Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2125/23.5T8VCT-D.G1
Relator: JOSÉ ALBERTO MOREIRA DIAS
Descritores: JUNÇÃO DE DOCUMENTOS COM O RECURSO
INSOLVÊNCIA CULPOSA
FICÇÃO LEGAL DE INSOLVÊNCIA CULPOSA
PRESUNÇÕES ILIDÍVEIS E INILIDÍVEIS
PRESSUPOSTOS
CAUSALIDADE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/02/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1- Verifica-se a presunção inilidível de insolvência culposa da al. a) do n.º 2 do art. 186º do CIRE quando, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência, os administradores, de direito ou de facto, do devedor destruam (eliminação física do bem), danifiquem (eliminação física parcial do bem, de modo a provocar uma redução efetiva do seu valor), inutilizem (eliminação física parcial do bem, de modo a torná-lo impróprio para o uso normal/corrente a que se destina), ocultem (escondendo fisicamente o bem, de modo a que se desconheça o seu paradeiro para que se possa apreendê-lo) ou façam desaparecer (deslocação do bem da disponibilidade do devedor para a de terceiro, através de negócio juridicamente válido, ou aparentemente juridicamente válido – negócio simulado) de todos os bens que integram o património do devedor ou de parte considerável dos bens que integram o seu património, uma vez que qualquer um desses atos dos administradores deprecia realmente o valor do património do devedor, causando por essa forma o seu estado de insolvência ou o seu agravamento.
2- Tratando-se de destruição, danificação, inutilização, ocultação ou causação do desaparecimento de parte considerável de bens que integram o património do devedor, para que se possa concluir pelo preenchimento daquela presunção é necessário que se apure o valor dos bens no momento em que foram objeto de tais condutas e o do valor dos bens que, na altura, integravam a totalidade do património do devedor, posto que apenas mediante a comparação desses dois valores é possível concluir (ou não) pela verificação de uma situação de destruição, danificação, inutilização, ocultação ou provocação do desaparecimento de «parte considerável» do património do devedor.
3- A presunção inilidível de insolvência culposa da al. b) do n.º 2 do art. 186º tem como pressupostos cumulativos que: 1º- nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência, os administradores, de direito ou de facto, do devedor tenham falseado a contabilidade deste, mediante a inscrição nela de falsos passivos ou prejuízos, ou empolando o valor desses passivos ou prejuízos, ou reduzindo nela o valor dos lucros efetivamente obtidos pelo devedor; 2º- que, por via dessa contabilidade falseada e enganosa os administradores venham a celebrar um negócio ruinoso para o devedor, seu representado (por apenas desse negócio resultarem prejuízos patrimoniais para o último); 3º- e que esse negócio ruinoso seja celebrado pelos administradores em representação do devedor em benefício dos próprios administradores ou de pessoa com eles especialmente relacionada, tal como definida no art. 49º do CIRE.
4- O preenchimento da presunção inilidível de insolvência culposa da al. g) do n.º 2 do art. 186º pressupõe um comportamento do administrador, de direito ou de facto, para com o devedor, seu representado, adotado nos três anos que antecederam o início do processo de insolvência, que afronte os deveres de fidelidade e de lealdade para com este, por envolver, por via direta ou indireta, efeitos negativos para o seu património, geradores ou agravantes da sua situação de insolvência, bem como a intenção específica dos administradores de prosseguirem a atividade deficitária do devedor em proveito próprio ou de terceiro, apesar de preverem ou deverem prever (segundo um padrão objetivo de previsibilidade) que esse atividade deficitária com toda a probabilidade iria levar à situação de insolvência do devedor, seu representado, ou ao seu agravamento.
5- Na al. h), do n.º 2, do art. 186º sanciona-se as condutas dos administradores, de direito ou de facto, de devedor, ocorridas nos três antes anteriores ao início do processo de insolvência, nela descritas (falta de contabilidade tout court, dupla contabilidade – duas contabilidades, sem que se saiba qual das duas retrata a verdadeira situação patrimonial e financeira do devedor -, contabilidade fictícia – enganosa, não verdadeira, por não retratar a verdadeira situação patrimonial e financeira do devedor -, ou contabilidade com irregularidades que impeçam a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor), com a sanção de insolvência culposa, por qualquer uma dessas condutas, além de ilícitas e gravemente culposas, impedirem que se possa apreender as causas da insolvência, pelo que mais do que uma presunção de insolvência culposa, está-se perante uma ficção legal de insolvência culposa.
6- A ficção legal de insolvência culposa da al. i) do n.º 2 do art. 186º pressupõe que os administradores, de direito ou de facto, de devedor incumpram reiteradamente com os deveres de apresentação e de colaboração previstos no art. 83º do CIRE, entre o momento em que ficam investidos nesses deveres (entrada em funções do administrador da insolvência) e o momento em que o administrador da insolvência emite o parecer quanto à qualificação da insolvência, privando o último, em consequência dessa sua conduta reiteradamente omissiva, de elementos relevantes e essenciais para que possa determinar com segurança as causas da insolvência, e tem subjacente que aqueles, com esse seu comportamento reiteradamente omissivo atuaram com a intenção deliberada de não concorrer para que o administrador da insolvência tomasse conhecimento dos factos que determinaram a insolvência do devedor.
7- Para que se possa qualificar a insolvência como culposa com fundamento na presunção ilidível de culpa grave da al. b) do n.º 3 do art. 186º, para além de se ter de provar os factos base da presunção (e desta não ser ilidida mediante prova em contrário), é necessário que se prove que foi em consequência do comportamento previsto naquela al. b) do n.º 3 que resultou (nexo causal) o estado de insolvência do devedor ou o seu agravamento.
Decisão Texto Integral:
Acordam na 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães

I- RELATÓRIO

EMP01..., Lda., com sede na ..., ... ..., instaurou, em ../../2023, ação especial de insolvência, requerendo que fosse declarada insolvente.
Por sentença proferida em 26/06/2023, transitada em julgado, declarou-se a requerente EMP01..., Lda. insolvente.
Em 23/08/2023, a administradora da insolvência juntou aos autos o relatório a que alude o art. 155º do CIRE, em que emitiu parecer no sentido de que: se procedesse à liquidação do ativo, dado que “a empresa não se encontra em atividade, nem existe viabilidade de um plano de recuperação”, e se qualificasse a insolvência como culposa.
Por despacho de 14/09/2023, determinou-se que: o processo de insolvência prosseguisse com a liquidação do ativo, com a imediata apreensão dos bens; a abertura de incidente de qualificação da insolvência com caráter pleno; a notificação da administradora da insolvência para juntar aos autos parecer quanto à qualificação da insolvência.
Em 04/11/2023, a administradora da insolvência juntou aos autos parecer requerendo que se qualificasse a insolvência como culposa, por se mostrarem “preenchidas as presunções inilidíveis de insolvência culposa do n.º 2 do art. 186º do CIRE, nomeadamente, as das alíneas a), b), g), h) e i), e as presunções ilidíveis de culpa grave da al. b), do n.º 3” do mesmo art. 186º, e fossem afetados pela qualificação os atuais sócios e gerentes da sociedade devedora: AA e BB.
O Ministério Público emitiu parecer em que aderiu aos fundamentos fácticos e jurídicos que se encontram explanados no parecer emanado pela administradora da insolvência, requerendo também ele que a insolvência da sociedade devedora fosse qualificada como culposa, nos termos do art. 186º, n.ºs 2, als. a), b), g) e h) e 3, al. b) do CIRE, e fossem afetados pela qualificação os sócios gerentes desta: AA e BB.
Notificada a sociedade devedora e citados os identificados AA e BB para, querendo, deduzirem oposição, não o fizeram.
Em 08/01/204, a 1ª Instância proferiu despacho, dispensando a realização de tentativa de conciliação e de audiência prévia e fixando o valor do presente incidente de qualificação em 30.000,01 euros; proferiu despacho saneador tabular; fixou o objeto do litígio e os temas da prova; conheceu dos requerimentos probatórios apresentados pelas partes; e designou data para a realização da audiência final.
Realizada a audiência final, a qual se prolongou ao longo de uma única sessão, em ../../2024, proferiu-se sentença, em que se qualificou a insolvência da sociedade devedora como culposa e como pessoa afetada pela qualificação BB, constando dessa sentença a seguinte parte dispositiva:

“Em conformidade com o exposto, decide o Tribunal:
i. qualificar a insolvência de EMP01..., Ld.ª como culposa;
ii. declarar BB, a pessoa afetada pela qualificação da insolvência como culposa;
iii. decretar a inibição de BB, por um período de 2 anos, para o exercício do comércio, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa;
iv. determinar a perda de quaisquer créditos sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente detidos pelo mencionado BB e a sua condenação na restituição dos bens ou direitos já recebidos em pagamento desses créditos;
v. condenar BB a indemnizar os credores da devedora declarada insolvente, no montante dos créditos não satisfeitos, até às forças do respetivo património.
Custas pelo Requerido BB [art. 304.º do CIRE]”.

Inconformado com o decidido, BB interpôs recurso, em que formulou as conclusões que se seguem:

1ª- O tribunal a quo incorreu em erro de julgamento ao dar como provada a matéria inserta nos pontos 3.20 e 3.25, pois que, descortinada a matéria de facto considerada provada, que fundamentou e alicerçou a decisão proferida, constata-se que existe prova de que a insolvente depositou as suas contas na Conservatória do Registo Comercial até ao ano de 2020, e que, inexiste quaisquer prova de que a gerência a partir de ../../2021 tenha sido exercida exclusivamente pelo recorrente, de que este tenha alienado parte do ativo a terceiros prejudicando os demais credores e que não tenha tido o cuidado de se apresentar a insolvência em tempo oportuno, agravando, com isso a situação de insolvência da requerida.
2ª- Do relatório apresentado pela Ex.ma Sr.ª Administradora da Insolvência, nos termos do artigo 155º do CIRE, resulta quanto ao ponto 3.20 posto em crise o seguinte: “ Da certidão de matricula obtida é possível confirmar que a devedora depositou as suas contas na Conservatória do Registo Comercial até ao ano de 2020:” (cfr, página 6, item (ALÍNEA B) DO Nª 1 DO ARTº 155 DO CIRE), e quanto ao ponto 3.25 nada consta, em nada se faz referência quanto a assunção da gerência a partir de ../../2021, quanto a não apresentação da requerida a insolvência em tempo útil e/ou do agravamento da sua precária situação económica.
3ª- Na verdade, consta: “Deste modo, resulta inequívoco que a situação em que a devedora se encontra, resulta, também, dos constrangimentos decorrentes do estado de emergência que obrigou a medidas extremas no combate á doença de COVID-19.” Cfr. página 6, penúltimo paragrafo da OPINIÃO SOBRE AS CAUSAS DA SITUAÇÃO EM QUE A DEVEDORA SE ENCONTRA.
4ª- Do parecer da qualificação elaborada pela Ilustre Administradora da Insolvência, no ponto 2.5 consta: “Aqui chegados, constatou-se que a sociedade se encontrava em situação de insolvência que os sócios e gerentes teimaram em ignorar e sem contabilidade devidamente organizada.” (sublinhado e negrito nosso), no ponto 3.6: “Acresce que, no mês de ../../2021, sócio gerente AA foi acometido de doença súbita do foro cardíaco, tendo sido, hospitalizado e submetido a cirurgia e, consequentemente, viu-se obrigado a ficar de baixa médica prolongada sem quaisquer perspetivas de retomar o trabalho.”, e no ponto 3.7  que o recorrente, após essa ocorrência, ficou a fiscalizar e orientar todas as obras em curso, que até essa data eram orientadas por ambos, conforme divisão concertada, contudo, isso não significa nem se extrai da petição inicial de insolvência que o gerente AA face aquela sua doença se tivesse arredado totalmente das suas funções de gerente da insolvente, mas, tão só da parte relativa ao trabalho e esforço físico que vinha desenvolvendo nas obras que vinha orientando e fiscalizando.
5ª- O sócio e gerente AA, em todo que dizia respeito à gestão e administração da insolvente era interventivo, dava opiniões, sugestões, dirigia e elaborava orçamentos, tomava decisões, sendo, de mencionar a sua intervenção no acordo de pagamento alcançado com a credora “EMP02..., Lda.” em ../../2022, a dação a CC do veículo automóvel de matricula ..-..-ZM (requerimento de transmissão de registo de propriedade - doc. nº ...) efetuada em, ../../2023, e a ata da reunião extraordinária ocorrida em 16 de junho 2023, junta aos autos da a insolvência (cfr. doc. nº ...4).
6ª- Toda e qualquer decisão referente a empresa insolvente era analisada e tomada em conjunto pelos seus sócios gerentes, até porque toda a documentação da sociedade (orçamentos, contratos, autos de vistoria, de mediação, faturação, etc…) se encontrava na residência do sócio gerente AA, por a insolvente, ainda, não ter sede física, diga-se, edifício, que seria construído sob o terreno comodatado, sito na Rua ... na freguesia ..., concelho ..., onde tinha a sua sede.
7ª- Acresce, que todos os créditos reconhecidos e reclamados da insolvente, designadamente, os créditos à Autoridade Tributária e Aduaneira, ao do Instituto da Segurança Social, I.P. Centro Distrital de ..., a da credora EMP02..., Lda., e até o crédito sob condição a DD tiveram a sua origem em data anterior em que sócio e gerente AA foi acometido da mencionada doença e ficou impossibilitado de efetuar esforço físico.
8ª- O crédito devido ao Instituto da Segurança Social, I.P, Centro Distrital de ... diz respeito a contribuições respeitantes ao ano de 2020 e a juros de mora e custas processuais (cfr. relação de créditos reconhecidos e reclamados apenso A).
- O crédito devido a Autoridade Tributária e Aduaneira diz respeito a IVA do ano de 2020 (período 2020/09T), do ano de 2021, coimas e encargos (cfr. processos nºs ...39 e ...09) e IRC do ano de 2021.
10ª- O “alegado” crédito sob condição de DD resulta da resolução do contrato de empreitada operada em outubro do ano de 2021 pelas partes contratantes, como se encontra alegado em sede contestação/reconvenção da insolvente no processo nº 4123/22....,a correr termos no Juízo Central Cível da Póvoa de Varzim - Juiz ..., assim como, o crédito da credora EMP02... que surge a partir dessa data pela atitude daquele em não deixar a insolvente proceder ao levantamento das cofragens alugadas em tempo útil, tendo como consequência penalizações e incumprimentos do contrato com a credora, que redundaram em valores indevidos e se encontram reclamados no identificado processo.
11ª- Das declarações prestadas em audiência de discussão e julgamento pelo recorrente, no dia ../../2024, com início às 10:04 e fim às 10:33 horas, nos segmentos indicados, constata-se que o recorrente, quando adquiriu a quota ao anterior sócio, a sociedade já tinha dívidas à Segurança Social e à AT, ainda que de pouca monta; que após, o acometimento da doença pelo sócio e gerente AA, período de convalescença, e antes de ser requerida a insolvência da empresa, com vista a persecução da sua atividade, requereu planos de pagamento com a Segurança Social e as Finanças, por serem os únicos e principais credores, pois o crédito sob condição a DD ainda não existia, tendo sido aceite pela primeira, cujo pagamento está a ser cumprido, não obtendo resposta do Serviço de Finanças; que os documentos contabilísticos da empresa estavam na posse do outro gerente, por sempre ter assim, e que não teve acesso aos mesmos; que efetuou a dação dos veículos para compensar os credores dos valores entregues; que a empresa cessou atividade em finais de 2021 e que tentou suspender a atividade junto da AT, sem sucesso.
12ª- Pelo que, de toda a prova carreada para os autos, mal andou o Meritíssimo Juiz de Direito do Tribunal recorrido ao dar como provado que a insolvente não depositou as contas atinentes ao ano de 2020, assim como, em dar como provado que o aqui recorrente a partir de ../../2021 exerceu exclusivamente a gerência da empresa, e que não cuidou de se apresentar à insolvência como alienou entretanto a terceiros (credores) parte do respetivo ativo, tendo, desta feita prejudicado os demais credores.
13ª- O que imponha redação diferente e diversa, assim como, a inclusão na factualidade dada como provada dos seguintes pontos:
A gerência da requerida, antes de ter requerido a sua insolvência, solicitou um plano de pagamento do crédito devido à Segurança Social, que foi aceite e se encontra a liquidar, assim como, a Autoridade Tributaria e Aduaneira, que nunca deu resposta ao solicitado”.
“Todos os documentos contabilísticos da sociedade insolvente estavam na posse do sócio gerente AA, situação que decorria de data anterior a data em que o sócio gerente BB adquiriu a quota ao sócio e gerente EE”.
“Aquando do acometimento da doença que foi alvo o gerente AA, em ../../2021, o sócio gerente BB viu-se impedido de aceder a esses documentos”.
14ª- O recorrente considera, também, que, face a factualidade dada como provada, não se verificou, nenhuma das situações a que alude as alíneas a), b), g), h) e i) do n.º 2 do art. 186º, assim como, da alínea a) e/ou b) do n.º 3 da citada norma legal, que são invocadas pelo tribunal recorrido.
15ª- Como é ponto assente pela jurisprudência maioritária e pela doutrina, as presunções previstas nas alíneas a) a i) do nº 2 do artigo 186º do CIRE, tem um caráter conferido por lei iuris et de iure, através do qual é de qualificar sem mais como culposa a insolvência do devedor, o significa que não é necessário provar que a ação em causa causou ou agravou a insolvência e/ou que o administrador atuou com dolo ou com culpa grave.
16ª- A atuação do administrador presume-se sempre dolosa ou com culpa grave sem necessidade de prova, assim como, o nexo de causalidade entre aquela atuação a situação de insolvência ou do seu agravamento (cfr. Luís Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Quid Juris, que em anotação ao artigo 186, página 610, e Manuel A. Carneiro da Frada [A responsabilidade dos administradores na insolvência, publicado na Revista da Ordem dos Advogados, ano 66º, Volume II, disponível no sítio http://www.oa.pt]).
17ª- Assim, ainda que a interpretação do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE redunde sempre na insolvência culposa, torna-se necessário que os factos aí enumerados de forma taxativa sejam provados, para conduzir aquela presunção inilidível, quer da atuação dos administradores, de facto ou de direito, quer do nexo de causalidade.
18ª- Assim, a dação dos veículos automóveis propriedade da devedora, objeto de apreciação pelo tribunal recorrido, não se ajusta a nenhuma das ações previstas na alínea a) do 2 do artigo 186º do CIRE, nem tão pouco da alínea b), como consta da douta sentença recorrida.
19ª- Em primeiro lugar a dação/transmissão operada não configura destruição, danificação ou inutilização do património do devedor, pois que, com a mesma não se destruiu, não se danificou nem se inutilizou os veículos automóveis da sociedade insolvente.
20ª- Em segundo lugar, a transmissão não é ação que tenha “feito desparecer… o património do devedor”, pois que, para efeitos da alínea a), essa expressão compreende as ações que fazem sair bens do património do devedor de forma tal que o destino delas não seja conhecido (cfr. Pedro Caeiro, em comentário ao artigo 227.º do Código Penal escreve: estão em causa “condutas que provocam uma diminuição real do património”; com elas “o devedor deprecia realmente o valor do seu património, causando por essa forma uma situação de insolvência. No que diz respeito à expressão “fazer desaparecer parte do seu património”, parece que ela servirá para atalhar os casos em que não se descobre o paradeiro de bens que supostamente se deviam encontrar na titularidade do devedor. Não se importa se eles foram objeto de uma alienação real ou tão só fictícia, importa tão que os credores não conseguem atingi-los para garantir a satisfação das suas dívidas, pelo que o valor ostensivo do património resulta, em qualquer caso diminuído” [Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial Tomo II, páginas 412 e 413].
21ª- Interpretada a expressão “feito desaparecer o património do devedor” com o sentido atrás exposto, a conclusão a retirar é a de que ela não cobre a transmissão dos veículos em causa, é que, apesar de a transmissão ter por efeito a transmissão da propriedade das viaturas (cfr. alínea a), do artigo 879.º do Código Civil), sabe-se e conhece-se o destino delas.
22ª-Por fim, dir-se-áainda, quea dação/transmissão efetuadanão seajustaao conceito de ocultação.
23ª- No entendimento da jurisprudência maioritária, a ocultação que é tida em vista tanto compreende a ocultação física de bens do devedor, como a ocultação jurídica. No caso não há ocultação física, pois conhece-se o paradeiro dos veículos.
24ª- E também não há ocultação jurídica, pois para tal seria necessário que estivesse provado que existiu um acordo entre a transmitente e os transmissários dos veículos no sentido de simularem as transmissões, com a intenção de esconderem a verdadeira titularidade dos veículos (que continuaria a caber à sociedade), sendo que, nesta hipótese poder-se-ia sustentar a tese da ocultação (jurídica) do património do devedor.
25ª- Ora, os factos dados como provados (cfr. pontos 3.12; 3.14; 3.16; 3.17) pelo tribunal a quo, são manifestamente insuficientes e/ou inexistentes para sustentar a tese da ocultação do direito de propriedade sobre os veículos.
26ª- Quanto a alínea b) do 2 do artigo 186º do CIRE, considera o recorrente que inexiste matéria factual que possa sustentar qualquer uma das ações aí tipificadas.
27ª- A matéria de facto provada não contém um único facto que possa ser incluído no âmbito de previsão da citada alínea e tão pouco alude a qualquer venda/alienação que visasse reduzir os lucros da devedora, ou sequer a celebração por esta de negócios ruinosos em proveito dos administradores ou de pessoas com eles especialmente relacionadas.
28ª- Nenhum facto ou circunstância concreta se retira da prova trazida para os autos que permita concluir pela verificação da situação aí tipificada, pois que, nada resulta quanto ao valor das dações dos veículos automóveis que permita clarificar se esses negócios foram ruinosos e se foram efetuados em proveito dos administradores ou de pessoas com eles relacionadas e/ou até se “…agravaram artificialmente passivos ou prejuízos…”.
29ª- Para que fosse possível formular tal conclusão seria necessário saber quais os concretos negócios que foram efetuados, quais as pessoas que tiveram intervenção nesses negócios, quais os preços contratados em cada um desses negócios e quais os reais e exatos valores de mercado de cada um dos veículos em causa. Só com esses factos concretos seria possível formular um juízo acerca do carácter ruinoso desses negócios para a devedora e acerca do proveito obtido pelos seus administradores ou por pessoas com eles especialmente relacionadas.
30ª- A verdade é que esses factos não foram alegados e também não resultaram da prova produzida, quer documental trazia aos autos quer das declarações do recorrente.
31ª- Quanto a situação prevista na alínea g) do 2 do citado art. 186º, o tribunal recorrido, refere que a declaração de insolvência da devedora ocorreu em finais do ano de 2021, data em que deixou de ter atividade, sendo que a insolvência foi requerida pelos seus administradores/gerentes em junho de 2023, e que os gerentes da devedora estavam cientes da situação económico-financeiro, adotando condutas que contribuíram para a situação de insolvência da devedora.
32ª- Mas, mais uma vez, o tribunal a quo não disponha de quaisquer factos concretos que lhe permitisse concluir pela verificação da situação prevista na citada alínea.
33ª- Nos termos da norma citada, considera-se culposa a insolvência quando os administradores do devedor que não seja pessoa singular tenham “prosseguido, no seu interesse pessoal ou de terceiro, uma exploração deficitária, não obstante saberem ou deverem saber que esta conduziria com grande probabilidade a uma situação de insolvência”.
34ª- O que está aqui em causa não é propriamente a mera gestão ruinosa e imprudente do património ou rendimentos do devedor, independentemente das concretas circunstâncias em que ela se traduza.
35ª- A situação ali prevista pressupõe a prossecução de uma determinada atividade cuja exploração se revele deficitária e pressupõe que tal aconteça em benefício e no interesse de pessoa diversa do devedor, ou seja, em benefício dos seus administradores ou de terceiro. Está em causa, portanto, uma determina atividade deficitária, que é exercida em nome do devedor, fazendo refletir no seu património os prejuízos inerentes, mas sem que para ele exista qualquer benefício, porquanto tal atividade não é exercida no seu interesse, mas sim no interesse pessoal dos respetivos administradores ou de terceira pessoa.
36ª- Com efeito, o que se dispõe (claramente) na citada alínea g) é que a insolvência se considera culposa quando os administradores do devedor (pessoa coletiva) prossigam uma exploração deficitária no seu interesse pessoal ou de terceiro, e, portanto, não estão abrangidas na previsão legal as situações em que os administradores prosseguem essa exploração deficitária no interesse do próprio devedor.
37ª- Assim sendo, a mera circunstância de os gerentes da devedora estarem (ou deverem estar) cientes da situação de insolvência (ou pré-insolvência) em que esta se encontrava e de, ainda assim, terem prosseguido a atividade deficitária não é bastante para que se considere verificada a situação prevista na citada alínea; para tal, seria necessário, como vimos, que a exploração deficitária fosse prosseguida no interesse pessoal dos administradores da devedora ou no interesse de terceiro e nada resultou da prova produzida que aponte nesse sentido.
38ª- Sabe-se apenas, porque resulta da matéria de facto provada (cfr. ponto 323), que a Insolvente se encontrava inativa, sejam sem qualquer atividade desde finais do ano de 2021, apresentando incumprimento para com os seus credores, nomeadamente, desde o ano de 2020 (AT) e 2021 (AT E ISS, I.P).
39ª- Na verdade dos factos nada se extrai com relevância para a citada alínea; pois que, apenas permitem concluir, quando muito, que a devedora estava em situação económica difícil desde o ano 2020/2021 (data em que já estava em incumprimento para com os seus credores) e que, pelo menos em 2021 ficou em situação de insolvência já que ficou sem qualquer atividade.
40ª- Contudo, ainda que, a partir de 2021/2022 e até meados de 2023, os administradores da devedora tenham mantido aberta a atividade da insolvente (que já seria deficitária), nada indicia que o tenham feito no seu próprio interesse ou no interesse de terceiro.
41ª- Quanto as alíneas h) e i) do 2 do artigo 186º do CIRE, ainda que enunciem factos que fazem suspeitar a existência de outros factos relevantes para a situação de insolvência, seja, façam supor que, se assim se procedeu, sufraga-se aqui o constante no Acórdão da Relação de Coimbra, de 25-05-2021, in www.dgsi.pt., seja que, se esta estamos perante “(…) verdadeiras ficções.”, assim como, o constante no Acórdão da Relação de Guimarães de 12-10-2023.
42ª- Contudo, ainda na linha de entendimento explanado no Acórdão da Relação de Coimbra, deve “ser colocada alguma exigência no preenchimento de tais alíneas h) e i), entendemos que pode/deve ser exigida alguma “densidade” factual para poder dar como satisfeitas/provadas as expressões “em termos substanciais”, “com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor” e “de forma reiterada”, constantes das alíneas h) e i) do n.º 2 do art. 186.º.
43ª- Ora, dado que, a sentença recorrida teve em conta para qualificar a insolvência como culposa, os factos enumerados nas alíneas a), b), g) do n.º 2, do artigo 186.º do CIRE, aqui desconsiderados e colocados em crise pelo recorrente, por não se ter demonstrado/provado a factualidade que lhes subjaz, designadamente, que os administradores, quer de direito quer de fato, tenham destruído, danificado, inutilizado, feito desparecer ou ocultado no todo ou em parte o património da devedora; tenham vendido/alienado bens que visasse reduzir os lucros da devedora, ou sequer a celebração por esta de negócios ruinosos em proveito dos administradores ou de pessoas com eles especialmente relacionadas; ou prosseguido, no seu interesse pessoal ou de terceiro, uma exploração deficitária, não obstante saberem ou deverem saber que esta conduziria com grande probabilidade a uma situação de insolvência, não se podendo extrair os factos que se encontram tipificados das alíneas h) e i) desse nº 2, porque, não se tendo verificada esse factualidade também não se pode supor.
44ª- Quanto a aplicabilidade do 3 alínea b), do artigo 186º do CIRE, tal norma, ao contrário do que ocorre para o n.º 2 do mencionado preceito estabelece uma presunção de culpa grave, mas já não de causalidade, e daí que a qualificação da insolvência como culposa demandará sempre a alegação e prova do nexo de causalidade entre a omissão a que se refere a al. b) do n.º 3 do art. 186.º do CIRE e a criação ou agravamento da situação de insolvência.
45ª- O que se retira dos n.ºs 1 e 3 do artigo 186º do CIRE, e ao invés do que sucede com o n.º 2, é que o nexo de causalidade entre a omissão do dever de requerer a insolvência e a criação ou agravamento da situação de insolvência têm que estar adquiridos (o que se faz através da alegação e prova dos factos respetivos, sem prejuízo para a atividade oficiosa do tribunal) para que se possa concluir pela insolvência culposa.
46ª- É entendido maioritário do Supremo Tribunal de Justiça que sem a comprovação do referido nexo de causalidade entre o facto e a criação ou agravamento da situação de insolvência não pode concluir-se pela insolvência culposa. São exemplos desse entendimento, entre outros, os acórdãos de 6 de outubro de 2011 (processo n.º 46/07.8TBSVC-0.L1.S1, relator Serra Batista), de 29 de outubro de 2019 (processo n.º 434/14.3T8VFX-C.L1.S1, relatora Maria Olinda Garcia)ede5 de abril de2022 (processo n.º 3071/16.4T8STS-F.P1.S1, relatora Ana Paula Boularot), todos disponíveis em www.dgsi.pt.
47ª- Perscrutando a matéria de facto que está provada, nenhum facto (quer alegado, contraditado ou adquirido oficiosamente) existe que mostre que a circunstância da insolvência da EMP01..., Lda. não ter sido requerida pelos respetivos gerentes, nomeadamente pelo aqui recorrido, dentro do prazo estabelecido na lei foi causa da criação da situação de insolvência da sociedade ou do agravamento dessa situação.
48ª- Não se discute, naturalmente, que os gerentes agiram culposamente (culpa grave, tal como presumida na alínea a) do n.º 3 do art. 186.º do CIRE, presunção não ilidida), mas ficou por saber-se/demonstrar-se se esse comportamento culposo funcionou como causa do estado insolvencial da sociedade ou se o agravou.
49ª- Não basta a simples demonstração da sua existência e a consequente presunção de culpa que sobre os administradores recai.
50ª- A simples circunstância de se omitir o dever de requerer a insolvência da empresa não é suficiente para que se classifique esta (insolvência) como culposa, sendo que, a violação, pelos administradores do dever de requerer a insolvência, apenas permite presumir a culpa grave daqueles, mas já não a imputação da situação de insolvência, ou o seu agravamento, à respetiva conduta.
51ª- Ainda que nada se refira na douta sentença recorrida, dir-se-á que o atraso na apresentação à insolvência não pode causar prejuízo aos credores com a invocação de que os juros se avolumam na medida em que continuam a ser contados até àquela apresentação, até porque, face ao atual regime estabelecido no Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, os créditos continuam a vencer juros após a apresentação à insolvência, pelo que o atraso desta apresentação nunca ocasiona qualquer prejuízo aos credores.
52ª- Conclui-se, assim, que, por falta de factualidade provada idónea a esse desiderato, (do prejuízo que, da falta de apresentação tempestiva à insolvência, decorreu para os credores) não é possível, no caso “sub judice”, dar como verificada a situação que permitiu qualificar como culposa a insolvência da Requerida/Insolvente, não sendo possível dar como preenchida a previsão da alínea a) e b) do nº 3 do artigo 186º do CIRE.
53ª- Devendo, em face disso alterar - se o julgado nos termos expostos.
54ª- Pelo que, em face do exposto deve este Venerado Tribunal da Relação alterar a decisão proferida pelo tribunal a quo, no sentido de que, devem os concretos pontos 3.20 e 3.25 da matéria de facto dada como provada serem alterados, serem insertos na matéria de facto dada como provada os indicados, por terem sido incorretamente julgados e apreciados pelo tribunal a quo face a toda a prova produzida, nos termos do prescrito nos artigos 640º n.º 1 alíneas a), b) e c) e 662º n.º 1 do Código do Processo Civil, assim como, face à total falta de factualidade que permita preencher os critérios previstos nas alíneas a), b), g), h), e i) do n.º 2 e alíneas a) e b) do n.º 3 do artigo 186º do CIRE, ser qualificada a insolvência da requerida “EMP01..., Lda.” como fortuita.

