Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
20996/22.0T8PRT-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ISOLETA DE ALMEIDA COSTA
Descritores: PEDIDO RECONVENCIONAL
DESPACHO
ADMISSÃO
IRRECORRIBILIDADE
PEDIDOS INCOMPATÍVEIS
DEMARCAÇÃO
REIVINDICAÇÃO
Nº do Documento: RP2024040420996/22.0T8PRT-A.P1
Data do Acordão: 04/04/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O despacho que admite o pedido reconvencional não é recorrível autonomamente, dado que se trata de decisão que não cabe, nem nº 1, nem nas alíneas do nº 2, do artigo 644º, do Código de Processo Civil.
II - A cumulação do pedido de demarcação com o pedido de reivindicação é, substancialmente incompatível, pois as causas de pedir em que assentam tais pretensões são inconciliáveis.
III - Não se pode discutir, sem contradição, a existência do título e requerer a restituição da coisa a qual, como exige o artigo 581º, nº 4 do Código de Processo Civil, tem de ser concretamente delimitada, e simultaneamente afirmar-se a existência dos títulos de Autor e Réu por modo a requerer a demarcação, a qual supõe a incerteza dos limites.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo: 20996/22.0T8PRT-A.P1

Sumário (artigo 663º nº 7 do Código de Processo Civil)
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ACORDAM OS JUÍZES DA 3ª SECÇÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO

Nos presentes autos, AA, por si e na qualidade de herdeiro e cabeça-de-casal da Herança aberta por óbito de BB e outros, na qualidade de herdeiros na mencionada Herança, intentaram a presente ação declarativa, com processo comum, contra CC, e outros, formulando os seguintes pedidos:
“serem os Réus condenados:
a) A ver demarcados os prédios identificados em 1º e 13º da petição inicial, nos termos do artigo 1353º e seguintes do código civil, por meio de sinais externos, visíveis e permanentes;
b) A reconhecer o direito de propriedade dos Autores sobre o prédio identificado no art. 1º da petição inicial até à linha delimitadora que vier a ser fixada, abstendo-se, consequentemente de praticar qualquer ato que, de qualquer modo, impeça, dificulte ou diminua o livre exercício do direito do autor sobre tal prédio até tal linha delimitadora;
c) A demolirem e retirarem tudo o que, depois de definida a linha delimitadora, estiver a ocupar o prédio dos Autores, no prazo de 15 dias, entregando-o aos Autores completamente livre e desimpedido;
d) A pagarem aos Autores, a título de sanção pecuniária, a quantia de €100,00 por cada dia além dos 15 dias acima referidos, que demorarem a limpar e desimpedir o prédio destes.”.
Para tanto os autores alegaram, em síntese, que são donos e possuidores do prédio que identificam, articulando os factos para a usucapião e invocando o registo da coisa a seu favor na Conservatória do Registo Predial da Póvoa de Varzim.
Juntam certidão da sentença proferida na ação que correu os seus termos na Comarca do Porto- Juízo Local Cível – Juiz 1, sob o n.º 2216/13.0 TBPVZ, entre as mesmas partes e na qual foi reconhecido que são donos e legítimos proprietários do prédio identificado na petição.
Invocam ainda que o seu prédio rústico e o prédio dos réus, que igualmente identificam, são confinantes entre si (sul/norte), inexistindo, entre eles, nas indicadas estremas norte/sul uma linha física a separá-los, sendo divergente o entendimento que cada uma das partes tem quanto aos respetivos limites na parte em que confinam.
Os autores também alegaram que os réus colocaram pilares em volta do terreno dos autores em ordem a delimitar o terreno, invadindo o prédio identificado no artigo 1º da petição inicial, ocuparam uma área superior àquela que resulta do seu título de propriedade, apropriando-se de uma parcela de terreno que pertence ao prédio dos autores.
Na sua contestação, os réus invocaram a ineptidão da petição inicial, o caso julgado formado em relação ao decidido na ação 2216/13.0TBPVZ – Juiz 1 do Juízo Local Cível da Póvoa de Varzim
Formularam pedido reconvencional requerendo que “o prédio dos R.R., identificado no item 13º da p.i., e correspondente ao doc. n.º 1 agora junto, seja demarcado com os aí indicados limites, mais devendo os A.A. serem condenados a respeitar tais limites, e condenados nas custas e no mais que for da lei”.
