Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1627/16.4T9TVD-P.L1-5
Relator: LUÍSA MARIA DA ROCHA OLIVEIRA ALVOEIRO
Descritores: EXCEPCIONAL COMPLEXIDADE
DECLARADA OFICIOSAMENTE
CONTRADITÓRIO
IRREGULARIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/23/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: (da responsabilidade da relatora):
I. A excecional complexidade do procedimento, a que se reporta o art. 215º, nº 4 do C.P.Penal, pode ser declarada oficiosamente em qualquer fase do processo durante a primeira instância, nomeadamente durante o inquérito, sem requerimento do Ministério Público.
II. Sendo a excecional complexidade suscitada por um dos arguidos o contraditório mostra-se cumprido com a audição do Ministério Público.
III. Caso se entenda que deveriam ter sido ouvidos os demais arguidos antes da declaração de excecional complexidade, tal sempre configuraria uma omissão suscetível de consubstanciar apenas uma irregularidade, nos termos do art. 118º, nº 1 e 2 do C.P.Penal.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordaram, em conferência, os Juízes Desembargadores da 5ª secção criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:

I. RELATÓRIO
Nos autos de Instrução nº 1627/16.4T9TVD-P.L1 do Juízo de Instrução Criminal de Loures – Juiz 1, o Ministério Público veio interpor recurso da segunda parte do despacho proferido pela Mma Juíza de Instrução, em 29.12.2023, que declarou “a excepcional complexidade dos autos” e deferiu “a requerida prorrogação do prazo para requerimento de abertura de instrução por 30 dias”.
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Inconformado, o Ministério Público junto da 1ª instância interpôs recurso do despacho, formulando as seguintes conclusões:
“1. A Mma. JIC declarou oficiosamente a excepcional complexidade do processo.
2. Nos termos do art.° 276°, n.° l do C.P.P. a fase de inquérito termina com a dedução de acusação ou com o arquivamento.
3. No caso dos autos o inquérito encerrou a 11.12.2023 com a dedução da acusação de fls. 7442.
4. Segundo o art.° 215º, n.° 3 e 4 do C.P.P. apenas o M.° P.° tem legitimidade para requerer a excepcional complexidade do processo não a tendo o arguido ou ao assistente.
5. Sendo o M.° P.° o dominus do inquérito, compete-lhe nesta fase requerer a excepcional complexidade do processo se entender estarem verificados os pressupostos para o efeito.
6. Nas fases de instrução e julgamento compete ao Mmo. JIC ou Juiz de julgamento se entenderem estarem verificados os pressupostos para o efeito declarar oficiosamente a excepcional complexidade do processo.
7. Da conjugação dos artigos 215º, n.° 3 e 4 e 268°, n.° 1 e 2 concluiu-se que, não tendo o arguido legitimidade para requerer a excepcional complexidade do processo, esta, na fase de inquérito, só poderia ter sido declarada a requerimento do M.° P.°, o que não aconteceu, e não oficiosamente.
8. Como resulta do art.° 268°, n.° 2 do C.P.P., os atos a praticar pelo JIC em inquérito dependem de requerimento do M.°P.,o que no caso não se verificou.
9. O inquérito já foi encerrado e no seu decurso não foi requerida a excepcional complexidade do processo, pelo que não tendo sido aberta a fase de instrução não tinha a Mma. Juiz legitimidade legal para declarar a excepcional complexidade do processo.
10. Na fase de inquérito a declaração da excepcional complexidade tem subjacente a impossibilidade, em face da dificuldade das diligências a realizar, de cumprimento dos prazos legalmente previstos.
11. Mostrando-se o inquérito findo esse pressuposto deixou de existir, pelo que não se vislumbra qual a razão para vir a Mma. JIC declarar a excepcional complexidade do processo.
12. Neste sentido Ac.do TRL de 27-09-2023 (www.dgsi.pt) onde se refere que “Se o processo se caracteriza, por conter em si uma “excepcional complexidade” é porque apresenta em si mesmo (e não na forma de o conduzir), a impossibilidade de cumprimento dos prazos legais previstos; b”o conceito de “excepcional complexidade” tem subjacente como razão de fundo, a impossibilidade de cumprimento dos prazos legais previstos, e o interesse numa melhor investigação”.