NESTES TERMOS e nos melhores de direito, sempre com o muito douto suprimento de V. Ex.ªs, deve ser julgado procedente, por provado, o presente recurso apresentado pelo recorrente, alterando-se a douta sentença recorrida nos termos aqui explanados, pelo que, assim decidindo, farão V. Ex.ªs, a acostumada JUSTIÇA.
Em anexo às alegações juntou um documento.
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O Ministério Público contra-alegou pugnando para que o recurso fosse julgado improcedente e se confirmasse a sentença recorrida.
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A 1ª Instância admitiu o recurso como sendo de apelação, a subir nos próprios autos do apenso de qualificação da insolvência e com efeito devolutivo, o que não foi alvo de modificação no tribunal ad quem.
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Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
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II- DO OBJETO DO RECURSO

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do apelante, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso - cfr. artigos 635.º, nº 4, e 639.º, nºs 1 e 2, do CPC.
Acresce que, o tribunal ad quem também não pode conhecer de questão nova, isto é, que não tenha sido, ou devesse ser, objeto da decisão sob sindicância, salvo se se tratar de questão que seja do conhecimento oficioso, dado que, sendo os recursos os meios específicos de impugnação de decisões judiciais, mediante o reexame de questões que tenham sido, ou devessem ser, nelas apreciadas, visando obter a anulação da decisão recorrida (quando padeça de vício determinativo da sua nulidade) ou a sua revogação ou alteração (quando padeça de erro de julgamento, seja na vertente de erro de julgamento da matéria de facto e/ou na vertente de erro de julgamento da matéria de direito), nos recursos, salvo a já enunciada exceção, não podem ser versadas questões de natureza adjetivo-processual e/ou substantivo material sobre as quais não tenha recaído, ou devesse recair, a decisão recorrida[1].
No seguimento desta orientação cumpre ao tribunal ad quem apreciar as seguintes questões:
a- Da admissibilidade legal da junção aos autos do documento apresentado pelo apelante em anexo às alegações de recurso;
b- Se a sentença recorrida padece de erro de julgamento da matéria de facto quanto à facticidade que nela foi julgada provada nos pontos 3.20 e 3.25 e se, uma vez revisitada e reponderada a prova produzida, se impõe:
b.1- quanto à facticidade julgada provada nos pontos 3.20 e 3.25, apenas julgar provada a seguinte materialidade fáctica:
“3.20- A insolvente não depositou as suas contas na Conservatória do Registo Comercial dos anos de 2021 e 2022”;
3.25- Não obstante a situação deficitária da empresa se verificar desde, pelo menos, o ano de 2021, veio a agravar-se a partir de 2022”; e
b.2- adicionalmente julgar provada a facticidade que se segue:
“A gerência da requerida, antes de ter requerido a sua insolvência, solicitou um plano de pagamento do crédito devido à Segurança Social, que foi aceite e se encontra a liquidar, assim como à Autoridade Tributária e Financeira, que nunca deu resposta ao solicitado”;
“Todos os documentos contabilísticos da sociedade insolvente estavam na posse do sócio gerente AA, situação que já decorria de data anterior à data em que o sócio gerente BB adquiriu a quota ao sócio e gerente EE”;
“Aquando do acometimento da doença de que foi alvo, em ../../2021, o sócio gerente BB viu-se impedido de aceder a esses documentos”;
c- Se, na sequência da procedência da impugnação do julgamento da matéria de facto operada pelo apelante, ou independentemente dela, a decisão de mérito constante da sentença recorrida (que qualificou a insolvência da sociedade devedora como culposa com fundamento no art. 186º, n.ºs 2, als. a), b), g), h) e i) e 3, al. b) do CIRE) padece de erro de direito, uma vez que a facticidade julgada provada não permite concluir pelo preenchimentos dos factos base contidos em nenhuma das alíneas daquelas disposições legais, e se, em consequência, se impõe revogar a sentença recorrida e qualificar a insolvência da sociedade devedora como fortuita e absolver o apelante BB (enquanto afetado pela qualificação da insolvência da sociedade devedora como culposa) das condenações de que nela foi alvo.
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III- DA FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

A 1ª Instância julgou provada a facticidade que se segue, com relevância para a decisão a proferir no âmbito do presente incidente de qualificação:
3.1. A insolvente foi constituída no dia 09.07.2019 pelos sócios-gerentes EE e AA, sendo a sua área de atividade relacionada com o ramo da construção civil, designadamente, “construção de edifícios, construção de outras obras de engenharia civil e realização de outras atividades especializadas em construção. Desenvolvimento de atividades de engenharia e técnicas afins. Promoção imobiliária. Desenvolvimento de atividades relacionadas com a compra, venda, arrendamento, mediação, angariação e avaliação de bens imobiliários”.
3.2. No dia ../../2020 o sócio-gerente EE renunciou à dita gerência e cedeu a sua quota ao novo sócio-gerente BB que, em conjunto com o mencionado AA, geriram e administraram a ora insolvente, este último, porém, apenas até ao mês de ../../2021.
3.3. No decurso do ano de 2020 e 2021, a Devedora começou a entrar em incumprimento com alguns dos seus clientes por falta de entrega das obras nos prazos de conclusão acordados, o que originou, entre outros constrangimentos, o pagamento de penalizações (cláusulas penais) e o não recebimento da totalidade dos valores acordados pelas empresas adjudicadas.
3.4. No mês de ../../2021, o sócio-gerente AA foi acometido de doença súbita do foro cardíaco, tendo sido, hospitalizado e submetido a cirurgia e, consequentemente viu-se obrigado a ficar de baixa médica prolongada, sem quaisquer perspetivas de retomar o trabalho.
3.5. Naquela data, o sócio-gerente BB ficou sozinho a orientar e a fiscalizar a totalidade das obras que a insolvente tinha adjudicadas e, por via disso, não conseguiu, em tempo útil, dar resposta a todas as situações que iam surgindo, uma vez que, acumulava em si diversas e múltiplas funções.
3.6. Ao longo do tempo, os incumprimentos foram-se avolumando cada vez mais e tiveram como consequência imediata a diminuição abrupta da entrada de receitas que não permitiram a sociedade insolvente fazer face aos seus compromissos, em particular, pagar aos trabalhadores, fornecedores, contribuições e quotizações sociais, tributos e impostos, serviços de água e eletricidade, entre outros.
3.7. A situação supra descrita veio a agravar-se no decurso do ano de 2022, atenta a diminuição da procura pelo setor da construção civil.
3.8. Face aos incumprimentos reiterados e contínuos junto dos clientes começaram a ser instauradas diversas ações judiciais de cobrança de créditos contra a insolvente, bem como, processos de execução fiscal instaurados pelo Serviço de Finanças e Segurança Social advindos da falta de pagamento das contribuições/quotizações, impostos e tributos, designadamente: Proc. n.º 438/22...., que corre seus termos pelo Juízo de Competência Genérica de Valença do Tribunal Judicial da Comarca de ...; Proc. n.º 4123/22...., que corre seus termos pelo Juízo Central Cível da Póvoa do Varzim do Tribunal Judicial da Comarca do Porto; Processo de Execução Fiscal n.º ...69; Processo de Execução Fiscal n.º ...08; Processo-Crime n.º 410/20... – Secção do DIAP de Caminha.
3.9. A devedora apresentou-se à insolvência aos ../../2023, tendo a mesma vindo a ser declarada por sentença de 26.06.2023, entretanto transitada em julgado.
3.10. Quanto ao património detido pela insolvente logrou a AI apurar a existência de um veículo automóvel, com a matrícula ..-..-QD, marca ..., modelo ..., que não foi indicado pela insolvente na petição inicial.
3.11. Interpelada, a insolvente informou a AI que o referido veículo automóvel não foi mencionado na ação de insolvência porque não é propriedade da mesma (insolvente) desde o ano de 2022, tendo sido alvo de um acidente rodoviário e, consequentemente, entregue para peças a um senhor da zona de ... que, sem o conhecimento da insolvente, ainda, não o registara a seu favor.
3.12. Acresce que a AI apurou ainda que a insolvente detinha dois veículos automóveis, com as matrículas ..-..-ZM e ..-PO-.. que, segundo a mesma, foram, entretanto, dados em pagamento a CC e FF, para amortização parcial dos valores que a insolvente recebeu, antecipadamente, dos mesmos pela adjudicação de obras, que não chegou a executar.
3.13. Tais veículos automóveis foram, prévio ao registo de propriedade a favor de CC e FF, objeto de penhora no âmbito do processo de execução n.º 438/22...., a correr termos no Juízo de Competência Genérica de Valença do Tribunal Judicial da Comarca de ..., desde ../../2023.
3.14. Os registos de propriedade a favor de CC e FF dos referidos veículos automóveis foram efetuados, respetivamente, em ../../2023 e ../../2023, isto é, nos dois anos anteriores à data de declaração de insolvência.
3.15. Através da análise da certidão do Serviço de Finanças, foi possível apurar que a insolvente havia, igualmente, sido titular do veículo automóvel de matrícula ..-..-QV, sendo que, da plataforma de consulta às bases de dados pública, disponível através do portal Citius, se pode concluir que o aludido veículo terá sido transmitido, em ../../2023, pela insolvente à mencionada FF.
3.16. Através de carta registada c/AR foi operada a resolução dos negócios de dação em pagamento dos veículos automóveis com as matrículas ..-PO-.., ..-..-ZM e ..-..-QV, anteriormente propriedade da insolvente.
3.17. As cartas de resolução do negócio foram recebidas pelos referidos CC e FF, bem como pelo sócio-gerente da devedora, AA, que às mesmas não responderam, considerando-se operadas.
3.18. Entretanto, a insolvente informou a AI que todos os bens móveis (utensílios de trabalho) que detém se encontravam retidos na posse de DD, na obra sita na Rua ..., ..., ..., no âmbito do Proc. n.º 4123/22...., que correu os seus termos pelo ... Juízo Central Cível da Póvoa do Varzim do Tribunal Judicial da Comarca do Porto.
3.19. No dia ../../2023, a AI procedeu à apreensão dos bens móveis da sociedade insolvente, tendo sido os mesmos avaliados na quantia de € 1.500,00.
3.20. A insolvente não depositou as suas contas na Conservatória do Registo Comercial nos anos de 2020, 2021 e 2022.
3.21. A insolvente não possuía a contabilidade organizada, o que causou a inviabilização do acesso a documentos essenciais para uma correta análise pelos credores da situação económica e financeira da empresa e, em particular, para o apuramento real do ativo e passivo da insolvente.
3.22. A insolvente não remeteu quaisquer documentos contabilísticos relativos aos três últimos exercícios por alegadamente não terem os mesmos sido fornecidos pelo gabinete de contabilidade com quem a devedora detinha uma avença mensal, uma vez que, não foram as mesmas (avenças) liquidadas nos últimos dois anos.
3.23. Através de mensagem de correio eletrónico, veio o contabilista informar a AI que deixou de exercer a atividade profissional de contabilista certificado em 27.09.2021, o que coincide com o período em que a insolvente deixou de desenvolver qualquer atividade, vindo a culminar, mais tarde, com a doença do gerente AA.
3.24. A situação financeira da insolvente decorre da acumulação de diversos incumprimentos de valores muito elevados, o que originou, uma situação de instabilidade financeira, designadamente a dívida que detém junto da Fazenda Nacional, no montante total de €38.209,85, que corresponde, em particular, a dívidas de IVA, IRC e IUC, e junto da Segurança Social, a título de contribuições e cotizações, no montante total de €12.663,10.
3.25. Não obstante a situação financeira deficitária da empresa se verificar já desde, pelos menos, o ano de 2021, tendo-se vindo a agravar a partir de 2022, a gerência – a partir de ../../2021 exercida exclusivamente pelo sócio BB – não só não cuidou de se apresentar à insolvência como alienou, entretanto, a terceiros (credores) parte do respetivo ativo, desta feita tendo prejudicado os (demais) credores.
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E considerou inexistirem “factos não provados, com interesse para a decisão da causa”.
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IV- DA FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA

A- Da legalidade da junção aos autos do documento junto pelo recorrente com as alegações de recurso
O recorrente intenta juntar aos autos um documento que apresentou em anexo às alegações de recurso e que se traduz no termo de reconhecimento simples, elaborado em ../../2023, por advogado, da assinatura de AA, que este apôs, na qualidade de sócio e gerente da sociedade devedora, EMP01..., Lda., no requerimento de registo automóvel relativo à compra e venda do veículo automóvel da marca ..., modelo ..., com a matrícula ..-..-ZM, pelo que urge indagar se é consentido ao recorrente juntar o documento em causa aos autos na presente fase de recurso.
No âmbito do processo declarativo comum cível, mas cujo regime, por força do disposto no art. 17º, n.º 1 do CIRE, no que respeita à prova documental, é aplicável subsidiariamente ao processo de insolvência, nos termos do art. 423º, n.º 1 do CPC, os documentos destinados a fazer prova dos fundamentos da ação ou da defesa devem ser apresentados com o articulado em que se aleguem os factos correspondentes.
A prova documental pode ainda ser junta até ao 20º dia anterior à data em que se realize a audiência final, ou seja, em que tenha início efetivo a realização da audiência final quando esta se prolongue ao longo de várias sessões, mas, nesse caso, o apresentante ficará sujeita a multa, exceto se alegar e provar que não pôde oferecer o documento em causa com o articulado (n.º 2 do art. 423º do CPC).
Posteriormente ao vigésimo dia que antecede o início efetivo da realização da audiência final, ainda podem ser juntos ao processo documentos até ao encerramento da discussão em 1ª Instância[2], desde que se verifique alguma das seguintes circunstâncias: a) a junção do documento não foi possível até àquela data-limite do 20º dia que antecede o início efetivo da realização da audiência final, ou b) se a sua junção se tiver tornado necessária em consequência de ocorrência posterior (n.º 3 do art. 423º).
Quanto à primeira das mencionadas exceções, a impossibilidade do apresentante de juntar aos autos o documento até ao vigésimo dia que antecedeu o início efetivo da audiência final pode ser objetiva ou subjetiva.
Ocorre uma situação de impossibilidade objetiva quando se verifique a existência de impossibilidade real, prática, concreta ou real, porque ontológica, do apresentante em juntar o documento ao processo até ao vigésimo dia em que teve o início efetivo da audiência final, por o documento respeitar a factos ocorridos historicamente após essa data limite, pelo que aquele apenas foi produzido, e podia ter sido produzido, após o decurso dessa data limite. E ocorre uma situação de impossibilidade subjetiva quando, apesar do documento respeitar a factos ocorridos historicamente antes do decurso daquela data limite, o apresentante, por motivos que não lhe são imputáveis, nomeadamente, a título de negligência, não o pôde juntar ao processo dentro dessa data limite, quer porque desconhecia da existência do documento, quer porque, conhecendo-o, desconhecia o seu teor e da sua relevância para a prova ou contraprova dos factos controvertidos que estavam a ser discutidos no processo, quer porque a entidade pública competente para a sua emissão não o emitiu em tempo útil, de modo a que pudesse ter sido junto ao processo até ao vigésimo dia que antecedeu o início efetivo da audiência final.
Na impossibilidade objetiva a impossibilidade da parte em juntar o documento aos autos até ao vigésimo dia que antecedeu o início efetivo da audiência final decorre de uma circunstância objetiva (o documento respeita a factos ocorridos historicamente após o decurso daquela data limite final). Daí que o apresentante não tenha de alegar e provar perante o tribunal, aquando da junção do documento, facticidade tendente a demonstrar essa sua impossibilidade, por esta (porque objetiva) resultar demonstrada pelo próprio teor do documento em causa. No entanto, no caso de impossibilidade subjetiva, porque a impossibilidade se relaciona com motivos atinentes ao apresentante ou terceiros, que tornaram impossível àquela, por motivos que não lhe são imputáveis a título de culpa, juntá-lo ao processo até ao vigésimo dia que antecedeu o início efetivo da audiência final, aquando da sua junção aos autos, o apresentante terá de alegar e provar facticidade de onde decorra que a junção do mesmo naquele momento processual, isto é, após o decurso  daquela data limite, não lhe é imputável a título de culpa, designadamente, de negligência, posto que, apenas feita essa prova é que o tribunal poderá deferir a junção do documento ao processo[3].
Acresce que, tanto na impossibilidade objetiva como na subjetiva a parte apresentante tem de requerer a junção do documento ao processo logo que isso se lhe torne possível, sem aguardar qualquer dilação[4].
Em relação à outra situação excecional em que é admitida a junção de documento ao processo após o decurso do prazo limite do vigésimo dia que antecede o início efetivo da realização da audiência final (a junção se ter “tornado necessária em virtude de ocorrência posterior”), o elemento legitimador dessa junção tardia assenta na “ocorrência posterior” ao decurso desse prazo limite, isto é, o documento tem de se destinar à prova ou contraprova de factos ocorridos após o termo desse prazo limite[5].
Após o encerramento da discussão em 1ª Instância, não é admitida, em princípio, a junção ao processo de documentos, exceto no caso de recurso, e nos termos limitados dos arts. 425º e 651º, n.º 1 do CPC, os quais consentem que sejam juntos aos autos, com as alegações ou contra-alegações de recurso, documentos em duas situações excecionais, a saber:
a) a junção do documento não ter “sido possível até àquele momento”, isto é, até ao encerramento da discussão em 1ª Instância, por impossibilidade objetiva ou subjetiva[6], com o sentido e o alcance já acima referidos, que aqui nos abstemos de repetir, por fastidioso e desnecessário; ou por
b) a junção do documento “se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido pela 1ª Instância”.
No que respeita a este último fundamento  que legitima as partes, em caso de recurso, a juntar ao processo documentos na fase de recurso, com as alegações ou as contra-alegações, é pacífico o entendimento jurisprudencial que a junção de documento na fase de recurso com fundamento em a junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento da 1ª instância tem como pressuposto que esse julgamento seja de todo surpreendente para as partes relativamente ao que lhes era expectável em face dos elementos do processo, ou seja, é necessário que a decisão da 1ª Instância se tenha baseado em meio de prova não esperado, em termos objetivos, pelas partes, designadamente, porque o tribunal, na sentença que proferiu se baseou em meio probatório inesperadamente junto aos autos oficiosamente pelo tribunal, quando já não era possível ao apresentante juntar o documento que agora intenta juntar na fase do recurso, a fim de contrariar a prova produzida oficiosamente pelo tribunal, ou quando a decisão de direito proferida na sentença se baseou em preceito jurídico ou em interpretação de preceito jurídico com cuja invocação/interpretação as partes não tivessem, justificada e legitimamente, podido contar[7].
Dito por outras palavras, para que a junção do documento seja permitida na fase de recurso com fundamento no julgamento realizado pela 1ª Instância, não basta que essa junção seja necessária em face desse julgamento, mas é imprescindível que a junção desse concreto documento apenas se tenha tornado necessária em virtude desse julgamento, ou seja, por a decisão proferida pela 1ª Instância se ter ancorado num elemento de cariz “inovatório” e, por isso, surpreendente para as partes.
Destarte, se a junção do documento era necessária para fundamentar a ação ou a defesa antes de ser proferida a decisão da 1ª Instância, e se essa decisão se baseou em meios de prova com que as partes podiam, razoável e legitimamente, contar, como sejam: depoimentos ou declarações de parte, prova testemunhal, documental, pericial ou por inspeção judicial, respetivamente, arrolados e requeridos pelas partes ou oficiosamente determinadas pelo juiz, em momento processual em que ainda era possível às partes carrearem para os autos o documento que se propõem juntar em sede de alegações ou contra-alegações, com vista a contrariar essa prova produzida por determinação oficiosa do tribunal, então a junção do documento em causa ao processo com as alegações ou contra-alegações não ocorre em virtude do julgamento realizado pela 1ª Instância, posto que o apresentante teve oportunidade de controlar a prova produzida em que assentou a decisão proferida pela 1ª instância, e teve, inclusivamente, oportunidade de juntar aos autos, na 1ª Instância, até ao encerramento da discussão, o documento que se propõe juntar agora ao processo na fase de recurso com vista a contrariar essa prova.
Apenas se a decisão proferida pela 1ª Instância se baseou em meio probatório não oferecido pelas partes, mas produzido por iniciativa oficiosa do tribunal, em momento processual em que já não lhes era possível apresentar o documento que agora se propõem juntar ao processo na fase de recurso, tendo em vista contrariar esse meio de prova, ou quando a decisão de mérito proferida por aquela tenha assentado em norma de direito ou interpretação de norma com cuja aplicação ou interpretação os litigantes justificada e legitimamente não podiam contar, em obediência ao princípio do contraditório, na sua dimensão positiva de proibição de prolação de decisões surpresa (art. 3º, n.º 3 do CPC), é que se está perante um caso em que a junção do documento na fase do recurso “se tornou necessária em virtude do julgamento proferido na 1ª instância” e, por isso, se impõe admitir a junção daquele na fase de recurso, uma vez que, nesses casos, e apenas neles, se pode afirmar que a junção do mesmo ao processo na fase de recurso se tornou necessária em virtude do julgamento realizado na 1ª Instância, dado o seu cariz inovador[8].
Revertendo ao caso dos autos, o apelante BB juntou em anexo às suas alegações de recurso o reconhecimento simples, feito por advogado, da assinatura que AA, na qualidade de sócio-gerente da sociedade devedora, apôs no requerimento de registo automóvel, para inscrição no registo do veículo automóvel com a matrícula ..-..-ZM, veículo esse a que alude o ponto 3.12 da facticidade apurada na sentença recorrida.
Analisadas as alegações de recurso verifica-se que, mediante a junção desse documento, o recorrente visa contrariar a facticidade que foi julgada provada no ponto 3.25 da sentença recorrida, no segmento em que se julgou como provado que, a partir de ../../2021, a gerência (de facto) da sociedade devedora era exclusivamente exercida por si.
Acontece que o reconhecimento simples da assinatura de AA que se encontra aposta no documento em causa foi realizado em ../../2023 (vide teor do documento em causa), o que significa que, tendo o recorrente BB sido citado em 04/12/2023 para deduzir, querendo, oposição ao parecer da administradora da insolvência e do Ministério Público em que requeriam que a insolvência da sociedade devedora fosse qualificada como culposa e aquele e AA fossem afetados por essa qualificação, enquanto gerentes de direito da sociedade devedora, o recorrente podia e devia ter junto o documento em causa ao presente apenso de qualificação da insolvência dentro do prazo que lhe foi legalmente conferido para deduzir, querendo, oposição aos identificados pareceres da administradora da insolvência e do Ministério Público, conforme lhe era (e é) imposto pelo art. 423º, n.º 1 do CPC, ex vi, art. 17º, n.º 1 do CIRE.
Ora, compulsadas as alegações de recurso verifica-se que nelas o apelante não alegou qualquer motivo (que não lhe fosse imputável) e que o tivesse impedido de juntar aquele documento ao presente apenso de qualificação dentro do prazo de oposição que lhe foi concedido, o que significa que o mesmo não alegou (e, por isso, não pôde, nem pode provar) ter existido qualquer impossibilidade subjetiva que o tivesse impedido de ter junto aos autos o documento dentro do prazo de oposição.
Acresce que, no âmbito do presente apenso de incidente de qualificação, a audiência final nele realizada teve lugar em 29/01/2014, e o recorrente não cuidou em juntar aos autos o documento em causa até ao vigésimo dia que antecedeu o início dessa audiência final, conforme lhe era consentido pelo n.º 2, do art. 423º do CPC (embora, eventualmente, com multa) e nem o cuidou em juntar ao processo até ao encerramento da discussão que teve lugar nessa audiência final (em que a junção estava condicionada à verificação dos requisitos do n.º 3, do art. 423º do CPC, que acima já se deixaram enunciados).
Finalmente, lida a sentença sob sindicância nela não se surpreende qualquer elemento de cariz inovatório que permita a junção do documento em causa na presente fase de recurso, com fundamento na parte final do n.º 1 do art. 651º do CPC, uma vez que nela a 1ª Instância se limitou aos fundamentos fácticos e jurídicos que foram alegados pela administradora da insolvência e pelo Ministério Público nos respetivos pareceres e à prova que aí foi por estes arrolada.
Resulta do excurso antecedente que, não se verificando preenchidos os requisitos dos arts. 425º e 651º, n.º 1 do CPC, ex vi, art. 17º do CIRE, que permitem ao recorrente, a título excecional, juntar aos autos o documento em causa na presente fase de recurso, impõe-se não se admitir a sua junção aos autos e, após trânsito, ordenar o seu desentranhamento dos presentes autos de qualificação e restituição à apresentante.

B- Da impugnação da matéria de facto

B.1- Ónus impugnatórios do julgamento da matéria de facto

O recorrente assaca à sentença recorrida erro de julgamento da matéria de facto quanto à facticidade que nela foi julgada provada nos pontos 3.20 e 3.25, pretendendo que a prova produzida não consente que a 1ª Instância tivesse julgado provado que as contas da sociedade devedora relativas ao exercício do ano de 2020 não tivessem sido depositadas na Conservatória do Registo Comercial (conforme foi julgado provado no ponto 3.20), nem consente que se tivesse julgado provado que, a partir de ../../2021, a gerência (de facto) da sociedade devedora fosse exclusivamente exercida pelo próprio recorrente BB, nem que este não tivesse cuidado de apresentar a sociedade devedora à insolvência, nem que tivesse alienado entretanto a terceiros (credores) parte do respetivo ativo, com o que tivesse prejudicado os restantes credores da sociedade devedora (conforme se julgou provado no ponto 3.21), pelo que, na sua perspetiva, em face da prova produzida, apenas se impõe que sejam julgados provados os seguintes factos:
3.20- A insolvente não depositou as suas contas na Conservatória do Registo Comercial dos anos de 2021 e 2022”; e
“3.25- Não obstante a situação deficitária da empresa se verificar desde, pelo menos, o ano de 2021, veio a agravar-se a partir de 2022”.
Mais pretende que, tendo em consideração a prova produzida e tendo presente as várias soluções plausíveis de direito quanto às questões decidendas no âmbito do presente incidente de qualificação, se impõe aditar ao elenco da facticidade julgada provada na sentença a seguinte materialidade fáctica:
“A gerência da requerida, antes de ter requerido a sua insolvência, solicitou um plano de pagamento do crédito devido à Segurança Social, que foi aceite e se encontra a liquidar, assim como à Autoridade Tributária e Financeira, que nunca deu resposta ao solicitado”;
“Todos os documentos contabilísticos da sociedade insolvente estavam na posse do sócio gerente AA, situação que já decorria em data anterior à data em que o sócio gerente BB adquiriu a quota ao sócio e gerente EE”;
“Aquando do acometimento da doença de que foi alvo, em ../../2021, o sócio gerente BB viu-se impedido de aceder a esses documentos”.
Analisadas as alegações de recurso, dir-se-á ser indiscutível que o recorrente cumpriu com os ónus impugnatórios do julgamento da matéria de facto do art. 640º, n.ºs 1 e 2, al. a) do CPC, sem o que não é consentido ao tribunal ad quem entrar na reapreciação do julgamento da matéria de facto realizado pelo tribunal a quo quanto a facticidade submetida ao princípio da livre apreciação da prova que venha impugnada pelo recorrente.
Com efeito, o recorrente indicou: nas conclusões de recurso, os concretos pontos da matéria de facto que impugna (os pontos 3.20 e 3.25 dos factos julgados provados na sentença); na motivação de recurso (e, inclusivamente, erroneamente nas conclusões), as concretas respostas que, na sua perspetiva, devem recair sobre cada um dos pontos da matéria de facto que impugna e, bem assim a facticidade que, a seu ver, deve ser aditada ao elenco dos factos julgados provados na sentença; na motivação de recurso, os concretos meios de prova que, na sua perspetiva, impõem o julgamento de facto diverso que propugna; e, quanto à prova gravada, indica, na motivação do recurso, o início e o termo dos excertos da prova pessoal em que funda o seu recurso e, inclusivamente, procede à sua transcrição.
Destarte, não vindo questionado o cumprimento pelo recorrente dos ónus impugnatórios do julgamento da matéria de facto do art. 640º, n.ºs 1 e 2, al. a) do CPC, conforme efetivamente cumpriu, abstemo-nos de maiores desenvolvimentos quanto a essa concreta questão, por fastidiosa e desnecessária para apreciar o objeto do presente recurso.

B.1- Critérios em que é consentida a alteração do julgamento da matéria de facto
No entanto, antes de entrarmos na apreciação da concreta impugnação do julgamento da matéria de facto operada pelo recorrente, impõe-se enunciar quais os concretos critérios que devem presidir à reapreciação pelo tribunal ad quem da impugnação do julgamento da matéria de facto realizado pela 1ª Instância quanto a facticidade submetida ao princípio da livre apreciação da prova e em que lhe é consentido alterar o julgamento de facto realizado pelo julgador a quo.
Seguindo a lição de Abrantes Geraldes, em sede de impugnação do julgamento de matéria de facto submetida ao princípio da livre apreciação da prova, que é o princípio regra vigente no âmbito do processo civil nacional, o tribunal de recurso só tem que se pronunciar sobre a matéria de facto impugnada pelo recorrente; sobre essa matéria de facto tem de realizar um novo julgamento; nesse novo julgamento o tribunal de recurso forma a sua convicção de forma autónoma; para a formação dessa sua convicção autónoma o tribunal de recurso não só reaprecia os meios de prova especificados por recorrente e recorrido, respetivamente, nas alegações e contra-alegações de recurso, mas todos os que lhe sejam acessíveis e que, ao abrigo do princípio da oficiosidade, entenda dever socorrer-se para formar uma convicção segura; sem prejuízo das limitações que decorrem da falta de imediação e de oralidade, nesse novo julgamento o tribunal de recurso não está condicionado pela apreciação e fundamentação do tribunal recorrido, uma vez que o objeto da apreciação em 2ª instância é a prova produzida, tal como na 1ª instância, e não a apreciação que esta fez da prova, gozando, por isso, o tribunal de recurso dos mesmos poderes atribuídos ao tribunal a quo, podendo, nomeadamente, na formação da sua convicção autónoma recorrer a presunções judiciais ou naturais nos mesmos termos em que o faz o julgador da 1ª instância[9]; na sequência desse novo julgamento, a Relação pode determinar, mesmo oficiosamente, a renovação da produção de prova quando houver dúvidas sérias sobre a credibilidade de determinado depoente ou sobre o sentido do seu depoimento, ou ordenar a produção de novos meios de prova que potenciem a superação de dúvidas sérias sobre a prova anteriormente produzida (art. 662º, n.º 2, als. a) e b) do CPC); sempre que, reapreciando a prova produzida, valorando-a de acordo com o princípio da livre convicção, e através das regras da lógica, da experiência comum, da ciência ou da técnica, o tribunal de recurso consiga, relativamente aos concretos pontos da matéria de facto impugnada adquirir uma convicção segura acerca da existência de erro de julgamento, impõe-se que introduza as modificações pertinentes ao julgamento da matéria de facto realizado pela 1ª Instância; mas em caso de dúvida sobre o julgamento da matéria de facto por esta realizado, nomeadamente, perante depoimentos contraditórios e a fragilidade da prova produzida, se o julgamento da matéria de facto realizado pelo tribunal a quo se mostrar objetivado numa fundamentação compreensível, onde se optou por uma das soluções de facto permitidas pelas regras da lógica, da experiência comum, da ciência ou da técnica, deverá prevalecer esse julgamento de facto, em respeito pelos princípios da oralidade, da imediação, da concentração e da livre apreciação da prova[10].
Com efeito, lê-se no art. 662º, n.º 1 do CPC que: “A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”.
Daí que, conforme resulta clarividente do preceito jurídico que se acaba de transcrever, para que ao tribunal ad quem seja consentido alterar o julgamento da matéria de facto realizado pelo tribunal a quo que venha impugnado pelo recorrente quanto a facticidade submetida ao princípio da livre apreciação da prova, não basta que a prova produzida por ele indicada, isolada ou conjuntamente, com a restante a que o tribunal de recurso, ao abrigo do princípio da oficiosidade, entenda dever socorrer-se consinta ou permita o julgamento de facto que venha por ele propugnado, mas antes é necessário que o imponha.
Na verdade, estando em causa facticidade submetida ao princípio da livre apreciação da prova, mantendo-se no atual CPC em vigor esse principio, bem como os da imediação, da oralidade e da concentração, tendo presente esses princípios e que o julgamento humano se guia por padrões de probabilidade e não de certeza absoluta, não se pode aniquilar, em absoluto, a livre apreciação da prova que assiste ao julgador da 1ª Instância, nem desconsiderar totalmente os princípios da imediação, da oralidade e da concentração da prova, que tornam percetíveis a esse julgador, que intermediou a produção da prova, determinadas realidades relevantes para a formação da convicção, que fogem à perceção do julgador do tribunal ad quem através da mera audição da gravação dos depoimentos pessoais prestados em audiência final.
Por isso é que se compreende que o uso pela Relação dos poderes de alteração da decisão da 1ª Instância sobre matéria de facto submetida ao princípio da livre apreciação da prova só deva ocorrer quando seja possível com a necessária segurança concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados, isto é, quando depois de proceder à audição efetiva da prova gravada e à análise da restante prova que entenda pertinente, a Relação conclua, com a necessária segurança, no sentido de que os depoimentos prestados em audiência final, conjugados com a restante prova produzida, uma vez submetida às regras do normal acontecer, da lógica, da ciência ou da técnica, apontam em direção diversa e delimitam uma conclusão diferente daquela que vingou na 1ª Instância, por infirmar os termos do raciocínio probatório adotado pelo julgador a quo, evidenciando que o mesmo é injustificado e inconsistente, e antes aponta para outra versão dos factos que atinge o patamar da probabilidade prevalecente[11].
Todavia, em caso de dúvida, face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova, a Relação deve fazer prevalecer a decisão proferida pela 1ª Instância, em observância aos já enunciados princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova, com a consequente improcedência do recurso nesta parte”[12].
Assentes nas premissas que se acabam de enunciar urge entrar na apreciação do julgamento da matéria de facto impugnada pelo recorrente.