FOI PROFERIDO DESPACHO SANEADOR QUE CONCLUIU PELA INEPTIDÃO DA PETIÇÃO INICIAL POR CUMULAÇÃO ILEGAL DE PEDIDOS QUE FORAM QUALIFICADOS COMO DE DEMARCAÇÃO E DE REIVINDICAÇÃO POR INCOMPATIBILIDADE SUBSTANCIAL DE CAUSAS DE PEDIR.
FOI ADMITIDO O PEDIDO RECONVENCIONAL.
DESTA DECISÃO APELARAM OS AA QUE FORMULARAM AS SEGUINTES CONCLUSÕES:
1) A questão que os Recorrentes submetem à apreciação deste tribunal de recurso consiste em saber se há incompatibilidade substancial entre os pedidos que formulou (mais exatamente, entre os pedidos formulados nas alíneas a) e b) a d) da p.i.) de modo a tornar inepto o articulado inicial.
2) Porquanto, entendem os Recorrentes que a pretensão das alíneas b) a d), surge como mera decorrência da procedência da pretensão de demarcação e no pressuposto que a linha divisória vem a ser fixada.
3) Pretendem, assim, os Recorrentes demonstrar que não se deteta a invocada exceção da ineptidão inicial, dado que não se pretende obter através desta ação a declaração de um qualquer direito real ou a definição da sua amplitude, mas sim a marcação da linha divisória de prédios pertencentes a ambos.
4) Ademais a propriedade do prédio dos Recorrentes já se encontra reconhecida por sentença, já transitada em julgado, proferida no processo judicial que correu os seus termos na Comarca do Porto- Juízo Local Cível – Juiz 1, sob o n.º 2216/13.0TBPVZ (documento junto com a petição inicial sob o n.º 10).
5) Tendo por objeto, além do mais, o prédio aqui em causa, os Recorrentes instauraram contra os então e ora Réus, a referida ação n.º 2216/13.0TBPVZ, formulando, além do mais, pedido no sentido dos Réus serem condenados a “reconhecer que os Autores tinham a posse e eram os seus legítimos e únicos proprietários dos prédios identificados no artigo 1º (entre eles, o que está aqui em causa).
6) Foi então proferida decisão, já transitada em julgado, e onde ficou consignado que os aqui Autores/Recorrentes são donos e possuidores do prédio ora em discussão e que o mesmo confronta a norte com o prédio dos aqui Réus (tal como resulta da sentença junta com a petição inicial sob o n.º 10).
10) Tem sido entendimento jurisprudencial que “não é, em abstrato, impeditiva da propositura de uma ação de demarcação entre dois prédios a decisão anterior de uma ação de reivindicação proposta pelo proprietário de um desses prédios contra o proprietário confinante, relativa a uma faixa de terreno situada na zona de confrontação dos prédios. A não ser assim haveria o risco de uma não decisão sobre a demarcação, com fundamento no caso julgado formado por uma anterior ação de reivindicação, poder prolongar a incerteza sobre os concretos limites dos prédios em conflito por tempo infinito.” – conforme Acórdão da Relação de Guimarães de 02-02-2017, in www.dgsi.pt
11)O douto Tribunal a quo, entendeu, porém, que “Os Autores alegam, por um lado, que os Réus invadiram e ocuparam o seu prédio, apropriando-se de uma parcela do seu terreno, o que pressupõe que os limites entre eles se encontrem definidos, não existindo incerteza ou indefinição, e, paralelamente, alegam os autores que é divergente o entendimento entre as partes quanto aos limites na parte em que confinam.”
12)Não é exata esta interpretação que é feita da petição inicial.
15)A presente ação está configurada como uma ação de demarcação, constando da petição todos os requisitos necessários à ação, sendo a causa de pedir a existência de dois prédios confinantes(i), propriedade de dois proprietários distintos(ii) e o estado de incerteza dos limites concretos desses prédios(iii).E, os pedidos formulados são pedidos típicos da ação de demarcação.
17)De acordo com esta nossa interpretação há, na petição inicial, apenas um pedido: o pedido da demarcação e, em consequência desse mesmo pedido, a formulação de outros dependentes daquele. Em bom rigor, o primeiro e os restantes pedidos formulados pelos Recorrentes são pedidos dependentes, sendo principal o pedido de demarcação.