13. A Mma. JIC limitou-se a remeter para o nº de volumes e apensos do inquérito sem explicar em que medida tal dimensão representa uma excepcional complexidade, pelo que carece de fundamentação o despacho de que se recorre.
14. A dimensão de um inquérito por si só não implica que a sua investigação revista excepcional complexidade.
15. No mesmo sentido Ac. TRE de 11-10-2022 (www.dgsi.pt)1
16. Encerrado o inquérito, enquanto não for declarada aberta a instrução não pode a Mma. JIC oficiosamente declarar a excepcional complexidade do processo, tal como não o poderia fazer durante o inquérito sem que o M.º P.º o requeresse.
I7. Por outro lado, não foram ouvidos os demais arguidos como impõe o nº 4 do art. 215º do C.P.P.
18. Neste sentido Ac. TRC de 13-03-2019 (www.trc.pt) onde se refere que “Quando a iniciativa da apreciação da questão partiu do tribunal, no dizer da lei, oficiosamente, o procedimento a seguir e que se impunha, como efetivamente foi, era ouvir os intervenientes processuais, o Ministério Público e, maxime, os arguidos”.
19. Ao decidir como decidiu, a Mma. JIC violou o disposto no art.º 215º, n.º 3 e 4, 107º, n.º 6, 268º, n.º 1 e 2 do CPP..”
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O arguido AA apresentou resposta, na qual não formula conclusões.
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O recurso foi admitido para este Tribunal da Relação de Lisboa, por despacho datado de 06.01.2024.
Nesta Relação, o Ex.mo Senhor Procurador-geral Adjunto emitiu parecer no sentido de que “o Recurso interposto pelo Ministério Público junto da 1ª Instância deve ser julgado procedente e, consequentemente, o Despacho recorrido deve ser revogado e substituído por outro que indefira a requerida prorrogação do prazo para apresentação do requerimento para abertura de instrução”.
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Foi cumprido o estabelecido no artigo 417º, n.º 2 do C.P.Penal, não tendo sido apresentada resposta ao parecer do Ministério Público.
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Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
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II. OBJETO DO RECURSO
Conforme é jurisprudência assente (cfr. Acórdão do STJ, de 15/04/2010, acessível em www.dgsi.pt: “é pelas conclusões extraídas pelo recorrente na motivação apresentada, em que resume as razões do pedido que se define o âmbito do recurso. É à luz das conclusões da motivação do recurso que este terá de apreciar-se, donde resulta que o essencial e o limite de todas as questões a apreciar e a decidir no recurso, estão contidos nas conclusões (…)”.
O âmbito do recurso delimita-se pelas conclusões extraídas pelo recorrente (das quais devem constar de forma sintética os argumentos relevantes em sede de recurso) a partir da respetiva motivação, pelo que “[a]s conclusões, como súmula da fundamentação, encerram, por assim dizer, a delimitação do objeto do recurso. Daí a sua importância. Não se estranha, pois, que se exija que devam ser pertinentes, reportadas e assentes na fundamentação antecedente, concisas, precisas e claras” (Pereira Madeira, Art. 412.º/ nota 3, Código de Processo Penal Comentado, Coimbra: Almedina, 2021, 3.ª ed., p. 1360 – mencionado no Acórdão do STJ, de 06.06.2023, acessível em www.dgsi.pt).
Isto, sem prejuízo da tomada de posição sobre todas e quaisquer questões que sejam de conhecimento oficioso e de que ainda seja possível conhecer (artigo 412º, nº 1 do C.P.Penal).
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Face às conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada, as questões a apreciar são as seguintes:
- Possibilidade de a Mma JIC declarar a excecional complexidade do procedimento;
- Falta de fundamentação do despacho de 29.12.2023;
- Cumprimento do contraditório.