B.3- Depósito das contas dos exercícios dos anos de 2020, 2021 e 2022 da sociedade devedora na Conservatória do Registo Comercial – Ponto 3.20 dos factos provados
A 1ª Instância julgou provada a seguinte facticidade:
“3.20. A insolvente não depositou as suas contas na Conservatória do Registo Comercial nos anos de 2020, 2021 e 2022”.
O recorrente impugna o julgamento de facto assim realizado pela 1ª Instância, advogando que: “existe prova de que a insolvente depositou as suas contas na Conservatória do Registo Comercial até ao ano de 2020”  e, concretizando essa sua alegação, sustenta que, no relatório a que alude o art. 155º do CIRE, junto aos autos de insolvência pela administradora da insolvência, a fls. 6 desse parecer, lê-se que: “Da certidão de matrícula obtida é possível confirmar que a devedora depositou as suas contas na Conservatória do Registo Comercial até ao ano de 2020”, mas, antecipe-se desde já, sem razão.
Com efeito, apesar de ser certo que naquele relatório lê-se o segmento que vem invocado pelo recorrente e que se acaba de transcrever, o recorrente olvida ou desconsidera que cada exercício anual termina no dia 31 de dezembro; que as contas de exercício têm de ser apresentadas pela gerência da sociedade à assembleia geral de sócios para que as aprove até ao dia ../../.... do ano seguinte ao termo do exercício (art. 65º, n.º 5 do Cód. Soc. Com.) e que apenas, uma vez aprovadas pela assembleia geral de sócios as contas do exercício devem ser depositadas na Conservatória do Registo Comercial (art. 70º daquele Código) e que, por isso, as contas do exercício da sociedade devedora que foram depositadas na Conservatório do Registo Comercial no ano de 2020 foram necessariamente as do exercício do ano de 2019.
Aliás, cumpre referir que o Código do Registo Comercial, aprovado pelo D.L. n.º 403/86, de 3/12, estabelece no seu art. 3º, n.º 1, al. n) que: “A prestação de contas das sociedades anónimas, por quotas e em comandita por ações, bem como das sociedades em nome coletivo e em comandita simples quando houver lugar a depósito, e de contas consolidadas de sociedades obrigadas a prestá-las estão sujeitas por registo” (destacado nosso).
Por sua vez, o art. 75º, n.º 1 do mesmo Código dispõe que o registo se prova por meio de certidão.
Daí que sendo a sociedade devedora uma sociedade por quotas, o depósito das contas dos exercícios daquela encontra-se sujeito a registo e, consequentemente, o registo do depósito das contas dos exercícios anuais da mesma apenas pode ser provado mediante certidão emitida pela Conservatória do Registo Comercial que certifique esse depósito, não podendo, consequentemente, a prova do depósito das contas do exercício da sociedade devedora do ano de 2020 (ou de outro) ser feita através de outro meio de prova, nomeadamente, testemunhal ou por prova documental submetida ao princípio da liberdade da prova, como é o caso do relatório emitido pela administradora da insolvência a que alude o art. 155º do CIRE.
Ora, em anexo à petição inicial com que se apresentou à insolvência em ../../2023, a sociedade devedora juntou aos autos certidão da sua matrícula, e essa certidão também foi junta aos autos pela administradora da insolvência em anexo ao relatório a que alude o art. 155º do CIRE, como Doc. n.º .... 
Basta analisar o teor dessas certidões para se verificar que se encontram inscritas no registo pela Dep. 3036/2020-09-01 as contas do exercício da sociedade devedora do ano de 2019.
Por conseguinte, não tendo sido invocada a falsidade das identificadas certidões da matrícula da sociedade devedora, encontra-se plenamente provado que as contas do exercício da sociedade devedora que foram registadas na Conservatória do Registo Comercial em 01/09/2020, são as contas do exercício do ano de 2019.
Por conseguinte, salvo melhor opinião, conforme escreve a administradora da insolvência, a pág. 6, do relatório a que alude o art. 155º do CIRE: “Da certidão de matrícula obtida é possível confirmar que a devedora depositou as suas contas na Conservatória do Registo Comercial até ao ano de 2020”.
Sucede que, conforme se acaba de demonstrar, as contas que foram depositadas nessa Conservatório no ano de 2020 reportam-se ao exercício da sociedade devedora do ano de 2019, conforme se encontra plenamente provado nos autos através das certidões da matrícula daquela sociedade e é uma realidade evidenciada/demonstrada, desde logo, pelo facto de cada exercício anual terminar no dia 31 de dezembro e de no art. 65º, n.º 5 do Cód. Soc. Com. se dispor que: «O relatório de gestão, o relatório separado com a informação não financeira, quando aplicável, as contas do exercício e demais documentos de prestação de contas devem ser apresentados ao órgão competente e por este apreciados, salvo nos casos particulares previstos na lei, no prazo de três meses a contar da data do encerramento de cada exercício anual, ou no prazo de cinco meses a contar da mesma data quando se trate de sociedades que devam apresentar contas consolidadas ou que apliquem o método da equivalência patrimonial (sublinhado nosso).
Termos em que, sem mais, por desnecessárias, considerações, improcede este fundamento de recurso e, em consequência, mantém-se inalterada a facticidade julgada no ponto 3.20 dos factos julgados provados na sentença.

B.4- Da impugnação da facticidade julgada provada no ponto 3.25.
A 1ª Instância julgou provado o seguinte:
“3.25. Não obstante a situação financeira deficitária da empresa se verificar já desde, pelos menos, o ano de 2021, tendo-se vindo a agravar a partir de 2022, a gerência – a partir de ../../2021 exercida exclusivamente pelo sócio BB – não só não cuidou de se apresentar à insolvência como alienou, entretanto, a terceiros (credores) parte do respetivo ativo, desta feita tendo prejudicado os (demais) credores”.
O recorrente BB impugna a facticidade assim julgada provada pela 1ª Instância no que respeita ao segmento em que se julgou como provado que, a partir de ../../2021, a gerência da sociedade devedora tivesse sido exercida exclusivamente por ele, e quanto ao segmento em que se julgou provado que o mesmo tivesse alienado parte do ativo da sociedade devedora a terceiros, com o que prejudicou os demais credores da sociedade devedora, bem como quando julgou provado que aquele não tivesse tido o cuidado de apresentar a sociedade devedora em tempo oportuno à insolvência, como o que agravou a situação de insolvência desta.
Com efeito, alega o recorrente não existir nos autos qualquer prova que permitisse ao tribunal a quo julgar como provada essa facticidade e, para ilustrar essa impugnação, invoca o teor do relatório a que alude o art. 155º do CIRE, em que a administradora da insolvente é expressa em referir que, na sequência da doença de foro cardíaco que  afetou o sócio e gerente da sociedade devedora, AA, este se arredou totalmente das suas funções de gerência, “mas tão só da parte relativa ao trabalho de esforço físico que vinha desenvolvendo nas obras que vinha orientando e fiscalizando”, bem como as declarações/depoimento de parte prestadas pelo próprio recorrente em audiência final, em que referiu que os débitos da sociedade devedora para com a Segurança Social e para com a Administração Tributária são anteriores à situação de doença do gerente AA e desse facto ser evidenciado pelos créditos que foram reclamados e reconhecidos no âmbito do apenso de reclamação de créditos, em que se verifica que todos eles, incluído o crédito reconhecido sob condição a DD, tiveram a sua origem em data anterior a AA ter sido acometido de doença e ter ficado impossibilitado de efetuar esforços físicos.
Conclui o recorrente que, atenta “toda a prova carreada para os autos, mal andou o Meritíssimo Juiz de Direito do Tribunal recorrido ao dar como provado que o aqui recorrente, a partir de ../../2021, exerceu exclusivamente a gerência da empresa, e que não cuidou de se apresentar à insolvência, como alineou, entretanto, a terceiros (credores) parte do respetivo ativo, tendo, desta feita, prejudicado os demais credores”, e que, consequentemente, a prova produzida apenas consente que se julgue provada a facticidade que se segue:
“3.25- Não obstante a situação deficitária da empresa se verificar desde, pelo menos, o ano de 2021, veio a agravar-se a partir de 2022”.
Analisada a impugnação da facticidade julgada provada pela 1ª Instância no apontado ponto 3.25 verifica-se que o recorrente: por um lado, impugna a circunstância de se ter julgado provado que, a partir de ../../2021, a gerência da sociedade devedora era exclusivamente exercida por si (e não também pelo gerente da sociedade devedora, AA); e por outro, impugna que se tivesse julgado provado que aquele “não só não cuidou de apresentar” a sociedade devedora “à insolvência, como alienou entretanto a terceiros (credores) parte do respetivo ativo, desta feita tendo prejudicado os demais credores”.
Trata-se de fundamentos impugnatórios que convocam tratamentos jurídicos distintos, conforme se passa a demonstrar.
Quanto ao exercício da gerência da sociedade devedora, conforme resulta da facticidade apurada nos pontos 3.1 e 3.2 (não impugnados) e se encontra plenamente provado nos autos mediante o teor das certidões de matrícula da sociedade devedora que a eles se encontram juntas (não arguidas de falsas), a sociedade devedora foi constituída em 09/07/2019, tendo como únicos sócios e gerentes EE e AA.
O sócio e gerente da sociedade devedora, EE, em ../../2020, renunciou às funções de gerente e cedeu a sua quota ao recorrente BB, que foi nomeado gerente daquela sociedade.
Daí que, a partir de ../../2020, a sociedade devedora passou a ter como únicos sócios e gerentes (de direito) AA e o recorrente BB.
Por sua vez, resulta da facticidade apurada nos pontos 3.4 e 3.5 (não impugnados) que o sócio-gerente da sociedade devedora AA, em ../../2021, foi acometido de doença súbita do foro cardíaco, tendo sido hospitalizado e submetido a cirurgia e viu-se obrigado a ficar de baixa médica prolongada, sem quaisquer perspetivas de retomar o trabalho, na sequência do que, o sócio-gerente BB (recorrente) ficou sozinho a orientar e a fiscalizar  a totalidade das obras que a sociedade devedora tinha adjudicadas.  
Daí que, quando no ponto 3.2 (não impugnado pelo recorrente) e no ponto 3.25 (que o recorrente impugna) a 1ª Instância julgou provado que a sociedade devedora, a partir de ../../2021, era gerida exclusivamente pelo recorrente BB, esteja necessariamente a referir-se à gerência de facto (e não à de direito), uma vez que, quanto à gerência de direito, como se referiu, encontra-se plenamente provado nos autos, através das certidões de matrícula da sociedade devedora (não arguidas de falsas) que esta, a partir de ../../2020 e até ao presente, passou a ter como únicos sócios AA e o recorrente BB, que passaram a ser os seus únicos gerentes de direito.
Quanto à gerência de facto, segundo a facticidade julgada provada na sentença recorrida, esta foi exercida por ambos os gerentes de direito da sociedade devedora (AA e o recorrente BB) até ao mês de ../../2021, em que por via da doença que acometeu AA, essa gerência de facto passou a ser exclusivamente exercida pelo recorrente (e não também por AA, que, contudo, continuou a ser gerente de direito da sociedade devedora).
Apesar da sociedade devedora ter como gerentes de direito AA e o recorrente BB, o certo é que, desconsiderando que o primeiro continuou, após ../../2021 e até ao presente, a ser gerente de direito da sociedade devedora, a 1ª Instância, sem qualquer explicação, e desconsiderando totalmente a sua qualidade de gerente de direito, declarou apenas afetado pela qualificação da insolvência desta como culposa o recorrente BB (e não também AA).
Acontece que, quanto à não afetação de AA pela qualificação da insolvência da sociedade devedora como culposa (e do erro de direito em que, salvo o devido respeito, incorreu a 1ª Instância ao não o ter também declarado afetado por essa qualificação) não cuidam os presentes autos, uma vez que a sentença recorrida se encontra, nesse conspecto, transitada em julgado, dado que o recorrente não atacou a mesma quanto a segmento decisório, nem dispunha de legitimidade para recorrer do mesmo, e quem dispunha de legitimidade para dele recorrer não recorreu.
Assim, concluído que está que a facticidade que vem impugnada pela recorrente quanto ao ponto 3.25 dos factos julgados provados, no segmento em que a 1ª Instância julgou provado que: “a partir de ../../2021 (a gerência da sociedade devedora) era exercida exclusivamente pelo sócio BB”, se reporta exclusivamente à gerência de facto da sociedade devedora (que não a de direito), no âmbito da impugnação da matéria de facto operada pelo recorrente está em causa saber se a 1ª Instância, ao julgar como provado que, a partir de ../../2021, a gerência de facto daquela sociedade era exercida exclusivamente pelo recorrente, ou se antes, a prova produzida não permitia que assim se tivesse julgado provado, a propósito do que se suscita a questão prévia de se saber se o resultado dessa impugnação é suscetível de se projetar na decisão de mérito a proferir por este Tribunal da Relação quanto ao recorrente BB.
Com efeito, é entendimento pacífico na jurisprudência que o direito à impugnação da matéria de facto não subsiste a se, mas antes assume um carácter instrumental face à decisão de mérito do pleito, pelo que, por força dos princípios da utilidade, economia e celeridade processuais o tribunal da Relação não deve reapreciar a decisão da matéria de facto impugnada pelo recorrente quando o resultado dessa impugnação, face às circunstâncias próprias do caso concreto, de acordo com as diversas soluções plausíveis de direito a serem aplicáveis à questão decidenda, for insuscetível  de se projetar na decisão de mérito a proferir, sob pena de se estar a levar a cabo uma atividade processual que de antemão se sabe ser inútil e inconsequente.
Deste modo, o princípio da limitação dos atos, consagrado no art. 130º do CPC, tem de ser observado em sede de impugnação do julgamento da matéria de facto sempre que, perante os contornos do caso concreto, seja de concluir que o resultado dessa impugnação, ponderadas as várias soluções de direito plausíveis suscetíveis de serem aplicadas à questão decidenda, desse conhecimento não advenha qualquer elemento factual cuja relevância se possa projetar na decisão de mérito a proferir, provocando a alteração ou modificação do nela decidido[13].
Posto isto, conforme antedito, encontra-se plenamente provado nos autos que, a partir de ../../2020, o recorrente BB e AA eram os únicos sócios e gerentes (de direito) da sociedade devedora.
Enquanto gerente de direito, o recorrente BB ficou automaticamente investido num conjunto de deveres funcionais para com a sociedade devedora, de modo que quando seja de concluir que a insolvência dessa sociedade é de qualificar como culposa, por os seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência, terem adotado uma atuação, dolosa ou com culpa grave, que criou ou agravou o estado de insolvência da sociedade devedora, sua representada, aquele tem necessariamente, nos termos do n.º 1 do art. 186º do CIRE, de ser declarado afetado por essa qualificação, por via de ser gerente de direito da dita sociedade.
Na verdade, ao reportar-se no n.º 1 do art. 186º tanto aos administradores de direito como de facto da sociedade devedora, não foi propósito do legislador desresponsabilizar os administradores ou gerentes de direito da sociedade insolvente pelos atos ilícitos, dolosos ou gravemente negligentes praticados pelos administradores de direito ou de facto nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência, que criaram ou agravaram o seu estado de insolvência, mas antes o de estender essa responsabilidade também aos administradores de facto, ou seja, àqueles que praticaram atos de administração/gerência sem que se encontrassem legalmente nomeados para o exercício desse cargo[14], e sem que, por isso, dispusessem de qualquer legitimidade para os praticar e que só o fizeram com a necessária conivência dos administradores de direito, até porque solução diversa seria uma aberração jurídica.
Destarte, independentemente da gerência (de facto) da sociedade devedora ter (ou não), a partir de ../../2021, sido exercida exclusivamente pelo recorrente BB, uma vez qualificada a insolvência da sociedade devedora como culposa, o mesmo, enquanto seu gerente de direito, tem de ser necessariamente declarado afetado por essa qualificação, com as consequências previstas nas als. b) e e) do n.º 2 do art. 186º.
O saber se, a partir de ../../2021, a gerência de facto da sociedade devedora foi (ou não) exclusivamente exercida pelo recorrente BB (ou se também por AA, o outro gerente de direito da sociedade), apenas é suscetível de se projetar na decisão de mérito a proferir quanto ao período de inibição e quanto ao montante indemnizatório em que foi condenado na sentença recorrida em relação aos credores insatisfeitos.
Acontece que, conforme resulta do recurso apresentado pelo recorrente, este cingiu a sua impugnação quanto ao decidido naquela sentença ao julgamento da matéria de facto nela realizado e, em sede de direito, quanto à circunstância do tribunal a quo ter julgado preenchidas as presunções do art. 186º, n.ºs 2, als. a), b), g), h) e i) e 3, als. b) do CIRE, sustentando que a facticidade apurada não permite concluir pelo preenchimento de nenhuma dessas presunções, impondo-se, na sua perspetiva, que a insolvência da sociedade devedora seja qualificada como fortuita e que, consequentemente, o mesmo seja absolvido das condenações de que nela foi alvo, deixando o recorrente por sindicar o período de inibição que lhe foi aplicado e a indemnização em que foi condenado a satisfazer aos credores da insolvência que permaneçam insatisfeitos para o caso de insolvência da sociedade devedora vir a ser qualificada como culposa no caso do preenchimento de uma única dessas presunções, vedando, assim, que este tribunal da Relação possa entrar no conhecimento dessa questão (período de inibição e quantum indemnizatório em que foi condenado) no caso da insolvência ser qualificada como culposa, ainda que com fundamento apenas no preenchimento de uma única das presunções entre as múltiplas consideradas preenchidas pela 1ª Instância.
Daí que, salvo melhor opinião, estar-se a apreciar do erro de julgamento da matéria de facto que o apelante imputa ao ponto 3.25 da facticidade julgada provada pela 1ª Instância, quando esta julgou provado, que a partir de ../../2021, a gerência de facto da sociedade devedora era exclusivamente exercida pelo recorrente BB, é uma atividade processual que se revela totalmente inútil, em virtude  de qualquer que seja o resultado dessa impugnação, o mesmo é insuscetível, face aos concretos contornos do caso concreto, em que esta Relação vê o seu campo de cognição limitado às questões suscitadas pelo recorrente nas conclusões de recurso, de se projetar na decisão de mérito a proferir.
Decorre do excurso antecedente que, porque o resultado da impugnação da matéria de facto operada pelo apelante, quanto ao segmento do ponto 3.25 da facticidade julgada provada, em que a 1ª Instância julgou provado que, a partir de ../../2021, a gerência de facto da sociedade devedora foi exclusivamente exercida pelo recorrente, é insuscetível de se projetar na decisão de mérito a proferir, pelo que se declara prejudicado, por inútil, o seu conhecimento.
Avançando…
No que respeita à restante matéria que a 1ª Instância julgou provada no ponto 3.25 que o recorrente impugna (BB “não cuidou de apresentar (a sociedade devedora) à insolvência” e “alienou, entretanto, a terceiros (credores) a parte do respetivo ativo, desta feita tendo prejudicado os (demais) credores), cumpre referir que a mesma não consubstancia qualquer matéria de facto, mas antes traduz puros juízos conclusivos e de direito.
Na verdade, saber se sobre o recorrente impendia (ou não) a obrigação legal de apresentar a sociedade devedora à insolvência e se este incumpriu ou não com essa obrigação legal passa pela alegação e prova de factos concretos quanto à situação económica e financeira da sociedade devedora, nomeadamente, natureza dos débitos desta, seu montante, data de vencimento e subsequente subsunção dessa facticidade que se venha a provar ao quadro jurídico que lhe seja aplicável, designadamente, as disposições dos arts. 18º a 20º do CIRE.
E saber se o recorrente “alienou, entretanto, a terceiros (credores) da sociedade devedora parte de o respetivo ativo, com o que prejudicou os demais credores desta”, passa naturalmente pela alegação e prova de quem sejam esses credores; que concretos negócios foram com eles celebrados em nome e em representação da sociedade devedora; quando e quem interveio nesses negócios em representação desta; objeto desses negócios; preço e em que condições; tudo por forma a poder (ou não) extrair-se o juízo conclusivo de que o recorrente, por via da celebração de tais negócios, prejudicou os demais credores da sociedade devedora, de quem era gerente (de direito e de facto).
Ora, embora no processo de insolvência e respetivos apensos vigore o princípio do inquisitório (art. 11º do CIRE), pelo que o julgador neles não se encontra limitado nas decisões que profira aos factos que tenham sido alegados pelas partes, podendo, por sua iniciativa, investigar livremente factos, coligir provas, ordenar inquéritos e recolher as informações convenientes (art. 986º, n.º 2 do CPC), incumbe precisar que, nas decisões judiciais que prolate, o mesmo não se deve pronunciar (julgando provado ou não provado) sobre tudo o que tenha sido alegado pelas partes ou que resulte do teor dos documentos que lhe sejam acessíveis, na medida em que, por um lado, apenas deve julgar provados ou não provados “factos” e, por outro, quanto aos “factos”, apenas deve fazer esse julgamento de facto em relação a factos essenciais, complementares ou instrumentais da causa de pedir ou das exceções de que tenha de conhecer, conforme dispõem os arts. 5º, n.ºs 1 e 2 e 607º, n.ºs 1 e 4 do CPC.
Daí que, salvo melhor opinião, o julgador deve abster-se de incluir nas decisões judiciais que profira meios de prova, expressões conclusivas, de direito, matéria de facto que se mostra inócua para a decisão de mérito a proferir, atento o objeto da ação (pedido, causa de pedir e exceções).
Na verdade, já defendia Alberto dos Reis que “é questão de facto tudo o que tende a apurar quaisquer ocorrências da vida real, quaisquer eventos materiais e concretos, quaisquer mudanças operadas no mundo exterior”[15]; e já expendia que a atividade do juiz se deve circunscrever ao apuramento dos factos materiais, devendo evitar que no questionário entrem noções, fórmulas, categorias ou conceitos jurídicos, inserindo apenas, nos quesitos e na matéria de facto assente, factos materiais e concretos”[16].
Na linha de que, ao elenco dos factos provados e não provados na sentença, o juiz apenas deve levar factos materiais (aqui se incluindo as ocorrências concretas da vida real e o estado, a qualidade ou situação real das pessoas e das coisas; neles se compreendendo não só os acontecimentos do mundo exterior diretamente captáveis pelas perceções - pelos sentidos - do homem, mas também os eventos do foro interno, da vida psíquica, sensorial ou emocional do indivíduo)[17], se tem pronunciado a jurisprudência nacional maioritária, designadamente, após a entrada em vigor da Lei n.º 41/2013, de 26/06, que reviu o CPC, na sequência do que a sentença passou a incluir o julgamento da matéria de facto e de direito e que não contém  um dispositivo legal equivalente ao anterior art. 646º, n.º 4 do CPC.
Com efeito, tem-se continuado maioritariamente a considerar como não escritas as respostas do julgador sobre matéria qualificada como de direito; e a equiparar às conclusões de direito, por analogia, as conclusões de facto, isto é, os juízos de valor, em si não jurídicos, emitidos a partir dos factos provados (sem prejuízo de se dever equiparar a factos as expressões verbais, com um sentido técnico-jurídico determinado, que são utilizadas comummente pelas pessoas sem qualquer preparação jurídica, na sua linguagem do dia a dia, falada ou escrita, com um sentido idêntico, contanto que essas expressões não integrem o próprio objeto do processo, ou seja, não invadam o domínio de uma questão de direito essencial, traduzindo uma resposta antecipada da questão de direito decidenda)[18]
Decorre do exposto, impor-se expurgar do ponto 3.25 dos factos julgados provados na sentença recorrida toda a matéria conclusiva e de direito que encerra, isto é, a pretensa facticidade que vem impugnada pelo recorrente.
Termos em que, embora por motivos distintos dos invocados pelo recorrente, ordena-se que o ponto 3.25 passe a constar apenas da seguinte facticidade:
 “3.25- Não obstante a situação financeira deficitária da empresa se verificar desde, pelo menos, o ano de 2021, veio a agravar-se a partir de 2022 – a partir de ../../2021 a gerência de facto da sociedade devedora era exercida exclusivamente pelo sócio BB”.

