Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1212/21.9PLLSB.L1-5
Relator: CARLA FRANCISCO
Descritores: EXAME CRÍTICO DAS PROVAS
CONTRADIÇÃO INSANÁVEL ENTRE OS FACTOS NÃO PROVADOS E A MOTIVAÇÃO DE FACTO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/23/2024
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: (da responsabilidade da relatora):
I - O exame crítico das provas corresponde à indicação dos motivos que determinaram a que o Tribunal formasse a convicção probatória num determinado sentido e porque é que certas provas são mais credíveis do que outras, servindo de substracto lógico-racional da decisão.
II - Não há exame crítico da prova quando apenas se indicam os elementos de prova, testemunhais e documentais, a que se recorreu e se faz uma súmula das declarações do arguido e das testemunhas, optando-se pela versão dos factos apresentada pelo arguido, em detrimento de todas as restantes testemunhas, mas sem explicar em que medida é que o Tribunal lhe conferiu credibilidade e porquê.
III - Existe contradição entre os factos não provados e a motivação da matéria de facto quando se refere que as testemunhas disseram que ouviram discussões entre o arguido e a mãe, que ouviram o arguido chamar à mãe puta, porca e ladra, que ouviram o arguido pedir dinheiro à mãe, que viram a mãe do arguido com marcas de agressões nos braços, que viram a mãe do arguido a dormir fora de casa, por ter medo de voltar para casa, e depois dão-se como não provados os factos que fundamentam a responsabilidade criminal do arguido pela prática do crime de violência doméstica de que vinha acusado, com o argumento de que o arguido negou a sua prática e nenhuma das testemunhas inquiridas os presenciou, mas sem se explicar porque é que não se deu relevância ao depoimento das testemunhas, nem porque é que estes depoimentos não mereceram credibilidade.
IV - Esta contradição é insanável porque não permite concluir, com um juízo de certeza, se o arguido praticou ou não os factos de que vinha acusado.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
1– Relatório
No processo nº 1212/21.9PLLSB do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo Local Criminal de Lisboa - Juiz 3, consta da parte decisória da sentença datada de 18/12/2023, o seguinte:
Pelo exposto, decide-se julgar a acusação improcedente por não provada e, em consequência, absolver o arguido AA da prática como autor material de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152º, nº1, al. d) e nº 2, al. a), nº4 e nº5 do Código Penal, de que vinha acusado. (…)
*
Inconformado com a decisão absolutória, veio o Ministério Público interpor recurso, formulando as seguintes conclusões:
1. Nos presentes autos, o arguido AA foi submetido a julgamento e absolvido da acusação contra ele formulada pela prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152º, n.º 1, alínea d), n.º 2, alínea a) do Código Penal.
2. O Ministério Público vem recorrer da sentença por considerar que a mesma padece da nulidade prevista na alínea a), do nº 1, do artigo 379º, do Código de Processo Penal.
3. Com efeito, o Código de Processo Penal estabelece, no seu artigo 379º, um regime específico das nulidades da sentença e nos termos da alínea a), do n.º 1, é nula a sentença penal quando não contiver as menções referidas no nº2 e na alínea b) do nº3 do artigo 374º.
4. Assim, após o relatório segue-se a fundamentação, dela devendo constar, a enumeração dos factos provados e não provados, e uma exposição dos motivos de facto e de direito que determinaram o sentido (“fundamentaram”) da decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do julgador.
5. Porém, tal não aconteceu na sentença recorrida, tendo a Mma. Juiz omitido o exigível exame crítico das provas, com violação do disposto no artigo 374º, nº2 do Código de Processo Penal.
6. Com efeito, analisada a sentença recorrida verificamos que a Mma. Juíza a quo limitou-se a efetuar uma descrição (parcial) do que disseram o arguido e as testemunhas em audiência julgamento, ficando, no entanto, por explicar o porquê da sua convicção e o que, em concreto, cada um dos meios de prova contribuiu para cada facto dado como provado e não provado.
7. A fundamentação – que apenas nominalmente assim se pode entender – utilizada na decisão recorrida, resume-se a designar os meios de prova de que o tribunal se serviu para formar a sua convicção, sem, no entanto, minimamente explicitar as razões da sua apreciação, não exteriorizando as razões da decisão e o processo lógico, racional e intelectual que lhe serviu de suporte.
8. É evidente a falta da exigida análise crítica das provas que serviram para formar a convicção do tribunal, acerca do julgamento sobre o que disseram o arguido e as testemunhas, desde logo, para se poder aferir da sua credibilidade ou da falta dela.
9. A forma como a sentença está redigida (e não fundamentada) não permite alcançar o raciocínio expendido para a obtenção da decisão em causa, não havendo a necessária apreciação e valoração conjugada dos meios probatórios produzidos, obrigatoriamente aferidos por critérios de razoabilidade.
10. Não se afere da mesma o imperativo “exame crítico da prova”, a enunciação, especificada, dos meios de prova que serviram para formar a convicção do tribunal, a referência à credibilidade que os mesmos mereceram ao tribunal, e o exame do seu valor e relevância probatórios; pelo que não se consegue apreender os motivos e a construção do percurso lógico da decisão segundo as aproximações permitidas razoavelmente pelas regras da experiência comum.
11. A falta de fundamentação da sentença recorrida é assim gravemente insuficiente, não permitindo a perceção das razões de facto e de direito do sentido da decisão judicial.
12. Estamos, assim, pela importância da apontada insuficiência, perante uma omissão que acarreta a nulidade da sentença, nos termos do artigo 379º, nº1, alínea a), do Código de Processo Penal.
13. Para o caso de não proceder a argumentação acima expendida, sempre se dirá que a Mmª Juiz incorreu em erro de julgamento ao incluir na matéria de facto não provada os factos 1 a 12 relativos à prática de maus tratos físicos e psíquicos à ofendida, às lesões sofridas e à intenção do arguido.
14. Na verdade, com relevância para a decisão a proferir sobre tais pontos da matéria de facto, impondo que sejam dados como provados, resulta a prova produzida em audiência de julgamento.
15. No dia 23/10/2023, na audiência de julgamento, a testemunha BB, vizinha da vítima e do arguido, que prestou depoimento num total de 7.56 minutos, do qual se destaca o seguinte:
“A CC faleceu agora este mês de …” (01.31)
“Ela vivia com o filho” (01.39)
“Ele aos vizinhos não incomodava ninguém, lá em casa, a gente ouvia ela gritar e pedir socorro” (01.48 – 01.54)
“Discutiam muito os dois e ela por vezes gritava, pedia por socorro” (02.33-02.39)
“Às vezes ouvia-o a chamar nomes. Chamava-lhe “puta e porca” (02.44-03.23)
“Eles viviam da reforma dela” (03.57-03.59)
“Ela dizia que lhe dava dinheiro” (04.42-04.44)
“Encontrei-a várias nas escadas. Ela dizia que tinha medo de ir para casa. Era o que ela dizia. E por vezes dormia na minha porque não queria bater à porta, porque o acordava” (05.01-05.44)
“As discussões eram de vez em quando, nem sempre havia discussões, mas quando havia eram acesas” (06.11-06.21)
“Ela, às vezes aparecia com nódoas os braços. Ela dizia que era um problema que ela tinha de saúde, se batesse com os braços, ficava com aquelas marcas (06.27-06.38).”
16. Na mesma sessão de audiência de julgamento, a testemunha DD, nora da vítima já falecida, prestou o depoimento com duração total de 16.24 minutos do qual se destaca:
“Muitos gritos. O meu cunhado queria dinheiro, a mãe muitas vezes não tinha.”
“Segundo o que ela disse na altura, ele mandou-lhe um encontrão contra a parede. Eu não sei, não estava lá, não vi. Onde ela teve de ser operada à cabeça, fez uma hemorragia interna”
“Eu estive cinco anos sem falar com ela, assim em contacto com ela. Ela também não o permitia. Entretanto, há 2 anos atrás faz agora em Dezembro dois anos, ela sentiu-se mal segundo o que eu sei lá no supermercado, chamaram a ambulância e ela foi para o hospital. E comunicaram-nos e aí nós fomos ter com ela, pronto, ver o estado dela, lastimável, muito magra”
“E então desde essa altura até agora eu estive sempre a acompanhá-la. Ela não relatava muita coisa. Ela encobria muita coisa.”
“A mim só me disse que ele lhe tinha batido uma vez, aquela vez da cabeça. Ela diz que ele a empurrou”.
“O filho chamava nomes à mãe: porca, vaca, muitas vezes.”
“A minha sogra beber? Não. Ela bebia um copo de vinho à refeição. A minha sogra não. O Sr. AA sim, bebia com regularidade. Ficava muito agressivo, mais com a mãe.”
“Ele pedia dinheiro à mãe. Muitas vezes a minha sogra pedia-me a mim e aos vizinhos para dar ao filho. Ela dava-lhe porque, não sei, não sei se tinha medo dele ou para ele não fazer barulho”.
“Cheguei a ver a minha sogra com marcas. Eu sei, uma vez fui buscá-la ao hospital por uma tareia que ele lhe deu, mas aí ele ainda estava na casa dele, aí ela vinha completamente toda preta, eu na altura ainda quis fazer queixa (…) isso antes de 2006.
Assim mais recente, as únicas coisas que eu via nela era, dava-me a sensação, que devia ser ele a agarrar nela e ela ficava com marcas. Parecia-me marcas dos dedos.”
