Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
115/21.1T8FNC.L1-2
Relator: ORLANDO NASCIMENTO
Descritores: SERVIDÃO DE PASSAGEM
HABITAÇÃO
SERVIÇOS PÚBLICOS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/09/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: (do relator):
1. Dispondo o n.º 2, do art.º 1565.º, do C. Civil, que “ Em caso de dúvida quanto à extensão ou modo de exercício, entender-se-á constituída a servidão por forma a satisfazer as necessidades normais e previsíveis do prédio dominante com o menor prejuízo para o prédio serviente”, o fechamento à chave de um portão existente numa faixa de terreno onerada com servidão de passagem a favor de um prédio em que está implantada uma habitação, ainda que a chave esteja também em poder desse prédio, não satisfaz as necessidades normais do prédio, nomeadamente no que respeita a necessidades de acesso de serviços públicos de segurança, de que se destacam os serviços de saúde e os serviços de socorro em caso de sinistro.
2. Tratando-se do acesso a uma habitação o exercício prático e cabal desse acesso exige que o portão existente seja facilmente transposto por terceiros, o que não acontecerá se estiver fechado com chave.
3. Não estado em causa a vedação do prédio a que se reporta o art.º 1356.º, do C. Civil, mas apenas a vedação da entrada da faixa serviente, sem que lhe corresponda qualquer conteúdo útil ou qualquer interesse digno de proteção legal, não existe conflito entre o direito de servidão e o direito de tapagem a que se reporta o art.º 1356.º, do C. Civil.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes que constituem o Tribunal da Relação de Lisboa.


1. RELATÓRIO.
PM e marido JG propuseram contra MF e marido JF, CF e SF esta ação declarativa de condenação, com processo comum, pedindo que sejam declarados donos e legítimos comproprietários da entrada particular e comum do prédio que identificam e os RR condenados, além do mais, a retirarem o portão que dá acesso a essa entrada ou, se assim se não se entender, condenados a manterem o portão aberto, a indemnizarem os AA por danos patrimoniais e não patrimoniais em €50,00 diários a título de compensação pelos prejuízos por cada dia que o portão continue encerrado.
Citados, contestaram os RR dizendo, além do mais, que os AA passam por uma faixa de terreno propriedade dos RR, que é uma servidão de passagem, que o portão se encontra no local há mais de 40 anos e que devido à Pandemia Covid 19, para evitar roubos e assaltos mandaram fazer uma fechadura e chaves para esse portão, tendo entregue uma cópia dessa chave aos AA, pedindo a improcedência da ação e em reconvenção a condenação dos AA a reconhecerem que o prédio que identificam é propriedade exclusiva dos Réus.
Realizada audiência de discussão e julgamento foi proferida sentença, julgando a ação parcialmente procedente e a reconvenção procedente, julgando:
A) improcedente a exceção de abuso de direito.
B) improcedente o pedido de declarar os AA donos e legítimos comproprietários da entrada particular que dá acesso à sua habitação.
C) Condenando os RR MF, JF, CF e SF a manterem o portão sempre aberto.
D) Condenando os RR MF, JF, CF e SF a retirarem os vasos, cântaros e suportes de ferro que se encontram junto ao portão.
E) Condenando os RR MF, JF, CF e SF no pagamento solidário de uma sanção pecuniária compulsória no montante diário de 50€ (cinquenta euros) por cada dia que mantiverem o portão encerrado, sendo 25 € diários aos AA e os restantes 25 € ao Estado.
F) Absolvendo os RR MF, JF, CF e SF de tudo o mais peticionado pelos AA
G) Declarando os RR MF, JF, CF e SF donos e legítimos proprietários do prédio com a área total de 228 m2, descrito na Conservatória de Registo Predial de …, sob o n.º … e na matriz, a parte rústica, sob o n.º …, e a parte urbana sob o n.º …, da freguesia de ….
H) Condenando os AA ao pagamento solidário de 50% das custas processuais.
I) Condenando os RR MF, JF, CF e SF ao pagamento solidário de 50% das custas processuais.