19)Não pretendem, pois, os Recorrentes, obter a declaração de que são proprietários, nem tampouco discutir a sua amplitude, apenas definir as extremas de dois prédios contíguos, de proprietários distintos, em relação aos quais existe uma indefinição das respetivas extremas e, consequentemente, quanto ao domínio relativamente a uma faixa de terreno, no sentido de saber onde acaba um prédio e começa o outro.
20)Sendo a efetiva causa de pedir a existência de prédios confinantes, de proprietários distintos, de estremas incertas ou duvidosas e, não o facto que originou o direito de propriedade, ou a sua possível ofensa.
21)Nesta leitura da petição inicial não só não existe qualquer incompatibilidade substancial de pedidos como nem sequer se verificam causas de pedir contraditórias, na medida em que a pretensão das alíneas b) a d), surgem como mera decorrência da procedência da pretensão de demarcação e no pressuposto que a linha divisória vem a ser fixada.
22)Não se verifica, pois, a incompatibilidade substancial de pedidos e/ou causas de pedir contraditórias que o tribunal recorrido entendeu existir, não enfermando deste modo a petição inicial de ineptidão.
23)Este entendimento tem sido acolhido, entre outros, nos acórdãos da Relação do Porto de 09.01.2023, proferido no Processo 41/21.4T8BAO.P1; do Tribunal da Relação de Évora de 09-02-2023, proc. 338/22.6T8ORM-A.E1; do Tribunal da Relação do Porto de 25.01.2021, no âmbito do Processo n.º 4029/18.4T8STS.P1, disponíveis para consulta em www.dgsi.pt.
24)Ou ainda em Comentários do Sr. Professor Teixeira de Sousa aos acórdãos do Tribunal da Relação de Guimarães de 25 de março de 2021, processo 768/21.0T8BRG-B.G1 e do Tribunal da Relação do Porto de 13 de julho de 2021, processo 500/20.6T8ALB.P1, publicados no blogue do IPPC, respetivamente, em 25 de outubro de 2021 e em 29 de março de 2022 e ao comentário crítico do Sr. Juiz Conselheiro Urbano Aquiles Dias também publicado no blogue do IPPC em 27 de março de 2022 e intitulado “Da não incompatibilidade entre os pedidos de reivindicação e de demarcação”.
25)Deve, pois, ser determinado por este Tribunal ad quem, o prosseguimento da ação como ação de demarcação, para apreciação dos pedidos formulados na P.I., o que desde já se requer a este Venerando Tribunal se digne a reconhecer e declarar.
Da admissibilidade da reconvenção:
26)Contrariamente à posição adotada quanto à petição inicial, o Tribunal a quo não considerou existir, na Reconvenção, qualquer contradição entre a causa de pedir e o pedido formulados pelos Reconvintes.
27)Da leitura da Reconvenção resulta claro que os Reconvintes/Recorridos não têm a menor dúvida acerca dos limites confinantes do seu prédio e do prédio dos Reconvindos/Recorrentes.
28)Porquanto, em toda a sua reconvenção, os Reconvintes identificam a “régua e esquadro” a parcela de terreno que afirmam pertencer-lhes (art.º 202 a 206º da reconvenção), apontando com rigor, o local por onde deve ser traçada a linha divisória entre o seu prédio e o prédio dos Reconvindos (art.º 202º da reconvenção).
29)As dúvidas ao ultrapassarem a zona confinante de dois prédios para uma zona bem definida, como é o caso da reconvenção, está-se claramente na esfera da ação de reivindicação.
30)Para além de que, os Reconvintes sabem precisamente quais os limites do seu prédio, tal como se afere do respetivo articulado, concluindo-se, assim, que na sua versão não existe qualquer incerteza, controvérsia ou sequer o desconhecimento sobre a localização da respetiva linha divisória.
31)Deste modo, não estando em causa uma incerteza ou dúvida sobre a linha divisória, não se pode recorrer à ação de demarcação, logo não poderão lançar mão, os Reconvintes do disposto no artigo 1353.º do CC., sob pena de “constituir um meio hábil de obter o reconhecimento da propriedade sobre qualquer parcela de terreno, bem definida, que está na titularidade de outra pessoa, com desrespeito dos respetivos títulos e posse, escondendo o objeto de uma verdadeira reivindicação, por parte do seu autor” - Acórdão da Relação do Porto de 08-03-2022, Processo n.º 1008/20.5T8PVZ.P1, acessível em www.dgsi.pt.