B.5- Do vício da deficiência do julgamento da matéria de facto.
O recorrente pretende que se adite ao elenco dos factos julgados provados na sentença a matéria que se segue:
“A gerência da requerida, antes de ter requerido a sua insolvência, solicitou um plano de pagamento do crédito devido à Segurança Social, que foi aceite e se encontra a liquidar, assim como à Autoridade Tributária e Financeira, que nunca deu resposta ao solicitado”;
“Todos os documentos contabilísticos da sociedade insolvente estavam na posse do sócio gerente AA, situação que já decorria de data anterior à data em que o sócio gerente BB adquiriu a quota ao sócio e gerente EE”; e
“Aquando do acometimento da doença de que foi alvo, em ../../2021, o sócio gerente BB viu-se impedido de aceder a esses documentos”.
Como fundamento probatório que imporá a prova dessa concreta facticidade, o recorrente invoca o teor do parecer a que alude o art. 155º do CIRE, o apenso de verificação e graduação de créditos, bem como as declarações e depoimento de parte prestadas pelo próprio em audiência final.
A matéria que o recorrente pretende seja aditada ao elenco dos factos apurados na sentença consubstancia claramente matéria de exceção, mas no âmbito do presente apenso de qualificação da insolvência, conforme antedito, vigora o princípio do inquisitório (art. 11º do CIRE), pelo que nele o tribunal não se encontra submetido aos espartilhos decorrentes dos arts. 5º, n.º 1, 552º, n.º 1, al. d) e 572º, al. c) do CPC, que lhe veda a possibilidade de julgar factos essenciais constitutivos da causa de pedir ou das exceções que não tenham sido alegados pelas partes.
Daí que, do ponto de vista estritamente processual, não ocorra qualquer impedimento a que se julgue provada a facticidade que o recorrente pretende ver aditada ao elenco dos factos provados na sentença, conquanto que, perante a prova produzida se imponha a respetiva prova.
            Posto isto, quanto ao plano de pagamento que a sociedade devedora terá apresentado junto da Segurança Social e à Autoridade Tributária e Financeira, dir-se-á que analisamos toda a prova documental que se encontram juntos aos autos (processo de insolvência e todos os seus apensos) e procedemos à audição integral dos esclarecimentos prestados pela administradora da insolvência em audiência final e as declarações/depoimento de parte que nelas foram prestadas pelo recorrente BB, ou seja, procedemos à audição integral de toda a prova pessoal que foi produzida em audiência final.
Contrariamente ao pretendido pelo recorrente, analisado o teor do relatório a que alude o art. 155º do CIRE, bem como o parecer de qualificação da insolvência emitido pela administradora da insolvência, cumpre referir que o teor dos mesmos não confirma que a sociedade devedora tivesse apresentado proposta de pagamento em prestações da dívida por contribuições não pagas e respetivos juros de mora junto da Segurança Social, nem tal facto é corroborado pelos elementos de prova que se encontram juntos ao apenso de verificação de créditos, o mesmo se dizendo quanto à pretensa proposta de pagamento em prestações que teria sido apresentada pela sociedade devedora junto da Autoridade Tributária e Financeira.
A única prova que foi produzida a propósito dessas pretensas propostas de pagamento em prestações que teriam sido apresentadas pela sociedade devedora junto da Segurança Social e da Autoridade Financeira foram as declarações e o depoimento de parte prestados pelo recorrente BB em audiência final, onde pretendeu que, em 2022, teria apresentado uma proposta de pagamento em prestações à Segurança Social, o qual teria sido aceite; referindo, contudo, que “antes da insolvência fizeram novo acordo” com a Segurança Social e que “depois da declaração da insolvência chegaram a novo acordo com a Segurança Social”.
Ora, para além da versão dos factos apresentados pelo recorrente em sede de declarações e depoimento de parte se mostrar contraditória e nada esclarecedora, dir-se-á que, o pretenso acordo que a sociedade devedora terá alegadamente celebrado com a Segurança Social para pagamento da dívida em prestações que tinha para com esta, por contribuição em atraso e juros de mora, podia e devia ter sido provado mediante a junção aos autos de prova documental que certificasse a celebração desse pretenso acordo e que este tem vindo a ser cumprido.
Ora, essa prova documental, apesar de poder ser facilmente obtida pela sociedade devedora, pelo recorrente BB, ou por AA (o outro gerente de direito da sociedade devedora), não foi (inexplicavelmente) junta aos autos, sem que aqueles tivessem apresentado qualquer justificação para essa não junção, o que tudo aliado à circunstância da Segurança Social ter reclamado o seu crédito para com a sociedade devedora, por contribuições não pagas e respetivos juros de mora, junto da administradora da insolvência, dentro do prazo de reclamação fixado na sentença declaratória da insolvência daquela, impede que se julgue como provada a versão dos factos apresentada pelo recorrente em sede de depoimento e declarações de parte.
O que se acaba de dizer quanto ao pretenso acordo que terá sido celebrado entre a sociedade devedora e a Segurança Social é integralmente aplicável quanto ao pretenso acordo de pagamento que aquela sociedade terá apresentado junto da Autoridade Tributária.
Acresce salientar que, tendo o recorrente BB, em sede de declarações e depoimento de parte referido que a Autoridade Tributária nunca deu resposta à pretensa proposta que lhe terá sido apresentada em nome da sociedade devedora, sua representada, para que fosse autorizado o pagamento em prestações da dívida que tinha para com esta, sempre se impunha concluir que ainda que essa alegada proposta tivesse sido apresentada junto da Autoridade Tributária (em relação ao que, reafirma-se, inexiste qualquer prova suscetível de demonstrar tal facto), a apresentação da dita proposta de pagamento prestacional em nome da sociedade devedora seria totalmente irrelevante para a matéria decidenda no âmbito do presente apenso de qualificação, dado que aquela, segundo a versão dos factos apresentada pelo recorrente BB, ainda não teria sido aceite pela Autoridade Tributária e Financeira e, por conseguinte, enquanto não for aceite, a sociedade devedora permanece em dívida (mora) para com esse credor em relação aos débito que tem para com o mesmo.
Passando à restante facticidade que o recorrente pretende ver aditada ao elenco dos factos provados na sentença sob sindicância, a mesma relaciona-se com a contabilidade da sociedade devedora quanto aos exercícios dos anos de 2020, 2021 e 2022.
A contabilidade da sociedade devedora quanto a esses concretos exercícios não foi depositada na Conservatória do Registo Comercial, conforme acima já se demonstrou.
A propósito da pretensão do recorrente BB, impõe-se referir que contrariamente ao que propugna, a facticidade que pretende ver aditada ao elenco dos factos provados não é corroborada pelo teor do relatório a que alude o art. 155º do CIRE, nem pelo teor do parecer sobre a qualificação da insolvência, nem pelos esclarecimentos que foram prestados pela administradora da insolvência em audiência final, mas antes o teor de tais documentos e os esclarecimentos prestados pela administradora da insolvência são no sentido de que a contabilidade da sociedade devedora relativa aos exercícios dos anos de 2020, 2021 e 2022 não foi elaborada.
Com efeito, lê-se expressamente, a fls. 7, do relatório a que alude o art. 155º do CIRE que: ocorre “a inexistência de contabilidade, pelo menos, desde o ano de 2020”. E esse facto é reafirmado no parecer de qualificação da insolvência emitido pela administradora da insolvência, e mostra-se concordante com o restante teor desse relatório e parecer, em que expressamente se encontra consignada a matéria que a 1ª Instância julgou provada nos pontos 3.21, 3.22 e 3.23 da sentença, em que se verifica que, apesar das múltiplas diligências encetadas pela administradora da insolvência junto dos gerentes da sociedade devedora, nomeadamente do recorrente, mandatária deste, e, bem assim do escritório de contabilidade da sociedade devedora para que a contabilidade desta respeitante aos exercícios dos anos de 2020, 2021 e 2021 lhe fosse entregue, nunca a mesma logrou obter essa entrega, acabando o contabilista por informar ter deixado de exercer a atividade profissional de contabilista certificado em 27/09/2021, o que tudo, quando submetido às regras do normal acontecer, confirma que a contabilidade da sociedade devedora quanto aos exercícios dos anos de 2020, 2021 e 2022 nunca chegou a ser elaborada, posto que perante esses diversos contactos e pedidos da administradora da insolvência, naturalmente que a mesma lhe teria sido entregue caso existisse.
 Acresce dizer que, em sede de esclarecimentos que prestou em audiência final, a administradora da insolvência não só confirmou aqueles múltiplos contactos e diligências que encetou junto dos gerentes da sociedade devedora e contabilista para que a contabilidade da sociedade devedora quanto aos exercícios dos anos de 2020, 2021 e 2022 lhe fosse entregue, o que nunca chegou a acontecer, concluindo que a sociedade devedora não tem contabilidade relativa aos anos de 2020, 2021 e 2022 e que, perante a ausência desta, “não consegue saber qual o volume de negócios, quem são os clientes, não sabe as causas da insolvência”.
Tudo o quanto se vem referindo é prova bastante de que a sociedade devedora não elaborou a sua contabilidade relativa aos exercícios dos anos de 2020, 2021 e 2022.
Acresce referir que, o que se acaba de dizer, acabou por ser admitido pela própria sociedade devedora na petição inicial com que se apresentou à insolvência, onde, em sede de requerimentos de prova, alegou “não juntar as autos as contas dos últimos três exercícios (2020, 2021 e 2022) e respetivos relatórios de gestão, por não lhe terem sido fornecidos pelo gabinete de contabilidade, com quem tinha avença, dado não ter liquidado a mesma nos últimos dois anos”, quando se pondera que exigindo as empresas de contabilidade pagamento como contrapartida dos serviços que prestam aos seus clientes, naturalmente que não tendo a sociedade devedora confessadamente pago a avença à sua empresa de contabilidade, esta não elaborou a contabilidade daquela em relação aos anos de 2020, 2021 e 2022, inviabilizando a sua entrega (por inexistente) à administradora da insolvência e sua junção aos autos com a petição inicial.
Aliás, em face do não pagamento da avença, à luz das regras da experiência comum não se antolha como razoável aceitar-se que os gerentes da sociedade devedora cuidassem em entregar os elementos contabilísticos na empresa de contabilidade para que elaborasse a contabilidade dos exercícios dos anos de 2020, 2021 e 2022 quando não lhe tinham pago a avença que com ela tinham acordado como contrapartida da prestação desse serviço.
No mesmo sentido aponta o depoimento e as declarações de parte prestadas pelo próprio recorrente BB em audiência final, o qual, quando questionado sobre a contabilidade da sociedade devedora, pretendeu que, no ano de 2021, solicitou um balancete ao gabinete de contabilidade, mas “aquilo vinha tudo errado”, pelo que falou com o AA (o outro sócio gerente da sociedade devedora), queixando-se que “o contabilista não percebia nada”. Entretanto, foi “pedindo orçamento a outras empresas de contabilidade, mas o tempo foi passando até que o AA”, que tinha os documentos em mão, sofreu o acidente cardiovascular, entrou em coma, “e perdi o fio à meada”.
Com efeito, se a contabilidade da sociedade devedora do exercício do ano de 2020 foi elaborada, conforme pretende o recorrente BB acontecer, ao ponto daquele, em 2021, ter alegadamente pedido ao gabinete de contabilidade da sociedade devedora um balancete, que lho facultou, prefigura-se-nos ser esperável que tivesse facultado esse balancete à administradora da insolvência ou o tivesse junto aos presentes autos, o que não fez, o que, consequentemente, evidencia que, quanto ao exercício do ano de 2020, a contabilidade da sociedade devedora não foi efetivamente elaborada.
Por outro lado, é o próprio BB que implicitamente acaba por confirmar que a contabilidade da sociedade devedora quanto aos exercícios dos anos de 2021 e 2022 não foi elaborada, porquanto referiu que, em 2021, foi recolher orçamentos junto de outras empresas de contabilidade para que elaborassem a contabilidade da sociedade devedora (naturalmente dos exercícios de 2021, então em curso, bem como dos exercícios dos anos subsequentes), mas que “o tempo foi passando” e acabou por não contratar empresa de contabilidade nenhuma, nem entregou os documentos necessários à elaboração dessa contabilidade na empresa de contabilidade que antes efetuava essa contabilidade da sociedade devedora, posto que, esses documentos estavam “nas mãos do AA”.
Daí que, salvo o devido respeito por opinião contrária, longe da prova produzida impor que se adite ao elenco dos factos provados na sentença recorrida a facticidade apontada pelo recorrente, essa mesma prova não consente que se julgue provada essa concreta facticidade, mas antes impõe que se conclua que a contabilidade da sociedade devedora em relação aos exercícios dos anos de 2020, 2021 e 2022 não foi elaborada tout court.  
Destarte, improcede este fundamento de recurso, razão pela qual não se adita ao elenco dos factos provados na sentença recorrida a facticidade que o apelante pretende que seja a ela aditada.

B.5- Da alteração oficiosa da facticidade julgada provada.
No ponto 3.20 a 1ª Instancia deu como provado que: “A insolvente não depositou as suas contas na Conservatória do Registo Comercial nos anos de 2020, 2021 e 2022”, o que, conforme acima já demonstrado, tem total assento na prova produzida.
Porém, no ponto 3.21 julgou provado que:
3.21. A insolvente não possuía a contabilidade organizada, o que causou a inviabilização do acesso a documentos essenciais para uma correta análise pelos credores da situação económica e financeira da empresa e, em particular, para o apuramento real do ativo e passivo da insolvente”.
Sucede que, a expressão “A insolvente não possuía a contabilidade organizada”, é equívoca,  imprecisa e, inclusivamente, contraditória com a circunstância de, no ponto 3.22, a 1ª Instância ter julgado provado que: “A insolvente não remeteu quaisquer documentos contabilísticos relativos aos três último exercícios”; de no ponto 3.23 ter julgado provado que: “Através de mensagem de correio eletrónico, o contabilista informou a administradora da insolvência que deixou de exercer a atividade profissional de contabilista certificado em 27/09/2021”, posto que, aquela expressão aponta no sentido que a contabilidade da sociedade devedora respeitante aos exercícios dos anos de 2020, 2021 e 2022 teria sido elaborada (quando a prova produzida, conforme acabado de demonstrar, demonstra precisamente o contrário), mas que o teria sido de modo desorganizado, sem que a 1ª Instância tivesse concretizado em que se traduz essa pretensa desorganização/desarranjo.
 Ora, porque sempre que se verifique que a decisão da matéria de facto se apresenta deficiente, obscura ou contraditória, de modo a que se mostre impedido o estabelecimento de uma plataforma fáctica sólida para a integração jurídica do caso, cabe ao tribunal ad quem, ainda que oficiosamente, suprir esse vício[19], impõe-se clarificar a facticidade julgada provada naquele ponto 3.21 pela 1ª Instância. Essa clarificação passa por se julgar provado que a contabilidade da sociedade devedora não foi elaborada quanto aos exercícios dos anos de 2020, 2021 e 2022.
Note-se que, no parecer emanado pela administradora da insolvência em que propõe que a insolvência da sociedade devedora seja qualificada como culposa e afetados por essa qualificação o recorrente BB e AA, ao qual o Ministério Público aderiu, encontra-se precisamente alegado que a contabilidade da sociedade devedora quanto aos exercícios do ano de 2020, 2021 e 2022 não foi elaborada.
Trata-se de facticidade que, por ter sido alegada, e ser essencial e integrativa da causa de pedir que a administradora da insolvência e o Ministério Público alegaram naqueles pareceres para ancorarem a sua pretensão no sentido de que a insolvência fosse qualificada como culposa e afetados por essa qualificação BB e AA, e porque a mesma não foi julgada provada, nem como não provada (de modo expresso e concretizado) na sentença sob sindicância, sempre se teria de suprimir o apontado vício da deficiência do julgamento da matéria de facto em que incorreu a 1ª Instância, ao não ter julgado de modo expresso, claro e concretizado essa facticidade, tendo esse vício de ser suprimido oficiosamente pelo tribunal ad quem, fazendo uso dos seus poderes de substituição, sempre que a prova produzida lhe consinta com a necessária segurança fazer esse julgamento de facto (art. 661º, n.º 1 do CPC); de contrário, fazendo uso dos poderes de cassação, anulando a sentença recorrida e ordenando a baixa do processo para que ampliasse o julgamento da matéria de facto quanto a essa concreta facticidade (al. c), do n.º 2 do art. 661º do CPC)[20].
 