*
Inconformados com essa decisão os RR dela interpuseram recurso, recebido como apelação, pedindo a sua revogação e a absolvição do pedido, formulando para o efeito as seguintes conclusões:
1. O Tribunal a quo, na sentença que proferiu, considerou serem aplicáveis ao caso sub judice os artigos 1305.º, 1356.º, 1565.º e 1566.º do Código Civil.
2. O tribunal a quo decidiu que “o encerramento do portão torna mais onerosa a servidão, impedindo os Autores de exercerem livremente o acesso à sua habitação e condicionando a receção de cartas e as leituras nos contadores de água e luz”, para determinas que “o portão terá de permanecer aberto”, socorrendo-se dos mesmos “motivos expostos” para decidir, também pela retirada, pelos Réus dos “vasos, cântaros e suportes de ferro”, pois considerou que “A colocação desses objetos retira espaço junto ao portão e dificulta o acesso dos Autores e da sua filha por motociclo, onerando a servidão. No mais não se vislumbra qualquer utilidade na colocação daqueles vasos e cântaros na servidão”.
3. Ao considerar que o fecho do portão e a permanência dos vasos, cântaros e estruturas de ferro não consubstanciam uma simples incomodidade, mas sim uma onerosidade acrescida no direito de servidão, o tribunal a quo incorreu em erro de interpretação e erro na aplicação do direito ao caso sub judice.
4. A correta interpretação dos artigos 1305.º, 1356.º, 1565.º e 1566.º do Código Civil e sua aplicação ao caso sub judice imponha que se considerasse que o fecho do portão e a permanência dos vasos, cântaros e estruturas de ferro são meros incómodos que não são interesse relevante para obstar ao direito de tapagem dos Réus na sua propriedade e uso da mesma por via da colocação dos vasos, cântaros e estruturas em ferro.
5. O Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 24 de outubro de 1994, processo nº 9450460, relatado pelo Exmo. Desembargador Azevedo Ramos, citado pelo tribunal a quo, para fundamentar a sua decisão, determina que “A simples incomodidade de ter de abrir e fechar o portão sempre que utilize a servidão não é interesse relevante para obstar ao direito de tapagem”, o que levaria, no caso sub judice, à conclusão de o abrir e fechar do portão é um simples incómodo para os Autores, não sendo interesse relevante para obstar ao direito de tapagem dos Réus.
6. O Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 27 de Junho de 2023, processo nº 200/18.7T8TND.C1, relatado pelo Exmo. Desembargador Mário Rodrigues da Silva, também citado pelo tribunal a quo, para fundamentar a sua decisão, refere-se à impossibilidade de entrada a pé e de qualquer espécie de veículo para a propriedade dos titulares do prédio dominante, para fundamentar a decisão de os proprietários do prédio serviente não poderem opor aos titulares da servidão de passagem o direito de taparem a entrada no caminho, sendo que, no caso sub judice a impossibilidade de entrada não se verifica, conforme, desde logo, resultou provado, conforme ponto 20 dos factos dados como provados pelo tribunal a quo.
7. O tribunal a quo, em vista a uma correta interpretação das referidas normas e aplicação ao caso concreto, devia ter decido que o fecho do portão, com a entrega de chave igual aos Autores e as eventuais alterações logísticas são meros incómodos para os Autores, não constituindo interesse relevante que justifique a condenação dos Autores a manter o portão aberto e a retirar os vasos, cântaros e estruturas de ferro, não resultando aqueles incómodos numa maior onerosidade para o uso da servidão, já que os Autores continuam a poder usar, sem outros constrangimentos para além daqueles incómodos, a faixa de terreno que vinham usado para aceder à via pública/seu prédio.
8. Os Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto, datado de 17-01-2005, proferido no âmbito do processo n.º 0457016, e do Tribunal da Relação do Porto, datado de 12-09-2019, proferido no âmbito do processo n.º 760/17.0T8PFR.P1, ambos disponíveis em www.dgsi.pt, vão no sentido exposto no ponto antecedente.
9. Foram violados os artigos 1305.º, 1356.º, 1565.º e 1566.º do Código Civil.
10. Não sendo os Réus condenados a manter o portão sempre aberto e retirarem os vasos, cântaros e suportes de ferro que se encontram junto ao portão, não subsiste fundamento para a aplicação da sanção pecuniária compulsória aos réus.
