Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
484/21.3T8PVZ.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FÁTIMA ANDRADE
Descritores: NULIDADE DE SENTENÇA
REQUISITOS DA IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
ACIDENTE DE VIAÇÃO
CULPA DO LESADO
Nº do Documento: RP20240318484/21.3T8PVZ.P1
Data do Acordão: 03/18/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Tem vindo a ser pacificamente aceite que as causas de nulidade da sentença, previstas de forma taxativa no artigo 615º do CPC, respeitam a vícios formais decorrentes “de erro de atividade ou de procedimento (error in procedendo) respeitante à disciplina legal e que se mostrem obstativos de qualquer pronunciamento de mérito” (Cfr. Ac. STJ de 23/03/2017, Relator Manuel Tomé Gomes, in www.dgsi.pt), pelo que nas mesmas não se inclui quer os erros de julgamento da matéria de facto ou omissão da mesma, a serem reapreciados nos termos do artigo 662º do CPC, quando procedentes e pertinentes, quer o erro de julgamento derivado de errada subsunção dos factos ao direito ou mesmo de errada aplicação do direito.
II - A nulidade por vício da contradição previsto na al. c) do nº 1 do artigo 615º do CPC, sanciona a contradição entre a decisão e seus fundamentos ou a ininteligibilidade/obscuridade da decisão.
III - Estando em causa a impugnação da matéria de facto, obrigatoriamente e sob pena de rejeição deve o recorrente especificar o exigido pelo artigo 640º nº 1 do CPC.
No caso de prova gravada, incumbindo ainda ao(s) recorrente(s), sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte – vide nº 2 al. a) do mesmo artigo 640º do CPC “indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes”.
O absoluto incumprimento do exigido quer pela al. b) do nº 1, quer pela al. a) do nº 2 do artigo 640º do CPC, determina a imediata rejeição da reapreciação da decisão de facto.
IV - Provado apenas que o motociclo, ao deparar-se com um veículo que se encontra em manobra de estacionamento, ocupando parcialmente a sua hemi-faixa de rodagem, se desvia e cai, logo sem conseguir parar no espaço livre e visível à sua frente, é este o único responsável pela produção do evento.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº. 484/21.3T8PVZ.P1

3ª Secção Cível

Relatora –M. Fátima Andrade

Adjunta –Eugénia Cunha

Adjunto –António Mendes Coelho

Tribunal de Origem do Recurso – T J Comarca de Porto – Jz. Central Cível da Póvoa de Varzim

Apelantes/ AA e “A... – Companhia de Seguros, S.A.”

Apelado/ BB

Sumário (artigo 663º n.º 7 do CPC).

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Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I- Relatório

AA instaurou a presente ação declarativa sob a forma de processo comum contra “B..., S.A.”.

Pela procedência da ação peticionou o A. a condenação da R. a:

“pagar ao Autor a quantia de € 51.800,00, bem como os valores aqui relegados para liquidação em execução de sentença ou ampliação do pedido, referidos nos artigos 52º, 53º e 54º deste articulado, acrescida de juros de mora legais desde a citação e até integral pagamento.”

Para tanto e em suma alegou ter ocorrido um acidente de viação no dia 18/01/2021, no qual foram intervenientes um veículo automóvel de matrícula “DC”, pertencente e conduzido por CC e o motociclo de matrícula “IQ”, pertencente e conduzido por si autor.

Acidente que, nos termos em que o descreveu, se ficou a dever única e exclusivamente ao condutor do “DC”, o qual havia transferido à data a responsabilidade civil emergente da circulação do mesmo para a aqui R..

Tendo o acidente sido simultaneamente um acidente de trabalho, passou a ser seguido após alta hospitalar pelos serviços clínicos da companhia de seguros do acidente de trabalho, a “A... Companhia de Seguros, S.A.”.

Não tendo até ao momento tido alta por acidentes de trabalho, mantendo tratamentos e sessões de fisioterapia.

De tal acidente tendo advindo para o A. danos vários que descreveu, alegando não ter ainda atingido a consolidação definitiva das lesões, motivo por que peticiona uma indemnização da R., em parte a liquidar posteriormente, nos termos acima mencionados.


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Devidamente citada a R., contestou.

Em suma impugnou o modo como ocorreu o acidente, alegando do mesmo versão diversa, por tal concluindo ter o acidente em causa sido causado pelo aqui autor.

Quanto aos danos alegados pelo autor, tendo impugnado os mesmos, por os desconhecer, sem que destes devesse ter conhecimento.

Concluindo nada dever ao autor, seja a que título for.

E assim pelo julgamento da ação de acordo com o exposto.


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Dispensada a realização de audiência prévia, foi proferido despacho saneador, identificado o objeto do litígio e elencados os temas da prova.

Sem censura.


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Requereu, entretanto, a “A... Companhia de Seguros S.A.” incidente de intervenção espontânea, associando-se ao A. AA, invocando a sua qualidade de seguradora da entidade patronal do aqui Autor, onde o mesmo constava como trabalhador na categoria profissional de Panificador/Padeiro.

Ao abrigo de tal apólice tendo suportado despesas que descreveu, num total de € 3.270,29. Despesas que mais declarou continuar a suportar, porquanto ainda não terminou a assistência médica ao autor.

Tendo terminado requerendo:

deve a presente Intervenção ser julgada procedente por provada, e a R. ser condenada a pagar à Interveniente a quantia de 3.270,29 €, acrescido de todos os valores que venham, entretanto, a ser liquidados ao A./sinistrado por força do processo de sinistro de Acidente de Trabalho e por conta da provisão matemática existente e cujo pedido relega para eventual ampliação do pedido ora formulado ou de liquidação em sede de execução de sentença.

Valor este, acrescido de juros de mora à taxa legal desde a citação até total e efetivo pagamento, seguindo-se os demais termos até final”

Após deu entrada a requerimento, peticionado que a sua pretensão ficasse sem efeito, por ter deduzido o incidente já em fase posterior à prolação do despacho saneador.

O que foi deferido por decisão de 06/07/2021.


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Veio, entretanto, esta “A... – Companhia de Seguros, S.A.” requerer (em 23/07/2021) a apensação a estes autos, de processo por si instaurado contra a aqui R., relativo ao mesmo acidente - processo 3132/21.8T8MTS - J2 do Juízo Local Cível de Matosinhos.

Processo onde foi deduzido o mesmo pedido antes formulado por via do incidente de intervenção espontânea, pela A... contra a aqui R. B....

Apensação que foi deferida por decisão de 25/10/21, atendendo a que

“Existe de facto a conexão que permite a apensação dos processos, pois que está em causa o mesmo acidente e a pretensão do A. poderia ter sido deduzida em coligação com a pretensão da também A. A... - art. 267º do C. P. Civil.

Estes autos foram os primeiros a ser intentados, estando ambos na mesma fase processual.”

Mais se tendo determinado que uma vez apenso o processo, “a tramitação de ambos far-se-á nestes autos principais”, ou seja, nos presentes autos.


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Após realização de exame pericial na pessoa do A., e alegando estar em condições de liquidar “o dano decorrente da incapacidade e rendimentos perdidos durante o período da ITA” aludido em 53º da p.i., deduziu o A. articulado superveniente com ampliação do pedido em mais € 37.887,12, sendo:

- de dano patrimonial futuro a quantia de € 20.000,00, atendendo à a idade do Autor à data do acidente, o salário médio mensal de € 1.100,00 e a respetiva incapacidade fixada de 3 pontos com esforços acrescidos;

- a título de perdas salariais pelos 152 dias de ITA, a quantia de € 2.887,12, considerando que por AT, a A... lhe pagou já € 2.609,87, perfazendo a soma dos dois o total de rendimentos perdidos no valor de € 5.496,99;

- € 15.000,00 a título de dano biológico.