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III. FUNDAMENTAÇÃO
Com interesse para decisão da questão suscitada resulta documentado nos autos o seguinte:
1. Em 11.12.2023 foi proferido despacho de acusação (cujo teor se dá por integralmente reproduzido - fls. 7442ss), no qual o arguido BB é acusado da prática dos seguintes crimes:
“a) Um crime de burla tributária qualificada p. e p. pelo art. 87º, nº 1 e 3 do RGIT, por referência ao art. 202º, al. b) do C.P. aplicável ex via art. 3º do RGIT;
b) Um crime de associação criminosa, p. e p. pelo art.º 89º, nº 1 e 3 do RGIT, por referência ao art. 299º do C.P. aplicável ex via art. 3º do RGIT;
c) E um crime Branqueamento agravado, p. e p. pelo art. 368º-A, nº 1, 2, 3 e 8 do C.P.”.
2. Por requerimento de 27.12.2023 (cujo teor se dá por integralmente reproduzido - fls. 7927) veio o arguido BB alegar que “estes Autos, pese embora não haja sido decretada a excepcional complexidade da sua tramitação, são muitíssimo vastos e advenientes de Inquérito com quase sete (07) anos de Investigação … são extremamente densos, compostos por mais de Trinta (30) volumes de Processo Principal e mais de Cem (100) Apensos, sendo que parte considerável da Documentação aí entranhada está em suportes informáticos e digitais” e termina requerendo a prorrogação do prazo para abertura da instrução por mais 30 dias. 3. Em 27.12.2023, o Ministério Público pronunciou-se, a tal respeito, nos seguintes termos:
“Fls. 7927:
Vem o arguido BB requerer o prazo adicional de 30 dias para requerer a abertura de instrução.
Uma vez que nos presentes autos não foi declarada a especial complexidade promovo se indeferia o requerido (art.º 215, n.º 3 e 4 e 107º, n.º 6 do C.P.P.)”.
4. Em 29.12.2023, a Mma JIC proferiu o seguinte despacho (recorrido):
“Por requerimento de fls. 7927 veio o arguido BB requerer a prorrogação para requerimento de abertura de instrução por mais 30 dias para além dos 20 dias legalmente estabelecidos, alegando para o efeito que a acusação foi deduzida contra 86 arguidos, respeita a 7 anos de investigação, o processo é composto por mais de 30 volumes e mais de 100 apensos e parte da documentação consta de suportes informáticos e digitais.
O Ministério Público promove que se indefira o requerido uma vez que não foi declarada a especial complexidade dos autos.
Decidindo.
Determina o artigo 287º do Código de Processo Penal, na parte que ora importa, que: “1 - A abertura da instrução pode ser requerida, no prazo de 20 dias a contar da notificação da acusação ou do arquivamento: a) Pelo arguido, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público ou o assistente, em caso de procedimento dependente de acusação particular, tiverem deduzido acusação; ou"
Dispõe, por sua vez, o artigo 107º, nº 6 do mesmo Código que, “quando o procedimento se revelar de excecional complexidade, nos termos da parte final do n.º 3 do artigo 215.º, os prazos previstos no artigo 78.º, no n.º 1 do artigo 284.º, no n.º 1 do artigo 287.º, no n.º 1 do artigo 311.º-B, nos n.º 1 e 3 do artigo 411.º e no n.º 1 do artigo 413.º, são aumentados em 30 dias, sendo que, quando a excecional complexidade o justifique, o juiz, a requerimento, pode fixar prazo superior”.
De acordo com o artigo 215.º, n.º 3 do Código de Processo Penal, “os prazos referidos no n.º 1 são elevados, respectivamente para um ano, um ano e quatro meses, dois anos e seis meses e três anos e quatro meses, quando o procedimento for por um dos crimes referidos no número anterior e se revelar de excepcional complexidade, devido, nomeadamente, ao número de arguidos ou de ofendidos ou ao carácter altamente organizado do crime”.
Vistos os citados preceitos, tendo em consideração que em 11.12.2023 foi proferida acusação contra 87 arguidos pela prática de diversos crimes de natureza económica, por factos que remontam ao ano de 2014, cuja prova se sustenta só a nível documental em 269 documentos, afigura-se-nos que estão reunidos os pressupostos que permitem declarar a declaro a excepcional complexidade dos autos e deferir a requerida prorrogação do prazo para requerimento de abertura de instrução por 30 dias, o que se determina.