11. Assim, a condenação do tribunal a quo, exposta nos pontos C), D), E) e I) do dispositivo não poderá manter-se.
12. Em consequência, deverá ser dado provimento ao presente recurso e revogada a sentença recorrida, com as legais consequências.
*
Os apelados contra-alegaram, pugnando pela confirmação da sentença recorrida.

2. FUNDAMENTAÇÃO.

A) OS FACTOS.

O Tribunal a quo julgou:
A.1. Provados os seguintes factos:
1- Os Autores são donos e legítimos proprietários de um prédio rústico e urbano, localizado ao sítio da …, freguesia e concelho de …, com a área total de 265m2, a confrontar pelo Norte anteriormente com JS e atualmente com MF e outros, Sul anteriormente com CF e atualmente com Herdeiros de FS Leste com Herdeiros de JH e Oeste anteriormente com JS, CS e entrada particular e atualmente com MF e outros e a entrada particular, inscrito na matriz predial, a parte rústica sob o artigo 102 da Secção “VV” e a parte urbana sob o artigo 3600º, tendo os Autores construído uma casa, composta por 2 pisos, tendo no rés-do-chão três quartos, cozinha e casa de banho e no 1º andar, três quartos de dormir, uma sala e uma casa de banho, na qual residem junto com os seus filhos e encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o nº. … da freguesia de …, onde se acha registado a favor dos Autores.
2- O prédio com a área total de 228 m2, descrito na Conservatória de Registo Predial de … sob o n.º …, e na matriz, a parte rústica, sob o n.º ..., e a parte urbana sob o n.º …, da freguesia de … encontra-se registado a favor dos Réus.
3- O referido imóvel foi adquirido, pelos Autores, a parte rústica por doação feita pelos pais da Autora FS e esposa MFS, e a parte urbana foi construída pelos Autores no ano de 1987.
4- Este prédio rústico pertenceu aos avós paternos da Autora PM, respetivamente, AS e CR.
5-         Por partilha celebrada em 26 de Junho de 1958, exarada de folhas 52 verso a folhas 60 do Livro de notas para escrituras diversas número 288-A do Cartório Notarial de …, por óbito de AS e CR, que deixaram 9 filhos, nomeadamente, AGS casado com CGF; ASJ casado com FR; CS casada com JRJ; JS casado com EF; FS casado com MFS; JJS; AVS; MMS casada com JFB; e MGS casada com FLB, foi partilhada a verba nº1, correspondente ao <<Prédio rústico e urbano, situado na Saraiva, freguesia e concelho de ..., que confina atualmente pelo Norte com GO e outros, Sul com JSA e outros, Leste com herdeiros de JHF e Oeste com PPS e Levada … e Caminho ou entrada; e é atravessado por uma entrada particular no sentido Oeste- Leste (tendo o seu início no Caminho acima referido); desta entrada particular segue uma servidão ou passagem com um metro de largura na direcção Norte-Sul e depois Oeste-Leste, descrito sob o nº. 27 888, a fls. 148 do Lº. 76 da Conservatória do Registo Predial da Comarca e inscrito na matriz – o rústico sob o artº. 707 e o urbano sob o artº. 823>>.
6- Foi adjudicado a FS e mulher <<uma parte dividida e demarcada, da verba número um, virada a Oeste do prédio e abaixo do lote que foi adjudicado ao Herdeiro JS, e a entrada particular, com a área aproximada de duzentos e cinquenta e nove metros quadrados que fica a confinar pelo Norte com o lote que foi adjudicada ao herdeiro JS, e a entrada particular na extensão de onze metros e sessenta centímetros, Sul com a passagem e o lote que foi adjudicado a herdeira CS por onde mede seis virgula cinquenta metros, Leste com Herdeiros de JF e Oeste com a servidão a partilha do lote que foi adjudicado ao Herdeiro de JS e o lote que foi adjudicado à herdeira CS onde mede onze virgula noventa metros>>.
7- Esta verba corresponde atualmente ao prédio dos Autores, inscrito na matriz predial sob o artigo 102 da Secção “VV” da freguesia e concelho de ....