Apreciando o requerido, entendendo estar em causa a liquidação do pedido genérico, o tribunal a quo convolou o requerimento para incidente de liquidação.

A R. contestou tal incidente, impugnando as quantias reclamadas e concluindo como na contestação.

Após o que o tribunal a quo declarou considerar assentes os factos não impugnados pela R. e controvertidos os demais que aditou aos temas da prova.

Também a “A...” (autora no processo apenso) veio deduzir ampliação do pedido, em função dos valores entretanto suportados por si, enquanto seguradora do AT, no valor de € 2.904,67.

Ampliação que a R. “B...” contestou, impugnando por desconhecimento o alegado e no mais, concluindo como na contestação.

O tribunal pronunciou-se sobre a requerida ampliação, declarando entender a pretensão da “A...” como “um pedido de liquidação das quantias que, na sua versão, pagou já depois de proposta a ação e é, nessa medida, admissível, estando assim controvertido saber se tais quantias foram pagas e em que momento, pela A. A..., tendo a prova realizada recaído já, também, sobre tais pagamentos.”


*

Realizada audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença, decidindo-se a final:

A - No processo principal julga a presente ação e o incidente de liquidação improcedentes e, em consequência, absolve a R. B... SA do pedido que contra si foi formulado pelo A. AA

B - No processo apenso, julga a presente ação e o incidente de liquidação improcedentes e, em consequência, absolve a R. B... SA do pedido que contra si foi formulado pela A. A... Companhia de Seguros SA.”


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Do assim decidido apelaram os AA. do processo principal e processo apenso.

Apelou o A. AA (autor do processo principal), oferecendo alegações e formulando a final as seguintes

Conclusões:

“1. O Autor, enquanto condutor do motociclo referiu que circulava na Rua ... no sentido Sul/Norte, e que em frente ao nº de polícia ... foi confrontado com o veículo DC a executar uma manobra de inversão de marcha.

2. Por sua vez a Ré na contestação refere que no local o condutor do veículo DC pretendia executar uma manobra de estacionamento e que fez marcha atrás em direção ao lugar de estacionamento onde permitia imobilizar o DC.

3. Não existindo testemunhas presenciais do acidente, resta-nos, neste caso, a versão dos condutores dos veículos, que desde o início foram divergentes, desde logo na versão que cada um deles apresentou às autoridades que se deslocaram ao local no próprio dia, quer nos articulados e mais tarde nos depoimentos prestados em Tribunal.

4. Isso mesmo, o reconheceu a sentença na sua fundamentação.

5. Mais acrescentando a sentença que, perante a divergência dos depoimentos se retira, no entanto, que o DC estaria sempre parcialmente dentro da faixa de rodagem destinada à circulação do IQ a obstruir a faixa de rodagem, com embaraço para o trânsito. (sublinhado e negrito nossos)

6. Apesar disso, na dúvida, o Tribunal “a quo”, decidiu contra o Autor a que o facto aproveita, aplicando o disposto no art. 414º do Código Civil!!

7. Não nos parece ser a melhor solução, já que na dúvida porque não resulta dos factos provados matéria, da qual possa ser feita a imputação ao autor, condutor do motociclo a violação de qualquer norma estradal (conduta ilícita), e porque, essa obstrução da faixa de rodagem feita pelo veículo DC para realizar a manobra de saída ou entrada de estacionamento, foi aquela que notoriamente causou o acidente de que aqui nos ocupamos.

8. Pois, quer o veículo DC estivesse a estacionar quer estivesse a sair do estacionamento, ambas as manobras são consideradas como perigosas!!

9. Nessa medida, para nós, não subsistem quaisquer dúvidas em como o acidente tratado nos autos ocorreu por culpa única e exclusiva do condutor do veículo DC, seguro na Ré/Recorrida B....

10. No entanto, ainda que assim se não entenda e dado que não se provou qualquer culpa do Autor, o Tribunal recorrido, na dúvida, deveria ter aplicado o art. 506º/1 do C.C , onde se pode ler que “Se da eclosão entre dois veículos resultarem danos em relação aos dois ou em relação a um deles, e nenhum dos condutores tiver culpa no acidente, a responsabilidade é repartida na proporção em que o risco de cada um dos veículos houver contribuído para os danos; se os danos forem causados somente por um dos veículos, sem culpa de nenhum dos condutores, só a pessoa por eles responsável é obrigada a indemnizar.”, decidindo a ação com base na responsabilidade objetiva ou pelo risco, ao invés do art. 414º desse mesmo diploma, como veio a acontecer!!

11. Com efeito, considerando-se que não se provou a responsabilidade na produção do acidente, de qualquer um dos intervenientes nele envolvidos, terá o tribunal “a quo” de aplicar as disposições da responsabilidade objetiva ou pelo risco.

12. Tendo presente que se trata de um motociclo e de um veículo ligeiro, o risco deveria ser repartido na proporção de 25% para o motociclo de 75% para o veículo ligeiro, isto é desfavorável à Ré.

13. Com base na idade, salário e incapacidade a título de dano patrimonial futuro deverá ser fixada a quantia de € 20.000,00.

14. O Autor, esteve com ITA, durante 152 dias, computando-se os rendimentos perdidos no valor de € 5.496,99, considerando que, por AT, a A... – Companhia de Seguros, S.A. já pagou ao Autor a quantia de € 2.609,87.

15. Neste momento, apenas se deixa, por isso, aqui reclamada a título de perdas salariais a quantia de € 2.887,12, uma vez que, este acidente foi para o Autor, um acidente de viação e de trabalho simultaneamente.

16. Além disso, a referida incapacidade, também chamada de défice funcional permanente da integridade física e psíquica, reflete-se na vida corrente do Autor, com repercussão na sua vida social, familiar e de bem-estar, enquanto dano biológico, o qual deve ser entendido como um dano autónomo, que se traduz na perda parcial da disponibilidade do uso do corpo para os normais afazeres do dia a dia (que não profissionais).

17. Não se confundindo com o dano patrimonial futuro da perda ou diminuição da capacidade de ganho.

18. Assim, a esse título – dano biológico – deve ser fixada ao Autor/Recorrente a quantia de € 15.000,00.

19. O Autor/Recorrente sofreu dores, apresentando um quantum doloris de 4/7, um dano estético de 1/7, esteve com ITA e ITP, e as sequelas têm repercussão nas atividades desportivas e de lazer numa escala de 1/7.

20. In casu, o Autor/Recorrente foi submetido a cirurgia e sujeito a internamento hospitalar no Hospital ..., encontrando-se o mesmo muito limitado aquando da alta hospitalar, ficando sujeito ao uso de canadianas, sendo posteriormente seguido nos serviços clínicos da seguradora de AT, designadamente na especialidade de ortopedia.

21. Teve necessidade da ajuda de 3ª pessoa, para a realização de tarefas da sua vida diária como sendo, vestir, despir, calçar e deslaçar, cozinhar, fazer compras e na realização da sua higiene pessoal.

22. Fez penso, tomou medicação e fez diversas sessões de fisioterapia, mantendo no futuro a necessidade de ajudas técnicas medicamentosas permanentes.

23. Passou por momentos de dor e sofrimento, não só no momento do acidente como durante o internamento e tratamentos médicos a que foi sujeito.

24. Ainda hoje se ressente quando se fala do acidente, ou quando tem contacto com algum acidente nem que seja através de imagens, emocionando-se com facilidade e mostrando-se ainda agora abalado e triste.

