Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
355/24.1T8PDL.L1-1
Relator: ISABEL FONSECA
Descritores: PEAP
INDEFERIMENTO LIMINAR
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
INSOLVÊNCIA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/07/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: : IMPROCEDENTE
Sumário: 1. A tramitação subsequente à apresentação da petição inicial do processo especial para acordo de pagamento (PEAP) passa por uma “apreciação liminar”, dispondo o art. 27.º, nº1, alínea a) do CIRE, preceito que rege o processo de insolvência e é aplicável, com as necessárias adaptações, ao PEAP (art. 222.º-A, n.º 3 do CIRE), sobre os casos em que o juiz deve indeferir liminarmente a petição inicial.
2. Decorre do preceito (art. 27.º, n.º1, alínea a) do CIRE) que os fundamentos do indeferimento liminar da petição se podem reconduzir, à semelhança do que acontece no processo civil, a vícios de forma, usualmente atinentes a requisitos de ordem processual, mormente à verificação de exceções dilatórias insanáveis e a vícios de conteúdo (vícios de fundo) que se prendem com a concatenação que é suposto existir entre a pretensão formulada e a fundamentação de facto e de direito que a suporta.
3. Em ambas as hipóteses estamos, como expressamente consta do preceito, perante um critério normativo de evidência, sendo esse o comando que o legislador dá ao aplicador, daí que o despacho deva ser proferido em face da simples inspeção da petição inicial; por essa razão consideramos que, em princípio, e sem prejuízo da adoção de outras soluções se tal se justificar em casos com especial e diferente enquadramento daquele que se nos depara, a prolação dessa decisão não exige a prévia convocação do destinatário, requerente do processo, para se pronunciar, por desnecessidade (art. 3.º, n.º 3 do CPC).
4. A petição inicial em que o devedor se apresentar a PEAP deve ser objeto de despacho de indeferimento liminar por manifesta improcedência da pretensão formulada quando, em face da alegação vertida nessa petição e dos documentos que a acompanham se concluiu que o requerente se encontra em situação de insolvência atual, entendida como a impossibilidade de cumprimento de obrigações vencidas, e não em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente, únicas hipóteses em que o legislador consentiu a instauração do PEAP (número 1 do art. 222.º-A do CIRE).
5. O devedor que pretende recorrer a algum dos mecanismos previstos no CIRE deve posicionar-se em função da sua situação concreta, optando pelo processo adequado ao seu caso, uma vez que aqueles mecanismos têm diferentes pressupostos e também propõem diferentes medidas: nas situações denominadas de pré-insolvência, consoante se trate de empresas ou pessoas singulares, respetivamente, o PER (art.ºs 17º- A a 17º J) e o PEAP (art.ºs 222º- A a 222º), ambos do CIRE, com regimes muito similares, nas situações de insolvência, o processo adequando é o processo de insolvência, com vista à liquidação do património.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam as Juízas da 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Lisboa  

I.RELATÓRIO
Ação
Processo Especial para Acordo de Pagamento (PEAP).
Requerente/apelante
TS.
Decisão recorrida
Em 09-02-2024 foi proferida decisão com o seguinte segmento dispositivo:
“Pelo que, por falta de pressupostos legais e, portanto, manifestamente improcedente, indefiro liminarmente a presente petição inicial de processo especial para acordo de pagamento, nos termos do disposto no artigo 27.º, alínea a) do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
*
Custas pelo Requerente, fixando-se o valor da acção no montante indicado na petição inicial, as quais se fixam em 1 (uma) UC – artigos 301º, 302º, nº 1 e 304º, todos do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
*
Publicite e registe o despacho de indeferimento liminar, nos termos previstos nos artigos 27.º, n.º 2 e 38.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
Notifique.”
Recurso
Não se conformando, o requerente apelou formulando as seguintes conclusões:
“DA NULIDADE DA SENTENÇA: 
 A) A Douta Sentença ora recorrida preteriu o disposto no artigo 3º nº 3 do CPC ou seja, o princípio do contraditório, pelo que estamos perante uma “decisão-surpresa”, pois foi dada uma solução jurídica sem que às partes tenha sido facultada a possibilidade de tomar posição sobre a concreta questão.
 B) Existia o dever de audição prévia, pois que estão em causa factos e questões de direito que integraram a base de decisão.
 C) Desta forma, a não observância do contraditório, quando é certo que tal poderia influir no exame ou decisão da causa, constitui uma nulidade processual, nos termos do art. 195º do CPC.
 D) Porém, tendo esta decisão surpresa sido prolatada no âmbito de uma sentença, deve a mesma ser invocada em sede de recurso, o que a Recorrente faz.
 E) Deste modo, deve proceder a presente apelação por violação do predito princípio do contraditório, não podendo assim a Douta Sentença ora recorrida manter-se na Ordem Jurídica.
 SEM PRESCINDIR: 
 F) É referido na Douta Sentença ora recorrida que: 
 - a situação que os factos alegados pelo próprio devedor evidencia, não é meramente uma situação económica difícil, constituindo antes, uma situação de insolvência actual, sendo manifesto face aos rendimentos do Requerente (€712,00 mensais) e as dívidas assumidas (€96.105,25). 
 - acresce que o processo especial para acordo de pagamento (PEAP), introduzido no CIRE pelo DL nº 79/2017, de 30 de junho, visa assegurar um processo aplicável à préinsolvência das pessoas singulares não titulares de empresas. – Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 01.12.2019, o que não se verifica no caso, antes pelo contrário, uma vez que o Requerente é gerente de uma empresa.
 G) Estes argumentos não são aceitáveis porquanto: 
- o facto dos rendimentos do Recorrente serem reduzidos e as dívidas atingirem o mencionado valor, não equivale ao facto deste se encontra numa situação de insolvência atual.
- conforme resulta do requerimento inicial, o problema do Recorrente que o levou a recorrer ao presente procedimento reside nas reversões que lhe foram efetuadas pela Autoridade Tributária e pela Segurança Social, reversões estas que consubstanciam créditos representativos de praticamente 80% da dívida.
- a sociedade, devedora originária apresentou-se a um Processo Especial de Revitalização, em tramitação no Juízo Local Cível de Ponta Delgada - Juiz 4, sob o número 765/23.1T8PDL, a qual negociou com estas entidades o pagamento da sua própria dívida.
 H) Desta forma, é evidente que o Recorrente não vai, ele próprio, liquidar a totalidade dos créditos em causa, os quais já se encontram, aliás, a serem pagos por quem de direito, pelo que é evidente que este processo se destina a providenciar uma negociação adicional com estas entidades públicas, negociação esta que terá evidentemente em conta o já acordado com a devedora originária e que poderá, inclusive, resultar numa suspensão dos processos de execução revertidos enquanto a sociedade cumprir com os seus próprios planos prestacionais implementados e em curso.
 I) Adicionalmente o Tribunal recorrido confunde empresário em nome individual com gerente de sociedade comercial, pois o Recorrente não é titular de qualquer empresa mas sim representante de uma empresa, pelo que o PEAP lhe é totalmente aplicável.
 AINDA SEM PRESCINDIR: 
 J) Conforme bem resulta do Douto Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães em 31.03.2022 relativo ao processo nº 805/21.9T8VNF.G2 e pesquisável em www.dgsi.pt, “A atenção que tem vindo a ser dada, ao longo do tempo e de forma crescente à situação de pré-insolvência decorre, em essência, do entendimento de que a insolvência, com a liquidação do património, importa amplas e dificilmente abarcáveis consequências económicas (mesmo no que respeita às pessoas singulares, pois são consumidores e, assim, o sustentáculo de muitas empresas) e sociais.