8- Na mesma partilha foi adjudicado ao herdeiro JS <<toda a parte urbana do número 1, nela existente e também a Sul da entrada comum (parte esta que fica a servir de horta ao quintal do prédio urbano), e fica a confinar pelo Norte com o lote que foi adjudicado a MGF, Sul com os lotes que vão adjudicados aos herdeiros FS e JJS e PPS, Leste com herdeiros de JF e passagem a partilha do lote a adjudicar ao herdeiro FS e pelo Oeste com a entrada e o lote adjudicado a herdeira MGS e o adjudicado a AVS>>.
9- Na mesma partilha, foi adjudicado à herdeira MGS <<Um talhão, parte dividida e demarcada da verba número um virada a Norte, com a área de aproximada de duzentos e cinquenta e nove metros quadrados (com a configuração quase de um triângulo reto, que fica a confinar pelo Norte e Oeste com a regueira à partilha de GO, Sul com o lote que vai ser adjudicado ao herdeiro JSA e a entrada particular na extensão de oito virgula quarenta metros nesta parte, Leste com herdeiros de JF>>.
10- Na mesma partilha, foi adjudicado a herdeira CS <<parte dividida e demarcada da verba número Um virada a Sul da parte que vai ser adjudicada ao herdeiro FS, que fica a confinar pelo Norte como mesmo herdeiro FS na extensão de seis virgula cinquenta metros e a passagem na extensão de seis vírgula quarenta metros, Sul com JSA e outro na extensão de treze vírgula sessenta metros, Leste com o herdeiro FS e Oeste com a regueira à partilha do lote que vai ser adjudicado ao herdeiro JS, na extensão de trinta metros>>.
11- Nesta mesma partilha, foi adjudicado ao herdeiro AVS <<uma parte dividida e demarcada virada a Oeste e abaixo da entrada particular, medindo cerca de duzentos e setenta metros quadrados que fica a confinar a Norte com a referida entrada particular na extensão de cinco metros, Sul com PPS, na extensão de dezassete metros e trinta centímetros, Leste com o lote que foi adjudicado ao herdeiro JS, na extensão de catorze metros, e Oeste com a entrada>>.
12- Na mesma escritura de partilha todos os herdeiros declararam que as partes divididas e demarcadas, à exceção da adjudicada ao herdeiro JS, das verbas uma a três, se destinavam a construções urbanas.
13- O prédio rústico e urbano, inscrito na matriz predial, a parte urbana sob o artigo 823º e a parte rústica sob o artigo 23 da Secção “VV” da freguesia e concelho de ..., foi adjudicado ao JS e depois foi transmitido a CF, SF, e ENV e marido JIV, por sucessão hereditária e doação do quinhão hereditário em comum e sem determinação de parte ou direito.
14- Desde há mais de 60 anos, por si e ante possuidores tanto os Autores como os Réus, fruem do caminho e entrada particular/faixa de terreno que parte do Caminho da Aldeia e permite o acesso aos lotes 23 e 102 que são propriedade dos Réus e dos Autores
15- A esta entrada particular/faixa de terreno acede-se pela entrada nº. 1, que dá para o Caminho da Aldeia, freguesia e concelho de ....
16- Esta entrada particular/faixa de terreno dá acesso aos imóveis dos Autores e dos Réus, bem como a outros imóveis, designadamente, aos imóveis inscritos na matriz sob os artigos 103 e 104 todos da Secção “VV”, que pertencem aos herdeiros de FS.
17- Essa entrada particular/faixa de terreno dá acesso a outros imóveis, designadamente, aos imóveis inscritos na matriz sob os artigos 103 e 104 todos da Secção “VV”, que pertencem aos herdeiros de FS.
18- O acesso do prédio dos Autores ao caminho da entrada nº1, que parte do Caminho da Aldeia, e vice-versa, há mais de 60 anos que se faz através da faixa de terreno/entrada.
19- Essa entrada particular/faixa de terreno é o único acesso dos Autores ao caminho da entrada nº 1 e vice versa.
20- Os Autores acedem à sua habitação a pé e por motociclo.
21- Os Autores estacionam o motociclo junto à sua habitação.