Ora, contendo os autos todos os elementos de prova que permitem concluir que a contabilidade da sociedade devedora quanto aos exercícios dos anos de 2020, 2021 e 2022 não foi elaborada/realizada, sempre se imporia fazer a sobredita concretização.

Nesta conformidade, ao abrigo do disposto no art. 662, n.º 1 do CPC, suprimindo os apontados vícios, procede-se à alteração do ponto 3.21, o qual passa a constar da seguinte facticidade, que se julga provada:
“3.21- A contabilidade da sociedade devedora dos exercícios dos anos de 2020, 2021 e 2022 não foi elaborada”.

C- Mérito

C.1- Da qualificação da insolvência da sociedade devedora como culposa.

Em sede de fundamentação de direito, após ter enunciado os objetivos que são prosseguidos pelo incidente de qualificação; de identificar os requisitos legais de que depende a qualificação da insolvência da sociedade devedora como culposa; de esclarecer que as presunções constantes nas diversas alíneas do n.º 2 do art. 186º do CIRE são presunções inilidíveis de insolvência culposa, enquanto as previstas no n.º 3 do mesmo preceito são meras presunções ilidíveis de culpa grave, que não dispensam a prova do nexo causal entre as condutas nelas previstas (presuntivamente gravemente culposas) e a criação ou o agravamento do estado de insolvência do devedor para que se possa qualificar a insolvência como culposa, sem mais desenvolvimentos ou considerandos, considerou a 1ª Instância que: “Do exposto e atenta a factualidade apurada, conclui-se que a insolvência de EMP01..., Ld.ª é culposa, quer porque se verificam as presunções inilidíveis previstas nas als. a) b), g), h), i) do n.º 2 do art.º 186.º do CIRE, quer porque a situação de insolvência foi agravada em consequência do incumprimento culposo pelo seu gerente do dever de requerer a insolvência (al. b) do n.º 3 do art.º 186.º do CIRE), devendo ser afetado/a pela qualificação da insolvência o gerente BB”.
O recorrente BB não se conforma com esse entendimento, imputando ao decidido erro de direito, sustentando que, a facticidade apurada não permite concluir pelo preenchimento de nenhuma das presunções que a 1ª Instância considerou encontrarem-se preenchidas, pelo que, na sua perspetiva, impõe-se qualificar a insolvência da sociedade devedora como fortuita e absolver-se o mesmo das condenações de que foi alvo na sentença sob sindicância.
Vejamos se lhe assiste razão.
O incidente de qualificação da insolvência encontra-se regulado nos arts. 185º a 187º do CIRE e foi introduzido no ordenamento jurídico nacional por influência do Direito espanhol, mais precisamente, da calificación del concurso, consagrado na Ley Concursal, de 09 de julho de 2003.
O objetivo do incidente é averiguar das causas que conduziram à insolvência do devedor ou ao agravamento do estado de insolvência deste, nomeadamente, se a insolvência ou o agravamento desta decorreu de uma situação completamente fortuita, insuscetível de qualquer juízo de censurabilidade, ou se deveu antes a uma atuação ilícita e culposa  daquele ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência e quais as responsabilidades que devem decorrer para os mesmos no âmbito do processo de insolvência, caso se conclua que a insolvência é de qualificar como culposa, por ter sido determinada ou agravada por um comportamento ilícito, doloso ou gravemente negligente dos mesmos, ocorrido nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência (art. 185º e 186º, n.º 1 do CIRE)[21].
A noção geral de insolvência culposa consta do n.º 1 do art. 186º do CIRE, em que se lê que: “A insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da atuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência”.
De acordo com essa definição legal para que a insolvência de uma pessoa singular ou coletiva possa ser qualificada como culposa é necessário que se preencham os seguintes pressupostos legais cumulativos: 1º- nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência, o devedor, ou os seus administradores, de direito ou de facto, adotaram uma ou várias condutas, ativas ou omissivas; 2º - essa(s) conduta(s) são ilícitas; 3º- e foram por eles adotadas a título doloso ou com negligência grave; e d) que, em consequência direta e necessária dela(s) resultou a situação de insolvência em que se encontra o devedor ou o agravamento dessa situação.
Acontece que, ciente das dificuldades probatórias dos identificados pressupostos legais cumulativos de que depende a qualificação da insolvência como culposa, sobretudo, no que respeita ao último (nexo causal entre a conduta e a criação ou agravamento do estado de insolvência), o legislador estabeleceu, no n.º 2, do art. 186º  do CIRE, uma série de presunções inilidíveis de insolvência culposa, em que, uma vez alegados e provados os factos base da presunção contidos em cada uma das alíneas desse n.º 2 se presume (sem admissão de prova em contrário) que a insolvência é culposa; e no n.º 3 do mesmo preceito consagrou duas presunções iuris tantum (portanto, ilidíveis, mediante prova em contrário) de culpa grave do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, na adoção das condutas previstas em cada dessas duas alíneas, mas em que (contrariamente ao que sucede com as presunções do n.º 2) não se presume o nexo causal entre essas condutas e a criação ou o agravamento do estado de insolvência do devedor.
Para que possa qualificar a insolvência do devedor como culposa com fundamento no n.º 3 do art. 186º, terá, assim, que se alegar e provar não só os factos base da presunção contidas numa das suas alíneas, como se terá adicionalmente de alegar e provar facticidade de onde decorra que foi em consequência de tais condutas (presuntivamente gravemente culposas) que a devedora ficou em estado de insolvência ou viu agravado esse estado.[22]
Em suma, sempre que se encontrem preenchidos os factos base da presunção inilidível de insolvência culposa previstos em qualquer das alíneas do n.º 2, do art. 186º do CIRE, o juiz tem sempre de qualificar a insolvência como culposa, sem mais, conforme decorre da expressão contida nesse preceito: “Considera-se sempre culposa”.
Por sua vez, no caso do n.º 3 do art. 186º, só se poderá qualificar a insolvência como culposa quando ocorra o preenchimento das presunções de culpa grave previstas numa das suas alíneas (e essa presunção não seja ilidida, mediante prova em contrário)  - veja-se que a atual redação do n.º 3 é expressa ao estatuir que: “Presume-se unicamente a culpa grave (…)” - e adicionalmente se prove que foi por via da conduta nelas previstas (e que se provou, e que, consequentemente, faz presumir a culpa grave dessa conduta) que foi criado ou agravado o estado de insolvência do devedor[23].
Debruçando-nos ainda sobre o n.º 2 do art. 186º, enfatize-se que apesar de doutrina e a jurisprudência maioritárias sufragarem e entendimento de que em todas as suas alíneas se consagram presunções inilidíveis de insolvência culposa, quanto a nós, no que respeita às alíneas h) e i), mais do que presunções inilidíveis de insolvência culposa está-se na presença de verdadeiras ficções legais de insolvência culposa, na medida em que nas condutas omissivas nelas descritas não se descortina qualquer nexo causal entre aquelas e a criação ou o agravamento do estado de insolvência do devedor, mas do que se trate é de sancionar comportamentos gravemente censuráveis que de per se são impeditivos do apuramento das verdadeiras causas da insolvência e que, por isso, impõe que sejam sancionadas com as consequências legais previstas para a insolvência culposa.
Neste sentido expende Rui Estrela de Oliveira que, enquanto as als. a) a g), do n. 2, do art. 186º do CIRE consagram causas inilidíveis “semi-objetivas da insolvência culposa” e, portanto, presunções inilidíveis de insolvência culposa, nas alíneas h) e i), desse n.º 2, estamos “no domínio das causas puramente objetivas da insolvência culposa. Nestas duas alíneas, não está, em abstrato, pressuposto um nexo de causalidade entre o comportamento do visado e a produção de insolvência. O que aqui está em causa é um comportamento do visado que impediu e/ou impede que se determine o valor da sua contribuição e responsabilidade na produção e/ou agravamento da situação de insolvência. Sendo assim, mostra-se justificado que aquele que impediu a descoberta da verdade material não beneficie mais do que o responsável que não impediu tal descoberta. Ou seja, estamos aqui perante sanções quase diretas: deve ser sancionado quem impediu que se desenvolvesse uma normal discussão factual sobre os pressupostos da insolvência como culposa. Destarte, e para fazer funcionar as presunções, apenas deve ser alegada e provada a literal factualidade com virtualidade de preencher a hipótese normativa das alíneas, não sendo necessário invocar qualquer facto para preencher os pressupostos de insolvência culposa constantes da noção geral do n.º 1, designadamente, o nexo de causalidade entre tais comportamentos e a produção e/ou agravamento da situação de insolvência. Mas, por outro lado, também deve alertar-se para a circunstância de não ser qualquer factualidade que fará espoletar a decisão de insolvência culposa com fundamento nestas alíneas”. Debruçando-se especificamente sobre a alínea h), do n.º 2, expende o mesmo autor que: “quando a lei utiliza a expressão em termos substanciais, quer dizer que a obrigação de manter a contabilidade organizada foi violada em termos tais que não é possível indicar, com segurança, a causa da insolvência e os seus responsáveis”[24].

No mesmo sentido pronuncia-se Catarina Serra que, reconhecendo que a inobservância do dever de manter a contabilidade organizada, embora dificultando a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor, não fere, nem, em princípio, agrava a insolvência, faz assentar o juízo de reprovabilidade decorrente da al. h), do n.º 2, do art. 186º, que impõe que a insolvência tenha de ser sempre qualificada como culposa, na circunstância de “a não organização ou desorganização da contabilidade e a falsificação dos respetivos documentos faz supor que o sujeito tem algo a esconder, que ele terá praticado atos que contribuíram para a insolvência e quis/quer ocultá-los”[25].

Destarte, no que respeita às hipóteses previstas nas als. h) e i), do n.º 2, do art. 186º do CIRE, no seguimento do que se vem dizendo, consideramos que o legislador considerou, sem admissão de prova em contrário, que ocorre insolvência culposa sempre que as hipóteses descritas em cada uma dessas alíneas se encontram preenchidas, não porque o incumprimento das obrigações legais nelas previstas tenham aptidão real ou presumida para criar e/ou agravar a situação de insolvência do devedor, mas sim porque se está perante um ilícito gravemente censurável que justifica submeter esses comportamentos ao regime da insolvência culposa por impedirem o apuramento das causas da insolvência e a do eventual responsável por essa situação, tratando-se, por conseguinte, de verdadeiras ficções legais de insolvência culposa.

Posto isto, conforme antedito, considerou a 1ª Instância que perante a facticidade apurada nos autos se encontravam preenchidas as presunções de insolvência culposa das als. a), b), g), h) e i) do n.º 3 do art. 186º, bem como a presunção de culpa grave da al. b) do n.º 2 do mesmo preceito, com o que não se conforma o recorrente, advogando não se encontrar preenchidos os factos base de nenhuma dessas presunções.
                                                                                               
C.1.1- Da presunção inilidível de insolvência culposa da al. a) do n.º 2 do art. 186º   
Lê-se na al. a), do n.º 2, do art. 186º do CIRE que se considera “sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham destruído, danificado, inutilizado, ocultado, ou feito desaparecer, no todo ou em parte considerável, o património do devedor”.
Mediante a previsão legal que se acaba de transcrever sanciona-se os efeitos negativos decorrentes para o património do devedor, que não seja pessoa singular, geradores ou agravantes da sua situação de insolvência decorrentes de condutas dos seus administradores, de direito ou de facto, adotadas nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência e que se traduzam na destruição, danificação, inutilização, ocultação ou no fazer desaparecer da totalidade dos bens que integram o seu património ou de bens que integram parte “considerável” do seu património.
Assim, sempre que os administradores, de direito ou de facto, de pessoa coletiva ou de património autónomo (cfr. art. 2º do CIRE), nos três anos que antecederam o início do processo de insolvência adotem condutas que provoquem a eliminação de todos os bens que integram o património do devedor ou de parte “considerável” desses bens, destruindo-os, danificando-os, inutilizando-os, ocultando-os ou fazendo-os desaparecer, a insolvência do devedor tem de ser sempre qualificada como culposa, uma vez que qualquer uma dessas condutas deprecia (total ou parcialmente, em parte considerável) realmente o valor do património do devedor, causando por essa forma o seu estado de insolvência ou o agravamento desse estado.
Precise-se que a “destruição” do património do devedor ou a destruição de parte considerável desse património é a destruição física de bem que integre o património daquele, isto é, a eliminação física do bem da ordem natural das coisas. Já a “danificação” é o causar estragos materiais no bem, provocando a sua destruição física parcial, de modo que o valor económico daquele sofre uma efetiva depreciação. Por “inutilização”, é o provocar estragos físicos/materiais no bem, de modo a torná-lo impróprio para o uso normal a que se destina. E a “ocultação” é o ato de esconder o bem, de modo a não ser encontrado, por se desconhecer o seu paradeiro. E o ato de “fazer desparecer” é a retirada do bem da disponibilidade física ou jurídica do devedor e o colocá-lo na disponibilidade de terceiros, de modo que os credores do devedor ou desconhecem o paradeiro do bem, ou conhecendo-o, não tem como a ele aceder do ponto de vista jurídico, ou vêm esse acesso dificultado.
Enfatize-se que apesar das expressões “ocultar e fazer desaparecer” utilizadas pela al. a), do n.º 2 do art. 186º do CIRE não virem a merecer uma interpretação consensual ao nível da jurisprudência nacional, é largamente maioritário o entendimento que tais expressões  significam o retirar do bem da esfera jurídica do devedor em que se devia encontrar e a sua colocação na esfera jurídica de terceiro, ou seja, trata-se de um descaminho do bem provocada por ato material ou através de negócio juridicamente válido ou apenas aparentemente válido (negócio simulado), que impeça ou dificulte o acesso por parte dos credores ao bem, não se exigindo, portanto, uma ocultação no sentido físico deste, mas apenas no aspeto jurídico (v.g. venda efetiva ou meramente aparente – venda simulada[26] -  de bens da sociedade controlado pelo alienante a familiares chegados ou em que o alienante faz desaparecer a quantia recebida pela venda)[27]
Neste sentido, expende Pedro Caeiro, a propósito do art. 227º, n.º 1, al. a) do Código Penal (CP), que tem uma redação em tudo semelhante à da al. a), do n.º 1 do art. 186º do CIRE, que as condutas descritas naquele art. 227º, n.º 1. al. al. a) do CPC “provocam uma diminuição real do património (destruição, danificação, inutilização ou causação do desaparecimento de parte do património), o devedor deprecia realmente o valor do seu património, causando por essa forma uma situação de insolvência. No que diz respeito à expressão “fazer desaparecer parte do seu património”, parece que ela servirá para atalhar aos casos em que não se descobre o paradeiro de bens que supostamente se deviam encontrar na titularidade do devedor. Não importa se eles foram objeto de uma alienação real ou tão-só fictícia; importa tão-só que os credores não conseguem atingi-los para garantir a satisfação das suas dívidas, pelo que o valor ostensivo do património resulta, em qualquer caso, diminuído”[28].
Acresce dizer que os atos dos administradores, de direito ou de facto, têm de ser praticados nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência e têm de consistir na destruição, danificação, inutilização, ocultação ou desaparecimento (expressões estas entendidas nos moldes antes enunciados) da totalidade do património do devedor ou  de “parte considerável” dos bens que integram o património deste, o que significa que, nos casos, em que esteja apenas perante a destruição, danificação, inutilização, ocultação ou fazer desaparecer de uma parte considerável do património do devedor, para que se possa concluir pelo preenchimento da presunção inilidível de insolvência culposa da al. a) do n.º 2 do art. 186º, aquelas condutas têm de ser aptas a criarem o atual estado de insolvência em que se encontra o devedor ou a agravar desse estado[29].
Por isso, quando os atos de destruição, danificação, inutilização, ocultação ou causação do desaparecimento de bens que integram o património do devedor não envolvam todo o seu património, mas apenas parte deste, exige-se que se prove qual o valor dos bens que foram objeto desses atos, à data em que deles foram alvo, e qual o valor da totalidade dos bens que integram o património do devedor no mesmo momento temporal, posto que apenas assim se poderá (ou não) concluir, mediante o confronto de ambos os valores, pela verificação de uma situação de destruição, danificação, inutilização, ocultação, ou provocação do desaparecimento de «parte considerável» do património do devedor[30].
Revertendo ao caso dos autos, estando apurado que a sociedade devedora era proprietária de dois veículos automóveis com as matrículas ..-..-ZM e ..-PO-.., os quais foram dados em pagamento, em data não concretamente apurada, mas posteriormente a ../../2023 e antes de 19/04/2023, a CC e FF, respetivamente, para  pagamento parcial dos valores que aquela deles recebeu, antecipadamente, na sequência de obras que os mesmos lhe adjudicaram, mas que não chegou a executar (cfr. pontos 3.12, 3.13, 3.14 dos factos apurados), e estando também apurado que aquela sociedade era proprietária do veículo automóvel de matrícula ..-..-QV, o qual foi vendido, em 09/02/2023, à identificada FF (cfr. ponto 3.15 dos factos apurados), entendeu a 1ª Instância encontrar-se preenchida a presunção inilidível de insolvência culposa da al. a), do n.º 2 do art. 186º do CIRE, com o que não se conforma o recorrente e com inteira razão.
Com efeito, não estando apurado o valor concreto desses veículos à data em que foi transferida a sua propriedade da sociedade devedora para as pessoas acima identificadas, nem o valor do património da sociedade devedora à data da celebração daqueles negócios translativos da propriedade sobre aqueles veículos, não pode considerar-se que, mediante a celebração dos mesmos os gerentes (de direito ou de facto) da sociedade devedora, onde se inclui o recorrente BB, tivessem provocado o desaparecimento (jurídico) de parte “considerável” do património da sociedade devedora.
Resulta do exposto que, ao julgar preenchida a presunção de insolvência culposa da al. a) do n.º 2 do art. 186º do CIRE, a 1ª Instância incorreu em erro de direito, impondo-se a revogação da sentença recorrida no segmento em que assim se decidiu.

C.1.2- Da presunção inilidível de insolvência culposa da al. b) do n.º 2 do art. 186º
Considerou a 1ª Instância que, perante a facticidade apurada se encontrava preenchida a presunção inilidível de insolvência culposa do art. 186º, n.º 2, al. b) do CIRE, entendimento esse com o qual não se conforma o recorrente, imputando ao decidido erro de direito.
Estabelece o art. 186º, n.º 2, al. b) que: “Considera-se sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham criado ou agravado artificialmente passivos ou prejuízo, ou reduzido lucros, causando, nomeadamente, a celebração pelo devedor de negócios ruinosos em seu proveito ou no de pessoas com eles especialmente relacionadas”.
São, portanto, pressupostos cumulativos da dita presunção inilidível de insolvência culposa que: a) nos três anos que antecederam o início do processo de insolvência, os administradores, de direito ou de facto, do devedor tenham criado ou agravado artificialmente passivos ou prejuízos, ou reduzido lucros do devedor ; b) causando com essas condutas, ou seja, levando que com as mesmas fosse celebrado negócio pelo devedor; c) que esse negócio se tenha revelado ruinoso para o devedor; d) e que desse negócio resulte um proveito, ou seja, um benefício pessoal para as pessoas dos seus administradores ou para pessoas com eles especialmente relacionadas, tal como definidas no art. 49º do CIRE.
Destarte, para que se possa concluir pelo preenchimento da dita presunção inilidível de insolvência culposa tem de se alegar e provar que: 1º- nos três anos que antecederam a declaração de insolvência do devedor, os seus administradores, de direito ou de facto, criaram ou agravaram artificialmente passivos ou prejuízos, ou reduzido lucros, espelhando essa sua conduta na contabilidade do devedor; 2º- que adicionalmente se alegue e prove que foi por via dessa contabilidade fictícia e enganosa levada a cabo pelos administradores (ao nela terem inscrito passivos ou prejuízos que eram, na realidade, inexistentes, ou ao inscreverem na contabilidade do devedor passivos e/ou prejuízos superiores aos realmente existentes, ou ao nela inscreverem lucros inferiores aos realmente tidos pelo devedor) que veio a ser celebrado um negócio ruinoso para o devedor (de que adveio apenas prejuízo patrimonial para o último e que, por isso, é apto a causar a sua insolvência ou o agravamento desse seu estado); e, finalmente, 3º - que se alegue e prove que esse negócio ruinoso foi celebrado pelo administrador em nome do seu representado em próprio proveito (em seu benefício) ou de pessoa com ele especialmente relacionada[31].
Ora, a facticidade que se apurou nos autos não evidencia que se encontrem preenchidos nenhum dos factos índices que subjazem a esta concreta presunção, desde logo, porque em relação aos exercícios dos anos de 2020, 2021 e 2022 não foi elaborada a contabilidade da sociedade devedora, pelo que naturalmente que nela não podiam ter sido espelhados pelos seus gerentes passivos ou prejuízos inexistentes ou artificialmente (falsamente) agravados, ou lucros artificialmente (falsamente) reduzidos.
Destarte, procede este fundamento de recurso, impondo-se a revogação da sentença recorrida no segmento em que se julgou encontrar-se preenchida a presunção inilidível de insolvência culposa da al. b) do n.º 2 do art. 186º.