(…)
41) O intuito da ação de demarcação não é a reivindicação e restituição de propriedade pela absorção das estremas de um prédio contíguo. A ação de demarcação tem como finalidade a colaboração entre ambas as partes, com a assistência e decisão do Tribunal, para a definição dos limites das suas respetivas propriedades e demarcação das mesmas conforme os títulos de cada um, ou, na sua ausência ou insuficiência, em harmonia com a posse de cada um;
42) A este respeito, ver Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10 de maio de 2012, P. 725/04.1TBSSB.L1.S1;
43) A inexistência de dúvidas quanto aos limites do seu prédio não exige ao proprietário a interposição de uma ação de reivindicação para ver o seu prédio devidamente delimitado. Dessarte, no caso em apreço, essa certeza dos Recorridos, que pretendem ver o seu prédio delimitado conforme o levantamento topográfico e os sinais existentes, não invalida a reconvenção dos mesmos a pedir a demarcação do seu prédio;
(…)
47) Dessarte, não se pode aceitar qualquer alegação quanto à existência de uma contradição entre o pedido e a causa de pedir dos Recorridos pelo que deve prosseguir, como entendeu o Tribunal a quo, o pedido reconvencional, e ser ordenada a demarcação das estremas do prédio dos Recorrentes e Recorridos.
NESTES TERMOS e nos demais de direito, deverá a apelação dos Recorrentes ser julgada improcedente, por não provada, e, em consequência, ser confirmada a decisão proferida pelo Tribunal recorrido, com todos os efeitos legais, devendo ainda prosseguir os autos quanto ao pedido reconvencional deduzido pelos Recorridos.
Nada obsta ao mérito

O OBJETO DO RECURSO

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, ressalvadas as matérias que sejam de conhecimento oficioso (artigos 635º, n.º 3, e 639º, n.ºs 1 e 2, do código de processo civil).
Atentas as conclusões da recorrente as questões a decidir são as seguintes:
1- (In)admissibilidade do recurso da impugnação do despacho que admitiu o pedido reconvencional.
2- Cumulação de pedidos de demarcação e de reivindicação. Incompatibilidade substancial.

O MÉRITO DO RECURSO:

FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO:
Dá-se aqui por reproduzida a fundamentação supra.

FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO:
1.
A (in)admissibilidade da impugnação do despacho que admitiu o pedido reconvencional de demarcação dos prédios dos autos, formulado pelos RR:
1.1
O artigo 644.º do Código de Processo Civil, (diploma a que doravante pertencem as normas indicadas sem outra menção). sob a epígrafe “Apelações autónomas”, distingue as decisões que admitem recurso imediato, elencando, designadamente, as decisões intercalares que admitem apelação autónoma e relegando a impugnação das demais para momento ulterior.
Dispõe este preceito o seguinte:
“1 - Cabe recurso de apelação: a) Da decisão, proferida em 1.ª instância, que ponha termo à causa ou a procedimento cautelar ou incidente processado autonomamente; b) Do despacho saneador que, sem pôr termo ao processo, decida do mérito da causa ou absolva da instância o réu ou algum dos réus quanto a algum ou alguns dos pedidos.
2 - Cabe ainda recurso de apelação das seguintes decisões do tribunal de 1.ª instância: a) Da decisão que aprecie o impedimento do juiz; b) Da decisão que aprecie a competência absoluta do tribunal; c) Da decisão que decrete a suspensão da instância; d) Do despacho de admissão ou rejeição de algum articulado ou meio de prova; e) Da decisão que condene em multa ou comine outra sanção processual; f) Da decisão que ordene o cancelamento de qualquer registo; g) De decisão proferida depois da decisão final; h) Das decisões cuja impugnação com o recurso da decisão final seria absolutamente inútil; i) Nos demais casos especialmente previstos na lei.
3 - As restantes decisões proferidas pelo tribunal de 1.ª instância podem ser impugnadas no recurso que venha a ser interposto das decisões previstas no n.º 1.
4 - Se não houver recurso da decisão final, as decisões interlocutórias que tenham interesse para o apelante independentemente daquela decisão podem ser impugnadas num recurso único, a interpor após o trânsito da referida decisão”.