“Ela era uma pessoa muito triste. Sei como a encontrei, muito magra, uma expressão muito triste, irreconhecível. “
“Ela não tinha forças para pegar num banco e atirar”.
“Na pandemia, ainda fui ao encontro dela, a meio de abril, telefonaram-me, neste caso a minha ex-cunhada, que me telefonou a dizer que ela andava a dormir nas paragens dos autocarros para nós irmos à procura dela. Não a encontrámos. Houve um polícia que a levou para casa.”
“Depois ainda tivemos um encontro com ela para ela ir fazer queixa dele. Na altura ainda sugeri que ela vendesse a casa e comprasse uma perto de mim que eu tomava conta dela, mas ela não quis. Ela defendia-o “com unhas e dentes”. Ela lá tinha as razões dela”.
17. Foi também ouvida na qualidade de testemunha, EE, agente da PSP, que prestou depoimento num total de 10.15 minutos, do qual se destaca o seguinte:
“Fui lá casa em várias datas em Outubro de 2021, e antes de Outubro fui com um colega. Nos contatos que tive com a D. CC, o comportamento dela foi sempre bastante apreensivo.”
“Eu já tinha feito um contato com a D. CC a propósito de uma participação de desavenças familiares, penso que foi de Abril ou Maio, mas só que na altura nós constatamos que havia algumas marcas físicas nos braços dela, só que as desculpas dela eram sempre que foi contra a escada ou que bateu num armário ou que fez alguma coisa assim do género que não tivesse sido uma agressão”
“Quando fomos realmente no dia 15 do 10 de 2021 lá de novo, aí é que nós fomos, nós também falamos com ela, ela disse que o arguido estava um bocadinho chateado face à situação de estar no desemprego, e que não tinha dinheiro, e que muitas das vezes pedia-lhe dinheiro a ela, e depois, ela nunca disse que tinha sido agredida, mas o que é facto é que, quando descemos do prédio, os vizinhos nos contactaram porque estavam deveras preocupados com a situação, nomeadamente com uma situação que tinha acontecido, penso que na noite de dia 13, que caiu um vidro e que pronto houve uma discussão mais acesa.
“A própria D. CC disse que o arguido, ao fechar uma porta, bateu com muita força e partiu o vidro.”
“Ela nunca dizia que tinha acontecido alguma coisa, mas falava com bastante pena da situação. Era um instinto muito protetor, sobretudo devido ao facto de ele não ter meio de subsistência.”
“Ela dormia nas escadas, chegava a dormir nas escadas, mas a nós nunca nos disse isso. Quem nos disse foi os vizinhos (06.50).
“A D. CC não me pareceu que tinha hábitos alcoólicos (08.44), eu sei que já falei com o arguido e ele estava embriagado (08.49), agora com a D. CC não me recordo nada (09.00).
18. A Mma. Juiz a quo não valorou, como devia, os depoimentos prestados pelas testemunhas BB, DD e EE.
19. Senão vejamos.
20. No que diz respeito à testemunha BB, vizinha da ofendida e do arguido, a mesma depôs de forma isenta e credível, afirmando em julgamento ter ouvido várias discussões “lá em casa”, ouvindo a vítima “gritar e pedir socorro” (01.48 – 01.54 e 02.33-02.39 mts); e ter ouvido várias vezes o arguido chamar nomes (“Chamava-lhe puta e porca” - 02.44-03.23mts).
21. Mais disse ter “encontrado” várias vezes a ofendida a dormir nas escadas do prédio (05.01-05.44) e com “nódoas” nos braços. Por outro lado, afirmou ainda esta testemunha que a vizinha lhe disse que “viviam da reforma dela (03.57-03.59) e que “lhe dava dinheiro” (04.42-04.44); tendo-lhe também dito, nas vezes em que a encontrou a dormir nas escadas do prédio, que “tinha medo de ir para casa”.
22. Ora, tendo presente que a vítima, CC entretanto faleceu, este depoimento podia e devia ter sido na sua globalidade valorado pela Mma. Juiz a quo, não só quanto aos factos de que a testemunha demonstrou ter tido conhecimento direto, mas também nos termos do disposto no artigo 129º do Código de Processo Penal, o que não aconteceu.
23. Na mesma esteira, vejamos também o depoimento prestado em audiência de julgamento pela testemunha DD, nora da falecida vítima, a qual, de forma clara, isenta e credível, relatou as discussões a que assistiu entre o arguido e a ofendida – “Muitos gritos. O meu cunhado queria dinheiro, a mãe muitas vezes não tinha”; “O filho chamava nomes à mãe: porca, vaca, muitas vezes”; “Ele pedia dinheiro à mãe. Muitas vezes a minha sogra pedia-me a mim e aos vizinhos para dar ao filho”; “Cheguei a ver a minha sogra com marcas.
Dava-me a sensação, que devia ser ele a agarrar nela e ela ficava com marcas. Parecia-me marcas dos dedos; “Ela era uma pessoa muito triste. Sei como a encontrei, muito magra, uma expressão muito triste, irreconhecível”.
24. Relatando ainda ter ouvido da vitima designadamente que “ele mandou-lhe um encontrão contra a parede. Onde ela teve de ser operada à cabeça, fez uma hemorragia interna”; Ela a mim só me disse que ele lhe tinha batido uma vez, aquela vez da cabeça. Ela diz que ele a empurrou”; Ela defendia-o “com unhas e dentes”. Ela lá tinha as razões dela”.
25. No que concerne ao depoimento prestado pela testemunha EE, agente da PSP, a qual narrou, por um lado, o que viu nas situações em que foi chamada a intervir na residência da vítima e do arguido (designadamente: “nós constatamos que havia algumas marcas físicas nos braços dela”); e, por outro, aquilo que a ofendida lhe narrou (“ela disse que o arguido estava um bocadinho chateado face à situação de estar no desemprego, e que não tinha dinheiro, e que muitas das vezes pedia-lhe dinheiro a ela”; “A própria D. CC disse que o arguido, ao fechar uma porta, bateu com muita força e partiu o vidro”).
26. Tratou-se de um depoimento absolutamente claro e credível que não foi também devidamente valorado pela Mma. Juiz a quo.
27. Com efeito, o depoimento desta testemunha, agente da PSP, traduz-se num relato das informações colhidas pelo órgão de polícia criminal no âmbito da sua intervenção, aqui se incluindo o que viu e ouviu, da vítima e de vizinhos nas deslocações à residência, formalizadas em autos/aditamentos; explicando também de forma fundamentada aquilo que os seus sentidos percecionaram.
28. Assim, enquanto depoimento válido deveria ter sido valorado no cotejo da globalidade da prova produzida, o que não aconteceu no caso da sentença de que ora se recorre.
28 Tendo presente os concretos pontos dos depoimentos supra assinalados, os quais devem ser apreciados na globalidade da prova produzida em audiência e à luz do “normal acontecer”, não se compreende como a Mma. Juiz dá como não provados os pontos 4, 5, 6, 8 e 9 da acusação e, na sequência, os factos relativos ao elemento subjetivo – pontos 10, 11, 12, 13, 14 e 15.
29. É certo que o arguido negou os factos apresentando uma versão diferente daquela que consta da acusação.
30. No entanto, cumpre salientar que o facto de o arguido negar os factos não pode levar logo a concluir pela conclusão de que os factos devam ser dados como não provados, nada existindo na sentença que nos diga ter existido alguma dúvida objetiva e insanável quanto à forma como os factos ocorreram.
31. É certo que não existe um depoimento direto da vítima, porque infelizmente a mesma veio a falecer.
32. No entanto, e conforme supra se identificou, as testemunhas inquiridas relataram as várias discussões que ouviram entre o arguido e a vítima, explicando que as mesmas estavam relacionadas com as exigências de dinheiro do arguido à mãe.
33. Relataram os insultos que ouviram o arguido dirigir à vítima; assim como os “gritos de socorro” audíveis do exterior da habitação.
34. Descreveram as marcas físicas que viram no corpo da vítima, bem como apontaram as situações em que esta era encontrada a dormir nas escadas do prédio e bem assim a tristeza e medo com que vivia.
35. Por outro lado, salienta-se ainda aquilo que as testemunhas relataram ter “ouvido dizer da ofendida” ao longo dos anos e que também tem de ser nesta sede valorado.
36. É que, apesar de ter resultado evidente que a vítima procurou sempre proteger o filho, também resultou dos depoimentos das testemunhas que a ofendida se queixava do facto de o arguido lhe pedir dinheiro, da forma como se exaltava e fazia com que tivesse medo dele; acabando também por ter contado ter sido agredida (ainda que uma vez) com um empurrão que a fez bater com a cabeça, relatando também a situação ocorrida no dia 13 de Outubro de 2021 (facto 9 da acusação).
37. Por último, sublinha-se ainda o depoimento prestado pela agente da Polícia de Segurança Pública que se deslocou à residência da vítima e do arguido em várias datas, relatando o que assistiu e percecionou, bem como as informações que recolheu da vítima e vizinhos no âmbito do exercício das suas funções de Órgão de Polícia Criminal e que fez verter no expediente que elaborou e juntou aos autos (prova documental que também tem de ser valorada).
38. Neste sentido, sendo os depoimentos prestados credíveis, isentos e verdadeiros, resulta evidente que o tribunal a quo deu como não provado algo que não podia deixar de ter acontecido, fazendo-o de uma forma ilógica, arbitrária e notoriamente violadora das regras da experiência.
