Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2645/22.9T8SXL.L1-2
Relator: RUTE SOBRAL
Descritores: NULIDADE DE SENTENÇA
REVELIA
CONTRATO PROMESSA
INCUMPRIMENTO DEFINITIVO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/18/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: Sumário (elaborado nos termos do disposto no artigo 663º, nº 7, CPC):
I – A falta de enunciação expressa dos factos provados, em sentença proferida em caso de revelia da ré, não integra o vício da nulidade da sentença prevista no artigo 615º, nº 1, alínea b), do Código de Processo Civil, quando, na fundamentação de direito, sejam expressamente mencionados tais factos, tornando inteligível o quadro factual ponderado para a prolação da decisão.
II – Nessas situações, superando a insuficiência da fundamentação, pode o Tribunal da Relação, atuando em substituição do tribunal recorrido, nos termos do disposto no artigo 665º, do Código de Processo Civil, enunciar os factos provados e não provados.
III – Sendo operante a revelia da ré, o seu silêncio é equiparado à confissão (confissão ficta), devendo considerarem-se provados os factos alegados pelo autor, nos termos do disposto no artigo 567º do Código de Processo Civil, apenas com as exceções legalmente previstas, estando, por isso, negada à ré, em sede de recurso, a negação de factos relativamente aos quais se manteve silenciosa.
IV – Por estar em causa a tutela do comprador, a arguição da nulidade do contrato de promessa, decorrente da falta de licença ou do reconhecimento presencial das assinaturas dos outorgantes, apenas pode ser invocada pelo promitente vendedor se for culposamente causada pela contraparte.
V - Ocorre incumprimento definitivo do contrato promessa de compra e venda quando a promitente vendedora não comparece à escritura pública de compra e venda, sem justificar, por qualquer modo, a sua ausência, e acorda com outra agência imobiliária a colocação do imóvel prometido vender no mercado, dado que, ao assim agir, ainda que de forma tácita, nos termos do disposto no artigo 217º do Código Civil, assume um comportamento concludente, evidenciador da sua intenção de não cumprir a promessa.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os juízes da 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Lisboa que compõem este coletivo:

I - RELATÓRIO
1.1– O autor, H., identificado nos autos, instaurou em 11-10-2022 a presente ação comum contra a ré, M., também identificada nos autos, alegando que entre ambos foi celebrado um contrato promessa de compra e venda que teve por objeto uma fração de prédio urbano sito na freguesia da Amora, concelho de Seixal, a transacionar pelo preço de € 150.000,00. Foi ainda acordado que o autor, promitente-comprador, liquidaria tal preço em duas prestações, a primeira no valor de € 15.000,00, a título de sinal e princípio de pagamento, e a segunda, no valor remanescente, no ato da escritura pública, que deveria ser celebrada no prazo de 60 dias Sucede que a ré não compareceu na data agendada para a escritura, tendo o autor tido conhecimento que contactou outra agência imobiliária e colocou o imóvel novamente no mercado.
Assim, alegando que a ré incumpriu definitivamente o contrato-promessa, concluiu o autor solicitando:
- Que seja decretada a sua resolução;
- A condenação da ré a indemnizá-lo na quantia de € 30.000,00, correspondente ao dobro do sinal acordado, acrescida de juros vencidos desde a citação até efetivo e integral pagamento.
1.2 – Citada a ré, mediante carta registada com aviso de receção expedida em 2-12-2022, veio comprovar (requerimento de 20-12-2022) que apresentou, em 19-12-2022, pedido de apoio judiciário nas modalidades de dispensa de pagamento de taxa de justiça e demais encargos com o processo e de nomeação de patrono.
1.3 – A Segurança Social comunicou o indeferimento do benefício de apoio judiciário mencionado no ponto anterior, por ofício de 17-05-2023.
1.4 – Em 13-06-2023 foi proferido o seguinte despacho:
Compulsados os autos, verifica-se que a Ré foi regularmente citada e não deduziu qualquer contestação. Pelo exposto, considero assentes os factos (não conclusivos, nem respeitantes a matéria de direito) alegados pelo Autora na petição inicial (art. 567.º/1º do Cód. Proc. Civil) e determino a notificação das partes para, querendo, alegarem de direito por escrito (art. 567.º/2 do CPC)”.
1.5 – Apenas o autor apresentou alegações, considerando, no essencial, que na ausência de oposição por parte da ré, deveriam considerar-se provados os factos alegados na petição inicial, reiterando o pedido ali formulado (requerimento com a referência 45873391).
1.6 – Foi proferida sentença final, na qual, além do mais, em face da falta de contestação da ré, nos termos do disposto no artigo 567º, nº 1, do Código de Processo Civil, foram considerados assentes os factos alegados pelo autor na petição inicial e foi julgada a ação procedente, constando do dispositivo:
“(…), decide-se:
a) Declarar resolvido o contrato promessa de compra e venda celebrado entre o Autor e a Ré, em 01/08/2022;
b) Condenar a Ré a pagar ao Autor a quantia de €30.000,00 (trinta mil euros), acrescida de juros de mora, à taxa legal de 4%, desde a data de citação e até efetivo e integral pagamento.
Custas pela Ré (527.º/1 do CPC”.
2 – Não se conformando com a decisão proferida, a ré da mesma interpôs recurso de apelação, pugnando pela sua revogação e substituição por outra que a absolva do pedido, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões, que se transcrevem:
“I - A Recorrente é analfabeta e assina a Rogo ou por mera semelhança, conforme procuração forense cuja junção se requerer.
II - o Tribunal a quo segue para a fundamentação de Direito, sem mais qualquer apreciação crítica sobre os factos alegados e provados ou não provados pelo A. e considerando que não existem nulidades, exceções processuais ou questões prévias ou incidentais que cumpra conhecer, o que processualmente entende a Recorrente, que existindo matérias de conhecimento oficioso tinha o Tribunal a quo , tomar posição.
III - o Tribunal a quo não proferiu sentença devidamente fundamentada como se passará a alegar.
