data de 31/01/23, proferiu-se despacho com o seguinte teor: “(…) Veio a Herança jacente de AA representada, neste acto, pelo curador especial nomeado, CC requerer a imediata suspensão da liquidação e das diligências de venda que estão a ser levadas a cabo pelo senhor Administrador da Insolvência, nomeadamente, a celebração da escritura de compra e venda relativa à verba 1 e que sejam declaradas nulas as vendas já realizadas relativas às verbas 2 e 3, com as necessárias consequências legais, designadamente, o cancelamento dos respectivos registos de aquisição. Para o efeito, alega que existe a correr, por apenso ao processo de insolvência do cônjuge marido, processo de inventário e que os processos de insolvência, apesar do Administrador da Insolvência ser comum a ambos, não estão apensos, logo, existem duas ações distintas, com distintos autos de apreensão e liquidação. (…) Termos em que decido pela improcedência da requerida suspensão da liquidação e das diligências de venda que estão a ser levadas a cabo pelo senhor Administrador da Insolvência, e da requerida declaração de nulidade das vendas já realizadas relativas às verbas 2 e 3. Custas pelo requerente, fixando-se a taxa de justiça em 2 UCs.”

Com data de 22/02/23, a Herança Jacente da Insolvente veio apresentar recurso de apelação do despacho acima transcrito de 31/01/23, pedindo a sua revogação.

A 21/3/2023, foi proferida decisão pelos serviços da Segurança Social, onde se refere que “Analisado o requerimento de proteção jurídica, constatou-se que não foi entregue com o mesmo a documentação necessária para comprovar a situação de insuficiência económica (…) verificando-se assim que não foi feita a prova da situação económica do requerente para efeitos de atribuição do presente beneficio.”, sendo o mesmo incidente indeferido.

Com data de 28/03/23, foi proferido despacho com o seguinte teor: “Refª 34840629 de 22/2/2023: novamente vem a ilustre mandatária apresentar requerimento (no caso, alegações de recurso) em nome de Herança Jacente de AA, sem indicar quem a representa para o acto. A Herança Jacente de AA não tem capacidade para se apresentar em juízo sozinha, sem representante, isto é, tem que se apresentar em juízo sempre devidamente representada por quem a lei atribui tal capacidade. Ora, nos presentes autos e seus apensos, a ilustre mandatária já apresentou requerimentos em nome de: - Herança Jacente de AA representada por BB (que o tribunal considera não ter legitimidade para a representar, como já deixou ficar expresso); - Herança Jacente de AA representada por CC (que foi quem o tribunal nomeou para representar a Herança Jacente) e - simplesmente Herança Jacente de AA. Pelo exposto, notifique a ilustre mandatária a fim de apresentar novas alegações de recurso aperfeiçoadas, identificando expressamente quem representa a Herança Jacente de AA neste acto, sob pena de não aceitação das mesmas. Prazo: 5 dias. Refª 34524063 de 24/1/2023: atenta a informação junta pelo(a) Sr(a). Administrador(a) da Insolvência, julgo extinta a presente liquidação do activo. Sem custas uma vez que a tributação do processo de insolvência abrange as custas da liquidação do activo. Notifique e registe.”

A Recorrente não veio responder no prazo que lhe foi concedido.

Com data de 18/04/23, ainda neste apenso, foi proferido despacho com o seguinte teor: “Refª 35329432 de 11/4/2023: visto. No processo principal, insista junto da Segurança Social por informação quanto à decisão proferida no pedido de apoio judiciário formulado pela aqui recorrente (a fim de poder ser proferido despacho de admissão ou não admissão do recurso).”

Com data de 18/04/23, o “Centro Distrital do Porto da Segurança Social” veio informar nos autos que o requerimento de apoio judiciário por “Herança Jacente de AA” foi objeto de uma proposta de decisão (Audiência Prévia) de indeferimento.

Resulta do respetivo processo administrativo que esta decisão foi notificada à Requerente por carta registada de 24/3/2023, tendo a mesma sido devolvida com indicação de não reclamada. Bem como que tal carta foi enviada para a Rua ..., ..., ... Porto, morada indicada pela Requerente no seu pedido de concessão de apoio judiciário.

Com data de 05/06/23, foi proferido despacho com o seguinte teor: “Refª 35791990 de 30/5/2023: conforme se constata pela análise do ofício em apreço, foi definitivamente indeferido o pedido de apoio judiciário apresentado pela Herança Jacente de AA. Pelo exposto, notifique a Herança Jacente a fim de a mesma proceder ao pagamento das taxas de justiça que se encontram em divida nos vários requerimentos apresentados neste processo e seus apensos, identificando-os, acrescido da multa legal, sob pena de desentranhamento dos mesmos. Prazo: 10 (dez) dias.”

Em 08/05/23, a BB apresentou requerimento afirmando não ter recebido a carta aludida pela Segurança Social e ter-lhe sido vedado o exercício do direito de resposta à proposta de decisão de indeferimento em sede de audiência prévia.

Com data de 26/06/23, a Herança Jacente da Insolvente, representada pelo curador especial nomeado, veio apresentar recurso de apelação do despacho acima transcrito de 05/06/23, pedindo a sua revogação.

Com data de 04/09/23, foi proferido despacho com o seguinte teor: “Refª 36051258 de 26/6/2023: nos termos do art. 630º, nº 1 do Código de Processo Civil ex vi art. 17º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, “Não admitem recurso os despachos de mero expediente nem os proferidos no uso legal de um poder discricionário”. O despacho de que recorre a Herança Jacente de AA é um despacho meramente de gestão processual, ordenando à Secção que proceda a determinada notificação, isto é, trata-se de um despacho de mero expediente. É, por isso, irrecorrível. Recebida a notificação em causa, poderá a Herança Jacente de AA responder no processo manifestando a sua posição e provocando uma decisão, essa sim, de que poderá recorrer caso discorde. Em face do exposto, não admito o recurso apresentado pela Herança Jacente de AA. Custas do incidente pelo curador especial nomeado CC, fixando-se a taxa de justiça em 2 UCs.”

Com data de 25/09/23, a Herança Jacente da Insolvente, representada pelo curador especial nomeado, veio, na sequência do despacho acima referido de 04/09/23 que não admitiu o seu recurso, apresentar reclamação para este Tribunal da Relação.