C.1.3- Da presunção inilidível de insolvência culposa da al. g) do n.º 2 do art. 186º
Considerou também a 1ª Instância estar preenchida a presunção inilidível de insolvência culposa da al. g) do n.º 2 do art. 188º, onde se dispõe: “Considera-se sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham prosseguido, no seu interesse pessoal ou de terceiro, uma exploração deficitária, não obstante saberem ou deverem saber que esta conduziria com grande probabilidade a uma situação de insolvência”.
Conforme resulta da norma que se acaba de transcrever, para que se encontre preenchida a presunção inilidível de insolvência culposa nela enunciada é necessário que se provem os seguintes requisitos legais cumulativos: a) que nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência do devedor, os seus administradores, de direito ou de facto, prossigam uma exploração deficitária da mesma, ou seja, que essa atividade apenas seja geradora de prejuízos económicos para o devedor; b) que esses administradores prossigam com essa atividade deficitária para o seu representada com o intuito de satisfazerem o seu próprio interesse ou de terceiro (intenção específica); e c – que os mesmos soubessem ou tivessem a obrigação de saber que essa sua gestão deficitária do seu representado, com elevado grau de probabilidade, o levariam a uma situação de insolvência ou ao agravamento da situação de insolvência em que já se encontrava.
Dito por outras palavras, “o preenchimento da fattispecie normativa da al. g) do n.º 2 do art. 186º do CIRE pressupõe um comportamento do administrador que afronte os deveres de fidelidade/lealdade a que se encontra adstrito (por mor, v.g., do disposto nas als. a) e b) do n.º 1 do art. 64º do Cód. Soc. Com.), por envolver, por via direta ou indireta, efeitos negativos para o património do insolvente, geradores ou agravantes da situação de insolvência, exigindo-se, no entanto, uma intenção específica na atuação daquele, concretamente, a prossecução da atividade deficitária” da sua administrada no seu próprio interesse ou de terceiro[32].
Ou seja, como se escreve no acórdão da Relação de Coimbra de 14/01/2014, “o que está em causa na al. g) da norma acima citada não é propriamente a mera gestão ruinosa e imprudente do património ou rendimentos do devedor, independentemente das concretas circunstâncias em que ela se traduza, sendo que o preenchimento dessa previsão legal pressupõe o prosseguimento de uma determinada atividade cuja exploração se revele deficitária, e pressupõe que tal aconteça em benefício e no interesse de pessoa diversa do devedor, ou seja, em benefício dos seus administradores ou de terceiros”[33], e que adicionalmente se prove facticidade de onde decorra que o administrador sabia ou devia saber (atento o padrão de diligência de um administrador mediante sagaz e diligente que se encontrasse nas concretas circunstâncias em que aquele se encontrava – logo, um padrão  objetivo) que, em consequência dessa atividade deficitária que estava a levar a cabo da sua representada, em benefício próprio ou de terceiro, esta iria com grande probabilidade ficar  numa situação de insolvência ou iria ver agravada essa sua situação[34].
Revertendo ao caso dos autos, é indiscutível que a facticidade apurada não permite concluir que os gerentes da sociedade devedora (o recorrente BB e AA) tivessem prosseguido, nos últimos três anos que antecederam o início do presente processo de insolvência, uma atividade deficitária daquela sociedade, prosseguindo o seu próprio interesse ou de terceiro, mas antes o que se assiste é que a 1ª Instância, na sentença recorrida, confundiu os requisitos da al. g) do n.º 2, com o pretenso incumprimento por parte daqueles gerentes em a apresentarem à insolvência, incumprimento esse a que alude a presunção ilidível de culpa grave da al. a), do n.º 3 do art. 186º do CIRE, quando os pressupostos de ambas as presunções são distintos e trata-se de presunções que são também elas distintas, conforme acima já sobejamente se demonstrou.
Destarte, ao concluir pelo preenchimento da presunção inilidível de insolvência culposa da al. g) do n.º 2 do art. 186º do CIRE, quando a facticidade apurada não permite que se conclua pelo preenchimento dos factos base dessa concreta presunção, a sentença recorrida incorreu em erro de direito, impondo-se a sua revogação no segmento em que assim se decidiu.

C.1.4- Da ficção legal de insolvência culposa da al. h) do n.º 2 do art. 186º
Estabelece o art. 186º, n.º 2, al. h) que: “Considera-se sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham incumprido em termos substanciais a obrigação de manter a contabilidade organizada, mantido uma contabilidade fictícia ou uma dupla contabilidade ou praticado irregularidade com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor”.
Conforme antedito, mais de que uma presunção inilidível de insolvência culposa, nesta disposição legal sanciona-se comportamentos gravemente ilícitos e culposos dos administradores, de direito e de facto, de sociedade declarada insolvente que, nos últimos três anos que antecederam o início da insolvência, não cuidaram que a contabilidade da sua representada fosse efetuada (ausência de contabilidade tout court), mantiveram uma contabilidade fictícia (que não retrata a verdadeira situação patrimonial e financeira da sua representada), mantiveram uma dupla contabilidade (de modo que não se sabe qual das duas retrata a verdadeira situação patrimonial e financeira da sua representada), ou em que a contabilidade apresenta irregularidade, de modo a impedir que se possa apreender a real situação patrimonial e financeira da sua representada e, assim, apurar-se a evolução dessa situação e apreender as causas da insolvência ou do agravamento desta e quem é o responsável por esse estado de coisas.
A contabilidade é a técnica de escriturar os livros de contas nos termos prescritos na lei, em que o objeto da escrituração são as operações, os atos dos comerciantes e as deliberações dos corpos sociais das sociedades[35], pelo que a escrituração comercial é mais ampla, não se confundindo com a contabilidade, que é a compilação, registo, análise e apresentação, em termos pecuniários, das operações comerciais[36].
Quanto ao modo como a contabilidade deve ser organizada, o D.L. n.º 158/2009, de 13/07, entrado em vigor em 01/01/2020 (art. 16º), aprovou o Sistema de Normalização Contabilística (SNC), com o propósito de aproximar as normas contabilísticas nacionais, “tanto quanto possível dos novos padrões comunitários, por forma a proporcionar ao nosso país o alinhamento com as diretivas e regulamentos em matéria contabilística da EU, sem ignorar, porém, as características e necessidades específicas do tecido empresarial português”.
A contabilidade e a escrituração comercial prossegue os interesses da própria sociedade, dos sócios, dos credores relacionados com a sociedade, especialmente dos trabalhadores e do Estado[37], na medida que se está perante uma ferramenta de gestão, que tem como finalidade fornecer informações relevantes sobre o património da empresa e dos negócios, permitindo aos comerciantes e aos seus administradores ter um conhecimento realista sobre a situação económica e financeira, minimizando falhas e erros de gestão.
Tratando-se de comerciante que seja simultaneamente uma sociedade comercial, visando as sociedades comerciais, por natureza, prosseguir o lucro (art. 6º do CSC), com vista à frutificação do capital investido pelos sócios, a fim de eventualmente ser repartido pelos mesmos, a contabilidade e a escrituração comercial permite aos sócios ter conhecimento da real situação patrimonial e financeira da sociedade, do desempenho da gestão levada a cabo pela administração, a fim de aquilatar da qualidade dessa gestão, da regularidade, legalidade e/ou conveniência dos atos de gestão que têm sido prosseguidos, dos resultados desses atos, nomeadamente, se são positivos ou se estão a colocar os sócios em risco de perder o  capital que investiram na sociedade.
Quanto aos terceiros, a contabilidade e a escrituração comercial dá a conhecer aos trabalhadores e aos fornecedores e financiadores ou potenciais fornecedores e financiadores do comerciante a saúde patrimonial, económica e financeira deste, a fim de ajuizarem dos riscos que correm caso com ele estabeleçam, ou continuem a estabelecer, relações contratuais de que resulte a aquisição da sua qualidade de credores, nomeadamente, a concessão de crédito.
E, finalmente, quanto ao Estado, é com base na contabilidade e na escrituração comercial que o mesmo liquida os impostos ao comerciante por eventuais lucros que a sua atividade lhe proporcione, fiscaliza o cumprimento das normas tributárias e colhe informações sobre o evoluir da economia em geral, a fim de adotar as políticas económicas que entenda pertinentes com vista a prosseguir determinadas finalidades gerais de política económica.
Daí que, as normas que impõem aos comerciantes a obrigação de manterem escrituração comercial, dar balanço e prestar contas e, bem assim de manterem contabilidade, nos termos fixados na lei, com vista a retratar a verdadeira situação patrimonial e comercial daqueles e o evoluir dessa situação, prossigam relevantíssimos interesses particulares, mas também públicos[38].
Por isso, mostra-se perfeitamente compreensível que o legislador perante qualquer das condutas previstas na al. h) do n.º 2 do art. 186º sancione tais condutas com a ficção legal de insolvência culposa.
Saliente-se, no entanto que ao preenchimento da ficção inilidível de insolvência culposa prevista na dita al. h), do n.º 2, exige-se que o devedor ou os seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência incumpram “em termos substanciais” a obrigação de manter contabilidade organizada, mantenham uma contabilidade fictícia ou uma dupla contabilidade ou, ainda, cometam irregularidade contabilística, e que essas suas condutas determinem “prejuízo relevante” para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor.
Ou seja, não é  qualquer falta ou irregularidade contabilística cometida nos três anos anteriores à propositura do processo de insolvência que preenche a previsão legal daquela norma, mas os conceitos indeterminados nela enunciados – “em termos substanciais” e “prejuízo relevante” -, que cabe ao intérprete preencher, tendo em consideração as situações específicas do caso concreto[39], exige que se esteja “perante uma irregularidade contabilística com algum relevo, segundo as boas regras e práticas contabilísticas, e tem, simultaneamente, que ser uma irregularidade contabilística com influência na perceção que uma contabilidade transmite sobre a situação patrimonial e financeira do contabilizado.
Configurará por certo a presunção inilidível da al. h) uma contabilidade cuja organização fuja às regras do SNC, que não contenha os documentos de prestação de contas exigíveis, que esteja engenhosamente feita, por forma a esconder/mascarar/disfarçar a realidade financeira e patrimonial da empresa contabilizada”[40].
Também preenche necessariamente a ficção inilidível de insolvência culposa daquela alínea, a total ausência de contabilidade, posto que, a ausência tout court de contabilidade constitui necessariamente o incumprimento substancial daquilo que é essencial ou fundamental da obrigação legal que impende sobre os comerciantes de manterem uma contabilidade organizada, ou seja, devidamente compilada, registada, analisada e apresentada, nos termos prescritos na lei, em termos pecuniários, de todas as operações comerciais. É que a total ausência desse registo não permite naturalmente apurar e compreender a verdadeira situação patrimonial e financeira do devedor, por ausência dos elementos contabilísticos que permitam esse apuramento, sobretudo, quando essa ausência perdure ao longo de um período temporal superior a um ano, em que se torna inviável a quem quer que seja, nomeadamente, ao próprio devedor, aos seus administradores, de direito ou de facto, trabalhadores, fornecedores e financiadores, potenciais fornecedores e financiadores, sócios (em caso de sociedade comercial), Estado e ao tribunal apreender a evolução da situação patrimonial e financeira do devedor, por forma a determinar, nomeadamente, qual a causa ou causas da insolvência, do eventual agravamento desse estado de insolvência, da pessoa ou pessoas responsáveis por essa situação, da licitude das suas condutas, do contributo (ou não) daquelas para a criação ou o agravamento do estado de insolvência do devedor, em suma, das respetivas responsabilidades pelo estado de coisas verificado[41].
E também preenche a ficção inilidível de insolvência culposa da dita al. h) quando se mantém uma dupla contabilidade posto que, nesse caso, desconhece-se qual delas retrata a verdadeira situação patrimonial e financeira do devedor, ou quando a contabilidade se mostre fictícia, ou seja, falsificada ou enganosa, por não revelar a verdadeira situação patrimonial e financeira do devedor.
Posto isto, revertendo ao caso em análise, considerou a 1ª Instância que, perante a facticidade apurada estava preenchida a ficção legal de insolvência culposa da al. h) do n.º 2 do art. 186º, com o que não se conforma o apelante, imputando ao decidido erro de direito, mas sem razão. É que se apurou que a contabilidade da sociedade devedora quanto aos exercícios dos anos de 2020, 2021 e 2022 não foi elaborado, o que necessariamente impede que se possa apurar das causas de insolvência da sociedade devedora ou do agravamento desse seu estado e, consequentemente, quem é responsável pelo mesmo, o que, de per se, preenche a previsão legal daquela alínea h), impondo a ficção legal que a insolvência é culposa.
Daí que, salvo melhor opinião, ao concluir pelo preenchimento da ficção legal de insolvência da al. h), do n.º 2 do art. 186º do CIRE, a sentença recorrida não padece dos erros de direito que lhe são assacados pelo recorrente, improcedendo este fundamento de recurso.

C.1.5- Da ficção legal de insolvência culposa da al. i) do n.º 2 do art. 186º.
Verifica-se a ficção jurídica de insolvência culposa de devedor que não seja uma pessoa singular da al. i) do n.º 2 do art. 186º quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham “incumprido, de forma reiterada, os seus deveres de apresentação e de colaboração previstos no art. 83º até à data da elaboração do parecer referido no n.º 6 do art. 188º”.
Nos termos dos arts. 36º, n.º 1, als. f) e g) e 54º do CIRE, o administrador da insolvência entra em funções imediatamente com a notificação da sentença declaratória de insolvência e nela é determinado que sejam entregues àquele os documentos referidos no art. 24º, n.º 1 que ainda não constem dos autos, e é decreta a apreensão, para imediata entrega ao administrador dos elementos de contabilidade do devedor.
Acresce que, para que o administrador da insolvência possa cumprir com as suas funções, onde se conta, a obrigação de emanar parecer quanto à qualificação da insolvência (art. 188º, n.º 6 do CIRE), é imposto ao devedor o cumprimento de uma série de obrigações, que se encontram elencadas no art. 83º do CIRE.
Na al. i) do n.º 2 do art. 186º sanciona-se com a ficção legal de insuficiência culposa o incumprimento reiterado pelos administradores, de direito ou de facto, de devedor que não seja uma pessoa singular dos deveres de apresentação e colaboração enunciados naquele art. 83º, entre o momento em que ficam adstrito ao cumprimento de tais deveres, ou seja, desde a entrada do administrador da insolvência em funções e a data da elaboração pelo último do parecer quanto à qualificação da insolvência.
Subjacente a essa ficção legal de insolvência  está um incumprimento “reiterado” pelos administradores dos enunciados deveres, privando o administrador  da insolvência dos elementos necessários para que possa emitir o parecer sobre a qualificação da insolvência de modo fundado, isto é, que lhe permitam com segurança determinar as causas da insolvência[42].
Deste modo, para que se possa concluir pelo preenchimento dessa ficção legal de insolvência culposa é necessário que se prove um incumprimento reiterado pelos administradores dos deveres de apresentação e colaboração previstos no art. 83º do CIRE, de modo a que se conclua não se estar perante qualquer desinteresse ou negligência daqueles  pelo processo de insolvência, mas antes que atuam com a intenção deliberada de não concorrer para que o administrador da insolvência conheça os factos que determinaram a insolvência, bem como a alegação e prova de factos de onde decorra que, por via dessa conduta omissiva dos administradores do devedor, o administrador da insolvência ficou privado de elementos relevantes e essenciais para que pudesse determinar com segurança as causas de insolvência.
Revertendo ao caso dos autos, analisada a facticidade apurada prefigura-se-nos que a mesma não evidencia qualquer violação por parte do recorrente BB e/ou de AA (gerentes de direito da sociedade devedora) dos deveres de apresentação e colaboração previstos no art. 83º do CIRE para com a administradora da insolvência e/ou o tribunal, de modo que a única razão que descortinamos para que o julgador a quo tivesse concluído pelo preenchimento desta concreta ficção legal de insolvência culposa prende-se com a circunstância de não terem entregue a contabilidade da sociedade devedora à administradora da insolvência dos exercícios dos anos de 2020, 2021 e 2022.
Acontece que, salvo o devido respeito, a não entrega da contabilidade da sociedade devedora quanto aos exercícios de 2020, 2021 e 2022 não significa qualquer incumprimento por parte dos seus gerentes dos deveres de apresentação e de colaboração, pela simples razão que essa contabilidade não existe quanto a esses concretos exercícios, pelo que naturalmente que os gerentes da sociedade devedora não podiam (e não podem) entregar à administradora da insolvência algo que não têm em seu poder, por ser inexistente.
Decorre do que se vem dizendo que, ao concluir pelo preenchimento da ficção legal de insolvência culposa da al. i) do n.º 2 do art. 186º do CIRE, a sentença recorrida padece de erro de direito, impondo-se a sua revogação no segmento em que assim se decidiu.

C.1.6- Da presunção de culpa grave da al. b), do n.º 3 do art. 186º 
Finalmente, considerou a 1ª Instância encontrar-se preenchida a presunção de insolvência culposa do art. 186º, n.º 3, al. b) do CIRE, ao que o recorrente imputa erro de direito, mas adiante-se, desde já, sem fundamento fáctico nem jurídico.
Na verdade, lê-se no art. 186º, n.º 3, al. b) que: “Presume-se unicamente a existência de culpa grave quando os administradores, de direito ou de facto, do devedor que não seja uma pessoa singular tenham incumprido a obrigação de elaborar as contas anuais, no prazo legal, de submete-las à devida fiscalização ou de as depositar na conservatória do registo predial”.
Ora, estando apurado que as contas do exercício da sociedade devedora dos anos de 2020, 2021 e 2022 não foram depositadas na Conservatória do Registo Comercial (cfr. ponto 3.20 dos factos apurados), é apodítico que o recorrente BB e AA, enquanto gerentes de direito daquela sociedade, preencheram o facto base da presunção ilidível da al. b) do n.º 3 do art. 186º do CIRE, que leva a que se presuma que essa sua conduta omissiva é gravemente culposa, presunção essa que não foi ilidida.
Coisa diversa é saber se com base nessa conduta gravemente omissiva o tribunal a quo podia ter concluído pela verificação do nexo causal entre a mesma e a criação ou o agravamento do estado de insolvência da sociedade devedora, concluindo o recorrente negativamente e, a nosso ver, com inteira razão.
Na verdade, para que se pudesse qualificar a insolvência da sociedade devedora como culposa, por via de tais comportamentos omissivos, ilícitos e gravemente culposos (presunção de culpa grave essa que não foi ilidida), decorrentes das contas do exercício dos anos de 2020, 2021 e 2022 não terem sido depositadas na Conservatória do Registo Comercial, era necessário que se provasse facticidade de onde decorresse que foi em consequência do não depósito de tais contas que a sociedade devedora entrou em estado de insolvência ou viu agravado esse seu estado, isto é, o nexo causal entre as condutas gravemente negligentes descritas na al. b), do n.º 3 e o estado de insolvência ou o agravamento deste da sociedade devedora, a propósito do que nada se apurou[43].
Decorre do exposto, impor-se concluir pela procedência parcial deste fundamento de recurso, revogando-se a sentença recorrida no segmento em que se qualificou a insolvência como culposa na sequência do preenchimento da presunção ilidível de culpa grave da al. b) do n.º 3 do art. 186º.
Nas alegações de recurso o recorrente aborda a questão do eventual preenchimento da presunção ilidível de culpa grave da al. a) do n.º 3 do art. 186º do CIRE, concluindo que a facticidade que se quedou provada nos autos não permite que a 1ª Instância tivesse concluído pelo preenchimento dos factos base desta concreta presunção e que, em todo o caso, não se apurou facticidade que permitisse julgar verificado o nexo causal entre a facticidade prevista nessa alínea e o estado de insolvência da sociedade devedora ou o seu agravamento.
Acontece que, na sentença recorrida a 1ª Instância não julgou verificado o preenchimento da presunção de culpa grave da al. a) do n.º 3 do art. 186º e não qualificou a insolvência da sociedade devedora com esse fundamento, pelo que a questão suscitada pelo recorrente é nova, por não ter sido objeto de decisão na sentença sob sindicância, pelo que dela não pode o tribunal ad quem conhecer.
Resulta do excurso antecedente, impor-se concluir pela parcial procedência da presente apelação e, em consequência, altera-se a facticidade julgada provada pela 1ª Instância nos termos supra indicados e revoga-se a sentença recorrida nos segmentos em que qualificou a insolvência como culposa com fundamento no art. 186º, n.ºs 2, al. a), b), g) e i) e 3, al. b) do CIRE, improcedendo, no mais, o recurso e, em consequência, confirma-se a decisão constante da sua parte dispositiva.
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Sumário (elaborado pelo relator – art. 663º, n.º 7 do Cód. Proc. Civil).