IV - Não obstante se considerarem confessados os factos articulados pelo A., a causa tem de ser julgada conforme for de Direito, isto é, a sentença deve obedecer, na sua elaboração, ao disposto no n.º 3 do artigoº 607º do C.P.C., que manda discriminar os factos que o julgador considera provados, implicando assim uma prévia seleção dos factos articulados pelo A., critério maior que impõe que só desta forma é possível julgar a causa conforme for de direito.
V - O Tribunal a quo, curiosamente, não identificou na P.I. nenhum facto que se considera não provado, mesmo faltando prova nos autos para tal.
VI - O Tribunal a quo ao não faz a seleção de factos e a apreciação das provas subjacentes apresentadas pelo A. desses mesmos factos, colocando a sentença proferida numa situação de vício de nulidade previsto no disposto no artigo 615º n.º1 al) b) e n.º 4 do CPC, devido à falta de fundamentação expressa ali implicada pelo disposto no artigo 607º n.º 3 do C.P.C.
VII – Sem Conceder na nulidade da Sentença, mas caso assim não seja considerado pelo Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, sempre deverá substituir a Sentença proferida, por decisão mais justa, conforme com os factos e com o Direito.
VIII - Ora, o Tribunal a quo deu como provados todos os factos trazidos pelo Autor aos autos, até aqueles cuja prova teria que sempre ser feita por documento. Sabemos que existe uma indisponibilidade do Direito, que não admite a mera confissão, como é o caso de factos cuja prova só se faz através de documento escrito, conforme o disposto na alínea d) do art. 568º do CPC, sendo neste caso insuficiente a confissão.
IX - No que respeita à forma do CPCV de imóveis, a lei é clara e imperativa, sendo certo que, no âmbito do contrato cujo objeto seja a constituição de direito real sobre prédio rústico ou urbano, construído, em construção ou a construir, é impositivo que o acordo de vontade das partes seja reproduzido em documento escrito, e que as assinaturas de todos os outorgantes sejam alvo de reconhecimento presencial, propriamente certificado: não só quanto às assinaturas propriamente ditas, bem como também com base na existência de licenças emitidas em função do imóvel objeto do contrato.
X - O preceito que define a obrigatoriedade da forma do documento encontra-se regulado pela prerrogativa do artigo 410.º do Código Civil, nomeadamente no n.º 3 do texto da mesma
XI - A referida norma reveste-se, como já mencionado, de caráter taxativo, não podendo, por esse mesmo motivo, ser a disposição alvo de afastamento pelas partes; ainda que se cumprindo o princípio da liberdade contratual de os subscritores dispõem, sob pena de provocar a nulidade do contrato.
XII – A Cláusula Quinta do Contrato coloca-o numa posição de nulidade do contrato, nos termos do n.º 3 do Art. 410 do CC.
XIII – Toda a ação assenta num documento nulo, pelo que a Sentença devia espelhar isso mesmo e ser a Recorrente absolvida.
XIV - Entendeu o Tribunal a quo, que a A. recebeu o dinheiro correspondente ao sinal, ora o documento 4, junto com a P.I., não passa da transferência feita pelo A. para …, Unipessoal, Lda, que nem parte é na ação e que se desconhece o que faz no CPCV dos autos.
XV - Não sabem os autos, porque não está sequer alegado pelo A., se a indicada sociedade alguma vez transferiu o dinheiro que alegadamente recebeu por parte do A. ou não, para a R. A Recorrente sabe que nunca o recebeu.
XVI -Deveria a Sociedade identificada fazer parte da ação, verificando-se na presente ação um litisconsórcio necessário passivo, nos termos do disposto no art. 34º, nº 1 e n.º 3 do CPC.
XVII - Exceção de conhecimento oficioso e entendeu o Tribunal a quo, que não existiam exceções que cumprisse conhecer.
XVIII - A receção da alegada carta enviada pelo A., para a marcação da escritura publica de compra e venda, não se faz por mera afirmação, mas sim por documento. O registo feito junto dos CTT pressupõe um comprovativo do seu recebimento, documento esse que não está junto aos autos. Mal esteve o Tribunal a quo em dar este facto também por provado, por não ter prova documental associada, como se impõe.
XIX – Por falta de prova de que a Recorrente tenha recebido a carta com a marcação da escritura publica de compra e venda, não poderia o Tribunal a quo, considerar o desinteresse da Recorrente na manutenção do negócio.
XX – Tal como considerou mal o Tribunal a quo, que a A. tenha colocado a casa à venda no mercado, sem que fosse feita qualquer desse alegado facto.
XXI - Considerou o Tribunal a quo que o Autor solicitou à Ré restituição da quantia entregue a título de sinal em dobro, o que nunca aconteceu, nem tal facto pode resultar provado nos autos, sem que fosse feita interpelação admonitória para o efeito por parte do A. nos termos do Art. 801.
XXII- O Tribunal a quo perante a ausência de prova ou absolvia a R., ou assim não sendo considerado, dado não ter apresentado contestação, sempre teria que ter convidado o A. Ao aperfeiçoamento e/ou à junção de documentos que fizesse prova dos factos alegados, sobretudo de que o dinheiro do sinal foi entregue à R. e que a R. tomou conhecimento da marcação da Escritura Pública. Prova fundamental e sem a qual o Tribunal a quo não poderia proferir Sentença nos termos em que o fez.
XXIII - O Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, sempre apreciará a alegada nulidade, mas caso assim não ocorra, sempre certamente nos melhores desígnios da aplicação do Direito decidirá que os autos não tem prova bastante para a decisão de mérito ter condenado a Recorrente no pagamento de 30.000,00.
XXIV - Choca esta Sentença do Tribunal a quo, porquanto não existe prova nos autos de que a Recorrente tenha recebido tal quantia monetária - € 15.000, que não recebeu e sem prova bastante venha a ser condenada no pagamento da indicada quantia em dobro.
XXV - O A. não faz prova que os tenha entregue sequer à Recorrente, porque nunca entregou, usou e abusou da boa vontade, ignorância e ingenuidade da Recorrente.