25. Ficou com receio e medo de conduzir veículos de duas rodas, levando-o inclusivamente a vender o veículo os salvados do veículo sinistrado.

26. No desempenho da sua atividade profissional também apresenta limitações, sentindo, ainda hoje dores e desconforto quando fica muitas horas em pé, devido à sua atividade profissional, quando pega em sacos de farinha mais pesados e pelo facto de ter necessidade de usar calçado de biqueira de aço.

27. Assim, por equidade a título de danos morais deve ser-lhe fixada a quantia de € 50.000,00.

28. A Ré avaliou os prejuízos do veículo sinistrado em € 1.300,00 e os salvados foram vendidos por € 250,00. Assim, o prejuízo sofrido pelo Autor no que ao veículo diz respeito foi de € 1.050,00.

29. O valor apurado é, assim, de € 88.937,12, devendo a Ré ser condenada a pagar a totalidade desse valor por se entender que a culpa é de imputar exclusivamente ao condutor do veículo DC.

30. Quando assim se não entenda e se considere que não se provou a dinâmica do acidente, deverá a ação ser decidida com base na responsabilidade objetiva pelo risco, nesse caso, deverá a Ré ser condenada a pagar ao Autor/Recorrente 75% deste valor, ou seja a quantia de € 66.702,84.

31. Nessa conformidade, deverá a decisão em apreço ser alterada, como se espera.

32. A decisão violou, entre outros, os artigos, 3º/2, 21º/1, 45º, al. d) todos do C.E., 483º e 506°/1 do C.C..

Termos em que deve dar-se provimento ao recurso, e consequentemente alterar-se a decisão recorrida,

Assim se fazendo Justiça!”


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Apelou a A. (autora do apenso A) “A... Companhia de Seguros, S.A.”, oferecendo alegações e formulando a final as seguintes

Conclusões:

“1. A Douta Sentença ora recorrida enferma de uma nulidade, nos termos do artigo 615º, nº 1 alínea c) do C.P.C., porquanto o Douto Tribunal a quo os seus fundamentos se encontram em oposição com a decisão.

2. Entendeu o Douto tribunal a quo que, na dúvida sobre se o DC estaria a sair do estacionamento ou a estacionar, tem o tribunal de considerar o disposto no artigo 414º do código de Processo Civil decidindo-se contra o A. a quem o facto aproveitaria.

3. E é neste conspecto que o Douto Tribunal a quo tomou a decisão errada, uma vez que tal não segue a “linha de pensamento” da restante decisão.

4. Sendo por isso nula a Sentença proferida, nos termos do artigo 615º do C.P.C. nº 1 alínea c) do C.P.C.

5. No entender do Douto Tribunal a quo, as declarações e versões apresentadas pelos condutores são coincidentes na essência, i.e., o veículo seguro na R. encontrava-se a sair do estacionamento.

6. Apenas não coincidem sobre a manobra que estaria, eventualmente, a ser realizada, subsequentemente à de saída do estacionamento, pelo condutor do veículo seguro da R., i.,e. a inversão de marcha.

7. Pelo que, mal se compreende a alegada dúvida do Douto Tribunal a quo sobre se o veículo seguro na R. estaria a sair ou a entrar no estacionamento.

8. Pois que, não se pode afirmar que as versões são coincidentes, que ambos referem que a manobra levada a cabo era de saída de estacionamento e simultaneamente haver dúvida sobre tal facto.

9. Efetivamente, se o Tribunal ficou com a convicção – decorrente de ambos os depoimentos – que a manobra realizada era a de saída de estacionamento, não pode, por dúvida, decidir contra o A., por alegadamente este facto lhe aproveitar, aplicando o disposto no artigo 414º do C.P.C.

10. É que, o Tribunal a quo não tem qualquer dúvida sobre a existência do facto.

11. E o facto que verdadeiramente existe e que é coincidente, de acordo com o entendimento do Tribunal a quo, é o de o condutor do veículo seguro na R. estar a sair do estacionamento.

12. Pelo que, não restando qualquer dúvida sobre a existência dessa concreta situação, não pode aplicar-se o artigo 414º do C.P.C..

13. Entendemos, salvo o devido respeito, que andou mal o Douto Tribunal a quo ao decidir como decidiu.

14. De acordo com a alínea c) do nº 1 do artigo 615º, do C.P.C., a sentença é nula quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão.

15. Verifica-se uma deficiência em que o silogismo em que se analisa a decisão contém fundamentos que levam logicamente a um juízo em determinado sentido, mas em que a decisão efetivamente adotada é a de sentido oposto.

16. I.e. a contradição existente entre a decisão e os seus fundamentos revela um vício lógico de raciocínio que distorce a conclusão a que deviam conduzir as premissas relativas aos factos e ao direito explanados.

17. O certo é que a decisão de julgar totalmente improcedente as ações, está claramente em oposição com os fundamentos de facto e de direito, onde se considerou que a manobra levada a cabo era a de saída de estacionamento.

18. Se se considerou, na parte dispositiva da sentença, que os depoimentos dos condutores eram coincidentes ao ponto de ambos referirem que a manobra realizada era a de saída de estacionamento, mal se compreende que seja dado como provado que tenha sido a de estacionamento.

19. Em suma, os fundamentos fácticos da sentença estão em oposição com a decisão, o que acarreta a nulidade da sentença, nos termos do art. 615º, nº 1, al. c), do CPC.

20. Pelo que, sendo inequivocamente nula a sentença, deverá a mesma ser revogada, alterando-se o ponto 5 dos factos provados por força da motivação da decisão de facto apresentada pelo Douto Tribunal a quo.

21. Devendo o ponto 5 dos factos provados ser alterado em sintonia lógica com a motivação.

22. Devendo por isso mesmo passar a ter a redação que ora se sugere: 5 – quando o autor se encontrava a circular em frente ao número da polícia 315 da referida rua, foi confrontado com a execução de uma manobra de saída do estacionamento pelo veículo de matrícula ..- ..-DC, conduzido por CC.

23. Sem prescindir, acaso se entenda que a manobra levada a cabo pelo condutor do veículo seguro na R. era a de estacionamento, sempre se dirá que da realização dessa manobra decorre que o veículo automóvel, no decurso dessa manobra, constituía um obstáculo na via, ocupando, enviesado, a hemi-faixa de rodagem por iria seguir o motociclo.

24. Pelo que, o motociclo quando entra – provindo da rotunda que antecede – na hemi-faixa de rodagem onde se encontrava o automóvel, depara-se com a presença deste, obstruindo-lhe a via de circulação, pelo menos parcialmente.

25. Ora, quem realiza uma manobra de estacionamento com recurso a marcha atrás deverá adotar todas as precauções necessárias para evitar qualquer acidente (artigo 12º, nº 1 do Código da Estrada).

26. A realização da eventual manobra de estacionamento levada a cabo pelo condutor do veículo seguro na R., mostrou-se violadora dos artigos 11º, nº 1 e 12º, nº 2 do C.E.

27. Tem sido pacífico na jurisprudência que a culpa emerge, normalmente, da violação de regras legais que disciplinam a circulação rodoviária, presumindo-se (presunção juris tantum) a negligência do condutor que, por conduzir em infração daquelas normas, dá causa ao acidente, sem prejuízo, obviamente, de o condutor infrator poder provar a concorrência de circunstâncias concretas que justifiquem a infração cometida e que excluam a sua culpa.

28. O condutor do veículo seguro na R., não observou, no exercício da condução, os deveres gerais de diligência exigíveis ao “condutor médio” e fez condução imprudente.