I.1.1
A decisão recorrida no segmento em que admitiu o pedido reconvencional não se integra em qualquer das situações a que aludem os n.ºs 1 e 2, do citado artigo 644.º, pois como decorre das próprias alegações dos recorrentes, o que está em causa é a inadmissibilidade da reconvenção por falta de fundamento.
Em anotação ao supra citado artigo 644.º, António Santos Abrantes Geraldes (Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5.ª edição, Coimbra, Almedina, 2018, pág. 207) afirma o seguinte: “(…) a não ser que a decisão integrada no despacho saneador se inscreva em alguma das alíneas do n.º 2 (v.g. quando é apreciada a exceção de incompetência absoluta), os segmentos de que resulte a declaração de improcedência de alguma exceção dilatória (v.g. (…) admissibilidade da reconvenção) não admitem recurso de apelação, o qual é deferido para o eventual recurso que seja interposto da decisão final, nos termos do n.º 3”.
1.1.2
Nesta conformidade, não prevendo a lei a prolação de despacho liminar sobre a reconvenção e não estando em causa despacho de inadmissibilidade de reconvenção por ausência de verificação de algum dos pressupostos materiais ou formais integrantes das alíneas do nº 2 do artigo 644º, com a consequente absolvição do reconvindo da instância reconvencional, é de concluir que o despacho em apreciação não admite apelação autónoma.
Verifica-se, assim, que a impugnação do despacho em causa não se mostra oportuna no presente momento processual, através de apelação autónoma, apenas podendo tal decisão interlocutória ser impugnada no recurso que venha a ser interposto da decisão final, conforme dispõe o n.º 3, do citado preceito, o que impõe a rejeição do recurso interposto.
Em tais termos não se conhece deste segmento do recurso dos autores/reconvindos.
2.
Apreciemos a (in)compatibilidade substancial de pedidos e de causas de pedir.
2.1
O pedido. A cumulação de pedidos.
O pedido, na sua vertente substantiva, consiste no efeito jurídico que o autor pretende obter com a ação. É a afirmação postulativa do efeito prático-jurídico pretendido (nº 3 do artigo 581º).
O autor pode deduzir vários pedidos cumulativos contra o réu, desde que, eles sejam entre si substancialmente compatíveis e não se verifiquem as circunstâncias que impedem a coligação (...), de harmonia com a disciplina impressa no nº 1 do artigo 555º.
Os pedidos dizem-se substancialmente incompatíveis quando nos efeitos jurídicos que visam produzir, com a procedência da ação, cada um deles exclua a possibilidade de verificação de cada um dos outros. Em tal caso, há ininteligibilidade da petição. O juiz fica impossibilitado de decidir.
Esta incompatibilidade tanto pode resultar de pedidos que mutuamente se excluam, como de pedidos que assentam em causas de pedir inconciliáveis. Neste sentido Alberto dos Reis, “Comentário ao Código de Processo Civil”, vol. 2º, Coimbra Editora, pág. 389.
No mesmo sentido, o Professor Antunes Varela sustenta que “devem considerar-se incompatíveis não só os pedidos que mutuamente se excluem, mas também os que assentam em causas de pedir inconciliáveis”. (Manual de Processo Civil, 2ª ed., Coimbra Editora, 1985, pág. 246).
São exemplos académicos de pedidos substancialmente incompatíveis, o pedido de anulabilidade do contrato cumulado com o pedido de condenação do réu na prestação contratual, (como se este permanecesse válido) ou o pedido de divórcio cumulado com o pedido de anulação do casamento.
2.1.1
Para a avaliação da (in)compatibilidade substancial dos pedidos formulados na ação só relevam os pedidos que são formulados em simultâneo. É que, aqui, o juiz tem de conhecer da totalidade das pretensões assim deduzidas o que já não acontece quando estamos perante pretensões alternativas ou subsidiárias.
Estabelece o artigo 553.º sob a epigrafe “Pedidos alternativos” que: “1 - É permitido fazer pedidos alternativos, com relação a direitos que por sua natureza ou origem sejam alternativos, ou que possam resolver-se em alternativa.2 - Quando a escolha da prestação pertença ao devedor, a circunstância de não ser alternativo o pedido não obsta a que se profira uma condenação em alternativa”; e no artigo 554.º sob a epígrafe “Pedidos subsidiários” que: “1(…). “Diz-se subsidiário o pedido que é apresentado ao tribunal para ser tomado em consideração somente no caso de não proceder um pedido anterior”.