XXVI - O Tribunal a quo não só não dispõe dos documentos de onde possa aferir como verdadeiras todas as afirmações do A., mas dos que estão nos autos também não se pode extrair uma confissão. A entrega de uma quantia monetária faz-se com rigor por documento, que não existe nos autos, tal como não existe a consequente quitação.
XXVII- Impõe-se e espera-se uma decisão mais justa, conforme com os factos e com o Direito, Justa”.
3. O autor não apresentou contra-alegações.
4.  Foi admitido o recurso, como apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito devolutivo.
5.  Remetidos os autos a este tribunal em 22-02-2024, inscrito o recurso em tabela, foram colhidos os vistos legais, cumprindo apreciar e decidir.
II – QUESTÕES A DECIDIR
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação, ressalvadas as matérias de conhecimento oficioso pelo tribunal, bem como as questões suscitadas em ampliação do âmbito do recurso a requerimento do recorrido, nos termos do disposto nos artigos 608, nº 2, parte final, ex vi artigo 663º, nº 2, 635º, nº 4, 636º e 639º, nº 1, CPC.
Assim, são as seguintes as questões a decidir:
A - Nulidade da sentença, arguida pela recorrente com base no fundamento previsto no artigo 615º, nº 1, alínea b) do Código de Processo Civil, por falta de discriminação dos factos provados e não provados, e apreciação crítica das provas, em desarmonia com o dever de fundamentação estabelecido nos números 3 e 4, do artigo 607º do Código de Processo Civil;
B - Impugnação da decisão de facto, considerando a recorrente que:
- A prova junta aos autos não evidencia o alegado pagamento do sinal à autora (no montante de € 15.000,00);
- Também não ficou demonstrado que a autora/recorrente tivesse recebido a carta alegadamente enviada pelo autor para marcação da escritura pública de compra e venda.
C- Impugnação da decisão de mérito – a autora/recorrente arguiu:
- A preterição de litisconsórcio necessário passivo;
- A nulidade do contrato promessa celebrado entre autor e ré, por falta de reconhecimento presencial dos outorgantes e por falta de licenças relativas à fração objeto da promessa;
- A inexistência de interpelação admonitória, inviabilizando, na sua perspetiva, a restituição do sinal em dobro.
III – FUNDAMENTAÇÃO
A-Da nulidade da sentença
Como se relatou supra, em 13-06-2023 foi proferido despacho pelo tribunal recorrido com o seguinte teor:
Compulsados os autos, verifica-se que a Ré foi regularmente citada e não deduziu qualquer contestação. Pelo exposto, considero assentes os factos (não conclusivos, nem respeitantes a matéria de direito) alegados pelo Autor na petição inicial (art. 567.º/1º do Cód. Proc. Civil) e determino a notificação das partes para, querendo, alegarem de direito por escrito (art. 567.º/2 do CPC)”.
Assim, os factos “não conclusivos, nem respeitantes a matéria de direito” que foram alegados pelo autor na petição inicial foram considerados assentes, posição reiterada na sentença, aí se consignando:
“Tendo em conta a falta de contestação (e face ao disposto no art. 567.º, nº 1, Cód. Proc. Civil), e os documentos juntos aos autos, considero assentes os factos alegados pelo autor, na sua petição inicial.”
Porém, é manifesto que na sentença não foram enunciados, de forma discriminada, os factos provados, como imposto pelo regime dos números 3 e 4 do artigo 607º do Código de Processo Civil.
Já no que se reporta à motivação do decidido quanto à matéria de facto, resulta inequívoco da sentença que a factualidade provada resultou da confissão por ausência de contestação e da análise dos documentos juntos.
O dever de fundamentação das decisões dos tribunais constitui imposição constitucional, como decorre do artigo 208º, nº1, da Constituição da República, sendo relevante para que possa ser exercido controlo, quer no julgamento da matéria de facto, quer na decisão de direito.
Nos termos do artigo 615º, nº 1, alínea b), Código de Processo Civil:
1. É nula a sentença, quando:
(…) b) não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão”.
A propósito do enunciado vício da sentença, referem Lebre de Freitas e Isabel Alexandre[1] reportar-se a uma situação de anulabilidade, que respeita à própria estrutura da sentença. Assim, segundo aqueles autores: “Ao juiz cabe especificar os fundamentos de facto e de direito da decisão (art. 607º, nº ,3). Há nulidade (no sentido lato de invalidade, usado pela lei) quando falte em absoluto a indicação dos fundamentos de facto ou a indicação dos fundamentos de direito[2].
No entanto, no caso em análise, afigura-se não poder apontar-se à sentença recorrida a falta, em absoluto, da indicação dos fundamentos de facto.
Na realidade, constata-se que na fundamentação de direito da sentença recorrida foi expressamente reproduzida a factualidade alegada pelo autor, referindo-se, designadamente:
Da matéria provada resulta que entre as partes foi celebrado, em 01/08/2022, um contrato-promessa de compra e venda de imóvel, tendo a Ré prometido vender, e o Autor prometido comprar, a fração autónoma designada pela letra “K” do prédio urbano sito na Praceta (…) e (…), de que aquela era proprietária. Conforme contratualizado entre as partes, a escritura pública de compra e venda devia ser celebrada no prazo de 60 dias após assinatura do contrato-promessa. Nesta sequência, o Autor procedeu ao agendamento da escritura pública, e notificou a Ré para comparecer, para esse efeito, no dia 29/09/2022. Contudo, a Ré não compareceu na data, nem justificou a sua ausência, remetendo-se ao silêncio. Pretende, assim, o Autor, resolver o contrato-promessa e obter a restituição do sinal em dobro (…)
No sub judice, a falta de comparência da Ré na data designada para outorga da escritura pública (apesar de notificada), associada à omissão de qualquer justificação para a sua ausência, combinada, ainda, com a circunstância de, após essa data, ter contratado outra agência imobiliária e ter colocado o imóvel objeto do contrato-promessa, novamente, no mercado permite-nos extrair, por parte do comportamento da ré, uma declaração tácita de recusa total do cumprimento (art.º 217.º CC), com colocação automática da mesma em incumprimento definitivo: primeiro, porque o comportamento da Ré é adotado numa fase em que já está em mora no cumprimento(após a sua não comparência na data da escritura pública); depois, porque adota atos de execução para a venda a terceiros (com a colocação do imóvel noutra agência imobiliária e, novamente, no mercado). Este comportamento da Ré permite-nos concluir pela existência de uma “declaração antecipada de não cumprimento”, passível de converter a mora em incumprimento definitivo, sem necessidade de interpelação admonitória, por parte do Autor.”