Com data de 23/10/23, foi proferido despacho com o seguinte teor: “(…) Compulsados os autos, verifica-se que BB, arrogando-se representante de Herança Jacente da falecida AA, apresentou três requerimentos (1- Alegações de recurso de 15-11-2022 com ref: 33877687, 2- Reclamação de 09-12-2022 com a refª 34114810 e 3- Alegações de 13-12-2022 com ref: 34148394), sem que tenha procedido ao pagamento da competente taxa de justiça e, depois de notificada para o efeito, da multa aplicada. Devem, por isso, ser desentranhados os requerimentos em apreço.

BB não foi nomeada para representar a Herança Jacente da falecida AA e não existe qualquer previsão legal que lhe atribua essa qualidade. Como é evidente, não basta que alguém se apresente como representante de uma entidade terceira para que para que a passe a representar – não basta a vontade do representante, é necessário fundamento legal, que no caso não existe. Deve, em consequência, BB ser condenada como efectiva autora dos requerimentos em apreço nos incidentes a que deu causa. Pelo exposto, determino o desentranhamento dos requerimentos 1- Alegações de recurso de 15-11-2022 com ref: 33877687, 2- Reclamação de 09-12-2022 com a refª 34114810 e 3- Alegações de 13-12-2022 com ref: 34148394. Custas dos incidentes a que deu causa pela requerente BB, fixando-se a taxa de justiça em 1 UC por cada desentranhamento/incidente, no total de 3 UCs. Notifique.

O curador especial CC (esse sim, nomeado para representar a Herança Jacente da falecida AA por decisão proferida a 21/11/2022, refª 442362786), apresentou 6 requerimentos (1- Alegações de 15-12-2022 com ref: 34176639, 2-Alegações de 15-12-2022 com ref: 34176643, 3- Reclamação de 19-01-2023 com a ref.: 34489614, 4- Alegações de 26-06-2023 com ref: 36051258, 5- Reclamação de 25-09-2023 com a ref: 36754072 e 6- no apenso da liquidação 4157/20.6T8VNG-F, Alegações de 22-02-2023 com a ref. 34840629), sem que tenha procedido ao pagamento da competente taxa de justiça e, depois de notificada para o efeito, da multa aplicada. Devem, por isso, ser desentranhados os requerimentos em apreço. Pelo exposto, determino o desentranhamento dos requerimentos 1- Alegações de 15-12-2022 com ref: 34176639, 2- Alegações de 15-12-2022 com ref: 34176643, 3- Reclamação de 19-01-2023 com a ref.: 34489614, 4- Alegações de 26-06-2023 com ref: 36051258, 5- Reclamação de 25-09-2023 com a ref: 36754072 e 6- no apenso da liquidação 4157/20.6T8VNG-F, Alegações de 22-02-2023 com a ref. 34840629. Custas dos incidentes a que deu causa pela requerente Herança Jacente da falecida AA, fixando-se a taxa de justiça em 1 UC por cada desentranhamento/incidente, no total de 6 UCs. Notifique.

Refª 36754072 de 25/9/2023: vem Herança Jacente de AA apresentar reclamação do despacho de 4/9/2023 de não admissão de recurso por si apresentada. Novamente, e à imagem do que sucedeu com os 6 anteriores requerimentos supra identificados, a reclamante não comprova ter procedido ao pagamento da competente taxa de justiça. Pelo exposto, notifique-a a fim de proceder ao pagamento omitido, acrescido de multa de igual montante (mas não inferior a 1 UC nem superior a 5 UC), nos termos dos arts. 145º, nº 3 e 642º do Código de Processo Civil ex vi art. 17º do CIRE. Desde já se adverte o curador especial CC de que a sucessiva apresentação de requerimentos/alegações de recurso, sem o pagamento da competente taxa de justiça nem, depois de notificado, da multa legal, protelando o andamento do processo de insolvência (que tem natureza urgente – art. 9º do CIRE) e impedindo-o de prosseguir, sem utilidade para si (uma vez que não lhes dá seguimento), implicará a final a apreciação dessa conduta à luz do instituto da litigância de má fé – art. 542º do Código de Processo Civil.”

Com data de 24/10/23 foi proferido despacho com o seguinte teor: “Por lapso de que nos penitenciamos, no despacho proferido a 23/10/23 incluímos o requerimento com a ref.ª 36754072 de 25/9/2023 no rol dos despachos a desentranhar do presente processo. Como consta mais adiante da mesma decisão, sobre este requerimento foi ainda dada oportunidade ao requerente de proceder ao pagamento da taxa de justiça em falta, acrescido de multa de igual montante. Pelo exposto, dou sem efeito a decisão proferida a 23/10/2023, apenas na parte que determina o desentranhamento do requerimento apresentado a 25/9/2023, com a ref.ª 36754072.”

Com data de 14/11/23, BB veio recorrer este despacho de 23/10/23 pedindo a sua revogação e terminando com as seguintes
CONCLUSÕES:

I.A inusitada posição assumida, pelo tribunal recorrido, no despacho de 23.10.2023, considerando a aqui recorrente “a efectiva autora dos requerimentos em apreço”, e condenando-a em custas pelo incidente a que deu causa, e porque com ela, não pode, manifestamente, concordar, outra solução não resta senão recorrer do decidido, com vista à revogação do despacho, por este Tribunal superior.

II. A omissão de notificação dos actos, que foram sendo praticados no processo, teve influência direta na sua tramitação e, efetivamente, representou a supressão dos direitos da herança jacente, parte no processo, que nunca deles foi notificada.

III. Situação, a que nem a herança jacente nem a recorrente deram causa, que motivou a intervenção desta última, filha da insolvente AA, enquanto sua sucessível, de forma a assegurar a efectiva intervenção da herança jacente, que, e para tanto, requereu apoio judiciário.

IV. Só após a intervenção da herança jacente representada pela aqui recorrente, e decorrido quase 1 ano após o óbito e o despacho de prosseguimento dos autos contra a herança (12.01.2022), decidiu, o Tribunal recorrido, por despacho de 21.11.2022: - Nomear o cônjuge sobrevivo como curador especial da herança Jacente; - Notificá-lo do já referido despacho de 12.01.2022 e, em simultâneo, de todos os requerimentos e despachos posteriores. - E ainda pronunciar-se sobre os requerimentos, concretamente, alegações de recurso e reclamação, apresentados pela herança jacente representada pela aqui recorrente, e agora mandados desentranhar.