Notifique”.
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Apreciação do Recurso
1. Possibilidade de a Mma JIC declarar a excecional complexidade do procedimento
O presente recurso vem interposto da decisão da Mma JIC que declarou a excecional complexidade do procedimento e deferiu a prorrogação do prazo, por 30 dias, para apresentação do requerimento de abertura da instrução.
O recorrente entende que a excecional complexidade só poderia ter sido declarada a requerimento do Ministério Público, o que não aconteceu (conclusão 7ª).
Desta forma, o recorrente entende que a Mma JIC não devia ter-se pronunciado acerca da verificação dos pressupostos da excecional complexidade do procedimento, na sequência de requerimento apresentado por um dos arguidos, depois de o Ministério Público haver deduzido a acusação e antes de ter sido aberta a fase da instrução.
Vejamos se lhe assiste razão.
Dispõe o art. 215º, nº 3 e 4 do C.P.Penal:
“3 - Os prazos referidos no n.º 1 são elevados, respectivamente, para um ano, um ano e quatro meses, dois anos e seis meses e três anos e quatro meses, quando o procedimento for por um dos crimes referidos no número anterior e se revelar de excepcional complexidade, devido, nomeadamente, ao número de arguidos ou de ofendidos ou ao carácter altamente organizado do crime.
4 - A excepcional complexidade a que se refere o presente artigo apenas pode ser declarada durante a 1.ª instância, por despacho fundamentado, oficiosamente ou a requerimento do Ministério Público, ouvidos o arguido e o assistente”.
Resulta do teor do mencionado preceito legal que a excecional complexidade de um procedimento pode ser reconhecida e declarada durante a primeira instância, por despacho fundamentado, oficiosamente ou a requerimento do Ministério Público, ouvidos o arguido e o assistente, quando, estando em causa qualquer um dos crimes descritos no nº 2 do dispositivo em causa, se verificar, designadamente, a existência de um número elevado de arguidos ou de ofendidos, ou, então, o crime ou crimes assumirem o carácter de altamente organizado.
Assim sendo, a “excepcional complexidade” tanto pode ser declarada oficiosamente pelo juiz como a requerimento do Ministério Público.
O Acórdão do STJ de 30.04.2008, Proc. nº 08P1504, pronunciou-se no sentido de que “em qualquer das fases do processo – inquérito, instrução ou julgamento – a excepcional complexidade pode ser declarada pelo juiz oficiosamente” e o Acórdão do Tribunal Constitucional nº 555/2008, Proc. nº 697/08-2ª não julga inconstitucional “a norma do artigo 215.º, n.º 4, do Código de Processo Penal, na versão dada pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, quando interpretada no sentido de permitir que, durante o inquérito, a excepcional complexidade, a que alude o n.º 3 do mesmo artigo, possa ser declarada oficiosamente, sem requerimento do Ministério Público” pois considera que exigir que “a especial complexidade do processo, com o efeito da elevação do prazo previsto na lei, ficasse sujeita a requerimento obrigatório do Ministério Público, corresponderia a cercear a função jurisdicional do juiz”.
No caso vertente, o arguido BB, confrontado com a acusação, solicitou, ao abrigo do disposto no art. 107º, nº 6 do C.P.Penal, o alargamento do prazo para requerer a abertura da instrução (cfr. art. 287º do C.P.Penal).
Em conformidade com o disposto no mencionado preceito legal, o juiz pode prorrogar os aludidos prazos até ao limite de 30 dias e esta prorrogação do prazo “aproveita aos demais participantes processuais, nos termos do art. 113.º, n.º 12 do CPP, nos casos expressamente previstos, quando o prazo para a prática de actos subsequentes à notificação termine em dias diferentes, o acto pode ser praticado por todos ou por cada um deles até ao termo do prazo que começou a correr em último lugar “ (Magistrados do Ministério Público do Distrito Judicial do Porto”, in “Código de Processo Penal – Comentários e notas práticas”, pág. 275).