29. Por seu turno, o A./sinistrado, na sua condução, foi confrontado com a existência de um veículo atravessado na via onde circulava e constituía um obstáculo à sua circulação.

30. Ao A./sinistrado não lhe é exigível que conte com condutas contraordenacionais ou imprudentes dos demais condutores.

31. Nesta conformidade é de concluir que a culpa na eclosão do acidente é total do condutor do veículo seguro na R.

32. Pelo que, deve a Douta Sentença recorrida ser revogada, decidindo-se pela culpa exclusiva do condutor do veículo seguro na R.

33. Ainda, se se considerar que a conduta do A./sinistrado foi violadora de alguma lei estradal, designadamente, como refere a douta sentença ora recorrida, do disposto no artigo 24º do C.E., entendemos, salvo o devido respeito que é muito, que não assiste razão ao Douto Tribunal a quo ao decidir como decidiu.

34. É que, dada a factualidade dada como provada – caso se mantenha inalterado o ponto 5 dos factos provados -, a responsabilidade na eclosão do acidente não pode caber inteira e exclusivamente ao sinistrado, outrossim deverá, no limite, caber a ambos os condutores.

35. O douto Tribunal a quo, desconsiderou por completo a manobra encetada pelo condutor do veículo automóvel

36. O condutor do veículo seguro na R. ao realizar uma manobra de saída de estacionamento (ou mesmo que seja a de estacionamento, o que não se concebe), não tomou as devidas cautelas no sentido de realizar a manobra sem causar perigo para o trânsito que se processava à sua retaguarda.

37. Verifica-se ter havido por parte do condutor do veículo seguro na R. um comportamento transgressivo ao Código da Estrada, concretamente aos artigos 3º, nº 2, 11º, nº 2, 12º nº 1 do Código da Estrada.

38. O condutor do veículo automóvel, deveria ter adotado todas as precauções necessárias para evitar qualquer acidente. O que não sucedeu.

39. Igualmente, poder-se-á entender que o A./ sinistrado adotou um comportamento transgressivo do Código da estrada, designadamente o artigo 24º, do C.E. já que se deveria ter imobilizado o motociclo no espaço livre e visível à sua frente, perante um obstáculo na via, e não, ter tentado desviar-se do mesmo.

40. A entender-se tal, deverá considerar-se que ambos os condutores violaram normas estradais que, de uma forma, não só relevante como decisiva, motivaram o acidente.

41. Mas, tal repartição não pode ser considerada equitativa, pois que haverá que ter em linha de conta as condições intrínsecas dos veículos intervenientes, designadamente a massa física, dinâmica do veículo, características e composição mecânica.

42. E, tratando-se de veículos de características estruturais diferentes – um veículo automóvel ligeiro de passageiros e um motociclo – deve considerar-se a maior apetência do veículo de maiores dimensões para, em caso de colisão, provocar lesões graves nos demais utentes da via, que utilizem veículos de menor peso e dimensões.

43. Ora, considerando a maior apetência do veículo de maiores dimensões para a ocorrência do evento danoso, a divisão de responsabilidade deverá ser repartida na proporção de 60 % para o condutor do veículo seguro na R. e 40 % para o sinistrado e condutor do ciclomotor.

44. Pelo que, deve a Douta Sentença ora recorrida ser revogada, considerando-se em conformidade, fazendo-se como sempre e habitualmente inteira e sã JUSTIÇA.

Nestes termos e nos melhores de direito a suprir por Vossas Excelências, deve o presente recurso ser julgado procedente, por provado devendo a sentença recorrida ser revogada, assim se fazendo a acostumada JUSTIÇA.”


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Contra-alegou a R. (em ambas as ações) “B...”, em suma pugnando pela improcedência de ambos os recursos, face ao bem decidido pelo tribunal a quo, tanto em sede de decisão de facto, como de direito.

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Os recursos foram admitidos como de apelação, com subida nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.

Foram colhidos os vistos legais.


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II- Âmbito do recurso.

Delimitado como está o recurso pelas conclusões das alegações, sem prejuízo de e em relação às mesmas não estar o tribunal sujeito à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito, nem limitado ao conhecimento das questões de que cumpra oficiosamente conhecer – vide artigos 5º n.º 3, 608º n.º 2, 635º n.ºs 3 e 4 e 639º n.ºs 1 e 3 do CPC – resulta das formuladas pelos apelantes, serem questões a apreciar:

1) Recurso do Autor AA (processo principal)

O recorrente não deduziu qualquer impugnação concreta quanto à decisão de facto.

Pelo que em causa está apenas um imputado erro na subsunção jurídica dos factos ao direito.

Em causa a responsabilidade na produção do acidente, que o recorrente autor entende ser de imputar ao condutor do veículo seguro na R. na totalidade. Ou, caso assim se não decida e na ausência de culpa de qualquer um dos condutores, devendo ser repartida a responsabilidade na produção do acidente, na proporção em que o risco de cada um dos veículos contribuiu para a produção do acidente (artigo 506º do CC), defendendo o recorrente a fixação de uma responsabilidade de 25% para o condutor do motociclo e de 75% para o veículo seguro.

Consequentemente e em função do que assim se vier a decidir, mais pugnando pela condenação da R. à indemnização dos danos por si sofridos e peticionados.

2) Recurso da Autora “A...” (apenso A)

i- Nulidade da sentença por contradição entre os fundamentos e a decisão (de facto), bem como contradição (oposição) entre os fundamentos de facto e de direito – nulidade nos termos do artigo 615º nº 1 al. c) do CPC.

ii- Como consequência desta nulidade, alteração da redação dada ao ponto 5 dos factos provados, cuja nova redação é indicada na conclusão 22;

Previamente e com vista à reapreciação da decisão de facto, sendo analisado se foram observados os ónus de impugnação e especificação que sobre a recorrente recaíam.

iii- erro na subsunção jurídica dos factos.

Em causa a responsabilidade na produção do acidente, que a recorrente defende (tal como o autor dos autos principais) ser de imputar ao condutor do veículo seguro na R. na totalidade – por violação de regras legais que disciplinam a circulação rodoviária. Caso assim se não entenda, devendo então decidir-se pela verificação de culpas concorrentes na produção do acidente entre ambos os condutores, a fixar na proporção de 60% para o condutor do veículo seguro e 40% para o sinistrado e condutor do motociclo.

Com a consequente revogação do decidido.


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III- Fundamentação

Foram julgados provados os seguintes factos:

“1 - No dia 18/01/2021, cerca das 13.15 horas, na Rua ..., em ..., Matosinhos, o veículo de matrícula ..-IQ-.., motociclo, era conduzido pelo A. e circulava no sentido sul / norte.

2 - Circulava pela sua hemi-faixa de rodagem, atento o seu sentido de marcha.

3 - A faixa de rodagem é constituída por duas hemi-faixas de rodagem, uma para cada sentido de marcha.

4 - Do lado direito da via, atento o sentido de marcha seguido pelo A., fora da faixa de rodagem, existe uma faixa destinada a estacionamento de veículos, assinalada para o efeito.

5 - Quando o A. se encontrava a circular em frente ao número de polícia ... da referida rua, foi confrontado com a execução de uma manobra de estacionamento pelo veículo de matrícula ..-..-DC, conduzido por CC.

6 - Encontrando-se o veículo DC em parte da faixa de rodagem por onde deveria circular o IQ, o condutor deste desviou-se para a sua esquerda, dentro da sua faixa de rodagem, tendo o veículo deslizado e caído ao chão, ainda dentro da sua faixa de rodagem, considerando o seu sentido de marcha.