V. Decidiu o tribunal recorrido, no despacho de 21.11.2022 com ref. 442362786 e no despacho de 04.01.2023 com ref.443694699, não admitir os requerimentos apresentados, por falta de legitimidade da aqui recorrente para agir em representação da Herança jacente,

VI. Indo a recorrente condenada, em custas, em cada um deles, pelo que considerou um “incidente anómalo”, fixando a taxa de justiça em 2 Ucs.

VII. Não obstante, o acervo que os autos patenteiam, o Tribunal recorrido, no despacho aqui posto em crise, pronunciar-se, novamente, sobre a intervenção da herança jacente representada pela aqui recorrente, ordenando, agora, o desentranhamento dos identificados requerimentos, porquanto, e depois de supostamente ter sido notificada para o efeito, não ter procedeu ao pagamento de taxa de justiça e da multa aplicada.

VIII. E, condenando, uma vez mais, a aqui recorrente, em custas, e porque nas suas palavras “a efectiva autora dos requerimentos.”, desta feita, fixando a taxa de justiça em 1 Uc por cada desentranhamento/incidente.

IX. A herança jacente, é titular de direitos e obrigações, e foi-lhe atribuída personalidade judiciária pelo art. 12.º al.a) do CPC.

X. Conforme estatuído no artigo 11.º nº 1 do CPC, a personalidade judiciária consiste na suscetibilidade de ser parte, e a legitimidade consiste na suscetibilidade de ser parte num determinado processo jurisdicional.

XI. No caso, a herança jacente, dotada de personalidade judiciária, é a parte no processo de insolvência decorrente do falecimento da insolvente, e não o sucessível, o herdeiro, o curador, em suma, quem aja em nome dela, e tem legitimidade própria para nele intervir.

XII. Questão diversa da legitimidade é a da representação em juízo, ou seja, saber quem age ou pode agir em nome da herança jacente, porque embora esta seja dotada personalidade judiciária não possui personalidade jurídica.

XIII. A recorrente propugna que a sua intervenção, enquanto filha (mais velha) da falecida, e na qualidade de sucessível, em representação da herança jacente, foi plenamente justificada, atento ao quadro fáctico descrito, e plausível à luz da lei.

XIV. Tendo a herança jacente personalidade judiciária, e tendo a aqui recorrente provada a sua condição de sucessível, justificada ficou a representação daquela por esta.

XV. A colocar-se qualquer questão esta seria ao nível da irregularidade da representação e nunca ao nível da ilegitimidade, sendo aquela passível de ser sanada mediante a intervenção do representante legítimo, neste caso, o curador especial, entretanto, nomeado, a quem incumbiria decidir ratificar, ou não, os actos praticados, cfr. nº 1 art. 27.º do CPC.

XVI. Será da decisão de não ratificação dos actos, que decorre ser dado sem efeito todo o processado posterior à irregularidade cometida, correndo novos prazos para a prática dos actos não ratificados, cfr. nº 2 do art. 27.º do CPC.

XVII. A actuação do tribunal recorrido perpetuou, injustificadamente, uma situação que, daquela forma, se encontrava resolvida, dando origem a um “imbróglio jurídico” resultante do facto de coexistirem recursos apresentados pela herança jacente representada pela aqui recorrente e recursos apresentados pela herança jacente representada pelo curador especial sobre as mesmas questões.

XVIII. Invocando os art. 145.º e art. 642.º do CPC, e assente em pressupostos errados, ordena o Tribunal recorrido, o desentranhamento dos requerimentos apresentados pela herança jacente representada pela aqui recorrente,

XIX. Revelando-se o decidido contrário ao quadro legal pelo qual se regeu o tribunal recorrido.

XX. A herança jacente requereu, junto do Instituto da segurança social (ISS), por mail de 15.11.2022, protecção jurídica na modalidade de dispensa de pagamento de taxa de justiça e demais encargos.

XXI. Olvidou o Meritíssimo Juiz a quo, o disposto no n.º 3 do invocado art. 642.º do CPC, que nos diz que a parte que aguarde decisão sobre a concessão do apoio judiciário deve, em alternativa, comprovar a apresentação do mesmo – ora, foi o que foi feito!

XXII. A junção do comprovativo do pagamento da taxa de justiça só se impõe nos 10 dias a contar da notificação da decisão que indefira o pedido de apoio judiciário (art. 570.º, n.º 2 do CPC)

XXIII. Não se verifica o pressuposto para fazer opera o n.º 1, do art. 642.º do CPC, invocado pelo tribunal recorrido.

XXIV. Labora em erro, o tribunal recorrido, ao afirmar que, a aqui recorrente foi notificada para pagar taxa de justiça acrescida de multa – o que não ocorreu!

XXV. O ordenado desentranhamento, assente na falta de pagamento da taxa de justiça acrescida de multa, carece de fundamentação factual e jurídica que a sustente.

XXVI. Na sequência dos requerimentos apresentados, foi a aqui recorrente condenada em custas pelo incidente anómalo, nos despachos de 21.11.2022 com ref. 442362786 e de 04.01.2023 com ref.443694699, no despacho recorrido é condenada por cada desentranhamento/incidente.

XXVII. É destituído de fundamento a condenação da aqui recorrente, novamente em custas porque “efectiva autora” dos requerimentos apresentados pela herança jacente.

XXVIII. Os requerimentos apresentados pela herança jacente, representada pela aqui recorrente, não configuram qualquer tipo de incidente, anómalo ou não.

XXIX. A consequência jurídica de não pagamento da taxa acrescida de multa após notificação para o efeito por parte da secretaria, é o desentranhamento das peças apresentadas – cfr. resulta do art. 642.º do CPC

XXX. Não existe fundamento legal para condenar a aqui recorrente a título pessoal, mas e também, para condenar a herança jacente, em custas por cada desentranhamento/incidente.