Por conseguinte, podendo a “excepcional complexidade” ser declarada em qualquer fase do processo durante a primeira instância (até à conclusão do julgamento em primeira instância - cfr. arts. 107º, nº 6, 276º, nº 2, al. a), 283º, nº 7, 314º, nº 3, 360º, nº 3, 373º, nº 1, 390, al. c) e 423º, nº 3 do C.P.Penal), em conformidade com o disposto no nº 4 do art. 215º do C.P.Penal, não existe qualquer fundamento para a inadmissibilidade da sua declaração no período posterior à dedução da acusação e anterior à abertura da instrução quando, como vimos, mesmo durante o inquérito, pode ser declarada oficiosamente, sem requerimento do Ministério Público.
Assim sendo, no caso em apreço, apesar de a acusação já ter sido formulada, o reconhecimento da invocada complexidade processual (pressuposto do alargamento do prazo para requerer a abertura de instrução), aferido à luz do nº 3 do art. 215º do C.P.Penal), poderia ter sido feito nos termos em que o foi.
Acresce que, mantendo-se toda a prova já carreada para os autos na fase de inquérito, a fase de instrução compreende todos os atos necessários à realização das finalidades referidas no nº 1 do artº 286º do C.P.Penal, admite todas as provas que não forem proibidas por lei e permite a realização de quaisquer diligências e investigações (cfr. arts. 290º e 292º do C.P.Penal), podendo, até ao fim do julgamento, ser trazidos aos autos novos meios de prova e até mesmo após o encerramento da discussão da causa (cfr. art. 369º e 371º do C.P.Penal).
Em conclusão, nada obsta a que Mma JIC se pronuncie sobre a excecional complexidade processual após o encerramento do inquérito e antes de aberta a fase da instrução.
Improcede, assim, este segmento do recurso.
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2. Falta de fundamentação do despacho de 29.12.2023
O recorrente invoca também a falta de fundamentação do despacho recorrido (conclusão 13ª).
Estatui o art. 205º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa que “as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei” e dispõe o art. 97º, nº 5 do C.P.Penal que “os atos decisórios são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão”.
No que respeita a esta situação, em concreto, nos termos do disposto no art. 215º, nº 4 do C.P.Penal, a excecional complexidade apenas pode ser declarada por despacho fundamentado.
No caso da sentença, a inobservância do dever de fundamentação é cominada com a nulidade (cfr. art. 374º e 379º, nº 1, al. a) do C.P.Penal).
No que respeita aos atos decisórios, como vem sustentando a jurisprudência, exige-se que os mesmos exteriorizem, de forma inteligível, o raciocínio seguido e o seu sentido.
Constitui entendimento pacífico que o invocado vício de falta de fundamentação das decisões judiciais não configura uma nulidade, sanável ou insanável, uma vez que não se encontra elencada nos art. 119º e 120º do C.P.Penal, nem é expressamente cominada como tal em qualquer outra disposição legal. Antes se traduz na falta de especificação dos motivos de facto e de direito da decisão (art. 205°, nº 1 da CRP e 97º, nº 5 do C.P.Penal) e constitui mera irregularidade (art. 118º, nº 1 e 2 do C.P.Penal) - a menos que se verifique na sentença, ato processual que, conhecendo a final do objeto do processo (art. 97º, nº 1, al. a), do C.P.Penal), a lei impõe obedeça a fundamentação especial, sob pena de nulidade (art. 379º, nº 1, al. a), e 374º, nº 2 do CP.Penal), ou que se verifique no despacho que decreta uma medida de coação ou de garantia patrimonial, com exceção do termo de identidade e residência (art. 194º, nº 6 do C.P.Penal), ou no de pronúncia (art. 308º, nº 2 e 283º, nº 3 do C.P.Penal), em que o legislador igualmente comina a falta de observância do específico dever de fundamentação desses atos com nulidade.