39. Não se olvida que a livre apreciação da prova não se confunde com apreciação arbitrária da prova nem com a mera impressão gerada no espírito do julgador pelos diversos meios de prova.
40. Com efeito, a prova livre tem como pressupostos valorativos a obediência a critérios da experiência comum e da lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica.
41. Na verdade, a convicção do tribunal é formada, para além dos dados objetivos fornecidos pelos documentos e outras provas constituídas, também pela análise conjugada das declarações e depoimentos, em função das razões de ciência, das certezas e ainda das lacunas, contradições, hesitações, inflexões de voz, (im)parcialidade, serenidade, coerência do raciocínio e de atitude, serenidade e sentido de responsabilidade manifestados, coincidências e inverosimilhanças que, porventura, transpareçam em audiência, das mesmas declarações e depoimentos.
42. Trata-se de um acervo de informação não verbal, rica, imprescindível para a valoração da prova produzida e apreciada segundo as regras da experiência comum e lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica.
43. Por outro lado, não se olvida também que o crime de violência doméstica ocorre no seio familiar, em momentos onde apenas estão presentes agressor e agredido, pelo que a ponderação da prova produzida e que não encontra suporte no depoimento da vítima (por esta ter falecido, não ser encontrada ou até se ter validamente recusado a depor), terá de necessariamente ter de ser efetuada de forma mais rigorosa, o que não sucedeu.
44. Efetivamente, o que releva para a situação dos autos é que, não obstante a versão trazida pelo arguido a julgamento, negando a prática dos factos, foi produzida prova contra o arguido, e não restam dúvidas que os factos 1 a 12 da matéria não provada devem ser dados como provados.
45. Assim, com base nos depoimentos das testemunhas e da prova documental carreada nos autos, conforme supra expendido, deve o arguido ser condenado em conformidade.
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O recurso foi admitido, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito suspensivo.
*
O arguido não apresentou resposta ao recurso.
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Nesta Relação, o Ministério Público emitiu parecer, nos seguintes termos:
“Inconformado com a absolvição do arguido, que vinha acusado de um crime de Violência Doméstica na pessoa da sua mãe, vem o MP apelar ao Tribunal da Relação de Lisboa em busca de melhor justiça.
A digna recorrente alinha vários argumentos em abono da sua tese.
Começa desde logo por identificar uma nulidade na sentença em causa, decorrente do desrespeito do disposto na al. a) do n.º 1 do art.º 379.º CPP, norma que dispõe sobre nulidades da sentença. Em concreto, defende que na sentença em crise a M.ª  Juiz a quo não procedeu ao necessário exame crítico da prova, desguarnecendo a exigência legal expressa no n.º 2 do art.º 374.º CPP. É assim na deficiente fundamentação que a digna recorrente faz ancorar esta sua primeira crítica à sentença, donde resultaria que “não se consegue apreender os motivos e a construção do percurso lógico da decisão segundo as aproximações permitidas razoavelmente as regras da experiência comum”.
De seguida, a digna recorrente espraia a sua argumentação no sentido de que a sentença enferma de erro de julgamento, centrado no conjunto dos factos não provados n.º 1 a 12. Indica assim os concretos pontos de facto que entende mal julgados, as concretas provas que imporiam decisão diversa e a especificação das provas a renovar.
Pede assim a digna recorrente, não sendo reconhecida a alegada nulidade, que seja o arguido condenado pelo crime pelo qual vinha acusado.
O recurso interposto não mereceu resposta do arguido.
A leitura preliminar que se faça da sentença desperta no leitor o desconforto próprio que associamos às coisas que estão mal.
É da fundamentação da sentença em crise que nasce a ideia de um enorme fosso entre aquilo que se produziu e apreendeu no decurso da audiência de discussão e julgamento e aquilo que veio, avaramente, a merecer a chancela de provado no momento de redacção da sentença.
É neste confronto que um evidente desconforto processual evola e se instala.
Não vamos, porém, ao ponto de acompanhar a digna recorrente na afirmação de nulidade da sentença, nos termos em que a mesma é anunciada.
Com efeito, não nos parece que na fundamentação da sentença a M.ª Juiz a quo se tenha limitado a efectuar “Uma descrição parcial do que disseram arguido e as testemunhas” pois que o acervo testemunhal do depoimento das testemunhas, recolhido em resumo (como não podia deixar de ser) na fundamentação, parece-nos ter algum detalhe, por um lado, e, por outro, ser suficiente para identificar um dos chamados erros endógenos da sentença.
Parece-nos assim que não será pela via das nulidades (art.º 379.º CPP) mas antes pela via dos vícios (art.º 410.º CPP) que deve a sentença ser censurada.
Na verdade, cremos poder identificar contradições insanáveis entre a fundamentação da sentença e a decisão que ela acolhe.
É verdade que a vítima do crime, já falecida, não pôde prestar declarações e que não há testemunhas oculares dos factos vertidos na acusação. Aliás, um dos factos (não provados) diz mesmo que era no interior da residência comum que o crime era continuamente perpetrado.
Nada, afinal, que desmereça do perfil de investigação e prossecução de crimes praticados entre quatro paredes, no recato do lar, em que frequentemente a vítima se recusa a depor e vizinhos e familiares nada presenciaram em flagrante.
É nestes complexos casos que se exige uma apurada sensibilidade ao julgador e que saiba calibrar na medida certa a chamada prova indirecta.
O caso, porém, vive também de prova directa.
Na fundamentação, a M.ª Juiz a quo dá por provado que as testemunhas ouviram inequivocamente aquilo que depois vem a dar por não provado.
Assim, os insultos do arguido à sua mãe são confirmados, em diferentes momentos, por diferentes testemunhas, pelo que resulta em contradição insanável reconhecer que as testemunhas ouviram estes maus tratos psíquicos e depois relegar os factos respectivos para o conjunto de factos não provados.
Ademais, e aqui assiste razão à digna recorrente, que censura a pobre justificação da fundamentação, a M.ª Juiz a quo não desvaloriza em tempo algum a credibilidade das testemunhas nem sopesa a sua relevância, limitando-se a afirmar que o arguido negou o crime. Porque não acredita, valoriza ou desvaloriza a sentença em crise os relevantíssimos testemunhos produzidos? Não sabemos, não o diz a sentença.
Igualmente a envergonhada fuga da vítima aos maus tratos do seu filho, pernoitando fora de casa para se eximir à violência que sobre si desabava imperiosamente, beneficia de vários e decisivos testemunhos, pelo que resulta em contradição insanável reconhecer que as testemunhas viram estes maus tratos psíquicos e físicos, e depois arrumar tais factos no sector dos factos não provados.
Ora, vários destes testemunhos situam os factos no hiato temporal que a acusação selecionou para perseguir o arguido, pelo que as referências a actos do arguido anteriores a esse período de tempo, não provando a acusação, confirmam uma predisposição deste e o ambiente propício ao crime.
Aliás, uma vez que a sentença, de forma original, dá como provado o relatório social da DGRSP sobre o arguido e inclui esses factos no conjunto dos factos provados, resulta evidente que o arguido tem o perfil adequado às práticas referidas na acusação, o que sendo prova indirecta, fortalece a convicção de culpabilidade do arguido.
Igualmente o quadro de adicções do arguido confirma o perfil de agressor de violência doméstica que está expresso na sentença em crise.
É igualmente contraditório afirmar, como se faz na fundamentação, que “nenhuma das testemunhas ouvidas presenciaram os factos de que o arguido vem acusado”, o que choca de frente, de forma irreconciliável, com o depoimento das testemunhas BB e EE, aquela em testemunho directo, esta em depoimento confirmativo de todo um quadro de maus tratos em sede de violência doméstica.
Tal afirmação (“nenhuma das testemunhas ouvidas presenciaram os factos de que o arguido vem acusado”) cai em irrenunciável contradição com a própria fundamentação da sentença sindicada, pois que as duas testemunhas que citámos presenciaram os factos de que o arguido vem acusado.
Pois se a sentença o diz…!
Aliás cremos que o tribunal ad quem tem, ao abrigo do art.º 431.º CPP, possibilidade de determinar a modificação da decisão recorrida.
Na segunda parte do seu recurso, a digna recorrente, embora nem sempre identificando os concretos momento de gravação dos depoimentos que selecionou, demonstra o manifesto erro de julgamento em que se deixou cair a M.ª juiz a quo, tudo justificando a procedência do recurso, o que se confia que virá a ser determinado.
Assim, o depoimento da testemunha BB, na verdade mais detalhado do que aquilo que vem expresso na Fundamentação, dá prova cabal de um quadro prolongado de maus tratos, mantido entre portas, com manifesta responsabilidade do arguido. (…)”
*
Foi dado cumprimento ao disposto no art.º 417º, nº 2 do Cód. Proc. Penal, tendo o arguido vindo pugnar pela manutenção da decisão recorrida.
*
Proferido despacho liminar, teve lugar a conferência.