XXXI. Há no despacho sob recurso erro na interpretação dos factos e inadequada aplicação do direito, por isso, erro de julgamento, que inquina de vício o despacho proferido, impondo-se, por justiça e em nome da verdade material, a sua revogação.

XXXII. Violou a decisão proferida o disposto no art. 11 nº 1, art. 12 al. a), art. 27 nº 1 e 2, art. 28.º, art. 30.º, art. 145.º, art. 527.º, art. 570.º, art. 641.º, art. 642.º todos do CPC, art.2047.º, do CC, e demais disposições legais aplicáveis.

Com data de 15/11/23, a Herança Jacente da Insolvente, representada pelo curador especial nomeado, veio recorrer dos despachos de 23/10/23 e 24/10/23 pedindo a sua revogação e terminando com as seguintes
CONCLUSÕES:
I. Por despacho de 23.10.2023, proferido a fls… dos autos, foi decidido ordenar o desentranhamento dos requerimentos alegações de 15.12.2022 com ref. 34176639, alegações de 15.12.2022 com ref. 34176643, reclamação de 19.01.2023 com ref. 34489614, alegações de 26.06.2023 com ref. 36051258, reclamação de 25.09.2023 com ref. 36754072 e alegações de 22.02.2023 com ref. 34840629 (apenso de liquidação - F) apresentadas pela aqui recorrente, e, ainda, condená-la nas “Custas dos incidentes a que deu causa (…)” fixando-se taxa de justiça em 1 UC por cada desentranhamento /incidente, no to-tal de 6 UCs”.
II. Por despacho de 24.10.2023, foi dada sem efeito a decisão proferida de 23.10.2023 “apenas na parte que determina o desentranhamento do requerimento apresentado a 25.09.2023 com refª36754072”, mantendo, contudo, o decidido quanto à condenação em custas, no total de 6 UCs.
III. A herança jacente, dotada de personalidade judiciária, é a parte no processo de insolvência, decorrente do falecimento da insolvente, e não o sucessível, o herdeiro, o curador, em suma, quem aja em nome dela, e tem legitimidade própria para nele intervir,
IV. Questão diversa da legitimidade é a da representação em juízo, ou seja, saber quem age ou pode agir em nome da herança jacente, porque embora esta seja dotada personalidade judiciária não possui personalidade jurídica.
V. A colocar-se qualquer questão, esta seria ao nível da irregularidade da representação e nunca ao nível da ilegitimidade, sendo aquela passível de ser sanada mediante a intervenção do representante legítimo, neste caso, o curador especial entretanto nomeado, a quem incumbiria decidir ratificar, ou não, os actos praticados, cfr. nº 1 art. 27.º do CPC.
VI. O curador especial, quando foi nomeado devia ter sido notificado para o efeito de ratificação dos actos, entretanto, praticados.
VII. Ao não ter assim actuado, o tribunal recorrido deu origem a um imbróglio jurídica, e perpétua a situação com o agora decidido.
VIII. As decisões judiciais podem estar feridas na sua validade ou eficácia, por violação das regras da sua elaboração, estruturação ou das que compõem o seu conteúdo e limites, geradoras de nulidade ou por erro de julgamento dos factos e do direito.
IX. O despacho judicial sob recurso é nulo, quer por falta de motivação/fundamentação quer por omissão de pronúncia.
X. A exigência de fundamentação tem natureza imperativa, e é um princípio constitucionalmente consagrado no art. 205.º nº 1 da CRP, devendo ser cumprido nas decisões judiciais.
XI. O despacho recorrido não cumpre, ainda que minimamente, o referido dever de motivação/fundamentação, sendo completamente omisso quanto aos factos que estão na sua base.
XII. E, não contempla também, e como se impunha, as possíveis soluções jurídicas à luz do regime jurídico de que invoca, designadamente, não chamar à colação o disposto n.º 3 do art. 642.º do CPC
XIII. Nos termos do disposto no art. 615.º nº1, al. b) do C.P.C., aplicável ex vi do artº 613º, nº3 do mesmo diploma legal, determina a sua nulidade,
XIV. A omissão de pronúncia, constitui um vício da decisão que se verifica quando o tribunal não se pronuncia sobre questões cujo conhecimento a lei lhe imponha, sejam as mesmas de conhecimento oficioso ou sejam suscitadas pelos sujeitos processuais.
XV.I mpondo-se uma análise, critica e concreta, da questão do apoio judiciário, à luz dos factos e das normas jurídicas aplicáveis, e não tendo sido esta feita, há omissão de pronúncia.
XVI. A recorrente, não foi notificada de qualquer decisão final relativamente ao apoio judiciário que apresentou nem do ofício do ISS para que se pudesse pronunciar.
XVII. A decisão de desentranhamento é proferida sem que a recorrente tenha sido previamente ouvida sobre a questão determinante do apoio judiciário, para efeitos do exercício do contraditório.
XVIII. E também, sem aguardar a notificação da recorrente, para os efeitos, por si, definidos no despacho de 05.06.2023, ou seja, para proceder ao pagamento das taxas de justiça, alegadamente omitidas, acrescidas de multa, sob pena de desentranhamento.
XIX. A decisão surpreende porque o tribunal se pronuncia sobre assunto de que não podia conhecer antes de ouvir a parte sobre a matéria (oficio do ISS sobre o apoio judiciário) e depois, sem ser efetuada a notificação, que havia ordenado anteriormente, para pagamento das taxas de justiça acrescidas de multa, decisão essa, que para o tribunal recorrido, essa sim, susceptível de recurso.
XX. O Tribunal a quo proferiu uma decisão surpresa proibida pelo artigo 3º/3 do CPC. (princípio do contraditório), em conjugação com os princípios do processo justo e equitativo, disposto nos artigos 13º/1 e 2, e 20º/1 e 4, da C.R.P. e 6º/11 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (C.E.D.H.).
XXI. E, cometeu uma nulidade, pois omitiu a prática de um ato a que lei obriga, com enorme impacto na decisão proferida.
XXII. A decisão recorrida é, pois, nula por excesso de pronúncia cfr. estatuído no art. 615.º nº 1 al. d) do CPC.
XXIII. O tribunal recorrido errou quer na apreciação dos factos quer na aplicação do direito.
XXIV. O artigo 37.º da Lei n.º 34/2004, de 29 de julho, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 47/2007 de 28 de Agosto, determina a aplicação subsidiária ao procedimento de concessão de proteção jurídica, das disposições do Código do Procedimento Administrativo, com exclusão de quaisquer outras, designadamente as do Código de Processo Civil.
XXV. A aplicação do art. 249.º do CPC, carece em absoluto de suporte legal revelando-se actuação do ISS ilegal por violação do princípio da legalidade a que a Administração publica está sujeita (art. 3.º nº 1 do CPA).
XXVI. Em sede do processo de apoio judiciário, é sobre o ISS que impende o dever de notificação e o ónus de diligenciar pela sua efectiva concretização, de forma a levar ao conhecimento do requerente a decisão proferida, tornando-a válida e eficaz.
XXVII. Não existe, nem na lei do apoio judiciário, nem no CPA, aplicável subsidiariamente, qualquer norma que valide, a notificação efectuada, e a produção dos seus efeitos.
XXVIII. Não se podendo concluir pela omissão de pagamento, já que não resulta dos autos a obrigação por parte da recorrente em fazê-lo (por ausência de notificação de decisão final do pedido de apoio judiciário), nem comprovada a sua notificação, por parte da secretaria, para pagar as taxas omitidas acrescidas de multa, sob pena de desentranhamento, assenta o decidido em errados pressupostos e mostra-se contrário ao regime legal pelo qual se regeu o tribunal recorrido.
XXIX. Carece o ordenado desentranhamento de fundamentação factual e jurídica que a sustente, incumprindo com as regras e trâmites processuais definidos, afastando-o do iter processual traçado e querido pelo legislador.
XXX. Há no despacho sob recurso erro na interpretação dos factos e inadequada aplicação do direito, por isso, erro de julgamento, que inquina de vício o despacho proferido, impondo-se, por justiça e em nome da verdade material, a sua revogação.
XXXI. Os requerimentos apresentados pela herança jacente, representada pela aqui recorrente, não configuram qualquer tipo de incidente.
XXXII. A consequência jurídica do não pagamento da taxa de justiça acrescida de multa após notificação para o efeito por parte da secretaria, o que aliás, e como se disse, não ocorreu é o desentranhamento das peças apresentadas, conforme resulta do art. 642.º do CPC.
XXXIII. não se mostra a decisão fundamentada a condenação em custas por cada desentranhamento/incidente, é por isso nulo o despacho nos termos do art. 615.º nº 1 al. b), o que deve ser reconhecido e declarado com as necessárias consequências legais.
XXXIV. Sem conceder, sempre estaríamos perante uma violação e errada aplicação da lei por parte do tribunal recorrido com a consequência revogação do despacho agora posto em crise.
XXXV. A decisão de mandar desentranhar o requerimento de 25.09.2023, com ref. 36754072, foi dada sem efeito, não cuidou tribunal de retificar a decisão no que concerne à condenação em custas.
XXXVI. Erro de julgamento, que inquina de vício o despacho proferido, impondo-se, por justiça e em nome da verdade material, a sua revogação.
XXXVII. Violou a decisão proferida art. 3.º, n.º 3, art. 11 nº 1, art. 12 al. a), art. 27 nº 1 e 2, art. 28.º, art. 30.º, art. 145.º, art. 154.º, art. 570.º art. 607.º, art. 608, n.º 2, art, 642.º nº 1 e 3 todos do CPC, e art 205.º da CRP, e demais disposições legais aplicáveis.