1- Verifica-se a presunção inilidível de insolvência culposa da al. a) do n.º 2 do art. 186º do CIRE quando, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência, os administradores, de direito ou de facto, do devedor destruam (eliminação física do bem), danifiquem (eliminação física parcial do bem, de modo a provocar uma redução efetiva do seu valor), inutilizem (eliminação física parcial do bem, de modo a torná-lo impróprio para o uso normal/corrente a que se destina), ocultem (escondendo fisicamente o bem, de modo a que se desconheça o seu paradeiro para que se possa apreendê-lo) ou façam desaparecer (deslocação do bem da disponibilidade do devedor para a de terceiro, através de negócio juridicamente válido, ou aparentemente juridicamente válido – negócio simulado) de todos os bens que integram o património do devedor ou de parte considerável dos bens que integram o seu património, uma vez que qualquer um desses atos dos administradores deprecia realmente o valor do património do devedor, causando por essa forma o seu estado de insolvência ou o seu agravamento.
2- Tratando-se de destruição, danificação, inutilização, ocultação ou causação do desaparecimento de parte considerável de bens que integram o património do devedor, para que se possa concluir pelo preenchimento daquela presunção é necessário que se apure o valor dos bens no momento em que foram objeto de tais condutas e o do valor dos bens que, na altura, integravam a totalidade do património do devedor, posto que apenas mediante a comparação desses dois valores é possível concluir (ou não) pela verificação de uma situação de destruição, danificação, inutilização, ocultação ou provocação do desaparecimento de «parte considerável» do património do devedor.
3- A presunção inilidível de insolvência culposa da al. b) do n.º 2 do art. 186º tem como pressupostos cumulativos que: 1º- nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência, os administradores, de direito ou de facto, do devedor tenham falseado a contabilidade deste, mediante a inscrição nela de falsos passivos ou prejuízos, ou empolando o valor desses passivos ou prejuízos, ou reduzindo nela o valor dos lucros efetivamente obtidos pelo devedor; 2º- que, por via dessa contabilidade falseada e enganosa os administradores venham a celebrar um negócio ruinoso para o devedor, seu representado (por apenas desse negócio resultarem prejuízos patrimoniais para o último); 3º- e que esse negócio ruinoso seja celebrado pelos administradores em representação do devedor em benefício dos próprios administradores ou de pessoa com eles especialmente relacionada, tal como definida no art. 49º do CIRE.
4- O preenchimento da presunção inilidível de insolvência culposa da al. g) do n.º 2 do art. 186º pressupõe um comportamento do administrador, de direito ou de facto, para com o devedor, seu representado, adotado nos três anos que antecederam o início do processo de insolvência, que afronte os deveres de fidelidade e de lealdade para com este, por envolver, por via direta ou indireta, efeitos negativos para o seu património, geradores ou agravantes da sua situação de insolvência, bem como a intenção específica dos administradores de prosseguirem a atividade deficitária do devedor em proveito próprio ou de terceiro, apesar de preverem ou deverem prever (segundo um padrão objetivo de previsibilidade) que esse atividade deficitária com toda a probabilidade iria levar à situação de insolvência do devedor, seu representado, ou ao seu agravamento.
5- Na al. h), do n.º 2, do art. 186º sanciona-se as condutas dos administradores, de direito ou de facto, de devedor, ocorridas nos três antes anteriores ao início do processo de insolvência, nela descritas (falta de contabilidade tout court, dupla contabilidade – duas contabilidades, sem que se saiba qual das duas retrata a verdadeira situação patrimonial e financeira do devedor -, contabilidade fictícia – enganosa, não verdadeira, por não retratar a verdadeira situação patrimonial e financeira do devedor -, ou contabilidade com irregularidades que impeçam a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor), com a sanção de insolvência culposa, por qualquer uma dessas condutas, além de ilícitas e gravemente culposas, impedirem que se possa apreender as causas da insolvência, pelo que mais do que uma presunção de insolvência culposa, está-se perante uma ficção legal de insolvência culposa.
6- A ficção legal de insolvência culposa da al. i) do n.º 2 do art. 186º pressupõe que os administradores, de direito ou de facto, de devedor incumpram reiteradamente com os deveres de apresentação e de colaboração previstos no art. 83º do CIRE, entre o momento em que ficam investidos nesses deveres (entrada em funções do administrador da insolvência) e o momento em que o administrador da insolvência emite o parecer quanto à qualificação da insolvência, privando o último, em consequência dessa sua conduta reiteradamente omissiva, de elementos relevantes e essenciais para que possa determinar com segurança as causas da insolvência, e tem subjacente que aqueles, com esse seu comportamento reiteradamente omissivo atuaram com a intenção deliberada de não concorrer para que o administrador da insolvência tomasse conhecimento dos factos que determinaram a insolvência do devedor.   
7- Para que se possa qualificar a insolvência como culposa com fundamento na presunção ilidível de culpa grave da al. b) do n.º 3 do art. 186º, para além de se ter de provar os factos base da presunção (e desta não ser ilidida mediante prova em contrário), é necessário que se prove que foi em consequência do comportamento previsto naquela al. b) do n.º 3 que resultou (nexo causal) o estado de insolvência do devedor ou o seu agravamento.
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V- Decisão

Nesta conformidade, os Juízes Desembargadores da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães acordam em julgar a presente apelação parcialmente procedente e, em consequência:
a- alteram a facticidade julgada provada pela 1ª Instância na sentença recorrida nos termos supra indicados;
b- revogam a sentença recorrida nos segmentos em que nela se qualificou a insolvência como culposa com fundamento no art. 186º, n.ºs 2, al. a), b), g) e i) e 3, al. b) do CIRE;
c- no mais, confirmam a sentença recorrida, incluindo a sua parte dispositiva.
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Mais acordam em não admitir a junção aos autos do documento apresentado pelo recorrente em anexo às alegações de recurso e, após trânsito, ordenam o seu desentranhamento dos autos e sua restituição à apresentante, condenado o recorrente nas custas do incidente que gerou, fixando em uma UC a taxa de justiça.
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Custas do recurso pelo recorrente, posto que apesar do presente recurso ter parcialmente procedido, a parte dispositiva da sentença recorrida manteve-se inalterada, pelo que ficou vencido (art. 527º, n.ºs 1 e 2 do CPC).
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Notifique.
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Guimarães, 02 de maio de 2024

José Alberto Moreira Dias – Relator
Lígia Paula Ferreira de Sousa Santos Venade – 1ª Adjunta
Pedro Maurício – 2º Adjunto
                       



[1] Ferreira de Almeida, “Direito Processual Civil”, vol. II, 2015, Almedina, págs. 395 e 396.
[2] Paula Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro, “Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, vol. I, 2013, Almedina, págs. 340 e 341.
No mesmo sentido de que o encerramento da discussão em 1ª Instância é o limite máximo até ao qual o art. 423º, n.º 3 do CPC, consente a junção aos autos de documentos, verificados que estejam os requisitos legais que enuncia, vide Paulo Pimenta, “Processo Civil Declarativo”, 2014, Almedina, pág. 352, nota 829.
Ainda Pais de Amaral, “Direito Processual Civil”, 2106, 12ª ed., pág. 320.
[3] Acs. STJ., de 13/02/2007, Proc. 06A4496; RC., de 20/01/2015, Proc. 2996/12.0TBFIG-G1, in base de dados da DGSI, onde constam todos os acórdãos que se venham a citar sem menção em contrário.
[4] Abílio Neto, “Novo Código de Processo Civil Anotado”, 2ª ed., janeiro de 2014, Ediforum, pág. 515.
[5] Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro, ob. cit., pág. 341.
[6] Abrantes Geraldes, “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 2017, 4ª ed., Almedina, pág. 229.
[7] Acs. STJ., de 18/01/2005, Rev. n.º 3689/04-4ª, Sumários, jan./2005; 18/04/2006, Proc. 06A844
[8] Neste sentido vide Ac. RG., de 19/06/2014, Proc. 36/12.9TBEPS-A.G1, onde se lê: “A junção de documentos apenas tornada necessária em virtude do julgamento proferido no tribunal da primeira instância, só é possível se a necessidade do documento era imprevisível antes de proferida a decisão na 1ª instância, por esta se ter baseado em meio probatório não oferecido pelas partes ou em regra de direito com cuja aplicação ou interpretação os litigantes justificadamente não contavam”.
Ainda Ac. STJ., de 26/09/2012, Proc. 174/08.TTVFX.L1.S1: “A possibilidade de junção de documentos com a alegação de recurso de apelação, não se tratando de documento ou facto superveniente, só existe para aqueles casos em que a necessidade de tal junção foi criada, pela primeira vez, pela sentença da primeira instância. A decisão de 1ª instância pode criar, pela primeira vez, tal necessidade quando se tenha baseado em meios probatórios não oferecidos pelas partes, ou quando se tenha fundado em regra de direito com cuja aplicação ou interpretação os litigantes, justificadamente, não contavam”.
Fazendo uma síntese do regime, Ac. RC. de 18/11/2014, Proc. 628/13.9TBGRD.C1.
[9] Ac. RG. de 01/06/2017, Proc. 1227/15.6T8BGC.C1.
[10] Abrantes Geraldes, “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 2017, 4ª ed., Almedina, págs. 153 e 290; Acs. R.G., de 29/10/2020, Proc. 2163/17.7T8VCT.G1; de 28/09/2023, Proc. 3343/19.6T8VNF-F.G1.
[11] Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, “Código de Processo Civil Anotado”, vol. I, 2ª ed. pág. 797, nota 4.
[12]Ana Luísa Geraldes, “Impugnação e Reapreciação Sobre a Matéria de Facto”, in “Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Lebre de Freitas, vol. IV, pág. 609.
[13]Ac. STJ., de 17/05/2017, Proc. 4111/13.4TBBRG; RG., de 12/10/2023, Proc. 1412/22.4T8VCT-E.G1; de 07/06/2023, Proc. 111/20.6T8GMR-A.G1; de 09/04/2015, Proc. 4649/11.8TBRG.G1; de 18/12/2017, Proc. 3892/16.8TBRG.G1; RL., de 10/1072017, Proc. 23656/15.5T8SNT.L1-7; RC., de 27/5/2014, Proc. 104/12.0T2AVR.C1; e de 24/04/2012, Proc. 219/10.6T2VGS.C1.
[14] Acs. R.G., de 16/03/2023, Proc. 6160/19.0T8VNF-A.G1; de 19/01/2023, Proc. 2710/19.0T8GMR-B.G1 (estes dois relatados pelo aqui relator); de 21/05/2020, Proc. 1048/19.7T8GMR-A.G1; de 05/03/2020, Proc. 301/18.1T8VNF-C.G1; R.P., de 06/09/2021, Proc. 908/12.0TYVNG-A.P1; de 10/12/2019, Proc. 124/10.6TYVNG-A.P1; de 26/11/2019, Proc. 2141/14.8TBTS-B.P1;  RC., de 14/04/2015, Proc. 1830/10.0TBIFG.Q-C1.
[15] Alberto dos Reis, “Código de Processo Civil Anotado”, vol. III, 4ª ed., Coimbra Editora, págs. 206 e 207.
[16] Alberto dos Reis, ob. cit., pág. 212.
[17] Ac. STJ., de 09/03/2003, Proc. 03B1816.
[18] Acs. STJ., de 01/10/2019, Proc. 109/17.1T8ACB.C1.S1; de 07/05/2014, Proc. 39/12.3T4AGD.C1.S1; de 11/07/2012, Proc. 3360/14.0TTLSB.L1.S1; e de 14/11/2006, Proc. 06A2992.
[19]Abrantes Geraldes, “Recurso no Novo Código de Processo Civil, ob. já antes citada, pág. 293 e 294.
[20] Abrantes Geraldes, ob. cit., pág. 294 a 295.
[21] Catarina Serra, “Lições de Direito da Insolvência”, Almedina, abril de 2018, págs. 299 e 300; Marco Carvalho Gonçalves, “Processo de Insolvência e Processos Pré-Insolvenciais”, Almedina, 2023, pág. 575 e 576; Ac. RC., de 14/06/2022, Proc. 4114/19.5T8LRA-C.C1; Preâmbulo do D.L. n.º 53/2004, de 18/03, em que, no ponto 40 deste se lê que: “Um objetivo da reforma introduzida pelo presente diploma reside na obtenção de uma maior e mais eficaz responsabilização dos titulares de empresa e dos administradores de pessoas coletivas. É essa a finalidade do novo “incidente de qualificação da insolvência”. As finalidades do processo de insolvência e, antes ainda, o próprio propósito de evitar insolvências fraudulentas ou dolosas, seriam seriamente prejudicados se aos administradores das empresas, de direito ou de facto, não sobreviessem quaisquer consequências sempre que estes hajam contribuído para tais situações. A coberto do expediente técnico da personalidade jurídica coletiva, seria possível praticar incolumemente os mais variados atos prejudiciais para os credores. (…). O tratamento dispensado ao tema pelo novo Código (inspirado, quanto a certos aspetos, na recente Ley Concursal espanhola), (…), consiste, no essencial, na criação do “incidente de qualificação da insolvência”, o qual é aberto oficiosamente em todos os processos de insolvência, qualquer que seja o sujeito passivo, e não deixa de realizar-se mesmo em caso de encerramento do processo por insuficiência da massa insolvente (assumindo nessa hipótese, todavia, a designação de “incidente limitado de qualificação da insolvência”, com uma tramitação e alcance mitigados). O incidente destina-se a apurar (sem efeitos quanto ao processo penal ou à apreciação da responsabilidade civil) se a insolvência é fortuita ou culposa, entendendo-se que esta última se verifica quando a situação tenha sido criada ou agravada em consequência da atuação, dolosa ou com culpa grave (presumindo-se a segunda em certos casos), do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência, e indicando-se que a falência é sempre considerada culposa em caso da prática de certos atos necessariamente desvantajosos para a empresa. A qualificação da insolvência como culposa, implica sérias consequências para as pessoas afetadas que podem ir da inabilitação por um período determinado, a inibição temporária para o exercício do comércio, bem como para a ocupação de determinados cargos, a perda de quaisquer créditos sobre a insolvência e a condenação a restituir os bens ou direitos já recebidos em pagamento desses créditos”.   
[22] Carvalho Fernandes e João Labareda, ob. cit., pág. 680; Menezes Leitão, “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado”, 11º ed., Almedina, pág. 237; Luís M. Martins, “Processo de Insolvência”, 2014, 4ª ed., Almedina, pág. 449.
[23]Menezes Leitão, ob. cit., pág. 237; Luís M. Martins, “Processo de Insolvência”, Almedina, 2016, 4ª ed., pág. 450; Ac. RG., de 12/07/2011, Proc. 503/10.9TBPTL-H.G1; RP., de 15/03/2007, Proc. 0730992; de 22/05/2007, Proc. 0722442; RC., de 14/06/2022, Proc. 4114/19.5T8LRA-C.C1; de 14/11/2006, Proc. 1002/04.3TBTNV-C.G1; de 07/02/2012, Proc. 2273/10.1TBLLRA-B.C1. 

[24] Rui Estrela de Oliveira, “Uma Brevíssima Incursão pelos Incidente de Qualificação da Insolvência”, in “Julgar”, n.º 11, maio-agosto de 2010, pág. 241 e 242.
[25] Catarina Serra, in “Cadernos de Direito Privado”, n.º 21, janeiro/março de 2008, em anotação ao acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 07/01/2008, sob o título “Decoctor ergo fraudator? – a insolvência culposa (esclarecimentos sobre um conceito a propósito de umas presunções)”; e em “Lições de Direito da Insolvência”, ob. cit., a pág. 301, em que expende: “Se as als. a) a g) do n.º 2 do art. 186º correspondem indiscutivelmente a presunções (absolutas) de insolvência culposa (ou da culpa na insolvência), as als. h) e i) do n.º 2 do art. 186º mais parecem ser ficções legais – dado que a factualidade descrita não é de molde a fazer presumir com segurança o nexo de causalidade entre o facto e a insolvência, que é, a par da culpa (dolo ou culpa grave), o requisito fundamental da insolvência culposa, segundo a cláusula geral do n.º 1 do art. 186º”.
[26] Acs. RG., de 05/06/2014, Proc. 1243/12.8TBMGR-D.G1; de 01/06/2017, Proc. 280/14.4TBPVL-E.G1, ponderando-se neste que à alínea a), do n.º 2 do art. 186º do CIRE “subjaz a ideia de transmissão, ainda que aparente dos bens da titularidade da sociedade devedora para o património de terceiro, designadamente, mediante a celebração de um negócio simulado, permanecendo os mesmos na disponibilidade do devedor”.
[27] Acs. RG., de 09/07/2020, Proc. 2622/19.7T8VNF-B.G1; RC., de 11/10/2022, Proc. 3078/21.0T8LRA-B.C1; de 28/05/2013, Proc. 102/12.0TBFAG-B.G1; de 23/11/2010, Proc. 1088/06.6TBPMS-A.C1.
[28] Pedro Caeiro, “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Parte Especial, tomo II, Coimbra Editora, 1999, págs. 412 e 413.
[29] Rui Estrela de Oliveira, ob. cit., págs. 238 e 239.
[30] Acs. R.G., de 09/02/2012, Proc. 1124/10.1TBGMR-F.G1; de 01/06/2017, Proc. 1046/16.2T8GMR-B.G1, em que se lê neste último: “Não se apurando o valor dos bens objeto da dação, não se pode considerar verificado o facto referido na al. a) do n.º 2 do art. 186º do CIRE”.
[31] Rui Estrela de Oliveira, ob. cit., págs. 239 e 240.
[32] Ac. R.P., de 23/04/2018, Proc. 523/15.7T8AMT-A.P1.
[33] Ac. R.C., de 14/01/2014, proc. 785/11.9TBLR-A.C1
[34] Ac. R.G., de 11/05/2023, Proc. 2411/20.6T8VCT-D.G1, em que se defende que: Para o preenchimento da presunção inilidível de insolvência culposa  da al. g) do n.º 2 do art. 186º do CIRE, não é suficiente que o administrador da futura insolvente haja prosseguido uma gestão deficitária nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência, sabendo, ou devendo saber, que a mesma adviria, exigindo-se ainda que a dita gestão deficitária tenha sido levada a cabo em benefício do próprio administrador, ou de terceiro”.
[35] Abílio Neto, “Código Comercial, Código das Sociedades e Legislação Complementar Anotados”, 11ª ed.ª, 1993, Ediforum, pág. 61.
[36] Ac. RC. de 22/05/2012, Proc. 1053/10.9TJCBR-K.C1.
[37] António Menezes Cordeiro, “Código das Sociedades Comerciais Anotado”, 4ª ed., Almedina, pág. 332, nota 7.
[38] J. Pires Cardoso, “Noções de Direito Comercial”, págs. 113 e segs.: “A utilidade e obrigatoriedade da escrituração mercantil assentam no interesse do próprio comerciante, das pessoas que com ele contratam e no interesse do público geral do público”.
[39] Ac. STJ. de 02/03/3021, Proc. 3071/16.4T8STS-F.P1.S1.
[40] Ac. RC. de 22/05/2012, já antes citado.
[41] Ac. RG. de 20/02/2014, Proc. 5100/10.6TBBRG.G1, cujo sumário é o seguinte: “Presume-se inilidivelmente a insolvência culposa da sociedade quando o seu administrador tenha incumprido em termos substanciais a obrigação de manter contabilidade organizada com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor. Não tendo sido elaboradas as contas anuais da sociedade insolvente no prazo legal, nem submetidas à devida fiscalização, nem se tendo procedido ao seu depósito na conservatória competente, verifica-se uma situação de atuação culposa, ainda que se mostre que o TOC da insolvente se negara a atualizar a escrita da insolvente e a entregar à gerência respetiva os documentos que integravam a sua contabilidade. Tendo sido a contabilidade omitida na sua totalidade, nada logrando por isso verificar o administrador de relevante, ocorre uma situação de incumprimento substancial”, e em que adicionalmente se lê: “Substancial reporta-se à substância, sendo substancial “aquilo que é essencial ou fundamental”, o que é importante, relativo à essência. A contabilidade omitida foi na totalidade, portanto de forma substancial. A substância não tem a ver exclusivamente com o tempo, embora este seja importante para apreciar “no todo” do incumprimento a sua substancialidade. Tem sobretudo a ver com as consequências das faltas ocorridas e suas consequências na capacidade de avaliar a situação (de ver a situação) que o ato omitido pretendia tornar patente”.
Ac. RC., de 20/09/2016, Proc. 612/14.5TBVIS-B.C1: “A ausência total de contabilidade durante quatro anos anteriores à declaração da insolvência preenche necessariamente a obrigação de manter a contabilidade organizada, impede, por si só, a análise sobre o evoluir da situação económica-financeira da devedora e das causas que levaram à sua insolvência e dos seus responsáveis”.
[42] Carvalho Fernandes e João labareda, ob. cit., págs. 421 e 681; Rui Estrela de Oliveira, ob. cit., pág. 242; Ac. RE., de 24/09/2020, Proc. 507/15.5T8OLH-A.E1: “Viola de forma reiterado o seu dever de colaboração, implicando a qualificação da insolvência como culposa nos termos da al. i) do n.º 2 do art. 186º do CIRE, o administrador de facto que, mantendo acesso à contabilidade da devedora insolvente, esquiva-se de forma persiste a facultar a documentação ao Sr. AI, impedindo em larga medida o apuramento das causas da insolvência e inviabilizando a apreciação, pela AT, de pedidos de reembolso do IVA”.
Ac. TC n.º 70/2012, Proc. 651/2012, que decidiu: “Não julgar inconstitucional a norma da al. i) do n.º 2 do art. 186º do CIRE”, por “a falta aos deveres de apresentação e de colaboração poder não resultar de um simples alheamento do processo, de desinteresse ou negligência, mas antes da intenção deliberada de não concorrer para o conhecimento de factos anteriores ao início do processo de insolvência que levariam à qualificação da insolvência como culposa, à luz de qualquer das restantes previsões. Como salienta o Ministério Público, um comportamento não colaborante do obrigado dificulta ou impossibilita o conhecimento de factos relevantes e essenciais para a qualificação da insolvência”.
[43] Ac. R.G., de 16/03/2023, Proc. 6160/19.0T8VNF-A.G1, relatado pelo aqui relator.