 K) Se tais consequências puderem ser evitadas, através da recuperação da empresa ou da superação das dificuldades económicas por parte da pessoa singular (a expressão é de Catarina Serra, Lições de Direito da insolvência, 2ª edição, pág. 321) actuadas numa fase de menor gravidade da situação económico-financeira e, portanto, com potencial de reversibilidade, então deve dar-se primazia a essa actuação.(sublinhado nosso)
(…)
L) A filosofia subjacente ao PEAP é tentar evitar ou prevenir que sobrevenha a insolvência (Leticia Marques Costa, in A insolvência de pessoas singulares, Almedina, pág. 391 e Luís Menezes Leitão, A Recuperação Económica dos Devedores, Almedina, 2ª edição, 2020, pág. 79), com todas as consequências daí advenientes (ainda que na prática se corra o risco, como em tudo, de o instrumento em referência se poder traduzir “num expediente tendente a atrasar a declaração de insolvência” (Leticia Costa, ob. cit. pág. 419)
M) E evitar ou prevenir significar criar as condições para que o devedor e os credores negoceiem, de boa fé e de forma equilibrada e tentem chegar a um acordo de pagamento (que, considerado em termos amplos, pode ser através da reorganização do pagamento do passivo e/ou da reconfiguração ou reestruturação do mesmo), que permita ao devedor, com tempo, superar as dificuldades, em vez da pura e simples liquidação do património e permita aos credores a satisfação dos respectivos créditos (o que pode muito bem não suceder se houver uma pura e simples liquidação do património, tudo dependendo do valor dos activos face ao valor dos passivos e da graduação dos créditos).
 N) Assim e á semelhança do que sucede com o PER, os credores desempenham o papel decisivo e fundamental: ou consentem (pelo menos momentaneamente) no sacrifício dos seus direitos e viabilizam o PEAP ou mantêm-se irredutíveis, caso em que o PEAP não é aprovado e o perigo do devedor ser declarado insolvente se precipitará (adaptação do afirmado por Catarina Serra, in Lições de Direito da insolvência, 2ª edição, pág. 39, com referência ao PER).
 O) Aquele acordo obtém-se ou não conforme a declaração de vontade com relevância jurídica dos credores, que terá a configuração (aprovação ou rejeição) que tiver a maioria das declarações de voto individuais emitidas, ou seja, releva a manifestação de vontade colectiva.
 P) Do transcrito e bem fundamentado Aresto decorre, insofismavelmente, de que: - se deve tentar evitar, assim que possível, a insolvência de pessoas singulares dadas as consequências pessoais e sociais que tal situação acarreta, 
- e que por tal facto e com especial incidência num PEAP, não compete ao Julgador mas sim à vontade coletiva dos credores, decidir a “sorte” de um devedor, através da aprovação (ou não) da proposta de plano de recuperação que este venha a apresentar.
 Q) Face a tudo quanto supra se expande, tem-se forçosamente de concluir de que o teor da Sentença ora recorrida viola o disposto nos artigos 3º nº 3 do CPC e 222º A e 222º B do CIRE.
 Termos em que revogando a Douta Sentença ora recorrida e substituindo-a por outra que ordene que a presente lide prossiga com os seus demais termos, estarão V. Exas., Venerandos Desembargadores, a produzir a tão habitual e costumada JUSTIÇA”.
II. FUNDAMENTOS DE FACTO
A primeira instância considerou como segue:
“(…) apresentou o presente processo especial para acordo de pagamento, verificando-se da PI e documentos juntos, o seguinte:
Em 2014 integrou-se no negócio do cuidado de idosos, pessoas com deficiência ou outras limitações físicas ou intelectuais. 
A sociedade, da qual é gerente, submeteu-se a um Processo Especial de Revitalização em 2023.
Este processo facultou à sociedade a oportunidade de negociar com a Autoridade Tributária e Segurança Social deixando porém, sem solução, a questão do montante em dívida revertido para o Requerente.
Aufere, como gerente, €712,00 mensais.
Relaciona, como único bem, um veículo automóvel no valor de €10.000,00.
É devedor de um montante global de €96.105,25”.
III. FUNDAMENTOS DE DIREITO   
1. Sendo o objeto do recurso definido pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pelo apelante e as que forem de conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras – arts. 635.º e 639.º do CPC – salientando-se, no entanto, que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito – art.º 5.º, nº3.
No caso, impõe-se apreciar:
- Da nulidade da decisão por violação do princípio do contraditório;
- Da verificação dos pressupostos para o indeferimento liminar do pedido de abertura de PEAP, formulado pelo devedor/apelante.
2. O apelante sustenta que a decisão recorrida é nula porquanto foi proferida sem facultar ao requerente a “possibilidade de tomar posição sobre a concreta questão”, constituindo uma “decisão surpresa” (conclusões A) a E).
O requerente, optando por atacar diretamente a decisão por via de recurso para a Relação, com arguição da invocada nulidade, configura-a como uma nulidade da decisão por excesso de pronúncia, nos termos do art. 615.º, nº1, alínea d) in fine do CPC, aplicável às demais decisões/despachos nos termos do art. 613.º, nº3 do mesmo Código [ [1] ] [ [2] ].
O princípio do contraditório, consagrado no art. 3.º do CPC, é um princípio basilar no nosso direito. Significa que “[s]ó nos casos excecionais previstos na lei se podem tomar providências contra determinada pessoa sem que esta seja previamente ouvida” (n.º 2) e que “[o] juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem” (nº3).   
A proibição da decisão surpresa configura uma vertente daquele princípio e “tem sobretudo interesse para as questões, de direito material ou de direito processual, de que o tribunal pode conhecer oficiosamente: se nenhuma das partes as tiver suscitado, com concessão à parte contrária do direito de reposta, o juiz – ou o relator do tribunal de recurso – que nelas entenda dever basear a decisão, seja mediante o conhecimento do mérito da causa seja no plano meramente processual, deve previamente convidar ambas as partes a sobre elas tomarem posição , só estando dispensado de o fazer em casos de manifesta desnecessidade” [ [3] ].
Acresce que a uma conceção tradicional do princípio (do contraditório) se contrapõe, atualmente, uma noção mais lata, colocando-se o acento tónico na necessidade de assegurar que os intervenientes tenham efetiva possibilidade de influenciar o sentido da decisão [ [4] ], constituindo uma dimensão da garantia do acesso ao direito e aos tribunais e do processo equitativo (art. 20.º, nº1 e 4 da CRP) [ [5] ].
No caso, a ponderação da exigência de cumprimento do contraditório não pode abstrair-se do cariz da decisão recorrida que, como se retira da terminologia legal, constitui uma decisão de indeferimento liminar, o que significa que a mesma, nos moldes em que o legislador a concebeu e como adiante melhor se verá, está reservada a casos em que o vício respetivo se patenteia de forma evidente e manifesta, em face dos termos da petição inicial e documentos que a acompanham.
Razão pela qual consideramos que, em princípio, e sem prejuízo da adoção de outras soluções se tal se justificar em casos com especial e diferente enquadramento daquele que se nos depara, a prolação dessa decisão não exige a prévia convocação do destinatário, requerente do processo, para se pronunciar, por desnecessidade.
O requerente sabe que quando instaura a ação, deduzindo determinada pretensão, está sujeito a um conjunto de exigências de caráter formal e processual – na forma dos atos (arts. 131.º a 133.º), na escolha do tribunal competente, dos sujeitos processuais contra quem dirige o pedido, etc –, e exigências de cariz substantivo, sendo que estas implicam grosso modo, a alegação do suporte factual juridicamente relevante para sustentar o pedido (cfr. o art. 186.º do CPC), não podendo com propriedade indicar-se que, faltando algum desses elementos de forma manifesta e flagrante, o requerente é surpreendido com uma decisão de indeferimento. Daí que, não sendo o vício evidente, ou manifesto, o juiz não deva concluir pelo indeferimento liminar do requerimento inicial, devendo reservar essa apreciação para fase processual posterior: se o faz, incorre em erro de julgamento e a questão do exercício do contraditório nem sequer se colocará.