*
2 – Objecto do Recurso
Conforme o previsto no art.º 412º do Cód. Proc. Penal, o âmbito do recurso é definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da motivação do recurso, as quais delimitam as questões a apreciar pelo tribunal ad quem, sem prejuízo das que forem de conhecimento oficioso (cf. neste sentido, Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal”, vol. III, 1994, pág. 320, Simas Santos e Leal-Henriques, in “Recursos Penais”, 9ª ed., 2020, pág. 89 e 113-114, e, entre muitos outros, o acórdão do STJ de 5.12.2007, no Processo nº 3178/07, 3ª Secção, disponível in Sumários do STJ, www.stj.pt, no qual se lê: «O objecto do recurso é definido e balizado pelas conclusões extraídas da respectiva motivação, ou seja, pelas questões que o recorrente entende sujeitar ao conhecimento do tribunal de recurso aquando da apresentação da impugnação - art. 412º, nº 1, do CPP -, sendo que o tribunal superior, tal qual a 1ª instância, só pode conhecer das questões que lhe são submetidas a apreciação pelos sujeitos processuais, ressalvada a possibilidade de apreciação das questões de conhecimento oficioso, razão pela qual nas alegações só devem ser abordadas e, por isso, só assumem relevância, no sentido de que só podem ser atendidas e objecto de apreciação e de decisão, as questões suscitadas nas conclusões da motivação de recurso, (...), a significar que todas as questões incluídas nas alegações que extravasem o objecto do recurso terão de ser consideradas irrelevantes.»)
À luz destes considerandos, são as seguintes as questões que cumprem apreciar:
- Nulidade da sentença recorrida por falta de exame crítico da prova;
- Impugnação da matéria de facto.
*
3- Fundamentação:
3.1. – Fundamentação de Facto
A decisão recorrida considerou provados e não provados os seguintes factos e com a seguinte motivação:
“1 – FACTOS PROVADOS
Resultaram provados os seguintes factos com pertinência para a decisão:
1 – O arguido AA, nascido a ... de ... de 1967, é filho de CC (doravante CC), nascida a ... de ... de 1944 e com esta residente, certamente desde o ano de 2006, na ..., em …;
2 - CC, para além da idade avançada, 78 (setenta e oito) anos, tem dificuldade na locomoção e sofre de demência;
3 – O arguido consome bebidas alcoólicas e produtos estupefacientes em excesso, com uma frequência diária;
4 - O arguido é solteiro mas tem duas filhas de … e … anos de idade que não dependem economicamente dele;
5 – O arguido é … mas faz “biscates” recebendo por dia €50,00 (cinquenta euros) de pagamento;
6 – O arguido tem a ajuda da filha mais velha que trabalha numa …;
7 – O arguido tem a 4ª (quarta) classe de escolaridade;
8 - No relatório social consta que:
“(…) À data das circunstâncias que deram origem ao presente processo judicial, AA vivia com a sua mãe, a ofendida CC em casa que era propriedade desta, e onde o arguido se mantém a viver após a ofendida ter dado entrada num lar de idosos, em data que não conseguimos apurar, e onde veio a falecer recentemente.
Antes fixar residência nesta morada, o arguido vivia com a pessoa com quem estabeleceu uma ligação afetiva aos dezasseis anos de idade, e que veio a terminar quando o arguido tinha 40 anos, e de cuja união nasceram duas filhas, atualmente já adultas.
Após a rutura conjugal o arguido regressou ao agregado nuclear, que já não integrava o progenitor, entretanto falecido. Posteriormente, concretamente no ano de 2015, o arguido encetou um relacionamento de namoro, que terminou em rutura, ao que indica aproximadamente um ano depois, tendo a companheira e uma filha desta também integrado a família de origem do arguido.
À data dos alegados factos, o arguido, que abandonou o sistema de ensino depois de terminar a quarta classe por falta de motivação para os estudos, encontrava-se inativo profissionalmente, ou desenvolvia atividades no ramo da construção civil episodicamente – sector a que se circunscrevem as suas experiências laborais -, e dependia economicamente da mãe/ofendida. CC era beneficiária de uma pensão de reforma e de uma pensão de viuvez, valores que ascendiam aos 900 euros mensais.
No presente, AA refere ser beneficiário do Rendimento Social de Inserção, que ronda mensalmente os 200 euros, subsistindo com dificuldades e beneficiando do apoio económico da filha mais nova, integrada profissionalmente, e que reside com a respetiva progenitora.
No que concerne à adição, AA que iniciou o consumo de estupefacientes aos catorze anos de idade, o que veio a provocar instabilidade nos vários domínios de vida, relata um percurso pautado por recaídas e por períodos de abstinência, atenta às infrutíferas tentativas de tratamento em equipamentos da especialidade.
Refere estar abstinente do consumo de heroína/cocaína há vários anos, corroborado pela descendente, mas mantém hábitos etílicos abusivos, estimando o próprio um consumo de três pacotes de vinho por dia, i.e., três litros, mas desvalorizando que este tenha impacto negativo na sua conduta.
Embora assuma o nervosismo como uma característica pessoal - também mencionada pela sua filha -, não reconhece na sua pessoa uma personalidade agressiva. Em contexto de entrevista, o arguido denotou dificuldades de descentração e de empatia. Nega ter perpetrado quaisquer maus-tratos à ofendida.
Ao nível de como ocupação dos tempos, o arguido refere permanecer em casa ou andar na rua sozinho, dado que se afastou de anteriores convivialidades, porquanto, ao que apurámos, foi assistindo ao falecimento de alguns da sua geração, por problemas associados ao consumo de drogas.
No domínio familiar, alude a contactos com as filhas e a um relacionamento conflituoso com o irmão.
Em relação ao o seu crescimento, como elemento mais velho de uma fratria de dois, cujos progenitores mantinham atividades profissionais estáveis, que permitiram uma situação económica estruturada ao agregado, é descrito pelo arguido tratamento diferenciado do progenitor entre os irmãos, tendo o arguido sido alvo de práticas punitivas físicas severas por parte daquele, especialmente nos períodos em que se encontrava ébrio, maus-tratos dos quais a figura materna nem sempre o conseguia proteger.
O próprio relata ter presenciado ao pai perpetrar agressões à mãe, nas quais ele tentava intervir, o que se constituía como episódios traumáticos. A família residia num meio habitacional contíguo a uma zona conotada com várias problemáticas de exclusão social e criminalidade.
2 – REPERCUSSÕES DA SITUAÇÃO JURÍDICO-PENAL DO ARGUIDO
AA indicou possuir algumas dificuldades em ponderar sobre o impacto da presente situação judicial na sua vida, embora aluda vivenciar vergonha e encontrar-se afetado psicologicamente. De igual modo, de forma funcional, alude ao afastamento da mãe e consequente perda de recursos económicos, encetando um discurso ruminante sobre a eventual herança materna. Mediante informação da PSP rececionada nestes Serviços, AA não aparece associado a nenhuma ocorrência policial após o presente processo judicial.
No ano de 2016 foi constituído arguido pela prática de violência doméstica contra a companheira e absolvido por sentença proferida em 28/02/2018.
3 – CONCLUSÃO
AA terá sido exposto a contextos disfuncionais ao longo do seu crescimento, condições que aparentemente não lhe terão promovido um desenvolvimento pessoal e social estruturado. Muito jovem iniciou um modo de vida adulto no seio da conjugalidade.
Como fator negativo identificamos a sua situação de desemprego e de vulnerabilidade económica, que a longo prazo se irá constituir como promotor da sua exclusão social.
Identificamos, também, o historial aditivo, e embora refira encontrar-se abstinente de estupefacientes no presente, mantém consumos abusivos de bebidas alcoólicas, o que se constituiu como fator negativo em termos inserção social, agravado pela desvalorização do eventual impacto nefasto deste hábito aditivo na sua conduta, onde evidencia marcas de ansiedade.
Neste sentido, em caso de condenação, e caso a sanção recaia numa medida a executar na comunidade, será de ponderar a integração de AA num programa grupal de autocontrolo da agressividade, salientando-se que esta intervenção só será possível executar numa medida não inferior a 24 meses, atendendo à especificidade da intervenção no caso em apreço.
Simultaneamente, será de contemplar o encaminhamento de AA para uma unidade especializada de tratamento ao alcoolismo. (…)”;
9 - O arguido não tem antecedentes criminais.