7 - Na sequência da queda do motociclo, o A. também caiu ao chão.

8 - Na sequência do acidente, o A. foi transportado de ambulância para o Hospital ..., tendo então sido submetido a tratamentos, exames médicos e radiológicos.

9 - Foi-lhe diagnosticada fratura dos ossos da perna esquerda.

10 - No dia 10/01/2021 foi submetido a osteossíntese com encavilhamento endomedular da tíbia com trigen-meta SN.

11 - Tendo ficado internado no Hospital até 25/01/2021, tendo então tido alta para o domicílio.

12 - Foi-lhe recomendado que colocasse gelo no local da cirurgia e profilaxia de tromboembolismo venoso e deambulação com suporte de canadianas.

13 - Foi-lhe prescrita medicação analgésica para as dores.

14 - Foi ainda orientado para consulta de penso e de ortopedia no Hospital ....

15 - Considerando que o A. se encontrava a regressar para casa proveniente do exercício da sua atividade laboral quando se verificou o acidente, após a alta hospitalar, passou a ser seguido no âmbito do contrato de seguro de acidentes de trabalho outorgado pela sua empregadora com a A. A... Companhia de Seguros SA, tendo, a expensas desta, realizado tratamentos e sessões de fisioterapia.

16 - À data da propositura da ação, o A. ainda não tinha tido alta dados pelos serviços médicos desta companhia.

17 - Após a alta hospitalar, o A. ficou durante cerca de um mês dependente do auxílio de terceiros, para se vestir, calçar, lavar, preparar refeições, fazer compras de supermercado, farmácia e outras atividades.

18 - O A. apresenta um quantum doloris de grau 4, numa escala de gravidade crescente de 1 a 7 graus.

19 - O A. continua a sofrer dores.

20 - O A. sente receio em conduzir veículos de duas rodas, lembrando-se do acidente e das suas consequências.

21 - O A. exercia e exerce funções no sector da panificação na C....

22 - Auferia, à data do acidente, em média, a quantia mensal de 937,23 euros.

23 - O A. esteve impossibilitado de trabalhar até 18/06/2021.

24 - Esteve ainda em situação de incapacidade parcial para o trabalho de 15%, atribuída pela Companhia de Seguros A..., de 19/06/2021 até 12/07/2021.

25 - As sequelas decorrentes das lesões sofridas conferem ao A. um défice funcional permanente da integridade física fixável em 3 pontos, por joelho doloroso e talalgia.

26 - As sequelas que apresenta são compatíveis com o exercício da sua atividade profissional habitual, mas implicam esforços suplementares.

27 - Apresenta um dano estético permanente de grau 1, numa escala de gravidade crescente de 1 a 7 graus.

28 - As sequelas que apresenta têm repercussão permanente nas atividades desportivas e de lazer em grau 1, numa escala de gravidade crescente de 1 a 7 graus.

29 - A R. avaliou os prejuízos sofridos pelo veículo conduzido pelo A. em 1.300,00 euros.

30 - O A. vendeu o veículo por 250,00 euros.

31 - O A. nasceu em ../../1970.

32 - O condutor do DC havia transferido para a R. a responsabilidade civil emergente de acidentes causados a terceiro emergente da sua circulação, pela apólice ....

33 - O A. recebeu da companhia de seguros A... a quantia de 2.609,87 euros, pelo período de 19/01/2021 a 19/05/2021, a título de indemnização pelo período que esteve em situação de incapacidade absoluta para o trabalho.

34 - A A. A... celebrou com a empregadora do A. AA contrato de seguro de acidentes de trabalho com a apólice ..., nela se incluindo o A. na categoria de panificador, padeiro.

35 - À data da propositura da ação, a A. A... havia procedido aos seguintes pagamentos:

a) 2.609,87 euros, a título de indemnização por incapacidade absoluta para o trabalho, relativa ao período de 19/01 a 18/06/2021, paga diretamente ao A.;

b) 30,00 euros, a título de despesas com meios auxiliares de diagnóstico;

c) 8,00 euros, a título de despesas com transportes do sinistrado;

d) 14,00 euros, a título de despesas com consultas médicas;

e) 43,18 euros, a título de despesas com farmácia;

f) 12,24 euros, a título de despesas com canadianas;

g) 483,00 euros, a título de despesas com tratamento de fisioterapia;

h) 70,00 euros, a título de despesas de ambulatório.

36 - Após a propositura da ação, a A. A... pagou ainda ao A. a quantia de 67,94 euros a título de indemnização por incapacidade temporária parcial de 15%.

37 - Pagou ainda, após a propositura da ação, a quantia de 1.940,95 euros ao Hospital ... pela assistência médica prestada ao A..

38 - Pagou ainda, após a propositura da ação, a título de tratamentos de fisioterapia, a quantia de 169,00 euros.

40 - Pagou ainda, após a propositura da ação apensa, a quantia de 70,00 euros a título de tratamento do A. em ambulatório.

41 - O A. recebeu da companhia de seguros A..., a título de indemnização pela incapacidade temporária absoluta, para além da quantia referida em 33, a quantia de 647,07 euros a título de indemnização por incapacidade temporária absoluta e 9,71 euros a título de indemnização por incapacidade temporária parcial, paga ainda antes de proposta a ação apensa.”


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Julgou o tribunal a quo não provados os seguintes factos:

“Não se provaram as demais circunstâncias do acidente ou danos, nomeadamente que:

1 - O DC se encontrasse a executar manobra de mudança de direção.

2 - O IQ circulasse a velocidade não superior a 40 Kms por hora.

3 - O A. tivesse receado pela sua vida.

4 - O A. esteja impedido de exercer a sua atividade profissional.

5 - O A. tivesse efetuado despesas com transportes, médicas e medicamentosas no valor de 500,00 euros.

6 - As circunstâncias em que o condutor do DC realizou a manobra de estacionamento.

7 - O local do acidente configure uma reta.

8 - A A. A... tivesse pago ao A., depois de proposta esta ação, a quantia de 656,78 euros, sendo 647,07 euros a título de indemnização por incapacidade temporária absoluta e 9,71 euros a título de incapacidade temporária parcial.”


*

***


Conhecendo.

Em função das questões enunciadas como objeto do recurso e colocadas à nossa apreciação, respeitando a ordem indicada no artigo 608º do CPC (ex vi artigo 663º nº 2 do CPC), será apreciado em primeiro lugar as questões da nulidade da sentença e do erro na decisão de facto, invocados pela recorrente autora do processo apenso e tramitado em conjunto nestes autos – “A...”.

Após e em função do que vier a ser decidido, sendo apreciada a questão do erro na subsunção jurídica dos factos ao direito, convocada por ambos os recorrentes.

No que comungam, em grande parte na respetiva argumentação jurídica.

Pelo que será apreciada em conjunto esta parte de ambos os recursos.


*

1) Nulidades da sentença - por contradição entre os fundamentos e a decisão (de facto) / contradição (oposição) entre os fundamentos de facto e de direito – nulidade nos termos do artigo 615º nº 1 al. c) do CPC [fundamento invocado pela recorrente “A...”].

Tem vindo a ser pacificamente aceite que as causas de nulidade da sentença, previstas de forma taxativa no artigo 615º do CPC[1], respeitam a vícios formais decorrentes “de erro de atividade ou de procedimento (error in procedendo) respeitante à disciplina legal e que se mostrem obstativos de qualquer pronunciamento de mérito”[2], pelo que nas mesmas não se inclui quer os erros de julgamento da matéria de facto ou omissão da mesma, a serem reapreciados nos termos do artigo 662º do CPC, quando procedentes e pertinentes, quer o erro de julgamento derivado de errada subsunção dos factos ao direito ou mesmo de errada aplicação do direito[3].