Concorda-se, pois, com o acórdão do TRL de 11-05-2021 quando aí se conclui, a propósito da desnecessidade de cumprimento do contraditório/dispensa a audição prévia, que “[s]erá esse o caso do despacho de indeferimento liminar, pois que este apenas pode ter lugar em face de razões evidentes e indiscutíveis, em termos de razoabilidade, que determinem a manifesta improcedência do pedido ou a verificação evidente de excepções dilatórias insupríveis e de conhecimento oficioso, que tornam inútil qualquer instrução e discussão posterior”[ [6] ] [ [7] ] [ [8] ].
A decisão recorrida não enferma, pois, do apontado vício.
3. O processo especial para acordo de pagamento (PEAP) foi introduzido pelo Dec. Lei 79/2017 de 30-06, que estabeleceu um conjunto de alterações ao CIRE, diploma a que aludiremos quando não se fizer menção de origem. O regime do PEAP está fixado nos arts. 222º-A a 222º-J, aplicando-se-lhe ainda todas as demais regras previstas no CIRE “que não sejam incompatíveis com a sua natureza (art. 222º-A nº 3), sendo evidente o paralelismo que o legislador pretendeu estabelecer com o PER [[9] ] [ [10] ]; por último, releva a legislação processual civil, por via do disposto no art. 17º, n.º 1.
Destina-se, exclusivamente, a devedores que não sejam empresas [ [11] ] e que se encontrem na situação a que alude o art. 222.º-A).
A tramitação subsequente à apresentação da petição inicial passa por uma “apreciação liminar”, dispondo o art. 27.º, nº1, alínea a) do CIRE sobre os casos em que o juiz deve indeferir liminarmente o pedido de declaração de insolvência, preceito que se aplica, com as necessárias adaptações, ao PEAP (referido número 3 do art. 222.º-A).
Decorre do preceito que os fundamentos do indeferimento liminar da petição se podem reconduzir, à semelhança do que acontece no processo civil, a vícios de forma, usualmente atinentes a requisitos de ordem processual, mormente à verificação de exceções dilatórias insanáveis e a vícios de conteúdo (vícios de fundo) que se prendem com a concatenação que é suposto existir entre a pretensão formulada e a fundamentação de facto e de direito que a suporta.
Em ambas as hipóteses estamos, como expressamente consta do preceito, perante um critério normativo de evidência, sendo esse o comando que o legislador dá ao aplicador, daí que o despacho deva ser proferido em face da simples inspeção da petição inicial, a tal não obstando a redação do número 4 do art. 222.º -C, na parte em que se refere que, recebido o requerimento inicial, “o juiz nomeia de imediato, por despacho, o administrador judicial provisório”. Efetivamente, não tem cabimento deixar prosseguir um processo que está, à partida, de forma evidente, condenado ao insucesso.
No caso de pedido “manifestamente improcedente”, hipótese que aqui se nos coloca, continuam a ser pertinentes as considerações de Alberto dos Reis que, a propósito de preceito similar – em que o legislador impunha o indeferimento da pretensão quando a ação for proposta fora de tempo ou quando, por qualquer outro motivo, for evidente que a pretensão do autor não pode proceder (art. 481.º, nº 3, 2ª parte do CPC de 1939) – referia que o juiz só deve indeferir a petição inicial “quando a improcedência da pretensão do autor for tão evidente que se torne inútil qualquer instrução e discussão posterior, isto é, quando o seguimento do processo não tenha razão alguma de ser, seja desperdício manifesto de actividade judicial. O caso típico é o de a simples inspecção da petição inicial habilitar o magistrado a emitir, com segurança e consciência, este juízo: o autor não tem o direito que se arroga. Se realmente as coisas se apresentam com esta evidência e com esta nitidez, para que há-de o juiz mandar citar o réu e deixar seguir a instância até ao despacho saneador ou até á sentença? Tudo o que se praticasse no processo seria em pura perda. Impõe-se, portanto, o indeferimento imediato” [ [12] ].
Em suma, como se entendeu no acórdão do TRG de 01-02-2024, a par de muitos outros arestos que adotam posição no mesmo sentido [ [13] ]:
“O processo é concluso ao juiz, que, apesar da sua natureza urgentíssima não está desonerado de efetuar um controlo perfunctório sobre se os requisitos formais de abertura de PEAP estão preenchidos (v.g. não foi junta a declaração do devedor e de, pelo menos, um dos seus credores manifestando ser sua vontade encetarem negociações conducentes à elaboração de acordo de pagamento, ou não foram juntos ao processo os documentos previsto na al. b), do n.º 3, do art. 222º-C) e, bem assim, sobre se estão (ou não) preenchidos os requisitos substantivos de recurso a esse processo, ou se ocorrem factos impeditivos do requerente recorrer àquele. Impondo-se que o julgador convide o requerente a suprir as exceções e as omissões formais que sejam sanáveis e que indefira liminarmente o requerimento inicial quando conclua pela manifesta inviabilidade da ação, posto que não é concebível que o juiz (que tem de proferir o despacho nomeando ao requerente administrador judicial provisório para que o processo prossiga os seus legais termos) tivesse de proferir despacho de prosseguimento do PEAP, pondo em movimento a máquina judiciária, quando seja ostensivo não estarem reunidos os pressupostos do recurso ao PEAP”.
E não colhe a objeção do apelante quando, em sede de recurso, convoca a filosofia subjacente ao PEAP, que é a de “tentar evitar ou prevenir que sobrevenha a insolvência”, de forma que permita “ao devedor, com tempo, superar as dificuldades, em vez da pura e simples liquidação do património”, permitindo “aos credores a satisfação dos seus créditos” – cfr. as conclusões J) a P) – quando, como aqui acontece, se verifica que o devedor está, efetivamente, numa situação de insolvência.
Vejamos.
No caso em apreço, resulta da decisão proferida que o tribunal entendeu dever indeferir liminarmente a petição inicial por considerar que o devedor se encontra numa situação de insolvência atual e não, como alegado na petição inicial, numa situação económica difícil.
O processo especial para acordo de pagamento destina-se a permitir ao devedor que, comprovadamente, se encontre em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente, mas que ainda seja suscetível de recuperação, estabelecer negociações com os respetivos credores de modo a concluir com estes acordo conducente à sua revitalização (art. 222.º-A, nº1).
Trata-se, reconhecidamente, de um processo que reveste uma natureza essencialmente negocial e extrajudicial, imperando o primado da vontade dos credores, devendo o devedor e os credores cooperarem entre si, com boa-fé e transparência.
Tendo-se como inequívoco que se o requerente do PEAP se encontra em situação de insolvência atual, então não se verificam os pressupostos-base para acionar o tipo de processo ora em causa, como resulta do citado preceito.
Importa, pois, delimitar os conceitos de insolvência versus a situação económica difícil.
Nos termos do art. 3º nº 1 é considerado em situação de insolvência o devedor que se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas” [ [14] ] [ [15] ] [ [16] ].
Na aferição da situação do devedor não é critério determinante o valor do seu património, por confronto com o valor da dívida [ [17] ]; ao invés, o legislador adotou para aferição dos pressupostos da declaração de insolvência um conceito de solvabilidade [ [18] ].
Como refere Menezes Leitão, “a insolvência correspondente à impossibilidade de cumprimento pontual das obrigações e não à mera insuficiência patrimonial, correspondente a uma situação líquida negativa. Efectivamente, a situação líquida negativa não implica a insolvência do devedor se o recurso ao crédito lhe permitir cumprir pontualmente as suas obrigações, assim como uma situação líquida positiva não afastará a insolvência, se se verificar que a falta de crédito não permite ao devedor superar a carência de liquidez para cumprir as suas obrigações” [ [19] ].   