22- Os Réus e antepossuidores, quando fizeram obras no seu prédio sempre deixaram a aludida faixa de terreno livre.
23- Os Autores e os Réus efetuaram obras de alargamento na entrada/faixa de terreno e cimentaram a mesma.
24- Existem dois postes de iluminação pública na entrada nº. 1 que dá para o Caminho da Aldeia, um a meio da entrada nº. 1 e outro também na entrada nº. 1.
25- Na faixa de terreno/entrada não existem postes de iluminação.
26- A entrada/faixa de terreno encontra-se delimitada com muros altos, pequenos muros e canteiros.
27- Há pelo menos 33 anos foi colocado um portão de ferro no início da faixa de terreno/entrada particular pelo anterior proprietário do imóvel dos Réus.
28- O anterior proprietário do imóvel dos Autores não deu o seu consentimento nem acordo à instalação do portão.
29- O portão em causa sempre permaneceu aberto até 2020 e nunca foi fechado à chave.
30- A casa dos Autores foi construída em 1987.
31- Os Autores colocaram a campainha, caixa do correio e contadores de luz e de água junto da sua habitação, onde ainda se encontram instaladas atualmente.
32- Em Junho de 2020 existiu pelo menos um assalto nas imediações do Caminho da Aldeia.
33- No mês de Junho de 2020, os Réus, sem o consentimento dos Autores, decidiram fechar o mencionado portão em ferro, colocando uma fechadura no mesmo, e dando uma chave aos Autores, e enviaram uma carta aos Autores com o seguinte teor:
“Assunto: Entrega de chaves do portão
Exmo. Sr.,
Incumbiu-me a Sr.ª MF, na qualidade de proprietária do imóvel sito ao Caminho da Aldeia, Entrada nº. 1, porta nº. 4, … ..., de informá-lo de que, em vista a evitar a ocorrência de furtos/roubos, que, nos últimos meses, têm ocorrido, a mesma passará a fechar o portão à chave.
Ciente de que para aceder ao V/prédio, passa pelo caminho situado no prédio da Srª. MF, a mesma irá entregar-lhe uma chave idêntica à que utiliza para fechar o portão à chave, solicitando que mantenha o referido portão trancado e não ceda a chave a terceiros. (...)”.
34- Os Autores responderam enviando uma carta com o seguinte teor:
“Assunto: Remoção do portão
Venho por este meio informar que o facto do portão estar sempre trancado às chaves implica que eu, JAG e restante agregado familiar, residente no Caminho da Aldeia, entrada nº. 1, porta nº. 3, deixemos de receber o correio, os medidores de água e luz, as visitas de familiares/amigos, os bombeiros (na eventualidade de ser necessário) e ainda a compra de garrafas de gás. Em suma, não permite a livre circulação de pessoas, serviços e bens que consideramos essenciais.
Dando importância os danos ocorridos e possíveis danos futuros, apelamos ao bom sendo da remoção do portão, tendo em conta que a não execução da remoção poderá implicar que lhe seja imputada a responsabilidade das consequências (como por exemplo, multas de atraso de pagamento por não receção de contas.).
Contudo, se não obtiver resposta num prazo de 10 dias consecutivos para a remoção do portão, irei avançar por outros meios legais.
Atentamente,
JAG
..., 03 de Agosto de 2020”.
35- Os Réus pintaram o portão e fecharam o portão à chave.
36- Os Réus deixaram uma cópia da chave na caixa de correio dos Autores.
37 Os Autores fecharam o portão à chave quer durante o dia, quer durante a noite.
38- O contador de água e campainha dos Réus encontra-se do lado de fora do portão.
39- O contador de luz e caixa de correio dos Réus encontra-se do lado de dentro do portão.
40- No dia 24 de Junho de 2020 a Autora PM deparou-se com o portão fechado à chave e
“De imediato desloquei-me ao local, onde após contato com a participante, a mesma informou que, a entrada da sua residência é feita através de uma entrada comum com a da suspeita, que dá acesso as duas residências e a uns campos agrícolas, e que a sua vizinha sem comunicar-lhe, colocou uma porta com fechadura a vedar o acesso a entrada comum. Comunicou-lhe ainda que encontrou uma chave na sua caixa de correio, que pertence a porta anteriormente mencionada, mas recusa-se a usar em virtude de a suspeita ter decido vedar a entrada sem consultar-lhe”.