Não foram apresentadas contra-alegações.

Os presentes recursos foram admitidos como de apelação, a subir imediatamente, em separado e com efeito meramente devolutivo.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.


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II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO

Resulta do disposto no art.º 608.º, n.º 2, do Código de Processo Civil[1], aqui aplicável ex vi do art.º 663.º, n.º 2, e 639.º, n.º 1 a 3, do mesmo Código, que, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, o Tribunal só pode conhecer das questões que constem nas conclusões que, assim, definem e delimitam o objeto do recurso.

Como questão prévia, cumpre referir que, quer BB, quer a Herança Jacente da Insolvente, representada pelo curador especial nomeado, recorreram do despacho de 23/10/23.

A primeira Recorrente pretende apresentar como objeto do recurso, entre o mais, que a sua intervenção, enquanto filha (mais velha) da falecida, e na qualidade de sucessível, em representação da herança jacente, foi plenamente justificada, atento ao quadro fáctico, e plausível à luz da lei.

Pretende que se decida que, tendo a herança jacente personalidade judiciária, e tendo ela provada a sua condição de sucessível, justificada ficou a representação daquela por esta.

Bem como que, a colocar-se qualquer questão esta seria ao nível da irregularidade da representação e nunca ao nível da ilegitimidade, sendo aquela passível de ser sanada mediante a intervenção do representante legítimo, neste caso, o curador especial, entretanto, nomeado, a quem incumbiria decidir ratificar, ou não, os atos praticados.

Paralelamente, a Recorrente Herança Jacente, pretende apresentar como objeto do recurso, entre o mais, que o curador especial, quando foi nomeado devia ter sido notificado para o efeito de ratificação dos atos, entretanto, praticados.

Pretende que se considere que, ao não ter assim atuado, o tribunal recorrido deu origem a um imbróglio jurídica, e perpétua a situação com o agora decidido.

Ora, o despacho recorrido limita-se a decidir, na sequência de decisões anteriores de indeferimento de recursos apresentados e de não pagamento de taxas de justiça e multas para efeitos de admissão destes e das subsequentes reclamações, mandar desentranhar os requerimentos em apreço e condenar em custas por tal ato de desentranhamento.

Ora, tal como explica António Abrantes Geraldes[2] que “Os recursos constituem mecanismos destinados a reapreciar decisões proferidas, e não a analisar questões novas, salvo quando, nos termos já referidos, estas sejam de conhecimento oficioso e, além disso, o processo contenha os elementos imprescindíveis.”

Esta questão da representação da herança da Insolvente não faz parte do objecto de apreciação do despacho recorrido, sendo antes pressuposto do mesmo, já que foi decidida em vários despachos anteriores, designadamente naqueles que foram objecto de recursos que não foram recebidos por falta de legitimidade ou por falta de pagamento da taxa de justiça devida.