Pelo que determina a invalidade do ato a que se refere e dos termos subsequentes que possa afetar e está sujeita ao apertado regime de tempestividade previsto no n.º 1 do art. 123º do C.P.Penal: assistindo o interessado à prática do ato a que se refere a irregularidade, terá de a invocar no próprio ato; se a irregularidade se reportar a ato a que o interessado não assista – como sucede no caso em apreço, uma vez que o despacho recorrido foi proferido por escrito nos autos–, aquele dispõe do prazo de três dias após o conhecimento efetivo ou presumido da prática da irregularidade que, na segunda hipótese, poderá ser extraído da notificação para qualquer termo do processo ou da intervenção no primeiro ato que tenha lugar após a ação ou omissão e em que ele se aperceba da mesma.
Caso a irregularidade não seja arguida nos sobreditos moldes, o ato produzirá todos os seus efeitos jurídicos como se fosse perfeito.
In casu, o recorrente tomou conhecimento do teor do despacho, cuja falta de fundamentação invoca, com a sua notificação.
No entanto, o recorrente não invocou a irregularidade do despacho perante o tribunal que o proferiu, no prazo de três dias após essa notificação, como se impunha que fizessem. Antes optou por interpor o presente recurso em 05.01.2024, pelo que, não tendo sido arguida tempestivamente, no mencionado prazo, a irregularidade correspondente à alegada falta de fundamentação, mostra-se ultrapassada e sanada essa irregularidade que, por isso, não assume relevância.
Ainda que assim não fosse e considerando que o dever de fundamentação de um despacho não reveste a mesma complexidade e grau de exigência que o de uma sentença, conclui-se que o despacho cuja irregularidade foi arguida sempre estaria devidamente fundamentado – quer de facto, quer de direito.
Com bem se diz no Acórdão deste TRL de 09.05.2019, Proc. nº 257/18.0GCMTJ-AV.L1-9, “o conceito de “excepcional complexidade” é um conceito aberto e amplo, o que ressalta, desde logo, do preceituado no n.º 3 do referido art.º 215.º, o qual tem subjacente como razão de fundo, para além do mais, a impossibilidade de cumprimento dos prazos legais previstos, designadamente para a prisão preventiva, sobrepondo-se a esta o interesse numa melhor investigação. Por outro lado, a emissão, ou não, da respectiva declaração fica ao critério do julgador, o qual, à luz do dispositivo em causa, tem como elementos orientadores e meramente exemplificativos “o número de arguidos ou de ofendidos e o carácter altamente organizado do crime”, podendo, por isso, vários outros factores ser ponderados e feitos relevar para efeitos de declaração da “excepcional complexidade” de um processo, como sejam, v.g., a expedição de cartas rogatórias para a realização de diligências processuais, onde a tempestividade no cumprimento das mesmas não pode ser gerida pelas autoridades judiciárias portuguesas, a realização de perícias, a análise de provas complexas e densas, etc..”.
In casu, o Tribunal a quo afirmou, a tal respeito, que: “tendo em consideração que em 11.12.2023 foi proferida acusação contra 87 arguidos pela prática de diversos crimes de natureza económica, por factos que remontam ao ano de 2014, cuja prova se sustenta só a nível documental em 269 documentos, afigura-se-nos que estão reunidos os pressupostos que permitem declarar a declaro a excepcional complexidade dos autos”.
Atento o exposto e compulsados os autos, quanto ao mérito da declaração da excecional complexidade do procedimento, não há razões para censurar o despacho recorrido.
A excecional complexidade é um grau superlativo de dificuldade, que não pode ser banalizado. No entanto, o despacho recorrido sustenta-se nos elementos do processo – elevado número (87) de arguidos acusados da prática de diversos crimes de natureza económica, factos reportados a 2014, elevado número de documentos (aos quais se reportam os 269 pontos da prova documental mencionada na acusação, a que acrescem os relatórios periciais e os CDs, um dos quais contém 315 emails e 886 ficheiros contendo registos de chamadas, mensagens e imagens) - e na ponderação dos mesmos, concluindo pela demonstração da excecional complexidade do procedimento.
Efetivamente, conjugando o elevado número de arguidos com a natureza complexa dos crimes de cuja prática estão acusados e a vastidão da prova a analisar (testemunhal, documental e pericial), o que originou sete anos de investigação, mais de trinta volumes e mais de cem apensos, entendemos, em concordância com o Tribunal a quo, justificar-se o reconhecimento da invocada excecional complexidade
Do que decorre, nesta parte, a improcedência do recurso.