Significa o acabado de expor que embora a sentença recorrida não tenha sido elaborada de harmonia com o estatuído no artigo 607º, números 3 e 4, CPC, com expressa discriminação dos factos provados (sendo certo que não tendo considerado quaisquer factos não provados era inviável a sua discriminação), dado que a fundamentação de direito foi elaborada por reporte à factualidade apurada (embora não enunciada de forma expressa), afigura-se não ocorrer o vício mais grave legalmente enquadrado na nulidade do artigo 615º, nº 1, alínea b), CPC. Ao invés, a sentença padece de uma deficiente especificação dos fundamentos de facto, que pode ser suprida pelos poderes de substituição do tribunal de recurso ao tribunal recorrido, nos termos do artigo 665º, CPC.
A este propósito, salienta-se que as decisões jurisprudenciais vêm manifestando divergências quanto à necessidade de, em casos de revelia e de manifesta simplicidade, ser exigível a enunciação ponto por ponto dos factos provados. No sentido da inexigibilidade da enunciação expressa dos factos, veja-se o Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto em 07-01-2019[3], constando do respetivo sumário:
I. Na situação de revelia, a sentença pode ser constituída apenas pela identificação das partes, fundamentação sumária e dispositivo.
II - A norma do art. 576.º/3 do CPC afasta a dos arts. 607.º/3 e 615.º/1 b) CPC quando a causa revista manifesta simplicidade”.
Porém, temos como certo que a falta de enunciação dos factos que o tribunal recorrido considerou como provados e não provados é suscetível de colocar às partes e ao Tribunal da Relação a dificuldade de apurar qual o acervo factual que esteve subjacente à prolação da decisão.
Não se duvida que nos termos do artigo 567º, nº 1 do CPC, sendo o réu regularmente citado na sua pessoa e não contestando, se devem considerar confessados os factos alegados pelo autor na petição inicial, resultando do nº 3 daquela norma que se a resolução da causa se revestir de manifesta simplicidade, a sentença pode limitar-se à parte decisória, precedida da necessária identificação das partes e da fundamentação sumária do julgado, julgando-se a causa conforme for de direito (nº 3). Porém, nos termos do preceito constitucional já citado, impõe-se que o destinatário da decisão judicial apreenda claramente os fundamentos de facto que lhe estão subjacentes, desiderato este que apenas será plenamente obtido com clara enunciação dos factos provados e não provados. Neste sentido, existe uma clara tendência jurisprudencial para considerar que a falta de um elenco dos factos provados e não provados, bem como da respetiva motivação, gera a deficiência da sentença ao nível da fundamentação de facto, ou mesmo a sua nulidade – a título de exemplo, Acórdão da Relação de Guimarães de 03-07-2014[4] e Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26-02-2019[5].
No entanto, a nulidade da sentença por falta de fundamentação ocorrerá apenas perante uma “(…) absoluta falta de fundamentação”, não se reconduzindo a tal vício a sua “insuficiência” – Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 02-06-2016[6]- podendo afirmar-se a existência de tal vício “(…) quando, na sentença, se omite ou é, de todo, ininteligível o quadro factual em que era suposto assentar” – Acórdão da Relação de Lisboa de 19-03-2019[7].
Ora, em face do exposto, afigura-se que no caso vertente não se verifica o vício de nulidade por falta de fundamentação de facto, dado que a subscritora da sentença recorrida, na fundamentação de direito, reproduziu os factos provados, subsumindo-os ao direito. Por outro lado, no despacho em que os considerou assentes, repudiou, para o efeito, as alegações conclusivas e que continham matéria de direito.
Acresce que, por estar em causa ação não contestada em que a revelia da ré se revelou operante, os factos que se deverão considerar provados são os que resultam da sua “confissão ficta”, ponderando ainda a prova documental junta, nos termos do disposto no artigo 567º, nº 1, CPC. E o certo é que a ré apreendeu a factualidade provada, tanto mais que impugnou a decisão da matéria de facto.
Conclui-se, pois, que a ausência de enumeração, um por um, dos factos provados, in casu não se reconduz ao vício da nulidade da sentença, previsto no artigo 615º, nº 1, alínea b), CPC, dado que os factos apurados foram reproduzidos e considerados na fundamentação de direito. Está, pois, em causa, mera deficiência da sentença, suscetível de ser suprida com base na regra de substituição ao tribunal recorrido, consagrada no artigo 665º, CPC. Consequentemente, enuncia-se, de seguida, o elenco dos factos provados.
Por outro lado, também não se verifica a apontada deficiência de motivação. Efetivamente, é afirmado na sentença que os factos provados resultaram quer da plena aplicação dos efeitos da revelia, consagrada no artigo 567º, CPC, quer da análise da prova documental junta. Ora, a discordância da recorrente quanto a tal motivação (designadamente por considerar que alguns dos factos alegados careciam de prova documental, nos termos do artigo 568º, alínea d), CPC), sendo suscetível de fundamentar a impugnação da matéria de facto, não constitui fundamento de nulidade da sentença.
Pelo exposto, indefere-se a arguição da nulidade da sentença por falta de especificação dos fundamentos de facto que justificam a decisão, nos termos do disposto no artigo 615º, nº 1, alínea b), CPC.