Não podemos, por inerência, fazer “ressuscitar” esta questão que já foi apreciada nos autos e que não foi, de forma legal, objeto de recurso autónomo (designadamente por falta de pagamento das taxas de justiça devidas).

Feita esta delimitação negativa, temos que as questões a apreciar, delimitadas pelas conclusões dos recursos, são as seguintes:

- Nulidade da decisão recorrida por falta de fundamentação e por omissão de pronúncia e

- Legalidade da decisão de desentranhamento e de condenação em custas.


*

III - NULIDADE DA DECISÃO RECORRIDA POR FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO

A Recorrente Herança Jacente da Insolvente, representada pelo curador especial nomeado, veio suscitar que o despacho recorrido não cumpre, ainda que minimamente, o dever de motivação/fundamentação, sendo completamente omisso quanto aos factos que estão na sua base. E, não contempla também, e como se impunha, as possíveis soluções jurídicas à luz do regime jurídico de que invoca.

Entende que, desta forma, o despacho em crise é nulo, nos termos do disposto no art.º 615.º, n.º 1, alínea b), do CP Civil.

Prevê o art. 615.º, n.º 1, alínea b), do CP Civil invocado que a sentença é nula – entre o mais – quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão.

Trata-se de um vício de natureza formal e não substancial.

Por isso, a doutrina e a jurisprudência têm decidido de forma reiterada e unânime que a falta de fundamentação só existe no caso de se verificar uma absoluta e total falta de fundamentação, quer ao nível do quadro factual apurado quer no que respeita ao respectivo enquadramento legal.

Por contraponto, a sentença que contenha uma fundamentação deficiente ou incompleta[3] poderá padecer de vários vícios, mas não será, por esta via, nula.

Explica Antunes Varela[4] que o dever de fundamentação das decisões judiciais, decorrente do artº. 205.º da Constituição da República Portuguesa e do art.º 158.º do C.P.Civil, encontra a sua justificação na necessidade de persuadir as partes “da legalidade da solução encontrada” e de “convencer aquela que perdeu da sua falta de razão em face do Direito”, e bem assim proporcionar à parte que perdeu o conhecimento dos fundamentos em que o julgador baseou a sua decisão, para que, pretendendo impugná-la, o possa fazer “com conhecimento de causa”.

No caso em apreço, como já ficou referido, o despacho recorrido “limita-se”, na sequência de decisões anteriores, mandar desentranhar os requerimentos em apreço e condenar em custas por tal ato de desentranhamento.

As necessidades de fundamentação de um despacho com este âmbito decisório são bastante menos exigentes das que se impõem numa decisão final.

O despacho sob apreciação fundamenta a sua decisão na aplicação das estatuições dos art.º 145.º e 642.º do CP Civil, que analisa e, especificamente quanto à Recorrente BB, na justificação de que a mesma terá atuado em seu nome próprio.

Trata-se de fundamentação de direito bastante e adequada à decisão concreta tomada.

Julga-se, portanto, não verificada a nulidade suscitada.


*

IV – NULIDADE DA DECISÃO RECORRIDA POR FALTA APRECIAÇÃO DE QUESTÃO QUE DEVIA APRECIAR

A mesma Recorrente Herança Jacente da Insolvente, representada pelo curador especial nomeado, vem também suscitar que a decisão recorrida não efetuou a análise, que se impunha, da questão do apoio judiciário, à luz dos factos e das normas jurídicas aplicáveis, havendo omissão de pronúncia.

Afirma não ter sido notificada de qualquer decisão final relativamente ao apoio judiciário que apresentou nem do ofício do ISS para que se pudesse pronunciar.

Defende que o tribunal a quo proferiu uma decisão surpresa proibida pelo artigo 3º, n.º 3, do CP Civil. (princípio do contraditório), em conjugação com os princípios do processo justo e equitativo, disposto nos artigos 13º/1 e 2, e 20º/1 e 4, da C.R.P. e 6º/11 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (C.E.D.H.).

No mesmo sentido, a Recorrente BB, ainda que sem invocar a existência de nulidade da decisão, vem alegar que não foi notificada da decisão final de indeferimento do apoio judiciário.

Decorre do disposto no art.º 615.º, n.º 1, alínea d), do CP Civil que a sentença é nula, entre o mais, quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar.

Trata-se – como os demais - de um vício de natureza formal e não substancial.

Com efeito, decorre do disposto no art.º 608.º, n.º 2, do CP Civil que “O juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras (…).”

Remetendo para a interpretação que vem sendo feita reiteradamente pelo Supremo Tribunal de Justiça, devem considerar-se “questões” para este efeito “os temas alegados pelas partes que constituem, de forma directa e imediata, dados integradores dos elementos constitutivos ou impeditivos dos direitos cuja tutela é procurada pelas partes na instância, na lógica e na perspectiva dos pedidos.”[5]

Em decorrência, devem apreciar-se todas as questões submetidas ao conhecimento do Tribunal.

No caso em apreciação, as alegadas faltas de notificação de atos administrativos da Segurança Social e de atos processuais apenas seriam questões a apreciar pelo tribunal recorrido se tiverem sido atempadamente suscitadas no processo e por forma processualmente válida.

Não tendo sido suscitadas, tais notificações são meras formalidades processuais que devem ser verificadas pelo juiz, mas não necessitam de ser apreciadas autonomamente por este.

Compulsados os autos, a conclusão necessária é a de terem sido realizadas as notificações administrativas e processuais devidas, o que desobrigava o juiz a quo de apreciar autonomamente tais atos processuais.

Assim, a Recorrente BB, em 15/11/22, requereu, em nome da Herança Jacente da Insolvente proteção jurídica junto da Segurança Social, na modalidade de dispensa de pagamento de taxa de justiça e demais encargos do processo.

A 21/3/2023, foi proferida decisão pelos serviços da Segurança Social, onde se refere que “Analisado o requerimento de proteção jurídica, constatou-se que não foi entregue com o mesmo a documentação necessária para comprovar a situação de insuficiência económica (…) verificando-se assim que não foi feita a prova da situação económica do requerente para efeitos de atribuição do presente beneficio.”, sendo o mesmo incidente indeferido.