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3. Cumprimento do contraditório
O recorrente alega ainda que não foram ouvidos os demais arguidos como impõe o nº 4 o art. 215º do C.P.Penal (conclusão 18ª).
Da análise dos autos resulta que o despacho recorrido foi proferido na sequência do requerimento apresentado, em 27.12.2023, pelo arguido BB, relativamente ao qual o recorrente se pronunciou, nesse mesmo dia, no sentido do seu indeferimento.
No caso em apreço, uma vez que o despacho recorrido teve origem num requerimento de um dos arguidos e o Ministério Público foi ouvido a respeito do mesmo, é de considerar cumprido o contraditório e respeitado o princípio da igualdade de armas.
Pelo que, afigura-se-nos admissível, neste caso, o entendimento da desnecessidade da audição dos demais arguidos (aos quais inclusive aproveita o alargamento do requerido prazo para requerer a abertura da instrução), o que configuraria uma das exceção ao disposto no art. 61º, nº 1, b) do C.P.Penal (sendo certo que o nº 1 ressalva expressamente “as excepções da lei”).
No entanto, caso se entenda que deveriam ter sido ouvidos os demais arguidos antes da declaração de excecional complexidade, tal sempre configuraria uma omissão suscetível de consubstanciar “apenas uma irregularidade, nos termos do art. 118.º, n.ºs 1 e 2, do CPP, já que a nulidade se não encontra expressamente cominada na norma que estabelece as nulidades insanáveis (art. 119.º), nem no elenco das nulidades dependentes de arguição (art. 120.º), e não se encontra qualificada como tal nos arts. 61.º e 215.º do mesmo diploma legal” (Acórdão do STJ, de 30.04.2008, Proc. nº 08P1504).
Nessa medida, estando em causa uma irregularidade reportada a ato a que o recorrente não assistiu, este devia tê-la invocado perante o tribunal que proferiu o despacho recorrido, no prazo de três dias após ter sido notificado do mesmo, o que não fez, tendo optado por interpor o presente recurso em 05.01.2024.
Assim sendo, não tendo sido arguida tempestivamente, no mencionado prazo, a eventual irregularidade correspondente à omissão da notificação dos demais arguidos, mostra-se ultrapassada e sanada, a qual, por isso, não assume relevância.
Pelo exposto, também neste segmento, improcede o recurso.
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IV. DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes que integram esta 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, após conferência, em negar provimento ao recurso, e, em consequência, confirma-se a decisão recorrida.
Sem tributação.
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Lisboa, 23 de abril de 2024
Luísa Maria da Rocha Oliveira Alvoeiro
Rui Coelho
Sara Reis Marques
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1. “I. A declaração de excecional complexidade justifica-se sempre que surjam especiais dificuldades da investigação num caso concreto,
tendo em conta, nomeadamente se a investigação respeita a criminalidade altamente organizada , com envolvimento de vários arguidos e
recurso a meios sofisticados, ponderando o número de intervenientes processuais , a deslocalização de atos, as contingências procedimentais
provenientes das intervenções dos sujeitos processuais, ou a intensidade de utilização dos meios.
II - Trata-se normalmente de investigações que implicam um alargado feixe de linhas de investigação e que, de uma forma significativa parte
delas advém a necessidade da prática de inúmeros atos processuais, sendo uns necessariamente (logicamente) anteriores a outros (as
vigilâncias e escutas telefónicas anteriores à detenção e audição dos arguidos, p. ex.) outros necessariamente sequentes àqueles (algumas
inquirições de testemunhas) e outros ainda sequentes à realização das perícias p. ex. (e estas necessariamente posteriores às detenções), que
envolvem uma complexidade que é, por natureza, morosa.
III – Do juiz de instrução criminal exige-se um juízo prudencial, de razoabilidade, com ponderação de todos os elementos que no caso
concreto se afigurem potenciadores dessa excecionalidade, seja na dimensão factual ou procedimental, das particulares ou acrescidas
dificuldades da investigação, que impliquem nos termos e nos tempos do processo”.