Suprindo a deficiência concretizada na ausência de expressa indicação da factualidade apurada, ao abrigo dos poderes de substituição do Tribunal da Relação, procede-se, de seguida, à sua enunciação:
FACTOS PROVADOS
1 - O Autor estava interessado na aquisição de um imóvel para habitação;
2 - Tendo tomado conhecimento de um anúncio relativo à venda da fração autónoma designada pela letra “K”, correspondente ao 3º andar esquerdo - letra B e parqueamento nº 2 na cave, para habitação, do prédio urbano sito na Praceta (…) e Avenida (…), freguesia da Amora, concelho do Seixal, descrito na Conservatória do Registo Predial da Amora sob o n.º … da freguesia mencionada e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo … da referida freguesia, com a Licença de Utilização n.º … emitida pela Câmara Municipal do Seixal em … 1995 (o “Imóvel”) que despoletou o seu interesse;
3 - Foi neste contexto que autor e ré estabeleceram contacto;
4 - Com efeito, o imóvel era e é pertença da ré, conforme decorre da certidão permanente e da caderneta predial que se juntam, respetivamente, como DOCS. 1 e 2, e cujo teor, tal como os demais documentos juntos, se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais;
5 - Tendo o autor apresentado à ré uma proposta para a aquisição do imóvel, que foi por esta aceite;
6 - O que determinou a celebração de um acordo que as partes denominaram “contrato promessa de compra e venda” em 01.08.2022 (o “CPCV”) e que se junta como DOC. 3;
7 - Ora, de acordo com a Cláusula Primeira do CPCV, o preço acordado para a aquisição do Imóvel correspondeu a € 150.000,00 (cento e cinquenta mil euros) – vd. Doc. 3;
8 - Devendo ser pago em duas prestações (Doc. 3);
9 - A primeira, a título de sinal e princípio de pagamento, no montante de € 15.000,00 (quinze mil euros), através de transferência bancária para o IBAN PT50 … – cfr. alínea a) da Cláusula Primeira do CPCV;
10 - Que o autor cumpriu, conforme se verifica através dos comprovativos que se juntam como DOC. 4;
11 - E uma segunda e última prestação correspondente ao remanescente do preço a ser paga no ato da escritura (Doc. 3);
12 - A qual deveria ter lugar “no prazo de 60 dias após a assinatura do Contrato” – vd. Cláusula Primeira do CPCV;
13 - Tendo o autor notificado a ré por escrito no dia 15.09.2022 do local, data e hora da outorga da escritura pública, tal como resulta da missiva enviada e que se junta com DOC. 5;
14 - Notificação essa recebida pela ré em 19.09.2022;
15 - Sucede que, apesar de notificada com antecedência, a ré não compareceu na escritura, tal como decorre do certificado que ora se junta como DOC. 6;
16 - Sem qualquer justificação, fundamento ou motivo plausível para tal;
17 - Na verdade, a escritura pública de compra e venda referente ao imóvel não se realizou precisa e exclusivamente devido a essa circunstância (Doc. 6);
18- Ora, a data agendada para a escritura pública (29.09.2022) correspondeu ao termo do prazo para que a mesma tivesse lugar – vd. Doc. 3;
19 – A ré não compareceu, sem oferecer qualquer justificação para a sua ausência, tendo contratado o serviço de outra agência imobiliária e colocado novamente o imóvel no mercado;
20 - Em consequência da não celebração do contrato definitivo no prazo convencionado, e dado que este estava diretamente relacionado com outro negócio, o autor perdeu o interesse na aquisição do imóvel;
21 - De acordo com a Cláusula Terceira do CPCV, caso seja responsabilidade da Ré “o incumprimento do presente contrato promessa de compra e venda determina a restituição do sinal em dobro” (cfr. Doc. 3);
22 – O autor solicitou à ré restituição da quantia entregue a título de sinal em dobro;
23 - No entanto, e não obstante as diversas interpelações para o efeito, certo é que a ré não restitui a quantia em causa;
24 - Sendo certo que, até à presente data, não logrou o autor obter qualquer tipo de resposta por parte da ré.
B - Impugnação da decisão sobre a matéria de facto
- Considerou a recorrente que a sentença recorrida considerou apurados factos cuja prova sempre teria que ser feita por meio de documento, não se revelando suficiente a mera confissão.
Mais concretamente, na tese da recorrente, não poderia considerar-se apurado que recebeu o dinheiro correspondente ao sinal porque o documento junto para o efeito comprova apenas uma transferência feita pelo autor para “A. (…), Unipessoal, Ldª” que não é parte na ação, não tendo sido alegado que alguma vez transferiu tal montante para a ré. Desenvolvendo esta tese, a recorrente chega a arguir uma preterição de litisconsórcio necessário passivo, considerando que a referida sociedade deveria integrar a ação, nos termos do disposto no artigo 34º, nºs 1 e 3, do Código de Processo Civil.
Por outro lado, segundo a recorrente, na ausência de um comprovativo da receção da carta enviada pelo autor para marcação de escritura pública de compra e venda, tal realidade não poderia ter resultado apurada.
O mesmo deve ser afirmado quanto à prova de que a ré colocou novamente “a casa à venda no mercado”, ou que foi solicitada a restituição da quantia entregue a título de sinal.
Compulsados os autos, forçosa é a conclusão de que o apuramento dos factos em questão resultou da revelia da ré.
A propósito dos efeitos da revelia dispõe o artigo 567º, nº 1 do Código Civil:
Se o réu não contestar, tendo sido ou devendo considerar-se citado regularmente na sua própria pessoa ou tendo juntado procuração a mandatário judicial no prazo da contestação, consideram-se confessados os factos articulados pelo autor”.
A este propósito esclarecem Lebre de Freita e Isabel Alexandre[8]: “Segundo o nº 1, consideram-se confessados os factos alegados pelo autor. Trata-se, portanto, de prova (os factos ficam provados em consequência do silêncio do réu) e, aparentemente, duma ficção (ficciona-se uma confissão inexistente, equiparando os efeitos do silêncio do réu aos da confissão, de que tratam os artigos 352º e ss CC);  de facto, fala-se tradicionalmente de confissão ficta (ficta confessio) para designar o efeito probatório extraído do silêncio da parte sobre a realidade de um facto alegado pela parte contrária (…) Mas este meio de prova (que em outros sistemas jurídicos é antes tido como dispensa de prova) tem um regime que não coincide inteiramente com o da confissão, que é uma declaração expressa de reconhecimento da realidade de um facto desfavorável ao declarante (…)pelo que, constituindo uma figura autónoma é mais adequado distingui-lo, reservando para ele o termo admissão. (…) Contrariamente à confissão, a admissão não exige que o facto admitido seja desfavorável ao admitente (cfr. art. 352 CC); não joga quanto a factos para cuja prova a lei exija documento escrito (...)