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2 – FACTOS NÃO PROVADOS
Não se provou que:
1 - Em data não concretamente apurada, mas certamente no mês de Setembro do ano de 2015, no interior da residência comum, o arguido, por motivo não determinado, empurrou CC, fazendo com que a mesma embatesse com a cabeça, em local que não se logrou precisar, provocando-lhe dores e necessitando de assistência hospitalar;
2 - Desde o ano de 2018, com uma frequência diária, o arguido AA, no interior da residência comum, dirigiu a CC, sua mãe, expressões como:
- “Sua puta”;
- “Sua vaca”;
- “Vai dar a cona”;
- “Vai trabalhar”;
- “Andas com todos os homens”;
3 - Em virtude da situação de desemprego do arguido, também desde o ano de 2018, e pelo menos, com uma frequência semanal, o mesmo, no interior da residência comum, dirigiu-se a CC, sua mãe e pediu-lhe dinheiro, em quantias não apuradas, dizendo-lhe: “Se não me deres dinheiro, vou roubar”;
4 - Neste circunstancialismo de modo, tempo e local, o arguido AA, sempre que CC se recusou a entregar-lhe dinheiro, agarrou-a de forma não apurada, fazendo com que a mesma, num tom de voz elevado, audível por todos, proferisse as seguintes palavras: - “Larga-me”, “Deixa-me”;
5 - Por causa das discussões que ocorreram, desde o ano de 2018 até ao dia 5 de Dezembro de 2021, com uma frequência diária, entre o arguido e CC, sua mãe, esta, pelo menos uma vez por mês, ficava a pernoitar nas escadas do prédio;
6 - No dia 13 de Outubro de 2021, no interior da residência comum, o arguido, no decurso de uma discussão com CC, sua mãe, por motivo não determinado, bateu numa porta ali existente, exercendo força, originando a quebra de um vidro;
7 - Ao actuar da forma descrita, o arguido, aproveitando-se da sua superioridade física, quis ofender a saúde da sua mãe, CC, pessoa fragilizada em razão da idade, das dificuldades de locomoção e dos problemas de saúde de que padece, com quem residia, com o propósito de a subjugar à sua vontade, provocando-lhe tristeza e choro permanente;
8 - O arguido, ao comportar-se da forma descrita sabia que molestava no seu corpo, e na sua saúde, CC, sua mãe, e que o fazia no interior da residência comum, o que quis e conseguiu;
9 - De igual forma, ao agir conforme descrito, o arguido quis ofender a sua mãe, CC, na honra, consideração e dignidade, bem como, quis humilhá-la e fazê-la temer pela sua integridade física e mesmo pela sua vida, com o propósito conseguido de lhe causar sofrimento emocional, diminuindo-a como pessoa;
10 - Ao actuar da forma descrita, o arguido, molestando física e psicologicamente CC, faltou ao respeito e consideração devida para com a sua mãe, fazendo-a viver em permanente sobressalto e angustia, bem sabendo que as suas condutas são idóneas a provocar-lhe medo e ansiedade;
11 - O arguido também não desconhecia que, a reiteração do seu comportamento, punha em causa a paz familiar, indispensável ao saudável convívio entre os membros familiares, impedindo-a de se verificar;
12 – O arguido agiu sempre livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por Lei.
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3 – MOTIVAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO
Para formar a convicção do Tribunal, quanto à matéria dada como provada, foram determinantes as declarações do arguido e das testemunhas BB, DD e EE.
O arguido prestou declarações sobre os factos de que vinha acusado dizendo que nunca ofendeu a mãe nem a empurrou contra a parede mas falava alto e ralhava tendo até proibido que vendessem álcool à mãe na mercearia e a mãe também falava alto.
Explicou que consumia heroína e cocaína desde os 14 aos 25 25 anos de idade e consumia bebidas alcoólicas até aos 25 anos de idade, teve assistência médica assim como também explicou que foi a mãe que partiu o vidro e não o que consta do artigo 9º da acusação e que o que consta de 2º da acusação é verdade e a mãe bebia e dormia em qualquer sítio tendo sido operada duas vezes à cabeça necessitava de medicação mas não ia ao médico e não fazia medicação, era ele que, vivia com a mãe e fazia o comer para os dois tendo um irmão que não ia visitar a mãe e que uma vez a mãe foi visitar a irmã ao prédio perto daquele onde viviam e adormeceu sendo uma vizinha que a levou a casa.
Mais explicou a sua situação familiar e económica.
A primeira testemunha BB explicou que é vizinha da mãe do arguido e ouvia o arguido por vezes gritar e que ouvia que discutiam os dois arguido e mãe e por vezes a mãe pedia socorro mas ião à porta e a senhora dizia que não era nada assim como explicou que ouviu o arguido dizer “puta e porca” à mãe mas não pedir dinheiro, sabe que viviam da reforma dela e ele às vezes trabalhava em pequenos trabalhos com empreiteiros “uma semana aqui, uma semana ali”, assim como disse que encontrou a mãe várias vezes na escada porque dizia que tinha medo de bater à porta, de ir para casa e por vezes chegou a dormir na casa desta testemunha, diz que não sabe se tinham hábitos alcoólicos, nem sempre havia discussões mas quando haviam eram acessas, às vezes aparecia a senhora com nodoas negras nos braços mas dizia que era um problema de saúde, diz que a senhora era uma pessoa alegre mas ultimamente estava debilitada e antes de ir para o lar caiu na rua.
Disse ainda a testemunha que a senhora era pessoa alegre, não andava chorosa.
A testemunha DD explicou que é cunhada do arguido tendo vivido com a sogra até 2005 – também lá vivia o arguido – ouvia muitos gritos com o arguido queria dinheiro e a mãe às vezes não tinha.
Disse que teve cinco anos sem falar com a sogra sabendo que ela em setembro foi operada à cabeça e foi cinco meses para a casa desta testemunha e em Dezembro, há sete anos, esta testemunha foi operada à coluna e a sogra passou o Natal com esta testemunha mas depois foi para casa dela e há dois anos a sogra sentiu-se mal no supermercado foi para o hospital tendo esta testemunha ido vê-la e viu-a muito magra e ela não reconheceu esta testemunha tendo pedido à assistente para a senhora ir para o lar.
Explicou que a sogra encobria muita coisa e uma vez que foi operada à cabeça disse que o arguido a empurrou mas esta testemunha diz que presenciou discussões com “nomes” do filho à mãe de porca, ladra quando estava lá em casa – ouviu muitas vezes assim como disse que de vez em quando o arguido fazia biscates dizendo que estando ela na família há 28 anos se ele trabalhou um mês é muito e a sogra bebia um copo à refeição como qualquer pessoa mas o arguido bebia com regularidade e notava-se porque ficava muito agressivo com a mãe a quem pedia dinheiro e por sua vez a mãe pedia a esta testemunha e aos vizinhos para dar ao arguido – ela dava-lhe dinheiro e ele saia porta fora.
Mais disse a testemunha que viu a sogra com marcas e perguntou-lhe e muito antes de 2006 viu-a toda negra quando foi ao hospital – viu-a com marcas no braço sendo marcas de dedos no braço assim como disse que a sogra antes de ir para o lar estava com demência e era uma pessoa muito triste mas deixou-a bem quando saiu da casa desta testemunha tendo depois a visto muito magra, com expressão muito triste, irreconhecível, não tinha força para atirar bancos contra porta, a sogra não lhe disse que pernoitou na escada mas explicou que recebeu chamada da ex-mulher do arguido que a sogra estava a dormir nas paragens e uma polícia levou-a para casa mas a sogra não queria sair da casa dela.
A testemunha EE explicou que no exercício da sua actividade profissional de Agente da PSP em Outubro de 2021 foi a casa da mãe do arguido e com um colega foi lá antes dessa vez mas o comportamento da senhora foi bastante apreensivo, não a deixou entrar dentro de casa, saiu de casa e falou nas escadas com esta testemunha porque estava lá dentro o arguido e antes uma vez viu marcas nos braços mas a senhora dizia que tinha ido contra armário/escadas e no dia 15 de Outubro de 2021 foi lá de novo falar com a senhora que disse que o arguido estava chateado porque estava desempregado, sem dinheiro, pedia-lhe dinheiro, não disse que era agredida mas quando desceu os vizinhos disseram-lhe estar preocupados por situação mais violenta com quebra de vidro mas esta testemunha não viu o vidro e a mãe do arguido disse-lhe que empurrou a porta e por força o vidro partiu-se, lamentava a situação, tinha pena do filho e protegia-o principalmente por ele não ter meio de subsistência.
Explicou a testemunha que foi lá com assistente social para dar tarefa para o arguido para ter dinheiro tendo a senhora lhe dito que tinha acordo com o merceeiro debaixo de dar cigarros avulsos ao filho para ela ter paz assim como ainda explicou a testemunha que a senhora pareceu-lhe triste e procurava proteger a situação, mentindo-lhe, não disse que dormia nas escadas e quem disse foram os vizinhos bem como ainda explicou que falou com o arguido quando foi lá com a assistente vendo-o receptivo mas não avançou e não se recorda de ver a senhora alcoolizada nem teve suspeita mas viu o arguido alcoolizado.
Na audiência de julgamento, o arguido negou a pratica dos factos de que vinha acusado tendo dito de forma que pareceu sincera que nunca ofendeu a mãe nem a empurrou enquanto que nenhuma das testemunhas ouvidas presenciaram os factos de que o arguido vem acusado tendo a Agente da P.S.P. ido a casa da mãe do arguido mas a senhora não a deixou entrar em casa falando com ela fora de casa e nada disse que o arguido lhe tenha dito ou feito nomeadamente não falou de agressões do arguido e deu explicação para as marcas que a testemunha lhe viu nos braços assim como para a queda do vidro de que falaram os vizinhos com esta agente de autoridade.
A testemunha DD que é cunhada do arguido tendo vivido com a sogra até 2005 altura em que também lá vivia o arguido explicou que ouvia o arguido pedir dinheiro à mãe e esta até chegou a pedir dinheiro a esta testemunha para dar ao arguido assim como disse que quando viveu com a sogra presenciou discussões com “nomes” do arguido à mãe mas disse que não via a sogra há anos e não ia a casa dela pelo que não presenciou os factos de que o arguido vem acusado assim como a outra testemunha BB que é vizinha da mãe do arguido disse que ouvia o arguido por vezes gritar, ouvia discussões arguido e mãe e por vezes a mãe pedia socorro mas quando a testemunha e outras pessoas ião à porta a senhora dizia-lhes que não era nada assim como disse que ouviu o arguido dizer “puta e porca” à mãe mas não pedir dinheiro, mas não sabe dizer quando ouviu tal assim como tendo dito que às vezes a mãe do arguido com nódoas negras nos braços mas dizia que era um problema de saúde pelo que ponderando todas as declarações das testemunhas o Tribunal não ficou com a certeza de que o arguido praticou os factos de que vinha acusado e o arguido negou a pratica desses factos.