Em suma, evidencia-se uma situação de insolvência quando o devedor não tem capacidade económica ou financeira para cumprir a generalidade das suas obrigações vencidas, implicando essa aferição o confronto entre o passivo do devedor – volume das dívidas vencidas e a sua natureza – e a avaliação do seu património, bem como da sua capacidade de endividamento.
O conceito assim delimitado reconduz-se à situação de insolvência atual.
Desta se distingue a situação de insolvência iminente e a situação económica difícil, conceitos a que o legislador também se reporta (cfr. os arts. 17.º-A, nº1 e 222.º-A, nº1).
O legislador definiu a “noção de situação económica difícil” nos arts. 17.º-B e 222.º- B, que regem, respetivamente, o PER e o PEAP, considerando que se encontra nessa situação quem “enfrentar dificuldade séria para cumprir pontualmente as suas obrigações, designadamente por ter falta de liquidez ou por não conseguir obter crédito” [ [20] ], mas não alude especificamente ao conceito de “insolvência meramente iminente”, para além da referência que consta do nº4 do art. 3.º [ [21] ], concordando-se com José Manuel Gonçalves Machado quando refere que estaremos perante um “conceito intermédio”, ponderando como polos da equação, de um lado, a “situação económica difícil” e, de outro, a situação de “insolvência atual”, definida no art. 3.ºnº1 [ [22] ].
O que se pode referir é que se já ocorre uma situação de impossibilidade de cumprimento das obrigações vencidas, então a situação de insolvência será atual; mas se existe apenas uma projeção de que, a curtíssimo prazo, o devedor se encontrará numa situação de impossibilidade de cumprimento, então a situação será de insolvência iminente: a expressão iminente é utilizada, no léxico, num contexto relativo a algo que está prestes a acontecer, implicando, pois, um juízo de prognose [ [23] ].        
No caso, afigura-se-nos, como a primeira instância, que os elementos evidenciados no processo apontam no sentido de que o devedor se encontra, efetivamente, numa situação de insolvência atual e não numa situação de insolvência “meramente iminente” e muito menos numa “situação económica difícil”.
Como resulta da lista provisória de credores junta com a petição inicial o devedor indica um passivo global de 96.105,25€, assim discriminado:
1. AS, 750,00 €, Subordinado, com origem em “empréstimo pessoal” (0,78), sendo que foi este credor quem se propôs acompanhar o devedor/apelante na instauração do PEAP;
2. Banco Credibom, S.A., 20.340,47 €, Comum, Crédito automóvel, com “Reserva de propriedade” (21,16);
3. FCA Bank S.P.A. - Sucursal em Portugal, 5.642,85 €, Comum, “Avalista em contrato de locação financeira mobiliária”, “Sob Condição” (5,87);
4. Instituto da Segurança Social dos Açores, 33.540,72 €, Comum (34,90);
5. Serviço de Finanças de Lagoa (Açores) 35.831,21 €, Comum, “Reversão de Dívida” (37,28).
Juntando, ainda, a relação das ações de cariz executivo já pendentes contra si e em curso, a saber, ações intentadas pela Autoridade Tributária, por “Reversão de Dívida”, no montante de €35.831,21 e pelo Instituto da Segurança Social, por “Reversão de Dívida”, no valor de €33.540,72.
Quanto aos rendimentos que aufere, o requerente juntou recibos de vencimento indicativos de que exerce funções como gerente da sociedade C, Sociedade Unipessoal Lda, tendo auferido, em março de 2023, o “vencimento” de 712,00€; ainda, apresentou a declaração de rendimentos alusiva ao ano fiscal de 2022, em que indicou o rendimento auferido nesse ano no valor de 11.200,00€ (com 616,00€ de retenção na fonte e 1.232,00€ de contribuições)
Ou seja, o passivo do apelante atinge o valor de 96.105,25€, dos quais apenas um crédito, de 5.642,85 €, constitui crédito sob condição, podendo, pois, concluir-se estarmos perante um passivo elevado quando confrontado com a circunstância do devedor não possuir quaisquer bens geradores de proventos, auferindo apenas o rendimento proveniente do exercício da sua atividade profissional, em valor que se aproxima do salário mínimo nacional, atualmente fixado em 820,00€.
Salienta-se que o requerente também não alega na petição inicial ser proprietário de quaisquer bens, móveis ou imóveis, apresentando apenas uma declaração em que indica que “relaciona todos os seus bens com os valores estimativos respetivos”, aí identificando um veículo automóvel, adquirido em 2019, de matrícula, ligeiro de passageiros, acrescentando, sob a epígrafe “direitos que os oneram”, o seguinte: “Reserva de propriedade a favor do Banco Credibom SA”.
Em suma, o padrão que o processo evidencia é de baixos salários por parte do devedor, sendo que este também não alega na petição inicial qualquer facto que permita ponderar eventuais rendimentos previsionais futuros, como também não alude sequer à viabilidade de acesso a crédito.
Conclui-se que o apelante não exerce atividade geradora de proventos, nem demonstra que tem/terá meios de liquidez que possa afetar ao pagamento das dívidas, pelo que se afigura que a situação do devedor/apelante se reconduz a uma situação de insolvência atual, como entendeu o tribunal de primeira instância.
E, verdadeiramente, o requerente, na petição inicial, nunca sustentou encontrar-se numa situação económica difícil, ou numa situação de insolvência meramente iminente, alegando os factos pertinentes a essa aferição, para assim justificar e contextualizar juridicamente a instauração do presente processo.
A finalidade da instauração da ação reconduz-se, segundo alega o requerente na petição inicial, à necessidade/conveniência de concatenar o presente processo com o PER instaurado relativamente à sociedade para a qual exerce funções como gerente (uma sociedade de cariz familiar, ao que se depreende da petição inicial) [ [24] ].
E em sede de recurso verifica-se que o apelante, renovando essa posição, nada aduz para contrapor o raciocínio vertido na sentença recorrida, limitando-se a reiterar aquela finalidade, como de forma expressa se retira das alegações, concluindo que “[d]esta forma, é evidente que o Recorrente não vai, ele próprio, liquidar a totalidade dos créditos em causa, os quais já se encontram, aliás, a serem pagos por quem de direito, pelo que é evidente que este processo se destina a providenciar uma negociação adicional com estas entidades públicas, negociação esta que terá evidentemente em conta o já acordado com a devedora originária e que poderá, inclusive, resultar numa suspensão dos processos de execução revertidos enquanto a sociedade cumprir com os seus próprios planos prestacionais implementados e em curso” (conclusão H).
Apreciemos, então, nesta vertente.
A responsabilidade dos membros de corpos sociais pelas dívidas tributárias da sociedade está prevista no art. 24.º da Lei Geral Tributária (LGT) [ [25] ] e trata-se de uma responsabilidade de natureza subsidiária que se efetiva por reversão do processo de execução fiscal intentada no tribunal tributário, dependendo da fundada insuficiência dos bens penhoráveis do devedor principal e dos responsáveis solidários e da excussão prévia dos bens destes. O membro dos corpos gerentes pode impugnar o despacho de reversão da dívida na oposição apresentada na ação executiva, quer por não se verificarem pressupostos de natureza formal – por exemplo, a falta de audição do devedor subsidiário antes da prolação do despacho de reversão –, quer de natureza substantiva, como acontece quando o devedor subsidiário invoca a inexistência de culpa sua. Assim e salientando-se que a responsabilidade tributária por dívidas de outrem é, salvo determinação em contrário, apenas subsidiária [ [26] ], o art. 23.º da LGT (“[r]esponsabilidade tributária subsidiária) estabelece:
“1 - A responsabilidade subsidiária efectiva-se por reversão do processo de execução fiscal.
2 - A reversão contra o responsável subsidiário depende da fundada insuficiência dos bens penhoráveis do devedor principal e dos responsáveis solidários, sem prejuízo do benefício da excussão.