Por outro lado, e no que em concreto respeita à nulidade por vício da contradição previsto na al. c) do nº 1 do artigo 615º do CPC – sanciona esta a contradição entre a decisão e seus fundamentos ou a ininteligibilidade/obscuridade da decisão.

Em causa, a verificação de um vício expositivo da decisão alvo de censura.

Devendo a decisão ser, num procedimento silogístico, a conclusão lógica deduzida de premissas anteriores, verifica-se o vício da contradição quando os fundamentos antes expostos conduziriam a decisão oposta à seguida. Ou a mesma não for percetível.

Assim caraterizado este vício e analisados os argumentos apontados pela recorrente para fundamentar os mesmos, resulta claro não lhe assistir razão.

Alega a recorrente que no entender do tribunal as declarações e versões de ambos os condutores são coincidentes na sua essência no sentido de que o veículo seguro se encontrava a sair do estacionamento. Apenas não coincidindo sobre a manobra que estaria a ser realizada subsequentemente à saída do estacionamento pelo condutor do veículo seguro na R. – de inversão de marcha.

Neste sentido afirmando a recorrente não se entender a dúvida do tribunal sobre se o veículo seguro estaria a sair ou entrar no estacionamento. Não se podendo afirmar que as versões são coincidentes e que ambos referem que a manobra levada a cabo era a de saída de estacionamento e simultaneamente haver dúvida sobre tal facto.

Daqui concluindo a recorrente de um lado que o tribunal andou mal ao decidir como decidiu.

Por tal e mais adiante pugnando – com base nesta alegação – pela alteração da redação dada ao ponto 5 dos factos provados [vide conclusões 20 a 22].

E de outro que por esta via se verifica a nulidade da sentença por oposição entre os seus fundamentos e a decisão.

Tal como resulta da análise da fundamentação da decisão de facto, da mesma não resulta a afirmada coincidência de versões.

Assim, veja-se que logo na al. a) da fundamentação consta:

O Tribunal considerou o conjunto da prova produzida, para a afirmação dos factos provados e não provados.

Assim, o Tribunal considerou:

a) A participação policial, dela resultando com clareza que as declarações dos dois condutores foram desde o início divergentes quanto à manobra que estava a ser executada pelo veículo conduzido por CC. O A. descrevia uma saída de estacionamento para inversão de marcha, enquanto que CC descrevia uma manobra de estacionamento (chegada para). Em qualquer destas duas versões, de ambos os depoimentos, prestados perante a autoridade policial e perante o Tribunal, se retira que o DC estaria sempre parcialmente dentro da faixa de rodagem destinada à circulação do IQ, à direita na hemi-faixa de rodagem.”

Ou seja, logo aqui é afirmada a divergência das versões apresentadas quanto à manobra em curso – nomeadamente quanto à afirmada pela recorrente saída do estacionamento.

Pelo que em seguida conclui o tribunal “Na dúvida sobre se o DC estaria a sair do estacionamento ou a estacionar, tem o Tribunal que considerar o disposto no art. 414º do C. P. Civil, decidindo-se contra o A. a quem o facto aproveitaria”.

Após o que e ainda sobre as declarações prestadas, afirma o tribunal a quo:

“A versão apresentada por ambos os condutores é coincidente no que se reporta aos factos provados. Ambos reportam a execução de uma manobra de estacionamento (no sentido já acima referido) que colocaria o veículo seguro na faixa de rodagem por onde circulava o A. e a necessidade de desvio deste, para a sua esquerda, perante a impossibilidade de se imobilizar sem embater no veículo seguro. Ficou caído ainda na faixa de rodagem destinada ao seu sentido de marcha.

Porém, o A. descreve a manobra de estacionamento como estando o condutor do veículo seguro a sair do local de estacionamento, pretendendo efetuar manobra de inversão de marcha em local com duplo traço contínuo.

Nas circunstâncias em que ocorre o embate, sendo o A. proveniente de uma rotunda com acesso em curva, sendo o local de estacionamento muito próximo do início da via, torna-se pouco verosímil que, tendo o A. ficado caído onde ficou, o veículo seguro estivesse a atravessar-se na sua faixa de rodagem para, saindo do estacionamento, inverter ali o seu sentido de marcha. E, note-se, que para que o A. tivesse perceção dessa manobra, teria o veículo seguro de estar já atravessado, porque de outra forma a conclusão normal seria a de estar, apenas a sair do estacionamento.

Por outro lado, na versão do condutor do veículo seguro, este estaria a sair do estacionamento e, afirmando ter verificado se vinha ou não outro veículo e ter dado sinal, teria entrado na faixa de rodagem, tendo então sido surpreendido pela queda do A., que não viu em momento anterior.

Referiu, como se disse já, que saiu de imediato do veículo e que, estando este destravado, este se deslocou para trás, onde se imobilizou, situação que foi descrita pelo A., referindo que temeu que este abandonasse o local.

Estas declarações não permitem afirmar os factos tal como estes estavam alegados, mas tão só o que foi dado como provado.”

Destaca-se logo o 1º segmento acima reproduzido – declarações coincidentes quanto ao que foi julgado provado.

E o que está provado neste ponto é que o DC executava uma manobra de estacionamento – quando o A. se encontrava a circular em frente ao número de polícia ... da rua onde se deu o acidente, manobra com a qual foi então confrontado.

Quanto a tal o tribunal declarou inexistirem dúvidas.

No mais, referiu ainda o tribunal a quo que na versão do A. o DC estaria a sair do local de estacionamento pretendendo efetuar manobra de inversão de marcha – consonante com o que o A. alegou na p.i. (vide artigo 12º) sobre uma manobra de inversão do sentido de marcha. E neste sentido se tem de entender o exposto pelo tribunal quando refere a pretensão da execução de tal manobra.

Enquanto na versão do condutor do DC estaria tão só a sair do estacionamento entrando na faixa de rodagem e assim sem estar em manobra para inversão de sentido de marcha.

Versão que se acrescenta, nem é coincidente com o alegado na contestação pela R. seguradora (vide artigos 6º a 9º).

Em suma, o tribunal a quo justificou a sua decisão com base na argumentação exposta em sede de decisão de facto que em si não encerra qualquer contradição.

Tal como a subsequente subsunção jurídica dos factos ao direito, não evidencia a mesma imputada contradição.

O que a argumentação da recorrente evidencia é, claramente, a imputação de um erro de julgamento na apreciação da prova e por via (também) deste erro, um subsequente erro na subsunção jurídica dos factos ao direito.

Tal é questão que contende, contudo, não com a nulidade da sentença arguida ao abrigo do disposto no artigo 615º, mas antes com erro de julgamento.

Seja da matéria de facto. Seja na subsunção jurídica dos factos ao direito. 

O que contende já com o mérito, a apreciar nos termos dos artigos 662º e 663º do CPC.

Improcede, em conclusão, a pela recorrente invocada nulidade da sentença ao abrigo do disposto no artigo 615º nº 1 al. c) CPC.

2) Em segundo lugar cumpre apreciar do imputado erro de julgamento em sede de decisão de facto – em causa o ponto 5 dos factos provados, cuja nova redação é indicada na conclusão 22.

Para efeito de reapreciação da decisão de facto, sendo analisado se foram observados os ónus de impugnação e especificação que sobre a recorrente recaíam.

Ónus que adiantamos, por manifesto, não foram observados.

Estando em causa a impugnação da matéria de facto, obrigatoriamente e sob pena de rejeição deve o recorrente especificar (vide artigo 640º n.º 1 do CPC):

“a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;

c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas”.