Esta prova, desconhecida nos sistemas ditos de ficta litis contestatio, ou contestação ficta, em que a omissão de contestar não tem o valor de prova legal e mantém incólumes as normas sobre a distribuição do ónus da prova, fica, entre nós, definitivamente adquirida no processo, não podendo o réu vir posteriormente negar os factos sobre os quais se manteve silencioso (…) tem assim o tratamento duma presunção inilidível”.
Porém, o pagamento do sinal, a receção pela ré da carta enviada pelo autor para marcação de escritura pública de compra e venda,  a colocação da  “casa à venda no mercado”, ou o pedido de restituição da quantia entregue a título de sinal, não constituem factos para os quais a lei exija prova escrita, nos termos do disposto no artigo 364º do Código Civil. Consequentemente, e não obstante a documentação junta, designadamente, comprovativo de transferência de € 15.000,00 em momento contemporâneo ao da celebração do contrato promessa, talão de registo da carta em questão, forçosa é a conclusão de que está em causa factualidade cujo apuramento resulta da ausência de contestação da ré. Ou seja, a revelia da ré é suficiente para o seu apuramento.
Improcedente se revela, pois, a impugnação da matéria de facto.
C - Apreciação do mérito da causa
Improcedendo a impugnação da matéria de facto deduzida pela exequente, impõe-se analisar o enquadramento jurídico operado pelo tribunal recorrido dado que: “Considerarem-se os factos alegados pelo autor como confessados não implica que o desfecho da lide seja, necessariamente, aquele que o demandante pretende, porque o juiz deve, seguidamente, julgar a causa aplicando o direito aos factos admitidos. Para designar esta circunscrição do efeito cominatório da revelia aos factos usa a doutrina a expressão efeito cominatório semipleno (…) o juiz fica liberto para julgar a ação materialmente procedente (…), mas também para se abster de conhecer do mérito da causa e absolver o réu da instância (…) para julgar a ação parcialmente procedente (…) para a julgar totalmente improcedente”- Lebre de Freitas e Isabel Alexandre[9].
No que se reporta à apontada preterição de litisconsórcio necessário passivo, é manifesta a falta de razão da recorrente.
Efetivamente, as situações de litisconsórcio, seja voluntário ou necessário, reportam-se a hipóteses em que são vários os titulares da relação material controvertida em debate (cfr. artigos 32º e 33º do Código de Processo Civil).
Com vista à resolução definitiva do litígio, e à produção do seu efeito útil normal, a ação deve reunir, quer no seu lado ativo, quer no seu lado passivo, os titulares da relação material em causa. Porém, como resulta do artigo 26º, nº 1, do Código de Processo Civil, o autor é parte legítima quando tem interesse direto em demandar, sendo o réu parte legítima quando tem interesse direto em contradizer. A legitimidade constitui assim um pressuposto processual que se traduz «numa situação concreta das partes» em relação a um processo determinado – José João Batista[10]. Assim, e de acordo com o critério legal supra-mencionado, tal situação concreta deve ser aferida de acordo com o interesse direto que as partes têm no objeto do processo. Por outro lado, havendo dúvidas quanto à legitimidade das partes, haverá que lançar mão do critério consagrado no artigo 26º, nº 3, do Código de Processo Civil, segundo o qual «... são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor».
O certo é que nos presentes autos, o autor configurou a relação material controvertida de forma clara, esclarecendo o litígio que o opõe à autora, sem intervenção de qualquer outro sujeito, designadamente da sociedade “A., Unipessoal, Ldª” que, de facto, surge identificada no comprovativo de pagamento junto aos autos com a petição inicial, como sua beneficiária. Porém, tal circunstância apenas evidencia que se trata de entidade que teve intervenção no negócio, eventualmente por o ter intermediado, não autorizando a conclusão de que foi a destinatária de tal pagamento, tanto mais que, de acordo com a configuração conferida pelo autor à lide, é absolutamente alheia à relação material controvertida. Em síntese, trata-se de circunstância que não abala o apuramento (nos termos supra enunciados) do recebimento pela ré do sinal, no valor de € 15.000,00.
E tanto basta para se concluir pela legitimidade de ambas as partes, quer no domínio processual, quer substancial.
Pelo exposto, indefere-se a arguição de preterição de litisconsórcio necessário passivo.
A recorrente invocou a nulidade do contrato promessa, considerando, no essencial, que, constituindo o seu objeto bem imóvel, impunha-se a elaboração de documento escrito, com reconhecimento presencial das assinaturas dos outorgantes, bem como da existência de licença de utilização da fração.
Compulsado o contrato promessa celebrado entre o autor e a ré, verifica-se que o mesmo teve por objeto a fração autónoma designada pela letra K, do prédio urbano constituído em propriedade horizontal, sito na Praceta (…) e Avenida (…), Amora, concelho do Seixal (cláusula 1ª).
Por outro lado, consta da cláusula quinta:
As partes declaram prescindir do reconhecimento notarial das suas assinaturas no presente contrato-promessa, para efeitos do disposto do n.o 3, do artigo 410", do Código Civil, renunciando ao direito de invocar a nulidade do presente instrumento
Estabelece o artigo 410º do Código Civil:
1 - À convenção pela qual alguém se obriga a celebrar certo contrato são aplicáveis as disposições legais relativas ao contrato prometido, excetuadas as relativas à forma e as que, por sua razão de ser, não se devam considerar extensivas ao contrato-promessa.
2 - Porém, a promessa respeitante à celebração de contrato para o qual a lei exija documento, quer autêntico, quer particular, só vale se constar de documento assinado pela parte que se vincula ou por ambas, consoante o contrato-promessa seja unilateral ou bilateral.