3 - Caso, no momento da reversão, não seja possível determinar a suficiência dos bens penhorados por não estar definido com precisão o montante a pagar pelo responsável subsidiário, o processo de execução fiscal fica suspenso desde o termo do prazo de oposição até à completa excussão do património do executado, sem prejuízo da possibilidade de adopção das medidas cautelares adequadas nos termos da lei.
4 - A reversão, mesmo nos casos de presunção legal de culpa, é precedida de audição do responsável subsidiário nos termos da presente lei e da declaração fundamentada dos seus pressupostos e extensão, a incluir na citação.
5 - O responsável subsidiário fica isento de custas e de juros de mora liquidados no processo de execução fiscal se, citado para cumprir a dívida constante do título executivo, efectuar o respectivo pagamento no prazo de oposição.
6 - O disposto no número anterior não prejudica a manutenção da obrigação do devedor principal ou do responsável solidário de pagarem os juros de mora e as custas, no caso de lhe virem a ser encontrados bens.
7 - O dever de reversão previsto no n.º 3 deste artigo é extensível às situações em que seja solicitada a avocação de processos referida no n.º 2 do artigo 181.º do CPPT, só se procedendo ao envio dos mesmos a tribunal após despacho do órgão da execução fiscal, sem prejuízo da adopção das medidas cautelares aplicáveis”.
Do regime assim fixado resulta uma estreita conexão entre a efetivação, no âmbito da ação executiva instaurada no tribunal tributário, da responsabilidade do devedor principal e do devedor subsidiário, salientando-se que a execução fiscal pode prosseguir contra os responsáveis subsidiários quando for declarada a insolvência do devedor principal, nos termos do art. 182.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT) [ [27] ]; acresce a possibilidade de acordo com vista ao pagamento em prestações, nos moldes regulados nos arts. 196.º do CPPT) [ [28] ], sendo a competência para autorização de pagamento do órgão de execução fiscal (art. 197.º do mesmo Código), devendo o requerimento respetivo obedecer aos requisitos previstos no art. 198.º do mesmo diploma; no caso de aceitação desse pagamento em prestações, pela autoridade tributária, a eventual suspensão da execução respetiva depende da constituição/prestação de “garantia idónea” nos termos do número 3 do referido preceito.
Deste regime decorre que, pelo menos em abstrato, assiste ao devedor ora apelante a faculdade de equacionar nas ações executivas identificadas na relação que apresentou com o requerimento inicial, exatamente, a circunstância alusiva à instauração e prosseguimento do PER tendo por sujeito o devedor principal.
No entanto, independentemente do exposto, admitindo que essa circunstância também fosse suscetível de refletir-se na instauração e prosseguimento dos presentes autos – um PEAP relativamente ao devedor subsidiário –, com a consequente paralisação daquelas execuções, nos termos do art. 222.º- E, n.º1 (cfr. as conclusões G) e H), ainda assim, na situação que se nos depara, perante as particularidades que o caso evidencia, não é viável equacionar a hipótese de prosseguimento do processo nos moldes pretendidos pelo apelante.
É que, pressupondo a instauração do PEAP a verificação do apontado requisito de ordem substantiva, a simples ponderação dos demais créditos reconhecidos pelo devedor e que este relaciona, pelos montantes que indica (750,00€, 20.340,47€ e 5.642,85€, isto é, no valor global de 26.733,32€), suportam a conclusão a que chegou o tribunal de primeira instância, no sentido de que no caso, de forma flagrante, não se evidencia o referido pressuposto de ordem substantiva potenciando, com esse fundamento, o indeferimento liminar da petição inicial.
E compreende-se que assim seja porquanto qualquer acordo com os credores pressupõe um pagamento feito pelo devedor, estabelecendo-se as negociações “com os respetivos credores de modo a concluir com estes acordo de pagamento” (parte final do número 1 do art. 222.º). “[U]ma vez que a susceptibilidade de recuperação é uma exigência estranha ao PEAP, a ideia parece ser apenas a obtenção de um acordo de pagamentos que evite a queda do devedor numa situação de insolvência” [ [29] ], donde, não pode aceitar-se a instauração do PEAP por um devedor que já se encontra nessa situação [ [30] ].
A afirmação feita na petição inicial, de que “por necessitar de acordos de pagamento abrangentes e proporcionais entre si e os seus credores, o Requerente apresenta-se ao presente processo com total disponibilidade para dispor dos rendimentos do seu trabalho na celebração de acordos com todos os credores” (art. 8.º) esbarra contra a completa ausência de rendimentos disponíveis que suportem pagamentos, independentemente da sua proveniência.
Em suma, o devedor que pretende recorrer a algum dos mecanismos previstos no CIRE deve posicionar-se em função da sua situação concreta, optando pelo processo adequado ao seu caso, uma vez que aqueles mecanismos têm diferentes pressupostos e também propõem diferentes medidas: nas situações denominadas de pré-insolvência, consoante se trate de empresas ou pessoas singulares, respetivamente, o PER (art.ºs 17º- A a 17º J) e o PEAP (art.ºs 222º- A a 222º), com regimes muito similares, nas situações de insolvência, o processo adequando é o processo de insolvência, com vista à liquidação do património.
No caso, estamos perante hipótese em que, mesmo para quem considera que a apreciação liminar do requerimento de apresentação ao PEAP deve incidir essencialmente sobre a existência dos requisitos formais, reservando-se a possibilidade de recusa do procedimento por falta de algum pressuposto substantivo, a hipóteses muito residuais [  [31] ], sempre se imporia concluir que nos encontramos, exatamente, perante esta hipótese.
Por último, considera ainda a decisão recorrida que o PEAP “visa assegurar um processo aplicável à pré-insolvência das pessoas singulares não titulares de empresas – Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 01.12.2019, o que não se verifica no caso, antes pelo contrário, uma vez que o Requerente é gerente de uma empresa”, afirmação que o apelante contraria, com razão porquanto não há elementos para concluir que o requerente seja titular de uma empresa; a circunstância de exercer profissionalmente a gerência não o transforma em titular de empresa, inexistindo documentos que suportem aquela afirmação da primeira instância; em todo o caso, considerando o que se expôs, essa alteração é juridicamente irrelevante.
*
Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, mantendo a decisão recorrida.
Custas pelo apelante.
Notifique.

Lisboa, 07-05-2024
Isabel Fonseca
Manuela Espadaneira Lopes
Fátima Reis Silva
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[1] Distingue-se entre as situações que configuram uma hipótese de nulidade processual e aquelas em que a irregularidade cometida afeta a própria decisão; distinguindo a sentença – o raciocínio vale para os despachos – como trâmite ou como ato, refere Miguel Teixeira de Sousa que “[d]ado que a decisão-surpresa corresponde a um único vício e porque este nada tem a ver com a decisão como trâmite, o vício de que padece a decisão-surpresa só pode ser um vício que respeita à decisão como acto. Em concreto, a decisão-surpresa é uma decisão nula por excesso de pronúncia (art. 615.º, n.º 1, al. d), CPC), dado que se pronúncia sobre uma questão sobre a qual, sem a audição prévia das partes, não se pode pronunciar”. Refira-se que, como também nota o autor, “esta solução é a única que é compatível com a impugnação da decisão-surpresa através de recurso e com o objecto do recurso. O objecto do recurso é sempre uma decisão, pelo que, se houvesse uma nulidade processual, a mesma não poderia constituir objecto de recurso e teria de ser reclamada no tribunal a quo” (Nulidades do processo e nulidades da sentença: em busca da clareza necessária, 22/09/2020, acessível in https://blogippc.blogspot.com/2020/09/nulidades-do-processo-e-nulidades-da.html).
No mesmo sentido cfr., a título exemplificativo, os acórdãos do STJ de 23-06-2016, processo: 1937/15.8T8BCL.S1 (Relator: Abrantes Geraldes) e o do TRL de 11-07-2019, processo: 4794/18.9T8OER.L1-7 (Relator: Micaela Sousa), acessíveis in www.dgsi.pt, como todos os demais arestos aqui referidos, sem outra menção.