Esta decisão foi notificada à Requerente por carta registada de 24/3/2023, tendo a mesma sido devolvida com indicação de não reclamada. Tal carta foi enviada para a Rua ..., ..., ... Porto, morada indicada pela Requerente no seu pedido de concessão de apoio judiciário.

Sequencialmente, em 08/05/2023, a Requerente apresentou requerimento afirmando não ter recebido a carta aludida pela Segurança Social e ter-lhe sido vedado o exercício do direito de resposta à proposta de decisão de indeferimento em sede de audiência prévia. Invoca a ocorrência de uma nulidade e requer nova notificação da proposta de decisão de indeferimento.

Com data de 05/06/23, foi proferido despacho com o seguinte teor: “Refª 35791990 de 30/5/2023: conforme se constata pela análise do ofício em apreço, foi definitivamente indeferido o pedido de apoio judiciário apresentado pela Herança Jacente de AA. Pelo exposto, notifique a Herança Jacente a fim de a mesma proceder ao pagamento das taxas de justiça que se encontram em divida nos vários requerimentos apresentados neste processo e seus apensos, identificando-os, acrescido da multa legal, sob pena de desentranhamento dos mesmos. Prazo: 10 (dez) dias.”

Este despacho foi notificado, com data de 06/06/23, a DD e à Ilustre mandatária dos Recorrentes.

Posteriormente, com data de 23/10/23, foi proferido o despacho recorrido.

A posterior impugnação da decisão do incidente de apoio judiciário não releva processualmente, já que, nos termos do art.º 29.º, n.º 4 e 5, c), da Lei n.º 34/2004, de 29 de julho, “O indeferimento do pedido de apoio judiciário importa a obrigação do pagamento das custas devidas (…)” e “Tendo já havido decisão negativa do serviço da segurança social, o pagamento é devido no prazo de 10 dias, contados da data da sua comunicação ao requerente, sem prejuízo do posterior reembolso das quantias pagas, no caso de procedência da impugnação daquela decisão.”

No entanto, deixa-se consignado que já foi proferida decisão final no Apenso de Impugnação do Apoio Judiciário, com data de 04/01/24, que julgou a impugnação improcedente (justificando-se que “Não tendo a recorrente ilidido a presunção de notificação, tem-se esta por devidamente notificada da decisão proferida pela Segurança Social a 21/3/2023. Inexiste qualquer nulidade decorrente de eventual falta de notificação da impugnante.”).

A Requerente veio recorrer desta decisão, não tendo o mesmo sido admitido, com fundamento em que a mesma não é legalmente recorrível.

Conclui-se, pois, que a decisão administrativa no incidente de apoio judiciário não tinha que ser notificada ao atual curador especial nomeado para a Herança Jacente, mas, como foi, à Requerente do incidente (e morada apresentada para o efeito).

Deve ter-se em conta que, de acordo com o disposto no art.º 37.º da Lei n.º 34/2004, de 29/07, são subsidiariamente aplicáveis ao procedimento de concessão de proteção jurídica as disposições do Código de Procedimento Administrativo.

Por aplicação subsidiária do art.º 112.º, n.º 1, alínea a), do Código de Procedimento Administrativo[6], a notificação em referência pode ser feita “Por carta registada, dirigida para o domicílio do notificando ou, no caso de este ter escolhido para o efeito, para outro domicílio por si indicado.”, sendo que, por aplicação do art.º 113.º, n.º 1 e 2 seguinte, “A notificação por carta registada presume-se efetuada no terceiro dia útil posterior ao registo ou no primeiro dia útil seguinte a esse, quando esse dia não seja útil.”

Independentemente disso, releva essencialmente que, no âmbito do próprio processo judicial, o despacho de 05/06/23, foi notificado, com data de 06/06/23, a DD e à Ilustre mandatária de ambos os Recorrentes.

Caso a Herança Jacente da Insolvente, representada pelo curador especial nomeado, pretendesse insurgir-se, por qualquer forma, contra o incidente de concessão do apoio judiciário poderia ter aproveitado este momento processual para o fazer (o que não fez).

Conclui-se, portanto, pela não verificação da nulidade suscitada.


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V – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

A factualidade relevante resume-se aos trâmites processuais atrás consignados no Relatório e ao teor da decisão recorrida, que aqui se dão por integralmente reproduzidos.


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VI - LEGALIDADE DA DECISÃO DE DESENTRANHAMENTO E DE CONDENAÇÃO EM CUSTAS

A Recorrente BB vem invocar que o tribunal recorrido decidiu, por despacho de 21/11/22, não admitir os requerimentos por si apresentados, por falta de legitimidade para agir em representação da Herança Jacente, condenando-a em custas, em cada um deles, pelo que considerou um “incidente anómalo”, fixando a taxa de justiça em 2 Ucs.

Também que no despacho recorrido a condenou, uma vez mais, em custas, por ser a “efetiva autora dos requerimentos”, desta feita fixando a taxa de justiça por cada desentranhamento/incidente.

Defende que os requerimentos apresentados pela herança jacente, representada por si, não configuram qualquer tipo de incidente, anómalo ou não, sendo que a consequência jurídica de não pagamento da taxa acrescida de multa após notificação para o efeito por parte da secretaria, é o desentranhamento das peças apresentadas – cf. art.º 642.º do CP Civil.

Entende não existir fundamento legal para a condenar novamente em custas nem para a condenar a título pessoal.

Por seu turno, a Recorrente Herança Jacente da Insolvente, representada pelo curador especial nomeado, vem, da mesma forma, sustentar que os requerimentos apresentados pela Herança Jacente não configuram qualquer tipo de incidente.

Advoga que a consequência jurídica do não pagamento da taxa de justiça acrescida de multa, após notificação para o efeito por parte da secretaria, é o desentranhamento das peças apresentadas, conforme resulta do art. 642.º do CP Civil.

A Recorrente BB sustenta, desde logo, que não existe fundamento legal para a condenar pessoalmente em custas.

Entendemos não lhe assistir razão.

Ficou já referido acima que a questão da representação da herança da Insolvente não faz parte do objeto de apreciação do despacho recorrido, sendo antes pressuposto do mesmo, já que foi decidida em vários despachos anteriores, designadamente naqueles que foram objeto de recursos que não foram recebidos por falta de legitimidade ou por falta de pagamento da taxa de justiça devida.