41- Em 31 de Outubro de 2020, a filha dos Autores LG, chegou a casa e deparou-se com o portão de acesso a casa dos pais e onde vive bloqueada com um arame a trancar, bem como havia um objeto na fechadura, impossibilitando a sua abertura, tendo sido chamada a P.S.P. e efetuada participação registada sob nº. 1244/2020, tendo os Autores e filha sido obrigados a saltar o muro para a aceder a entrada particular e comum e a sua casa.
42- A Autora PM teve de deslocar-se aos CTT do Funchal para reclamar e levantar correspondência.
43- Os funcionários das águas ou ARM e da Empresa de Eletricidade da Madeira não conseguem efetuar as leituras dos contadores da habitação dos Autores quando o portão está fechado.
44- Existe um corredor em ferro por cima da faixa de terreno.
45- Esse corredor em ferro foi construído pelo anterior proprietário do imóvel dos Réus, o senhor JS há 46 anos.
46- O corredor em ferro tem uma altura de 2,10m.
47- Os Réus colocaram vasos e cântaros com suportes em ferro no início da entrada/faixa de terreno, junto ao portão, sem autorização dos Autores.
48- Esses vasos, cântaros e suportes em ferro diminuem o espaço da entrada/faixa junto ao portão e dificultam o acesso por motociclo.

A. 2. Não provados os seguintes factos:
A) A entrada/faixa de terreno não se encontra murada ou fisicamente separada da restante área do prédio dos Réus.
B) O anterior proprietário do imóvel dos Autores deu o seu consentimento, acompanhou o processo de instalação do portão e recebeu uma cópia das chaves do portão.
C) Anteriormente a 2020 os Réus encostavam o portão a partir das 21h00m.
D) A partir de meados de Junho de 2020 os Réus fechavam o portão por volta das 21h00m.
E) Os Réus colocaram um ferro na fechadura do portão para impedir os Autores de saírem de casa.
F) Os Autores colocaram um ferro na fechadura do portão para impedir os Réus de o fecharem.
G) Os Autores tiveram de se deslocar aos serviços para efetuar os pagamentos de água e luz.
H) Os familiares, amigos e visitas em geral não conseguem aceder à casa dos Autores.
I) Os Réus baixaram a altura do corredor em ferro para 2,10m.
J) O corredor de ferro antigo tinha outra configuração e era mais alto.
K) A altura do corredor dificulta a passagem com cargas, móveis, baldes e cachos de bananas, obrigando os Autores e seus trabalhadores a agachar-se.
L) Os Autores opuseram-se à construção do corredor em ferro.
M) Os Réus atiraram as fezes do cão para a canalização que vai dar à frente da casa dos Autores.
N) A Autora despendeu a quantia de 205€ para levantar correspondência e efetuar os pagamentos de água e luz.
O) Os Autores têm sofrido irritação, stress e angústia devido ao encerramento do portão e colocação de vasos junto ao portão.
P) A Autora perdeu 5 kg devido ao encerramento do portão e colocação de vasos junto ao portão.
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B) O DIREITO APLICÁVEL.
O conhecimento deste Tribunal de 2.ª instância, quanto à matéria dos autos e quanto ao objecto do recurso, é delimitado pelas conclusões das alegações dos recorrentes como, aliás, dispõem os art.ºs 635.º, n.º 2 e 639.º 1 e 2 do C. P. Civil, sem prejuízo do disposto no art.º 608.º, n.º 2 do C. P. Civil (questões cujo conhecimento fique prejudicado pela solução dada a outras e questões de conhecimento oficioso).
Atentas as conclusões da apelação, acima descritas, a questão submetida ao conhecimento deste Tribunal pelos apelantes consiste em saber se a sentença viola o disposto nos art.ºs 1305.º, 1356.º, 1565.º e 1566.º, do C. Civil, cuja correta interpretação impunha que se considerasse que o fecho do portão e a permanência dos vasos, cântaros e estruturas de ferro são meros incómodos e não obstam ao direito de passagem dos AA.