[2] “Confrontado com uma decisão que tenha sido proferida com desrespeito pelo princípio do contraditório (v.g. quando se trate de uma verdadeira decisão-surpresa), a sua impugnação deve ser feita através da interposição de recurso, se e quando este for admissível, ou mediante a arguição da nulidade da decisão, nos demais casos” (Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, 2018, vol. I, Coimbra: Almedina, pp. 20 e 21). 
[3] Lebre de Freitas, Introdução ao Processo Civil, Conceito e Princípios Gerais à luz do Código Revisto, 1996, Coimbra: Coimbra Editora, pp. 102-103; cfr. ainda Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, 2018, volume 1.º, Coimbra: Almedina, pp. 31-32.
[4] “A esta concepção, válida mas restritiva, substitui-se hoje uma concepção mais lata de contraditoriedade, com origem na garantia constitucional do “rechtliches Gehör” germânico, entendida como garantia de participação efectiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, mediante a possibilidade de, em plena igualdade, influírem em todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação com o objecto da causa e que em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão. O escopo principal do princípio do contraditório deixou assim de ser a defesa, no sentido negativo de oposição ou resistência à actuação alheia, para passar a ser a influência, no sentido positivo de direito de incidir activamente no desenvolvimento e no êxito do processo (José Lebre de Freitas, obr. cit. pp. 96-97).
[5] “A exigência de um processo equitativo, constante do artigo 20.º, nº4, se não afasta a liberdade de conformação do legislador na concreta estruturação do processo, impõe, antes de mais, que as normas processuais proporcionem aos interessados meios efectivos de defesa dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos e paridade entre as partes na dialéctica que elas protagonizam no processo (Ac. nº 632/99). Um processo equitativo postula, por isso, a efectividade do direito de defesa no processo, bem como dos princípios do contraditório e da igualdade de armas” (Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, 2010, Tomo I, Wolters Kluwer, Coimbra: Coimbra Editora, p. 441).     
[6] Processo: 82020/19.9YIPRT.L1-7 (Relator: Micaela Sousa).
[7] Adotando essa orientação, refere-se, de forma muito impressiva, no acórdão do TRC de 27-02-2018, processo: 5500/17.0T8CBR.C1 (Relator: Jorge Arcanjo):
“Coloca-se, porém, a questão de saber se a exigência de audição prévia também funciona (ou se funciona sempre) em relação ao despacho de indeferimento liminar.
Duas soluções têm sido apontadas:
a) Uma no sentido de que o indeferimento liminar não é excepção, logo impõe-se sempre um depacho pré-liminar de audição (cf., por ex., decisões singulares da RC de 5/12/2017 (proc. nº 6097/17) e de 29/1/2018 (proc. nº3550/17), disponíveis em www dgsi.pt).
b) Outra corrente para quem, em caso de indeferimento liminar da petição inicial, o princípio do contraditório não impõe a audição prévia do autor/exequente sobre o motivo do indeferimento (cf Ac STJ de 24/2/2015, proc. nº116/14.6YLSB, Ac RP de 4/11/2008, proc. nº 0826336, Ac RL 27/9/2017, proc. nº 10847/15, Ac RL de 9/11/2017, proc. nº 1375/04, Ac TCA do Sul de 18/6/2015, proc. nº08710/15, disponíveis em wwwdgsi.pt).
Adere-se, em tese geral, a esta orientação, com base nos seguintes tópicos de argumentação:
Através da apresentação em juízo da petição ou requerimento inicial o autor exerce o direito de acção, iniciando-se a relação jurídico-processual apenas relativa ao autor, pois o “conflito de interesses que a acção pressupõe” (art.3 nº1 CPC) só se inicia com o chamamento à “lide” do réu, e por conseguinte apenas a partir daqui é que nasce o que é costume designar-se por “estrutura dialéctica do processo”.
O despacho de indeferimento liminar é uma espécie dentro do género da “rejeição liminar”, e ocorre no caso de inviabilidade “lato sensu” da pretensão (onde se insere a falta insuprível de pressupostos processuais), em que a lei elenca taxativamente as causas relevantes da rejeição.
Neste contexto, a imposição de um despacho prévio ao despacho de indeferimento liminar parece ser em si mesmo contraditório porque se o despacho liminar está legalmente previsto como podendo ser de rejeição liminar, não faz sentido a parte ser ouvida preliminarmente (cf. argumento do Ac STJ de 24/2/2015).
Em segundo lugar, não parece que se deva, em rigor, falar de “decisão surpresa “ na prolação de despacho de indeferimento liminar por falta insuprível de pressuposto processual porque é a própria lei que o prevê expressamente como causa específica de rejeição.
Com efeito, a lei postula as causas de indeferimento liminar, consubstanciando-se em situações de inviabilidade “lato sensu”, e como tal insupríveis, tornando inútil qualquer instrução e discussão posterior, patenteando-se, então, ser desnecessária a audição prévia sobre um projecto de indeferimento.
Depois, nos casos de indeferimento liminar a lei concede ao autor a possibilidade de juntar nova petição, considerando-se proposta aquando da primeira (art.560 e 690 nº1 CPC), precisamente porque a instância não se estabilizou.
Nas situações de indeferimento liminar, a lei difere o contraditório na medida em que se prevê sempre a admissibilidade do recurso, independentemente do valor e da sucumbência e se determina que o réu seja citado para os termos do recurso e da causa (arts.629 nº3 c) e 641 nº7 CPC). Daqui parece resultar a dispensa da audição prévia do autor, porque desnecessária, permitindo-se o contraditório diferido e em situação de igualdade.
A decisão-surpresa (art.3 nº3 CPC) pressupõe que a parte não possa perspectivar como sendo possível, ou seja, quando ela comporte uma solução jurídica que as partes não tinham a obrigação de prever, quando não fosse exigível que a parte interessada a houvesse prognosticado no processo. Mas como se decidiu no Ac STJ de 17/6/2014, proc. nº 233/2000, em www dgsi.pt, “o art.3 do CPC não introduz no nosso sistema o instituto da proibição de decisões surpresa tal como foi configurado no direito alemão, mas apenas como possibilidade de, em plena igualdade as partes, influírem em todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação com o objecto da causa e que apareçam como potencialmente relevantes para a decisão”.
Constituindo a incompetência material do tribunal uma excepção dilatória insuprível (arts.577, 578 CPC) não se pode afirmar que a recorrente não pudesse prognosticar o seu conhecimento oficioso, tanto mais que a questão tem sido objecto de elaboração jurisprudencial que, de forma consolidada e uniforme, defere a competência material aos tribunais administrativos (cf., por ex., Ac. T. Conflitos de 2/10/2008 (proc. nº 010/08), Ac. T. Conflitos de 27/4/2017 (proc. nº 037/16), disponíveis em www dgsi.pt)” (sublinhado nosso).
[8] Cfr., ainda, sobre a questão alusiva à audição do autor no caso de indeferimento liminar da petição inicial e no mesmo sentido, o acórdão do TRL de 18-01-2023, processo: 8095/21.7T8ALM. L1-4 (Relator: José Eduardo Sapateiro) e jurisprudência aí indicada.
[9] Pela Lei 16/2012 de 20-04 que, no seu art. 3.º, aditou ao CIRE os artigos 17º-A a 17º- I.
[10] A esse propósito, cfr. Jorge Manuel Leitão Leal, O Processo Especial para Acordo de Pagamento (PEAP), Algumas considerações, março de 2018, acessível in www.trl.pt
Cfr. ainda, o acórdão do TRL de 10-01-2019, processo: 3017/18.5T8BRR-A.L1-6 (Relator: António Santos).
[11] Com o Dec. Lei 79/2017 o legislador definiu o âmbito subjetivo do PER, resolvendo questões que a jurisprudência e doutrina suscitavam, restringindo o PER às empresas.