No caso de prova gravada, incumbindo ainda ao(s) recorrente(s) [vide n.º 2 al. a) deste artigo 640º] “sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes”.

Sendo ainda ónus do(s) mesmo(s) apresentar a sua alegação e concluir de forma sintética pela indicação dos fundamentos por que pede(m) a alteração ou anulação da decisão – artigo 639º n.º 1 do CPC - na certeza de que estas têm a função de delimitar o objeto do recurso conforme se extrai do n.º 3 do artigo 635º do CPC.

Analisadas, quer as conclusões quer o corpo alegatório, resulta manifesta a total ausência de indicação dos meios probatórios que impõem decisão diversa. E bem assim e consequentemente o incumprimento do exigido pelo artigo 640º nº 2 al. a).

O absoluto incumprimento do exigido quer pela al. b) do nº 1, quer pela al. a) do nº 2 do artigo 640º do CPC, determina a imediata rejeição da reapreciação da decisão de facto.

Rejeição da reapreciação da decisão de facto que, por não observância do disposto no artigo 640º nº 1 al. b) e nº 2 al. a) do CPC, assim se decide.

3) Do direito.

Em função do acima enunciado cumpre apreciar de direito, tendo presente que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões dos recorrentes, não obstante e sem prejuízo do limite imposto pelo artigo 609º quanto ao objeto e quantidade do pedido, não estar o tribunal vinculado às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito [vide artigo 5º nº 3 do CPC].

Ao pedido indemnizatório formulado por ambos os autores e recorrentes subjaz a responsabilidade civil emergente de acidente de viação.

Ambos os recorrentes questionaram o decidido quanto à responsabilidade na produção do acidente que o tribunal entendeu ser de afastar na sua totalidade em relação ao veículo seguro.

O que fundamentou nos seguintes termos:

“No que se reporta ao condutor do veículo seguro, nenhuma responsabilidade lhe pode ser assacada. Não se tendo provado as exatas circunstâncias em que estava a executar a manobra, mas existindo uma faixa de estacionamento que o obrigava a executar a manobra dentro da faixa de rodagem por onde circulava o A., o desvio que este fez para a esquerda de modo a ultrapassa-lo, sem se imobilizar, como deveria, à sua retaguarda, sendo possível como era, não deveria ter provocado a sua queda e, como tal, o condutor do veículo seguro não pode ser responsável pelas suas consequências.

Não vemos assim fundamento para imputar ao condutor do veículo seguro qualquer responsabilidade pelas consequências da queda do A..”

Consequentemente tendo o tribunal a quo concluído pela total absolvição do pedido deduzido contra a R., quer pelo autor AA (processo principal) quer pela autora “A...” (processo apenso).

No que à responsabilidade na produção do acidente respeita, defendeu o Autor AA ser de imputar esta ao condutor do veículo seguro na R. na totalidade, ou caso assim se não decida, devendo ser decidida a repartição da responsabilidade na produção do acidente, na proporção em que o risco de cada um dos veículos contribuiu para a produção do acidente (artigo 506º do CC), defendendo o recorrente a fixação de uma responsabilidade de 25% para o condutor do motociclo e de 75% para o veículo seguro.

Consequentemente e em função do que assim se vier a decidir, mais pugnando pela condenação da R. à indemnização dos danos por si sofridos e peticionados.

Por sua vez a Autora “A...” (apenso A) defendeu (tal como o autor dos autos principais) ser de imputar tal responsabilidade ao condutor do veículo seguro na R. na totalidade – por violação de regras legais que disciplinam a circulação rodoviária. Caso assim se não entenda, devendo ser decidida a repartição da responsabilidade na produção do acidente entre ambos os condutores, na proporção de 60% para o condutor do veículo seguro e 40% para o sinistrado e condutor do motociclo.

Com a consequente revogação do decidido.

Analisemos perante os factos provados, se a decisão recorrida merece censura, no que concerne à responsabilidade na produção do acidente.

Vem provado, com relevo para a apreciação da responsabilidade na produção do acidente que:

“1 - No dia 18/01/2021, cerca das 13.15 horas, na Rua ..., em ..., Matosinhos, o veículo de matrícula ..-IQ-.., motociclo, era conduzido pelo A. e circulava no sentido sul / norte.

2 - Circulava pela sua hemi-faixa de rodagem, atento o seu sentido de marcha.

3 - A faixa de rodagem é constituída por duas hemi-faixas de rodagem, uma para cada sentido de marcha.

4 - Do lado direito da via, atento o sentido de marcha seguido pelo A., fora da faixa de rodagem, existe uma faixa destinada a estacionamento de veículos, assinalada para o efeito.

5 - Quando o A. se encontrava a circular em frente ao número de polícia ... da referida rua, foi confrontado com a execução de uma manobra de estacionamento pelo veículo de matrícula ..-..-DC, conduzido por CC.

6 - Encontrando-se o veículo DC em parte da faixa de rodagem por onde deveria circular o IQ, o condutor deste desviou-se para a sua esquerda, dentro da sua faixa de rodagem, tendo o veículo deslizado e caído ao chão, ainda dentro da sua faixa de rodagem, considerando o seu sentido de marcha.

7 - Na sequência da queda do motociclo, o A. também caiu ao chão.”

Temos, portanto, descrita e apurada uma situação em que o condutor do motociclo IQ, no dia, hora e local mencionados em 1 dos fp, circulava pela sua hemi faixa de rodagem atento o seu sentido de marcha.

Tendo sido confrontado com a execução de uma manobra de estacionamento por parte do veículo seguro na R., o veículo DC, o qual ocupava parte da sua hemi-faixa de rodagem por onde deveria circular o IQ – manobra esta, portanto, em curso.

Perante tal ocupação, tendo o IQ se desviado à esquerda, deslizou e caiu no chão, ainda dentro da sua hemi faixa de rodagem (ou seja, na hemi faixa de rodagem direita, atento o seu sentido de marcha).

Na sequência da queda do motociclo, tendo também caído o A..

O autor AA imputa a responsabilidade na produção do acidente ao veículo seguro na R., uma vez que ele estava a executar uma manobra considerada perigosa (de estacionamento – seja a sair ou entrar ...), ocupando parte da sua (do condutor do IQ) hemi-faixa de rodagem. Para tanto tendo de ter cuidados redobrados na execução da manobra, tanto mais que alega este recorrente no seu corpo alegatório, a configuração da via no local era uma curva.

Sobre a configuração do local do acidente importa referir, de um lado, que o próprio autor AA alegou na sua p.i. ser o local uma reta de boa visibilidade (vide 7º da p.i.) o que não provou (vide facto não provado 7); de outro que só agora em sede de recurso vem alegar ser o local uma curva – o que constitui questão nova que este tribunal de recurso não pode considerar [relembra-se também não ter o recorrente validamente impugnado a decisão de facto].

Dito isto, ao autor incumbia ter alegado e feito prova dos factos que permitiriam ao tribunal concluir pela responsabilidade na produção do acidente ao condutor do IQ.

Para tanto não bastando alegar que foi confrontado com a execução da dita manobra, como singelamente fez.