Conhecendo.
Como agora é pacífico nos autos porque a sentença recorrida o declara e nessa parte não foi impugnada, sobre a faixa de terreno em que se encontra implantado o portão incide uma servidão de passagem, constituída por destinação do pai de família, a favor do prédio dos AA apelados, que é também a sua habitação, a qual foi fruída em harmonia entre apelantes e apelados até aos primórdios do conflito dos autos.
Esse conflito reduz-se agora, na perspectiva dos apelantes trazida a esta apelação, a um confronto entre o direito dos AA em acederem ao seu prédio em virtude da referida servidão de passagem e o direito dos RR em procederem à tapagem do seu prédio.
Digamos, desde já, que esse conflito não existe.
Com efeito, na perspectiva do direito de servidão, dando a faixa do prédio dos apelantes vinculado a esse direito acesso à habitação dos AA apelados e dispondo o n.º 2, do art.º 1565.º, do C. Civil, que “ Em caso de dúvida quanto à extensão ou modo de exercício, entender-se-á constituída a servidão por forma a satisfazer as necessidades normais e previsíveis do prédio dominante com o menor prejuízo para o prédio serviente”, apoditico será que um portão fechado à chave, ainda que esta esteja também em poder dos apelados, não satisfaz as necessidades normais do prédio destes, nomeadamente no que respeita às necessidades de acesso de serviços públicos de segurança, de que se destacam os serviços de saúde e os serviços de socorro, propriamente ditos, em caso de sinistro.
Tratando-se do acesso a uma habitação, o exercício prático e cabal desse acesso exige que o portão existente seja facilmente transposto por terceiros, o que não acontecerá se estiver fechado com chave.
Mas esse conflito não existe também na perspectiva do direito de tapagem a que se reporta o art.º 1356.º, do C. Civil.
De facto, não está em causa a vedação do prédio dos apelantes a que se reporta o art.º 1356.º, do C. Civil, mas apenas a vedação da entrada da faixa serviente e sem que lhe corresponda qualquer conteúdo útil, uma vez que os apelados com o fechamento do portão à chave não estão a vedar, a tapar ou sequer a alindar e valorizar o seu prédio.
Ou seja, à redução das funções da servidão, não admissível desde logo por razões de segurança de pessoas e bens, como referido, não corresponde por parte do prédio dos apelantes qualquer conteúdo útil, qualquer interesse digno de proteção legal.
E se tal acontece em relação ao fechamento do portão à chave, por maioria de razão ocorre também em relação aos vasos e cântaros a que se reportam os factos sob os n.ºs 47 e 48 da matéria de facto provada da sentença embora, ao contrário do que parece decorre da parte final do n.º 47 se não trate de os apelantes terem de pedir autorização aos apelados para fazer o que quer que seja no seu prédio onerado com a servidão a favor do prédio dos apelados, numa espécie de inversão de direitos, mas de assegurar que a servidão satisfaz as necessidades normais e previsíveis do prédio dos apelados, tal como dispõe o n.º 2, do art.º 1565.º, do C. Civil.
Ora, como decorre do facto sob o n.º 48 dos factos provados da sentença, os vasos, cântaros e suportes em ferro diminuem o espaço da entrada/faixa junto ao portão e dificultam o acesso.
E também aqui se não vislumbra conteúdo para um qualquer direito dos apelantes, ainda que de mero embelezamento.
Não podemos, pois, deixar de concluir que a sentença não viola o disposto nos art.ºs 1305.º, 1356.º, 1565.º e 1566.º, do C. Civil, antes tendo procedido à sua melhor interpretação e aplicação em face dos direitos em presença,  procedendo a uma justa composição do litigo entre apelantes e apelados, à qual, quiçá, os mesmos também poderiam ter aportado extrajudicialmente.
Improcede, assim esta questão única da apelação e com ela a própria apelação.

3. DECISÃO.
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação improcedente, confirmando a sentença recorrida.
Custas pelos apelantes.

TRL, 09-05-2024
Orlando Santos Nascimento
António Moreira
Rute Sobral