3 - No caso de promessa respeitante à celebração de contrato oneroso de transmissão ou constituição de direito real sobre edifício, ou fração autónoma dele, já construído, em construção ou a construir, o documento referido no número anterior deve conter o reconhecimento presencial das assinaturas do promitente ou promitentes e a certificação, pela entidade que realiza aquele reconhecimento, da existência da respetiva licença de utilização ou de construção; contudo, o contraente que promete transmitir ou constituir o direito só pode invocar a omissão destes requisitos quando a mesma tenha sido culposamente causada pela outra parte.
Como se refere no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26-10-2022[11]:
O artigo 410º, nº 3, do Código Civil, estabelece uma norma de carácter imperativo que visa  tutelar, em especial, a posição do promitente comprador, atenta a ordem de grandeza dos interesses patrimoniais envolvidos, obrigando ao reconhecimento presencial de assinaturas (devidamente autenticado) no texto que formaliza o contrato promessa como forma de sensibilização e consciencialização, pela sua solenidade, para a importância do ato e para o dever do subscritor de atentar, com toda a seriedade e rigor, em todo o clausulado a que se está dessa forma a vincular (e que na esmagadora maioria dos casos é (pré)elaborado e proposto pelo promitente vendedor).” Consequentemente, na norma em questão não se mostra prevista uma nulidade típica, dado que foi estabelecida apenas no interesse do promitente comprador que, em regra, será o promitente que dela se poderá fazer prevalecer. A este propósito, veja-se o Acórdão da Relação de Lisboa de 01-06-2006[12], em que se refere: “O legislador manifestou clara intenção de proteger o promitente adquirente do direito real sobre edifício, ou fração autónoma dele, já construído, em construção ou a construir, através do reforço de forma do contrato promessa e através do regime especial de invalidade que sanciona a falta dessa forma”.
Ora, verifica-se que o contrato em questão não contém o reconhecimento presencial da assinatura, nem a certificação da licença de utilização da fração em causa. No que se reporta ao reconhecimento das assinaturas, ambas as partes declararam expressamente prescindir de tal formalidade.
Porém, resulta do disposto no artigo 410º, nº 3, do Código Civil que a omissão de tais formalidades apenas pode ser invocada pelo contraente que promete transmitir o direito, se a mesma foi culposamente causada pela outra parte. No caso em análise, na ausência de alegação e prova de uma atuação culposa do autor, promitente comprador, inviabilizadora da obtenção da licença de utilização ou do reconhecimento presencial das assinaturas, fica inviabilizada a arguição pela ré (promitente vendedora) da omissão de tais formalidades.
Improcede, pois, a arguição da nulidade do contrato promessa por falta de licença de utilização da fração ou do reconhecimento presencial da assinatura dos outorgantes.
Resta, por fim definir, se a ausência de interpelação admonitória inviabilizava a consideração de que a ré incumpriu definitivamente o contrato-promessa de compra e venda, vedando o direito à sua resolução por parte do réu, e, consequentemente, à procedência do pedido de restituição do sinal em dobro.
Como se alcança do disposto no artigo 410º nº 1, CC o contrato promessa consiste na convenção por via da qual alguém se obriga a celebrar certo contrato. Reporta-se, pois, a uma promessa de celebração de um contrato, o qual se procura assegurar “(…) num momento em que existe algum obstáculo material ou jurídico à sua imediata conclusão, ou o diferimento desta acarreta vantagens” – Almeida Costa[13].
 Constitui, assim, um acordo funcionalmente instrumentalizado à futura conclusão do contrato, vinculando-se as partes à celebração ulterior de um outro contrato cujo conteúdo essencial fica definido pela promessa, consubstanciando esta “um acordo de vontades sobre a diferida conclusão de um contrato já identificado” – Ana Prata[14]. Constituindo o contrato-promessa ato preparatório do contrato definitivo, poderá afirmar-se com Pessoa Jorge que o primeiro “não se concebe sem complemento direto”[15].
Dispõe o artigo 442º do Código Civil, sob a epígrafe: “Sinal”, o seguinte:
1 - Quando haja sinal, a coisa entregue deve ser imputada na prestação devida, ou restituída quando a imputação não for possível.
2 - Se quem constitui o sinal deixar de cumprir a obrigação por causa que lhe seja imputável, tem o outro contraente a faculdade de fazer sua a coisa entregue; se o não cumprimento do contrato for devido a este último, tem aquele a faculdade de exigir o dobro do que prestou, ou, se houve tradição da coisa a que se refere o contrato prometido, o seu valor, ou o do direito a transmitir ou a constituir sobre ela, determinado objetivamente, à data do não cumprimento da promessa, com dedução do preço convencionado, devendo ainda ser-lhe restituído o sinal e a parte do preço que tenha pago.
3 - Em qualquer dos casos previstos no número anterior, o contraente não faltoso pode, em alternativa, requerer a execução específica do contrato, nos termos do artigo 830.º; se o contraente não faltoso optar pelo aumento do valor da coisa ou do direito, como se estabelece no número anterior, pode a outra parte opor-se ao exercício dessa faculdade, oferecendo-se para cumprir a promessa, salvo o disposto no artigo 808.º
4 - Na ausência de estipulação em contrário, não há lugar, pelo não cumprimento do contrato, a qualquer outra indemnização, nos casos de perda do sinal ou de pagamento do dobro deste, ou do aumento do valor da coisa ou do direito à data do não cumprimento.”
A doutrina tem analisado a natureza do sinal no direito civil português, considerando Galvão Telles[16] que visa confirmar e consolidar o contrato celebrado, sujeitando o inadimplente a uma indemnização predeterminada; para Menezes Cordeiro[17], o regime vigente procedeu à junção das diversas funções do sinal, tendo o mesmo natureza confirmatória-penal, na medida em que confere consistência ao contrato, assumindo uma natureza penitencial e funcionando como indemnização para o preço do arrependimento. Já Calvão da Silva[18] defende que o sinal tem, natureza confirmatória, podendo ter carácter penitencial se as partes assim o pretenderam.