Foram ainda tidos em consideração os documentos de fls. 2 a 6 (auto de notícia), 14 a 15, 23 a 24 (assento de nascimento), ao relatório social e ao certificado de Registo Criminal do arguido quanto aos seus antecedentes criminais.
Quanto aos factos não provados tal deve-se à ausência de prova.”
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3.2.- Mérito do recurso
Quanto ao conhecimento dos fundamentos do recurso interposto nestes autos, importa seguir uma sequência lógica, começando pelos fundamentos que importam a nulidade da decisão recorrida, invocados ou de conhecimento oficioso, seguindo-se depois a apreciação das demais questões invocadas pelo recorrente.
A) Nulidade da sentença recorrida por falta de exame crítico da prova
Alega o Ministério Público, a este respeito que a prova produzida não foi submetida a exame crítico, o que gera a nulidade da decisão, nos termos conjugados dos arts.º 379º, nº 1, al. a) e 374º, nº 2 ambos do Cód. Proc. Penal.
Quanto aos requisitos da sentença, dispõe o art.º 374º, nºs 1 e 2 do Cód. Proc. Penal o seguinte:
“1 - A sentença começa por um relatório, que contém:
a. As indicações tendentes à identificação do arguido;
b. As indicações tendentes à identificação do assistente e das partes civis;
c. A indicação do crime ou dos crimes imputados ao arguido, segundo a acusação, ou pronúncia, se a tiver havido;
d. A indicação sumária das conclusões contidas na contestação, se tiver sido apresentada.
2 - Ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal. (…)”
A fundamentação da sentença penal é, assim, composta por dois grandes segmentos:
- Um, que consiste na enumeração dos factos provados e não provados;
- Outro, que consiste na exposição, concisa, mas completa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que contribuíram para a formação da convicção do tribunal.
O dever de fundamentação das decisões judiciais é hoje um imperativo constitucional, previsto no art.º 205º, nº 1 da CRP, onde se estabelece que as decisões dos Tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei.
O dever de fundamentação encontra-se igualmente consagrado no art.º 97º, nº 5 do Cód. Proc. Penal, onde se prevê que os actos decisórios são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão.
A exigência de fundamentação das sentenças constitui um elemento essencial do Estado de Direito Democrático.
Como refere Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal”, III, 2ª edição, pág. 294, a fundamentação é imposta pelos sistemas democráticos com várias finalidades: “Permite a sindicância da legalidade do acto, por uma parte, e serve para convencer os interessados e os cidadãos em geral acerca da sua correcção e justiça, por outra parte, mas é ainda um importante meio para obrigar a autoridade decisora a ponderar os motivos de facto e de direito da sua decisão, actuando por isso como meio de autodisciplina”.
A fundamentação constitui, por conseguinte, um factor de transparência da justiça, explicitando, de forma que se pretende clara, os processos intelectuais que conduziram à decisão e permitindo, consequentemente, uma maior fiscalização das decisões judiciais por parte da comunidade.
A fundamentação deve revelar as razões da bondade da decisão, permitindo que ela se imponha dentro e fora do processo, sendo uma exigência da sua total transparência, já que através dela se faculta aos respectivos destinatários e à comunidade, a compreensão dos juízos de valor e de apreciação levados a cabo pelo julgador.
É também através da fundamentação da sentença que é viabilizado o controlo da actividade decisória pelo Tribunal de recurso designadamente, no que respeita à validade da prova, à sua valoração e à impugnação da matéria de facto.
Segundo o art.º 379º, nº 1, alíneas a) e c) do mesmo diploma, é nula a sentença penal quando não contenha as menções previstas no nº 2 e na alínea b) do nº 3 do art.º 374º ou quando o Tribunal deixe de se pronunciar sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.
Quanto ao conteúdo do dever de fundamentação da sentença ou do acórdão, escreveu-se no Ac. RL de 18/01/2011, proferido no processo nº 1670/07.4TAFUN-A.L1-5, em que foi relator Vasques Osório, in www.dgsi.pt, em moldes que subscrevemos:
“A enumeração dos factos provados e dos factos não provados, mais não é do que a narração de forma metódica, dos factos que resultaram provados e dos factos que não resultaram provados, com referência aos que constavam da acusação ou da pronúncia, da contestação, e do pedido de indemnização, e ainda dos factos provados que, com relevo para a decisão, e não constando de nenhuma daquelas peças processuais, resultaram da discussão da causa. É esta enumeração de factos que permite concluir se o tribunal conheceu ou não, de todas as questões de facto que constituíam o objecto do processo.
A exposição dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão deve ser completa mas tem que ser concisa, contendo e enunciação das provas que serviram para fundar a convicção alcançada pelo tribunal – o que não exige, relativamente à prova por declarações, a realização de assentadas tendo por objecto os depoimentos produzidos em audiência – bem como a análise crítica de tais provas. Esta análise crítica deve consistir na explicitação do processo de formação da convicção do julgador, concretizada na indicação das razões pelas quais, e em que medida, determinado meio de prova ou determinados meios de prova, foram valorados num certo sentido e outros não o foram ou seja, a explicação dos motivos que levaram o tribunal a considerar certos meios de prova como idóneos e/ou credíveis e a considerar outros meios de prova como inidóneos e/ou não credíveis, e ainda na exposição e explicação dos critérios, lógicos e racionais, utilizados na apreciação efectuada.”
Os motivos de facto que fundamentam a decisão não são nem os factos provados, nem os meios de prova, mas os elementos que em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos constituem o substrato racional que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse em determinado sentido ou valorasse de determinada forma os diversos meios de prova apresentados em audiência ( neste sentido cf. , por exemplo, o Ac. RP de 15/07/2009, proferido no Processo nº 1090/04.2JAPRT.P1, in www.dgsi.pt ).
Ora, não dizendo a lei em que consiste o exame crítico das provas, esse exame tem de ser aferido com critérios de razoabilidade, sendo fundamental que permita avaliar cabalmente o porquê da decisão e o processo lógico-formal que serviu de suporte ao respectivo conteúdo (cfr. Acs. STJ de 12.04.2000, Proc. 141/2000, in SASTJ nº 40, 48, de 11.10.2000, Proc. 2253/2000 – 3ª, in SASTJ nº 44, 70, de 26.10.2000, Proc. 2528/2000 – 5ª, SASTJ nº 44, 91 e de 07.02.2001, Proc. 3998/00 – 3ª, SASTJ nº 48, 50).
O exame crítico da prova tem como objecto apenas e tão só, os factos essenciais para a qualificação jurídico-criminal do ilícito, para a definição do seu circunstancialismo relevante e para a determinação da responsabilidade do agente (cfr. Ac. STJ de 26/10/2000, no Proc. nº 2528/2000 – 5ª, SASTJ nº 44, 91).
Colhemos no Acórdão do TRC datado de 11/03/09, proferido no processo nº 4/05.7TAACN.C1, em que foi relator Jorge Gonçalves, in www.dgsi.pt, a seguinte definição de exame crítico da prova: “O exame crítico consiste na enunciação das razões de ciência reveladas ou extraídas das provas administradas, a razão de determinada opção relevante por um ou outro dos meios de prova, os motivos de credibilidade dos depoimentos, o valor de documentos e exames, que o tribunal privilegiou na formação da convicção, em ordem a que os destinatários (e um homem médio suposto pela ordem jurídica, exterior ao processo, com a experiência razoável da vida e das coisas) fiquem cientes da lógica do raciocínio seguido pelo tribunal e das razões da sua convicção.”
Porém, a fundamentação da sentença ou do acórdão, na parte que respeita à indicação e exame crítico das provas, não tem de ser uma espécie de “assentada” em que o Tribunal reproduza os depoimentos das testemunhas ouvidas, ainda que de forma sintética, sob pena de se violar o princípio da oralidade que rege o julgamento (cfr. Ac. STJ de 7/02/2001, no Proc. nº 3998/00 – 3ª, SASTJ nº 48, 50).
Como se refere, de forma clara, no Ac. do STJ de 30/01/02, proferido no processo nº 3063/01 – 3ª, SASTJ nº 57, 69: “A disposição do artigo 374º-2 do CPP sobre o exame crítico das provas não obriga os julgadores a uma escalpelização de todas as provas que foram produzidas e, muito menos, a uma reprodução do tipo gravação magnetofónica dos depoimentos prestados na audiência, o que levaria a uma tarefa incomportável com sadias regras de trabalho e eficiência, e ao risco de falta de controlo pelos intervenientes processuais da transposição feita para o acórdão. A partir da indicação e exame das provas que serviram para formar a convicção do tribunal, este enuncia as razões de ciência extraídas destas, o porquê da opção por uma e não por outra das versões apresentadas, se as houver, os motivos da credibilidade em depoimentos, documentos ou exames que privilegiou na sua convicção, em ordem a que um leitor atento e minimamente experimentado fique ciente da lógica do raciocínio seguido pelo tribunal e das razões da sua convicção”.
Esse exame crítico das provas corresponde, no fundo, à indicação dos motivos que determinaram a que o Tribunal formasse a convicção probatória num determinado sentido, aceitando um e afastando outro, e porque é que certas provas são mais credíveis do que outras, servindo de substracto lógico-racional da decisão (neste sentido, Ac. STJ de 17/03/2004, proferido no processo nº 4026/03 – 3ª).