[12] Código de Processo Civil Anotado, 1981, Volume II, Coimbra: Coimbra Editora, p. 385.
[13] Processo: 6036/23.6T8VNF.G1 (Relator: José Alberto Moreira Dias); no mesmo sentido, cfr. ainda, os acórdãos do TRC de 01-12-2019, processo: 5494/19.8T8CBR.C1 (Relator: Ferreira Lopes) e de 12-09-2023, processo 2890/23.0T8CBR.C1 (Relator: Helena Melo).
[14] Nos casos em que é o próprio devedor a apresentar-se à insolvência nos termos do art. 28.º esse ato “implica o reconhecimento por este da sua situação de insolvência”.
[15] Nos casos em que um terceiro está legitimado a instaurar o processo, o legislador elencou um conjunto de factos-índice ou factos presuntivos da situação de insolvência no art. 20.º, nº 1, competindo àquele o ónus de alegação e prova da factualidade subsumível à hipótese normativa. Nos termos do art. 30.º, nº3, “[a] oposição do devedor à declaração de insolvência pretendida pode basear-se na inexistência do facto em que se fundamenta o pedido formulado ou na inexistência da situação de insolvência”.
[16] Referem Carvalho Fernandes e João Labareda: “O estabelecimento de factos presuntivos da insolvência tem por principal objectivo permitir aos legitimados o desencadeamento do processo, fundados na ocorrência de alguns deles, sem haver necessidade, a partir daí, de fazer a demonstração efectiva de situação de penúria traduzida na insusceptibilidade de cumprimento das obrigações vencidas, nos termos em que ela é assumida como característica nuclear da situação de insolvência (vd. art. 3º, nº 1).
Caberá então, ao devedor, se nisso estiver interessado e, naturalmente, o puder fazer, trazer ao processo factos e circunstâncias probatórias de que não está insolvente, pese embora a ocorrência do facto que corporiza a causa de pedir. Por outras palavras, cabe-lhe ilidir a presunção emergente do facto-índice” (2008, CIRE anotado. Lisboa: Quid Juris, p.135).
Cfr. ainda o acórdão do TRC de 08-05-2012, processo: 716/11.6TBVIS.C1 (Relator: Artur Dias), acessível in www.dgsi.pt.
[17] É esse património que responde pelas dívidas (arts. 817.º do Cód. Civil e 735º do CPC).
[18] Maria do Rosário Epifânio, Manual de Direito da Insolvência, 2012, 4ª edição, Almedina, Coimbra, p. 21.
[19] Direito da Insolvência, 2019, Coimbra: Almedina, p.83 (9ª edição).
[20] Os preceitos têm idêntico conteúdo, ressaltando apenas que um se refere à “empresa” e o outro ao “devedor”. 
[21] Para o efeito aludido, equipara-se a situação de insolvência iminente à situação de insolvência atual como fundamento de apresentação à insolvência, permitindo assim ao devedor proceder à abertura do processo no caso de insolvência iminente, mediante a sua apresentação.
[22] O Dever de Renegociar no âmbito Pré-Insolvencial, 2017, Coimbra: Almedina, pp. 128-133.
[23] Carvalho Fernandes e João Labareda, obr. cit., p. 73, referem:
“A iminência da insolvência caracteriza-se pela ocorrência de circunstâncias que, não tendo ainda conduzido ao incumprimento em condições de poder considerar-se a situação de insolvência já actual, com toda a probabilidade a vão determinar a curto prazo, exactamente pela insuficiência do activo líquido e disponível para satisfazer o passivo exigível.
Haverá, pois, que levar em conta a expectativa do homem médio face à evolução normal da situação do devedor, de acordo com os factos conhecidos e na eventualidade de nada acontecer de incomum que altere o curso dos acontecimentos”.
[24] Assim:
“3. Em 2014, o Requerente tomou uma das mais significativas decisões da sua vida, alterando o curso da sua carreira profissional de então para se integrar no negócio ao qual os seus pais dedicaram grande parte das suas vidas: o cuidado de idosos, pessoas com deficiência ou outras limitações físicas ou intelectuais.
 4. Contudo, a pandemia trouxe desafios significativos para o negócio, resultando em dificuldades acrescidas. 
 5. Com efeito, a incapacidade de cumprir pontualmente com todas as contribuições e impostos por parte da sociedade em causa originou a ocorrência de vários processos de reversão para o gerente, neste caso, o Requerente.
 6. No presente ano, a sociedade submeteu-se a um Processo Especial de Revitalização, em tramitação no Juízo Local Cível de Ponta Delgada - Juiz 4, sob o número 765/23.1T8PDL. 
 7. Este processo facultou à sociedade a oportunidade de negociar com a Autoridade Tributária e Segurança Social deixando porém, sem solução, a questão do montante em dívida revertido para o Requerente.
8. Assim, por necessitar de acordos de pagamento abrangentes e proporcionais entre si e os seus credores, o Requerente apresenta-se ao presente processo com total disponibilidade para dispor dos rendimentos do seu trabalho na celebração de acordos com todos os credores,
9. através da aprovação do competente plano de recuperação, 
10. reunindo, no seu entender, todas as condições para atingir tal desiderato”. 
[25] Artigo 24.º
“Responsabilidade dos membros de corpos sociais e responsáveis técnicos
1 - Os administradores, directores e gerentes e outras pessoas que exerçam, ainda que somente de facto, funções de administração ou gestão em pessoas colectivas e entes fiscalmente equiparados são subsidiariamente responsáveis em relação a estas e solidariamente entre si:
a) Pelas dívidas tributárias cujo facto constitutivo se tenha verificado no período de exercício do seu cargo ou cujo prazo legal de pagamento ou entrega tenha terminado depois deste, quando, em qualquer dos casos, tiver sido por culpa sua que o património da pessoa colectiva ou ente fiscalmente equiparado se tornou insuficiente para a sua satisfação;
b) Pelas dívidas tributárias cujo prazo legal de pagamento ou entrega tenha terminado no período do exercício do seu cargo, quando não provem que não lhes foi imputável a falta de pagamento.
2 - A responsabilidade prevista neste artigo aplica-se aos membros dos órgãos de fiscalização e revisores oficiais de contas nas pessoas colectivas em que os houver, desde que se demonstre que a violação dos deveres tributários destas resultou do incumprimento das suas funções de fiscalização.
3 - A responsabilidade prevista neste artigo aplica-se aos contabilistas certificados desde que se demonstre a violação dolosa dos deveres de assunção de responsabilidade pela regularização técnica nas áreas contabilística e fiscal ou de assinatura de declarações fiscais, demonstrações financeiras e seus anexos”.
[26] Artigo 22.º
“Responsabilidade tributária
1 - A responsabilidade tributária abrange, nos termos fixados na lei, a totalidade da dívida tributária, os juros e demais encargos legais.
2 - Para além dos sujeitos passivos originários, a responsabilidade tributária pode abranger solidária ou subsidiariamente outras pessoas.
3 - A responsabilidade do cônjuge do sujeito passivo é a que decorre da lei civil, sem prejuízo do disposto em lei especial.
4 - A responsabilidade tributária por dívidas de outrem é, salvo determinação em contrário, apenas subsidiária.
5 - As pessoas solidária ou subsidiariamente responsáveis poderão reclamar ou impugnar a dívida cuja responsabilidade lhes for atribuída nos mesmos termos do devedor principal, devendo, para o efeito, a notificação ou citação conter os elementos essenciais da sua liquidação, incluindo a fundamentação nos termos legais”.
[27] Nos termos do art. 180.º do CPPT, proferido o despacho judicial de prosseguimento da ação em PER ou declarada a insolvência, são sustados os processos de execução fiscal que se encontrem pendentes, sem prejuízo da possibilidade de prosseguimento nas hipóteses em que a empresa, o insolvente ou os responsáveis subsidiários vierem a adquirir bens (número 5). O art. 182.º desse Código dispõe como segue:
“Impossibilidade da declaração de insolvência
1 - Em processo de execução fiscal não pode ser declarada a insolvência do executado.