Era concretamente, e no mínimo, necessário que o autor alegasse e tivesse feito prova da distância a que o DC passou a ser para si visível e distância a que do mesmo se encontrava quando o DC iniciou a sua manobra de estacionamento e que espaço da sua hemi-faixa de rodagem ocupava; ainda a que velocidade circulava [e aqui embora a tenha alegado, não o provou – vide facto não provado 2)] para que destes factos se pudesse inferir a atenção e cuidado que por um lado o mesmo aplicava na sua condução e de outro o circunstancialismo em que a manobra foi efetuada por parte do DC para que a este pudesse ser imputada alguma responsabilidade na produção do acidente. Ou seja, para que se pudesse concluir que o acidente se apresentou como consequência de facto atribuível à conduta do condutor do DC – acidente que se traduziu na queda do autor na sequência do desvio que operou quando foi confrontado com a execução da manobra de estacionamento por parte do DC. DC que então ocupava parte da faixa de rodagem por onde circulava o A. no seu veículo (IQ).

Nada tendo sido alegado pelo autor neste sentido, entende-se nenhuma censura merecer o decidido pelo tribunal a quo quando afirmou nenhuma responsabilidade ser de assacar ao condutor do DC.

É certo que os condutores devem, durante a condução, abster-se da prática de quaisquer atos que sejam suscetíveis de prejudicar o exercício da condução com segurança – vide artigo 11º nº 2.

Argumento válido para ambos os condutores identificados nos autos – A. e segurado da R..

Estando provado que o segurado da R. executava uma manobra de estacionamento, está igualmente provado que o fazia em local a tal destinado (vide factos provados 4 e 5).

Pelo que deste circunstancialismo nenhuma violação de regra estradal emerge (vide artigo 48º do CE).

Por outro lado, nada consta dos factos provados, de onde se possa concluir pela violação de regras de sinalização das manobras (nada aliás foi alegado neste conspecto) – vide artigo 21º do CE; sequer pela violação de regras de cedência de passagem (vide artigo 31º nº 1 al. a) do CE); ou de início de marcha (vide artigo 12º do CE), tanto mais quando se desconhece em concreto o movimento que executava o DC no momento em que o A. dele se desviou.

O mesmo é dizer que da factualidade provada, nenhuma evidência consta da violação de regras estradais por parte do condutor do DC que permitam concluir pela imputação ao mesmo de culpa / responsabilidade na produção do acidente.

Por outro lado, está provado que o A. quando se deparou com o DC na execução da manobra apurada, estando em parte a ocupar a hemi faixa de rodagem, desviou-se à sua esquerda e sem sair da sua hemi faixa de rodagem esquerda o veículo deslizou, acabando por cair no chão tanto o motociclo como o seu condutor e aqui autor. O mesmo é dizer que o A. perdeu o controle da sua viatura nesta manobra de desvio à esquerda.

Nos termos do artigo 24º do CE, nº 1 “O condutor deve regular a velocidade de modo a que, atendendo à presença de outros utilizadores, em particular os vulneráveis, às características e estado da via e do veículo, à carga transportada, às condições meteorológicas ou ambientais, à intensidade do trânsito e a quaisquer outras circunstâncias relevantes, possa, em condições de segurança, executar as manobras cuja necessidade seja de prever e, especialmente, fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente”.

O que os factos acima elencados evidenciam é que o A., ao deparar-se com o DC – o qual estava em execução de uma manobra de estacionamento, ocupando parcialmente a hemi faixa de rodagem (desconhece-se em que extensão) – desviou-se à esquerda e perdendo o controle do seu veículo, veio a cair no solo – o condutor e o veículo, sem sequer chegar a embater no DC.

Mesmo a ser este desvio indispensável para a não colisão – o que tão pouco está apurado, atenta a escassez de factualidade alegada e apurada, da qual apenas se infere uma ocupação parcial da hemi-faixa sem se saber em que extensão – sempre se terá de concluir então e perante a factualidade provada que o A. não conseguiu parar no espaço livre e visível à sua frente – em violação do disposto no artigo 24º do CE.

Provado apenas que o motociclo, ao deparar-se com um veículo que se encontra em manobra de estacionamento, ocupando parcialmente a sua hemi-faixa de rodagem, se desvia e cai, logo sem conseguir parar no espaço livre e visível à sua frente, é este o único responsável pela produção do evento.

Sendo esta a única causa apurada da sua queda, apenas ao A. pode ser imputada a responsabilidade na produção do evento.

Sem que se possa atribuir ao condutor do veículo DC – a culpa deste; ou aos riscos próprios do veículo uma contribuição relevante na respetiva produção do acidente, no contexto factual apurado.

Tal como afirmado no Ac. do STJ de 31/05/2023, nº de processo 521/16.3T8VFR.P1.S1 in www.dgsi.pt, o concurso da imputação do acidente ao lesado com o risco próprio do veículo, que a jurisprudência do nosso tribunal superior[4] entende ser admitida pelo artigo 505º do CC, nomeadamente em face da salvaguarda do prescrito no artigo 570º do CC, pressupõe que:

“(i) o risco especial de circulação seja um risco agravado de funcionamento deficiente e/ou imprevidente da máquina ou das especificidades de perigo da circulação em concreto, que justifique e torne plausível, numa lógica equilibrada e racional do regime legal para tutela do lesado, especialmente quanto este apenas evidencia uma negligência de reduzida censurabilidade (culpa leve ou levíssima) e de diminuta relevância causal para a produção ou agravamento dos danos sofridos pelo próprio, uma comparticipação da parte lesante que responde independentemente de culpa; (ii) haja uma contribuição desse risco do veículo para a ocorrência do sinistro gerador dos danos, mobilizando-se um juízo de adequação e proporcionalidade atendendo à intensidade desses riscos próprios da circulação do veículo e à sua concreta relevância causal para o acidente.”

A factualidade apurada não nos permite concluir nem pela culpa leve ou levíssima da atuação do autor e diminuta relevância causal para a produção dos danos sofridos, nem pela relevância causal dos riscos próprios da circulação do veículo para a produção do evento.

Inexiste assim fundamento, no circunstancialismo provado e analisado para recorrer à responsabilidade objetiva, mesmo que em concurso com a responsabilidade pela culpa do lesado (vide artigos 503º e 505º do CC), porquanto a causa do acidente se imputa apenas a conduta do autor.

Em suma, perante a factualidade provada, a responsabilidade na produção do acidente apenas ao autor pode ser imputada, implicando a absolvição da R. seguradora na totalidade, tal como decidido pelo tribunal a quo.

Seja em relação à pretensão formulada pelo autor AA.

Seja em relação à pretensão formulada pela autora A..., a qual tinha como pressuposto precisamente a mesma responsabilidade na produção do acidente a imputar ao segurado da R..


***

IV. Decisão.

Em face do exposto, acordam os Juízes do Tribunal da Relação do Porto em julgar totalmente improcedente o recurso interposto pelos AA. AA e “A...”, consequentemente mantendo a decisão recorrida.

Custas dos recursos pelos recorrentes.


Porto, 2024-03-18.
Fátima Andrade
Eugénia Cunha
Mendes Coelho
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[1] Preceitua o artigo 615º nº 1 do CPC
“1 - É nula a sentença quando:
a) Não contenha a assinatura do juiz;
b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;
e) O juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido.”
[2] Cfr. Ac. STJ de 23/03/2017, Relator Manuel Tomé Gomes, in www.dgsi.pt
[3] Vide Ac. STJ de 30/05/2013, Relator Álvaro Rodrigues, in www.dgsi.pt sobre a distinção entre nulidade da sentença (no caso por oposição entre os fundamentos e decisão) versus erro de julgamento.
[4] Sobre esta mesma temática e circunstancialismo em que é de considerar a concorrência da culpa do lesado e risco do lesante, cfr. ainda Ac. STJ de 17/10/2019, nº de processo 15385/15.6T8LRS.L1.; Ac. STJ de 19/10/2021, nº de processo 7007/16.4T8PRT.P1-A.S1 in www.dgsi.pt