Ora, analisando a fundamentação de facto da decisão recorrida, verifica-se que da mesma consta uma súmula do que o arguido e as testemunhas disseram, tendo a Juiz a quo optado pela versão dos factos apresentada pelo arguido, mas sem explicar porquê.
Quanto aos factos não provados, que são os que constavam da acusação pública, relativamente à responsabilização criminal do arguido pela prática do crime de violência doméstica na pessoa da sua mãe, apenas é referido na decisão recorrida que: “Quanto aos factos não provados tal deve-se à ausência de prova.”
Atenta a relevância jurídico-penal destes factos, impunha-se que a Juiz a quo tivesse concretizado e justificado porque é que não os considerou provados, não bastando, para tanto, a descrição anterior do que as testemunhas e o arguido disseram.
Mas mesmo relativamente aos factos provados, não é explicado porque é que se acreditou mais no arguido, em detrimento das restantes testemunhas, apenas se referindo que: “ (…)Na audiência de julgamento, o arguido negou a pratica dos factos de que vinha acusado tendo dito de forma que pareceu sincera que nunca ofendeu a mãe nem a empurrou enquanto que nenhuma das testemunhas ouvidas presenciaram os factos de que o arguido vem acusado (…) ponderando todas as declarações das testemunhas o Tribunal não ficou com a certeza de que o arguido praticou os factos de que vinha acusado e o arguido negou a pratica desses factos.(…)”
Ora, dizer isto não é fazer o exame crítico da prova, pois a indicação dos elementos de prova, testemunhais e documentais, a que se recorreu e a súmula das declarações do arguido e das testemunhas não permitem por si só avaliar e sindicar o processo de formação da convicção do julgador e o entendimento a que o Tribunal a quo chegou quanto aos factos provados e não provados.
Na verdade, o art.º 374º, nº 2 do Cód. Proc. Penal não exige que se autonomize e se escalpelize a razão de decidir sobre cada facto, nem exige que em relação a cada meio de prova se descreva a dinâmica da sua produção em audiência, sob pena de se transformar o acto de decidir numa tarefa impossível.
No entanto, a decisão recorrida tem que fazer referência a todos os documentos e depoimentos que considerou pertinentes para o apuramento dos factos provados, articular todos os elementos de prova e explicar em que medida é que o Tribunal lhes conferiu, ou não, credibilidade e porquê.
Não basta, por conseguinte, indicar os meios de prova utilizados, tornando-se necessário explicitar o processo de formação da convicção do Tribunal, a partir desses meios de prova, com apelo às regras de experiência e aos critérios lógicos e racionais que conduziram a que a convicção do Tribunal se formasse em determinado sentido.
Só assim será possível comprovar se foi seguido um processo lógico e racional na apreciação da prova ou se esta se fundou num subjectivismo que abre as portas ao arbítrio.
No caso dos autos, verifica-se que a decisão recorrida não só não individualizou os elementos de prova relevantes para a formação da convicção, como não os analisou e relacionou entre si, nem explicou de uma forma lógica, racional e completa o processo de apuramento dos factos, explicação essa que, relacionada com as regras da experiência comum, permitiria sindicar a formação da convicção do julgador.
Impõe-se, pois, concluir que a decisão recorrida não se acha suficientemente fundamentada, porquanto não foi feito o exame crítico da prova, padecendo a mesma de nulidade, conforme invocado pelo Ministério Público.
B) Vício de contradição insanável entre os factos não provados e a fundamentação
Alega o Ministério Público junto deste Tribunal da Relação que a sentença recorrida padece do vício de contradição insanável entre os factos não provados e a motivação da matéria de facto, nos termos previstos no art.º 410º, nº 2, alínea b) do Cód. Proc. Penal.
Quanto a esta questão, estabelece o art.º 410º, nº 2 do Cód. Proc. Penal que, mesmo nos casos em que a lei restringe a cognição do Tribunal a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:
a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;
c) O erro notório na apreciação da prova.
Tratam-se de vícios da decisão sobre a matéria de facto que são vícios da própria decisão, como peça autónoma, e não vícios de julgamento, que não se confundem nem com o erro na aplicação do direito aos factos, nem com a errada apreciação e valoração das provas ou a insuficiência destas para a decisão de facto proferida.
Estes vícios são também de conhecimento oficioso, pois têm a ver com a perfeição formal da decisão da matéria de facto e decorrem do próprio texto da decisão recorrida, por si só considerado ou em conjugação com as regras da experiência comum, sem possibilidade de recurso a outros elementos que lhe sejam estranhos, mesmo constantes do processo (cfr., neste sentido, Maia Gonçalves, in “Código de Processo Penal Anotado”, 16ª ed., pág. 873; Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal”, Vol. III, 2ª ed., pág. 339; Simas Santos e Leal-Henriques, in “Recursos em Processo Penal”, 6ª ed., 2007, pág. 77 e seg.; Maria João Antunes, RPCC, Janeiro-Março de 1994, pág. 121).
Quanto à contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, prevista no artigo 410º, nº 2, alínea b) do Cód. Proc. Penal, a mesma consiste na incompatibilidade, insusceptível de ser ultrapassada através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação e a decisão.
Ocorrerá, por exemplo, quando um mesmo facto com interesse para a decisão da causa seja julgado como provado e não provado, ou quando se considerem como provados factos incompatíveis entre si, de modo a que apenas um deles pode persistir, ou quando for de concluir que a fundamentação da convicção conduz a uma decisão sobre a matéria de facto provada e não provada contrária àquela que foi tomada, porquanto todos os vícios elencados neste artigo se reportam à decisão de facto e consubstanciam anomalias decisórias, ao nível da elaboração da sentença, circunscritas à matéria de facto (cfr., neste sentido, Simas Santos e Leal-Henriques, in “Recursos em Processo Penal”, 6ª ed., 2007, págs. 71 a 73).
Especificamente quanto ao vício da contradição insanável, decidiu o STJ, no acórdão de 12/03/2015, proferido no processo nº 418/11.3GAACB.C1.S1 - 3.ª Secção, que: «[o] vício da contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão verifica-se quando no texto da decisão constem posições antagónicas ou inconciliáveis, que se excluam mutuamente ou não possam ser compreendidas simultaneamente dentro da perspetiva de lógica interna da decisão, tanto na coordenação possível dos factos e respetivas consequências, como nos pressupostos de uma solução de direito».
Pode, assim, afirmar-se que há contradição insanável da fundamentação quando, através de um raciocínio lógico, se conclua pela existência de oposição insanável entre os factos provados, entre estes e os não provados, ou até entre a fundamentação probatória da matéria de facto.
A contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, por sua vez, ocorrerá quando, também através de um raciocínio lógico, se conclua pela existência de oposição insanável entre os meios de prova invocados na fundamentação como base dos factos provados ou entre a fundamentação e o dispositivo da decisão.
Ainda nas palavras de Simas Santos e Leal Henriques, in “Código de Processo Penal Anotado”, II volume, 2ª Edição, 2000, editora Rei dos Livros, Lisboa, pág. 379: «por contradição, entende-se o facto de afirmar e de negar ao mesmo tempo uma coisa ou a emissão de duas proposições contraditórias que não possam ser simultaneamente verdadeiras e falsas, entendendo-se como proposições contraditórias as que tendo o mesmo sujeito e o mesmo atributo diferem na quantidade e qualidade. Para os fins do preceito (al. b) do n.º 2) constitui contradição apenas e tão só aquela que, expressamente se postula, se apresente como insanável, irredutível, que não possa ser integrada com recurso à decisão recorrida no seu todo, por si só ou com auxílio das regras da experiência.»