Em face do exposto, sempre haverá que considerar que o sinal opera uma determinação antecipada da indemnização devida pelo incumprimento de um contrato-promessa e visa garantir tal indemnização, independentemente da existência de danos, dispensando as partes da sua alegação e prova. Tal conclusão resulta do disposto no número 4 do artigo 442º do Código Civil, que, de forma similar ao princípio estabelecido no número 2 do artigo 811º para a cláusula penal, estipula que o sinal penal obsta a que o credor exija a indemnização pelo dano excedente, salvo se for outra a convenção das partes.
Ora, cabe indagar se a ré incorreu em incumprimento definitivo do contrato promessa, por forma a legitimar o autor a exigir, a título indemnizatório, o pagamento do sinal em dobro.
A ré/recorrente considerou que a ausência de uma interpelação admonitória impede a conversão da mora que o autor lhe imputa em incumprimento definitivo, inviabilizando a restituição do sinal em dobro.
A este propósito, dispõe o artigo 808º, do Código Civil, sob a epígrafe: Perda do interesse do credor ou recusa do cumprimento:
1. Se o credor, em consequência da mora, perder o interesse que tinha na prestação, ou esta não for realizada dentro do prazo que razoavelmente for fixado pelo credor, considera-se para todos os efeitos não cumprida a obrigação.
2. A perda do interesse na prestação é apreciada objetivamente”.
Assim, embora em regra o negócio não possa ser resolvido em consequência da mora do devedor, pode suceder que, em sua consequência, o credor perca o interesse na prestação. Por outro lado, “independentemente da perda do interesse do credor, a lei permite que este, no caso de mora fixe ao devedor um prazo razoável para cumprir, sob pena de, igualmente se considerar impossível o cumprimento. Não se admitindo o recurso do credor à resolução do contrato pelo simples facto da mora, impõe-se a solução consagrada no artigo 808º, nº 1, como substituto da execução forçada, já que o retardamento (…) da prestação pode diminuir o interesse do credor” – Pires de Lima e Antunes Varela[19].
No caso em análise, embora o autor não tenha alegado que fixou à ré um prazo perentório para o cumprimento da sua prestação (interpelação admonitória), o certo é que alegou que a ré não compareceu na data e local designados para a realização da escritura do contrato definitivo, não tendo oferecido qualquer justificação para a sua ausência, tendo até contratado o serviço de outra agência imobiliária e colocado novamente o imóvel no mercado (facto provado nº 19).
Ora, como se refere no Acórdão da Relação de Lisboa de 17/12/2019[20]: “Ocorre incumprimento definitivo nos casos em que o devedor declara expressamente não pretender cumprir a prestação a que está adstrito ou adota uma qualquer outra conduta manifestamente incompatível com o cumprimento. Quando tal ocorra, não se torna necessário que o credor lhe fixe um prazo suplementar para haver incumprimento definitivo”.
Assim, embora, em regra, o incumprimento definitivo resulte da conversão da mora, por uma das vias previstas no artigo 808º do Código Civil (perda de interesse do credor ou não realização da prestação fixado por via da interpelação admonitória), quer a doutrina, quer a jurisprudência têm vindo a entender que, em face de um comportamento concludente do devedor que o evidencie, pode ser afirmado o incumprimento definitivo. Tal comportamento pode revestir a forma de uma declaração definitiva, consciente perentória da intenção de não cumprir, mas também pode deduzir-se de factos que a revelam, em conformidade com o disposto no artigo 217º, nº 1, do Código Civil – Galvão Telles[21], Almeida Costa[22].
Apurado que a ré, embora notificada para o efeito, não compareceu à escritura de compra e venda da fração em causa, não justificando a sua ausência, tendo, de seguida, acordado com outra agência imobiliária a colocação do imóvel novamente no mercado, colocou-se em situação de incumprimento definitivo, dado que o seu comportamento revela “tácita, mas inequívoca, desvinculação das obrigações decorrentes do contrato promessa” – conforme Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 02-02-2017[23] .
Improcedendo o recurso, impõe-se a confirmação da sentença recorrida.
Revelando-se improcedente o recurso, as custas serão integralmente suportadas pela recorrente, por ter ficado vencida – cfr. artigo 527º, nº 1, CPC
*
III – DECISÃO
Pelo exposto, acorda-se em negar provimento ao recurso, mantendo-se a decisão recorrida.
Custas da apelação pela recorrente.
D.N.

Lisboa, 18 de abril de 2024
Rute Sobral
António Moreira
Orlando Nascimento
_______________________________________________________
[1] Código de Processo Civil Anotado, Volume 2º, 3ª edição, pág. 735
[2] Autores e ob. Cit. Páginas 735 e 736.
[3] Proferido no processo 7896/17.7T8PFR.P1, disponível em www.dgsi.pt
[4] Proferido no processo nº 4215/13.3TBRRG.G1, disponível em www.dgsi.pt
[5] Proferido no processo nº 1316/14.4TBVNG-A.P1.S2, disponível em www.dgsi.pt
[6] Proferido no processo nº 781/11.6TBMTJ.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt
[7] Proferido no processo nº 1314/08-2, disponível em www.dgsi.pt
[8] Ob. Cit. Pág. 533 e 534
[9] Ob. Ci. Páginas 535 e 536.
[10] Processo Civil I, pág. 148.
[11] Proferido no processo nº 5261/20.6T8BRG.G1.S1, disponível em www.dgsi.pt
[12] Proferido no processo nº 4021/2006-6, disponível em www.dgsi.pt
[13] Contrato-Promessa, Uma Síntese do Regime Actual, 2ª edição, pág. 13.
[14] O Contrato-promessa e seu Regime Civil, 1994, pág. 15.
[15] O Mandato sem Representação, Lisboa, 1961, página 159.
[16] Direito das Obrigações, página 132.
[17] Tratado de Direito Civil I-1, página 463.
[18] Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória, página 281.
[19] Código Civil anotado, 3ª edição, Volume II página 72.
[20] Proferido no processo 22550/18.2T8LSB.L1-7, disponível em www.dgsi.pt
[21] Direito das Obrigações, 1997, pág. 258.
[22] Direito das Obrigações, 2009, pág. 1049 e ss
[23] Proferido no processo nº 280/13.1TBCDN.C1.S1, disponível em www.dgsi.pt