2 - Sem prejuízo do disposto no número anterior e da prossecução da execução fiscal contra os responsáveis solidários ou subsidiários, quando os houver, o órgão da execução fiscal, em caso de concluir pela inexistência ou fundada insuficiência dos bens penhoráveis do devedor para o pagamento da dívida exequenda e acrescido, comunica o facto ao representante do Ministério Público competente para que apresente o pedido da declaração de insolvência no tribunal competente, sem prejuízo da possibilidade de apresentação do pedido por mandatário especial”.
[28] Artigo 196.º
“Pagamento em prestações e outras medidas
1 - As dívidas exigíveis em processo executivo podem ser pagas em prestações mensais e iguais, mediante requerimento a dirigir, até à marcação da venda, ao órgão da execução fiscal, sem prejuízo do disposto no artigo 198.º-A.
2 - O disposto no número anterior não é aplicável às dívidas resultantes da falta de entrega, dentro dos respetivos prazos legais, de imposto retido na fonte ou legalmente repercutido a terceiros, salvo em caso de falecimento do executado.
3 - É excepcionalmente admitida a possibilidade de pagamento em prestações das dívidas referidas no número anterior, sem prejuízo da responsabilidade contra-ordenacional ou criminal que ao caso couber, quando:
a) O pagamento em prestações se inclua em plano de recuperação no âmbito de processo de insolvência ou de processo especial de revitalização, ou em acordo sujeito ao regime extrajudicial de recuperação de empresas em execução ou em negociação, e decorra do plano ou do acordo, consoante o caso, a imprescindibilidade da medida, podendo neste caso haver lugar a dispensa da obrigação de substituição dos administradores ou gerentes, se tal for tido como adequado pela entidade competente para autorizar o plano; ou
b) Se demonstre a dificuldade financeira excecional e previsíveis consequências económicas gravosas, não podendo o número das prestações mensais exceder 24 e o valor de qualquer delas ser inferior a 1 unidade de conta no momento da autorização.
4 - O pagamento em prestações é autorizado desde que se verifique que o executado pela sua situação económica, não pode solver a dívida de uma só vez, não devendo o número das prestações em caso algum exceder 36 e o valor de qualquer delas ser inferior a um quarto da unidade de conta no momento da autorização, exceto se demonstrada a falsidade da situação económica que fundamenta o pedido.
5 - Nos casos em que se demonstre notória dificuldade financeira e previsíveis consequências económicas para os devedores, poderá ser alargado o número de prestações mensais até 5 anos, se a dívida exequenda exceder 500 unidades de conta no momento da autorização, não podendo então nenhuma delas ser inferior a 10 unidades da conta.
6 - Quando, para efeitos de plano de recuperação a aprovar no âmbito de processo de insolvência ou de processo especial de revitalização, ou de acordo a sujeitar ao regime extrajudicial de recuperação de empresas do qual a administração tributária seja parte, se demonstre a indispensabilidade da medida, e ainda quando os riscos inerentes à recuperação dos créditos o tornem recomendável, a administração tributária pode estabelecer que o regime prestacional seja alargado até ao limite máximo de 150 prestações, com a observância das condições previstas na parte final do número anterior.
7 - Quando o executado esteja a cumprir plano de recuperação aprovado no âmbito de processo de insolvência ou de processo especial de revitalização, ou acordo sujeito ao regime extrajudicial de recuperação de empresas, e demonstre a indispensabilidade de acordar um plano prestacional relativo a dívida exigível em processo executivo não incluída no plano ou acordo em execução, mas respeitante a facto tributário anterior à data de aprovação do plano ou de celebração do acordo, e ainda quando os riscos inerentes à recuperação dos créditos o tornem recomendável, a administração tributária pode estabelecer que o regime prestacional seja alargado, até ao limite máximo de 150 prestações, com a observância das condições previstas na parte final do n.º 5.
8 - A importância a dividir em prestações não compreende os juros de mora, que continuam a vencer-se em relação à dívida exequenda incluída em cada prestação e até integral pagamento, os quais serão incluídos na guia passada pelo funcionário para pagamento conjuntamente com a prestação.
9 - Podem beneficiar do regime previsto neste artigo os terceiros que assumam a dívida, ainda que o seu pagamento em prestações se encontre autorizado, desde que obtenham autorização do devedor ou provem interesse legítimo e prestem, em qualquer circunstância, garantias através dos meios previstos no n.º 1 do artigo 199.º
10 - A assunção da dívida nos termos do número anterior não exonera o antigo devedor, respondendo este solidariamente com o novo devedor, e, em caso de incumprimento, o processo de execução fiscal prosseguirá os seus termos contra o novo devedor.
11 - O despacho de aceitação de assunção de dívida e das garantias apresentadas pelo novo devedor para suspensão da execução fiscal pode determinar a extinção das garantias constituídas e ou apresentadas pelo antigo devedor.
12 - O novo devedor ficará sub-rogado nos direitos referidos no n.º 1 do artigo 92.º após a regularização da dívida, nos termos e condições previstos no presente artigo.
13 - O disposto neste artigo não poderá aplicar-se a nenhum caso de pagamento por sub-rogação”.
[29] Menezes Leitão A Recuperação Económica dos Devedores, 2019, Coimbra: Almedina, p. 71.
[30] “Um olhar sobre a realidade quotidiana dos nossos tribunais demonstra-nos que o PER/PEAP surge, para muitas entidades como expediente tendente a atrasar a declaração de insolvência, quase que como um “ganhar tempo” ou uma antecâmara para a inevitável apresentação, acerca da qual o devedor já tem consciência, mesmo quando inicia o processo negocial com os seus credores” (Letícia Marques Costa, A insolvência de pessoas singulares, Coimbra: Almedina, p. 419).
[31] Cfr, o acórdão do TRC de 06.10-2020, processo: 616/20.9T8ACB.C1 (Relator: Maria  João Areias), proferido no âmbito de recurso interposto pelo credor da decisão homologatória do plano e assim sumariado:
“1. A apreciação liminar do requerimento de apresentação ao PEAP incidirá essencialmente sobre a existência dos requisitos formais, reservando-se a possibilidade de recusa do procedimento por falta de algum pressuposto substantivo, como o é a situação económica difícil ou a situação de insolvência iminente, aos casos em que seja manifesta a insolvência do devedor.
2. De qualquer modo, a análise deste requisito material por parte do juiz não comporta qualquer juízo de valor próprio sobre a situação ou viabilidade económica do devedor, restringindo-se aos casos de manifesta inviabilidade do pedido (por ex., quando existam elementos nos autos que revelem a confissão do devedor de que se encontra em insolvência atual).
3. Atribuindo o PEAP o controlo efetivo do processo aos credores, em detrimento do controlo jurisdicional, em que se pretende promover e potenciar uma negociação inteiramente extrajudicial, aprovado um PEAP de acordo com os procedimentos legais aplicáveis, não incumbirá ao juiz proceder a uma indagação oficiosa acerca da situação de insolvência iminente/atual do devedor e muito menos da sua recuperabilidade, excecionados os casos de abuso manifesto do recurso a tal meio pré-insolvencial.
4. Na ausência de qualquer oposição prévia, à relação de créditos provisória e ao plano apresentado e aprovado, o recurso deduzido por algum credor contra a decisão de homologação do plano só poderá incidir sobre fundamentos de recusa de conhecimento oficioso por parte do tribunal, ao abrigo do artigo 215º CIRE.
5. O simples facto de nos encontrarmos perante distintas classes de créditos não justifica, por si só, todo e qualquer tratamento diferenciado, havendo que articular o princípio da igualdade com o princípio da proporcionalidade e da proibição de arbítrio”.