Voltando à decisão recorrida, consta dos factos não provados que:
“(…) 1 - Em data não concretamente apurada, mas certamente no mês de Setembro do ano de 2015, no interior da residência comum, o arguido, por motivo não determinado, empurrou CC, fazendo com que a mesma embatesse com a cabeça, em local que não se logrou precisar, provocando-lhe dores e necessitando de assistência hospitalar;
2 - Desde o ano de 2018, com uma frequência diária, o arguido AA, no interior da residência comum, dirigiu a CC, sua mãe, expressões como:
- “Sua puta”;
- “Sua vaca”;
- “Vai dar a cona”;
- “Vai trabalhar”;
- “Andas com todos os homens”;
3 - Em virtude da situação de desemprego do arguido, também desde o ano de 2018, e pelo menos, com uma frequência semanal, o mesmo, no interior da residência comum, dirigiu-se a CC, sua mãe e pediu-lhe dinheiro, em quantias não apuradas, dizendo-lhe: “Se não me deres dinheiro, vou roubar”;
4 - Neste circunstancialismo de modo, tempo e local, o arguido AA, sempre que CC se recusou a entregar-lhe dinheiro, agarrou-a de forma não apurada, fazendo com que a mesma, num tom de voz elevado, audível por todos, proferisse as seguintes palavras: - “Larga-me”, “Deixa-me”;
5 - Por causa das discussões que ocorreram, desde o ano de 2018 até ao dia 5 de Dezembro de 2021, com uma frequência diária, entre o arguido e CC, sua mãe, esta, pelo menos uma vez por mês, ficava a pernoitar nas escadas do prédio;
6 - No dia 13 de Outubro de 2021, no interior da residência comum, o arguido, no decurso de uma discussão com CC, sua mãe, por motivo não determinado, bateu numa porta ali existente, exercendo força, originando a quebra de um vidro;
7 - Ao actuar da forma descrita, o arguido, aproveitando-se da sua superioridade física, quis ofender a saúde da sua mãe, CC, pessoa fragilizada em razão da idade, das dificuldades de locomoção e dos problemas de saúde de que padece, com quem residia, com o propósito de a subjugar à sua vontade, provocando-lhe tristeza e choro permanente;
8 - O arguido, ao comportar-se da forma descrita sabia que molestava no seu corpo, e na sua saúde, CC, sua mãe, e que o fazia no interior da residência comum, o que quis e conseguiu;
9 - De igual forma, ao agir conforme descrito, o arguido quis ofender a sua mãe, CC, na honra, consideração e dignidade, bem como, quis humilhá-la e fazê-la temer pela sua integridade física e mesmo pela sua vida, com o propósito conseguido de lhe causar sofrimento emocional, diminuindo-a como pessoa;
10 - Ao actuar da forma descrita, o arguido, molestando física e psicologicamente CC, faltou ao respeito e consideração devida para com a sua mãe, fazendo-a viver em permanente sobressalto e angustia, bem sabendo que as suas condutas são idóneas a provocar-lhe medo e ansiedade;(…)”
No entanto, analisada a motivação da matéria de facto da sentença recorrida, constata-se que consta da mesma o seguinte:
“(…)A primeira testemunha BB explicou que é vizinha da mãe do arguido e ouvia o arguido por vezes gritar e que ouvia que discutiam os dois arguido e mãe e por vezes a mãe pedia socorro mas ião à porta e a senhora dizia que não era nada assim como explicou que ouviu o arguido dizer “puta e porca” à mãe (…) disse que encontrou a mãe várias vezes na escada porque dizia que tinha medo de bater à porta, de ir para casa e por vezes chegou a dormir na casa desta testemunha, diz que não sabe se tinham hábitos alcoólicos, nem sempre havia discussões mas quando haviam eram acessas, às vezes aparecia a senhora com nodoas negras nos braços mas dizia que era um problema de saúde, (…)
A testemunha DD explicou que é cunhada do arguido tendo vivido com a sogra até 2005 – também lá vivia o arguido – ouvia muitos gritos com o arguido queria dinheiro e a mãe às vezes não tinha. (…) esta testemunha diz que presenciou discussões com “nomes” do filho à mãe de porca, ladra quando estava lá em casa (…) ficava muito agressivo com a mãe a quem pedia dinheiro e por sua vez a mãe pedia a esta testemunha e aos vizinhos para dar ao arguido – ela dava-lhe dinheiro e ele saia porta fora.
Mais disse a testemunha que viu a sogra com marcas e perguntou-lhe e muito antes de 2006 viu-a toda negra quando foi ao hospital – viu-a com marcas no braço sendo marcas de dedos no braço (…)
A testemunha EE explicou que no exercício da sua actividade profissional de Agente da PSP em Outubro de 2021 foi a casa da mãe do arguido (…) viu marcas nos braços mas a senhora dizia que tinha ido contra armário/escadas (…) os vizinhos disseram-lhe estar preocupados por situação mais violenta com quebra de vidro (…) A testemunha DD que é cunhada do arguido tendo vivido com a sogra até 2005 altura em que também lá vivia o arguido explicou que ouvia o arguido pedir dinheiro à mãe e esta até chegou a pedir dinheiro a esta testemunha para dar ao arguido assim como disse que quando viveu com a sogra presenciou discussões com “nomes” do arguido à mãe mas disse que não via a sogra há anos e não ia a casa dela pelo que não presenciou os factos de que o arguido vem acusado assim como a outra testemunha BB que é vizinha da mãe do arguido disse que ouvia o arguido por vezes gritar, ouvia discussões arguido e mãe e por vezes a mãe pedia socorro mas quando a testemunha e outras pessoas ião à porta a senhora dizia-lhes que não era nada assim como disse que ouviu o arguido dizer “puta e porca” à mãe (…)” (sublinhados nossos)
Ora, destes segmentos da decisão recorrida, quando confrontados com os factos não provados, facilmente se retira que existe efectivamente contradição entre os factos não provados e a motivação da matéria de facto, assim como também existe contradição em vários segmentos desta última, pois se refere que as testemunhas disseram que ouviram discussões entre o arguido e a mãe, que ouviram o arguido chamar à mãe puta, porca e ladra, que ouviram o arguido pedir dinheiro à mãe, que viram a mãe do arguido com marcas de agressões nos braços, que viram a mãe do arguido a dormir fora de casa, por ter medo de voltar para casa, e depois dão-se como não provados os factos que fundamentam a responsabilidade criminal do arguido pela prática do crime de violência doméstica de que vinha acusado, com o argumento de que o arguido negou a sua prática e nenhuma das testemunhas inquiridas os presenciou.
No entanto, não se explica na decisão recorrida porque é que não se deu relevância ao depoimento das testemunhas que afinal até assistiram a parte dos factos, nem porque é que estes depoimentos não mereceram credibilidade.
Os referidos segmentos da decisão recorrida encerram uma contradição nos seus termos, contradição esta que é efectivamente insanável, pois não permite concluir, com um juízo de certeza, se o arguido praticou ou não os factos de que vinha acusado.
Impõe-se, assim, concluir que a decisão recorrida enferma do vício de contradição insanável previsto no art.º 410º, nº 2, alínea b) do Cód. Proc. Penal, o que determina o reenvio dos autos para novo julgamento, relativo a todos os factos objecto do processo, nos termos previstos nos arts.º 426º, nº 1 e 426º-A do mesmo diploma, ficando prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas no recurso.
Deverá, pois, a primeira instância determinar a produção de prova necessária e adequada para sanar a referida contradição e, após, proferir nova decisão, com base no conjunto dos factos que vierem a provar-se.
*
4. Decisão:
Pelo exposto, acordam as Juízes que integram esta 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar procedente o recurso e, em consequência:
- declaram nula a sentença recorrida, por falta de exame crítico da prova;
- julgam verificado na sentença recorrida o vício de contradição insanável entre todos os factos não provados e a fundamentação da matéria de facto provada;
- determinam o reenvio do processo para novo julgamento relativamente a toda a matéria de facto provada e não provada descrita na decisão recorrida, a realizar por um Tribunal diferente.
Sem custas.
Lisboa, 23 de Abril de 2024
(texto elaborado em suporte informático e integralmente revisto pela relatora)
Carla Francisco
Relatora
Maria José Machado (Voto de vencida)
Luísa Oliveira Alvoeiro

Voto de vencida
“Votei vencida quanto à parte da decisão que formou maioria relativamente a existir na sentença recorrida o vício da contradição insanável entre a fundamentação e a decisão previsto na alínea b) do n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal.
Sendo a sentença nula por absoluta falta de exame crítico da prova e por isso não se alcançar o raciocínio que foi feito pelo tribunal recorrido na valoração que fez das provas, nem nada se dizendo sobre a razão de ser dos factos não provados, a não ser que os mesmos se devem à “ausência de prova”, não é possível afirmar-se que existe uma contradição, muito menos insanável, entre os factos não provados e a fundamentação, que é inexistente.
Para dizermos que existe o vício temos de admitir, então, que existe alguma fundamentação e, a meu ver, ela não existe de todo quanto aos factos não provados.
O que se constata no texto da decisão recorrida é apenas uma contradição entre o que se escreve quanto ao que foi dito por algumas testemunhas e o que se dá como não provado, mas não sabemos se tal se traduz numa contradição insanável uma vez que não sabemos quais as razões que levaram o tribunal a não considerar o que terá sido dito pelas testemunhas, visto inexistir fundamentação da convicção do tribunal quanto aos factos.
O juízo sobre a valoração da prova tem diferentes níveis, sendo o primeiro o da credibilidade que mereceu ao tribunal os meios de prova apresentados, que deve ser exposto na fundamentação, e esse juízo pura e simplesmente não existe. Sem fundamentação não pode dizer-se que há contradição desta com aquilo que é dado como provado ou não provado.
Através da fundamentação pode o juiz explicar porque considerou não provados os factos não obstante haver uma testemunha ou duas que, segundo a descrição do que foi dito por tais testemunhas, terão ouvido discussões entre o arguido e a sua mãe, aquele a chamar “porca” e “puta” à mãe e terem visto esta com nódoas negras. Depende da credibilidade que foi conferida ao depoimento das testemunhas e das razões para a não valoração do que as mesmas disseram na relação de imediação entre o tribunal e os meios de prova produzidos em audiência. E é essa explicação que falta.
Não sabemos se a nova sentença a elaborar pelo tribunal recorrido poderá ou não dar uma explicação cabal para aquilo que a meu ver é apenas uma aparente contradição.
Ainda que se possa antever que possa ter havido erro de julgamento e a decisão quanto à nulidade possa levar a que o processo, depois de elaborada nova sentença, volte com novo recurso, dessa vez quanto ao julgamento, entendo que neste momento não podemos ir para além da nulidade da sentença. Só depois de sabermos das razões que levaram o tribunal a dar como não provados os factos com base na valoração crítica da prova produzida é que podemos dizer se existe uma contradição insanável entre aquela que for, então, a fundamentação e os factos não provados em causa.
Ao considerarmos que a sentença é nula por falta de fundamentação e depois dizermos que existe uma contradição entre a fundamentação e os factos não provados, o acórdão da Relação tem em si mesmo uma contradição.”
Maria José Machado