Não podemos apreciar novamente tal questão e, perante a decisão de que BB é parte ilegítima para agir em representação da Herança Jacente, a conclusão necessária é precisamente a condenação pessoal da própria BB como autora dos requerimentos em apreciação (nunca poderia condenar-se a Herança Jacente face a tal ilegitimidade processual).

Diversamente entendemos já lhe assistir razão quer a si, quer à Recorrente Herança Jacente, representada pelo curador especial nomeado, ao defender que os requerimentos por si apresentados não configuram qualquer tipo de incidente anómalo.

A este respeito, determina o n.º 8 do art.º 7.º do Regulamento das Custas Processuais[7] que “Consideram-se procedimentos ou incidentes anómalos as ocorrências estranhas ao desenvolvimento normal da lide que devam ser tributados segundo os princípios que regem a condenação em custas.”

Tal como afirma certeiramente Salvador da Costa[8]: “São pressupostos dos referidos incidentes ou procedimentos a extraneidade ao desenvolvimento normal da lide, isto é, que seja suscitada uma questão descabida no quadro da sua dinâmica.”

Cita-se, no mesmo sentido, o Acórdão da Relação de Coimbra de 11/12/18, tendo como Relatora Maria Teresa Albuquerque[9], onde se decidiu que: “Incidentes anómalos são incidentes que se opõem aos normais, constituindo, por isso, em última análise, ocorrências estranhas ao desenvolvimento da lide, como o refere o n.º 8.º do art.º 7.º do RCP.”

O critério decisivo para a qualificação de um incidente como anómalo prende-se, apenas, com a sua conformidade ou desconformidade com a tramitação típica do processo concreto.

Este critério não pode, em qualquer situação, assumir uma função punitiva a qual, quando muito, poderá justificar a aplicação de uma taxa sancionatório excecional (cf. Art.º 531.º CP Civil) ou a condenação como litigante de má fé (cf. Art.º 542.º e ss. do CP Civil).

Revertendo ao caso dos autos, a apresentação por parte da Recorrente BB de três requerimentos e por parte da Herança Jacente, representada pelo curador especial nomeado, de cinco requerimentos sem que tenham procedido ao pagamento da competente taxa de justiça é uma tramitação típica do processo civil, aplicável analogicamente ao processo de insolvência.

Nestas situações, o art.º 642.º, n.º 1, do CP Civil determina que “Quando o pagamento da taxa de justiça devida ou a concessão do benefício do apoio judiciário não tiverem sido comprovados no momento definido para esse efeito, a secretaria notifica o interessado para, em 10 dias, efetuar o pagamento omitido, acrescido de multa de igual montante, mas não inferior a 1 UC nem superior a 5 UC.”

Mantém-se típica a tramitação subsequente perante o não pagamento desta taxa de justiça e multa, sendo-lhe aplicável a estatuição do n.º 3 do mesmo normativo legal, segundo o qual “Quanto, no termo do prazo de 10 dias referido no número anterior, não tiver sido comprovado o pagamento da taxa de justiça devida e da multa ou da concessão do benefício do apoio judiciário, o tribunal determina o desentranhamento da alegação, do requerimento ou da resposta apresentado pela parte em falta.”

Uma vez que não estamos perante uma tramitação anómala, apenas se justificava, em aplicação da disposição legal acima transcrita, determinar o desentranhamento dos requerimentos em causa, mas já não a sua tributação como incidente anómalo.

Conclui-se, portanto, que a situação dos autos de falta de pagamento das competentes taxas de justiça devidas pela interposição de recursos e/ou reclamações e, num momento subsequente, das multas aplicadas esgota-se na aplicação das sanções consagradas no art.º 642.º do CP Civil, tendo somente por efeito o desentranhamento dos requerimentos, não podendo considerar-se um incidente anómalo, tributado como tal.

Impõe-se, consequentemente, revogar a decisão recorrida nesta parte.

A conclusão final é, assim, a parcial procedência de ambos os recursos, alterando-se a decisão recorrida, revogando-se a parte respeitante às condenações em custas em 03 UCs e 06 Ucs, respetivamente para cada um dos Recorrentes.


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VII - DECISÃO

Pelo exposto, acordam os Juízes que constituem este Tribunal da Relação em julgar parcialmente procedentes os recursos de BB e de HERANÇA JACENTA DA INSOLVENTE, REPRESENTADA PELO CURADOR ESPECIAL NOMEADO, alterando-se a decisão recorrida, revogando-se a parte respeitante às condenações em custas de 03 (três) UCs para a primeira Recorrente e  de 06 (seis) UCs para a segunda Recorrente e mantendo-se o demais decidido inalterado.


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Custas de cada um dos recursos a cargo dos respetivos Recorrentes, por terem sido eles que tiraram proveito dos mesmos e não foram apresentadas contra-alegações - art.º 527.º do CP Civil.

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Notifique e registe.


(Processado e revisto com recurso a meios informáticos)




Porto, 19 de março de 2024.
Lina Baptista
Rodrigues Pires
Anabela Miranda

_______________
[1] Doravante designado apenas por CP Civil, por questões de operacionalidade e celeridade.
[2] In Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2017, 4ª Edição, Almedina, pág. 109.
[3] cf. Alberto dos Reis in Código de Processo Civil Anotado, vol. V, pág. 140, Antunes Varela e outros in Manual de Processo Civil, 2.ª edição, Coimbra Editora, pág. 687.
[4] In Manual de Processo Civil, 1984, pág. 670 e 671.
[5] In Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13/12/2000 proferido na Revista n.º 715/99 e constante de Sumários 37º. Veja-se, no mesmo sentido, lebre de Freitas in “Do conteúdo da base instrutória” in Julgar, n.º 17, Coimbra Editora, pág. 71.
[6] Aprovado pelo D.L. n.º 4/2015, de 07/01, com a atual redação da Lei n.º 72/2020, de 16/11.
[7] Doravante apenas designado por RCP, por questões de operacionalidade e celeridade.
[8] In As Custas Processuais – Análise e Comentário, 6.ª Edição, 2017, Almedina, pág. 143.
[9] Proferido no Processo n.º 125/07.1GAVZL-G.C1 e disponível em www.dgsi.pt na data do presente Acórdão.