Decorre das referidas normas que nos pedidos alternativos o réu tem a faculdade de escolher uma das prestações ou um dos pedidos e nos pedidos subsidiários não depende da vontade do réu a procedência duma ou doutra pretensão: o pedido subsidiário é formulado somente para a hipótese de o tribunal não acolher o pedido principal.
2.1.2
No caso dos presentes autos a cumulação de pedidos é real, como resulta expressamente da sua formulação em que (i) a escolha não pertence ao réu; (ii) nenhum dos pedidos é formulado para a hipótese do(s) outro s) não proceder(em), estando assim afastada quer a alternatividade, quer a subsidiariedade como resulta do teor dos pedidos formulados, a saber:
a) A ver demarcados os prédios identificados em 1º e 13º da petição inicial, nos termos do artigo 1353º e seguintes do código civil, por meio de sinais externos, visíveis e permanentes;
b) A reconhecer o direito de propriedade dos Autores sobre o prédio identificado no art. 1º da petição inicial até à linha delimitadora que vier a ser fixada, abstendo-se, consequentemente de praticar qualquer ato que, de qualquer modo, impeça, dificulte ou diminua o livre exercício do direito do autor sobre tal prédio até tal linha delimitadora;
c) A demolirem e retirarem tudo o que, depois de definida a linha delimitadora, estiver a ocupar o prédio dos Autores, no prazo de 15 dias, entregando-o aos Autores completamente livre e desimpedido;
d) A pagarem aos Autores, a título de sanção pecuniária, a quantia de €100,00 por cada dia além dos 15 dias acima referidos, que demorarem a limpar e desimpedir o prédio destes.
Estamos, por conseguinte, fora da previsão do nº 2, do artigo 555º, segundo o qual se a cumulação não for real, se for subsidiária, a oposição entre os pedidos não constitui qualquer obstáculo à admissão de tal cumulação.
Por outro lado também se não nos oferece duvidas que enquanto os pedidos formulados nas alíneas b) e c) correspondem a uma ação de reivindicação, o reconhecimento do direito de propriedade (pronuntiatio), por um lado, e a restituição da coisa (condemnatio), por outro, já o pedido formulado na alínea a) respeita à ação de demarcação.
Não releva para aqui o ultimo dos pedidos formulados cuja sorte sempre depende da procedência dos pedidos das alíneas b) e c).
2.2
A incompatibilidade da causa de pedir na ação de demarcação e de reivindicação.
2.2.1
A causa de pedir é o facto concreto que serve de fundamento ao efeito jurídico pretendido (o mesmo é dizer, o facto constitutivo da situação jurídica material que quer fazer valer).
Nas ações reais (como é o caso da reivindicação) a causa de pedir é o facto jurídico de que deriva o direito real (artigo 581º, nº4).
“As ações de demarcação não se destinam a resolver questões de propriedade. A propriedade dos prédios confinantes é que tem de ser provada como pressuposto da demarcação e quer por parte dos AA quer por parte dos RR em relação aos respetivos prédios”. António Carvalho Martins in Ação de Demarcação 2ª edição Coimbra Edª pp 40..
Na ação de demarcação a causa de pedir é a confinância dos prédios e a indefinição da linha divisória. Esta indefinição tanto pode resultar do desconhecimento dos limites dos prédios como do desacordo dos proprietários confinantes acerca de tais limites. As partes nesta ação devem indicar os elementos que constam dos títulos e quaisquer outros elementos probatórios a fim de ser delimitada a propriedade.
Os requisitos da demarcação são: (i) existência de prédios confinantes (ii)pertença a donos diferentes (iii) existência de duvidas quanto a estremas divisórias. Desdobra-se em três questões: (i) a da titularidade dos prédios confinantes, (ii) da respetiva contiguidade e (iii) da delimitação ou fixação dos seus limites.
2.2.2
Na ação de reivindicação a causa de pedir é o reconhecimento do direito de propriedade sobre a coisa (imóvel ou móvel) e a consequente restituição da coisa pelo possuidor ou detentor dela (…) O autor tem de invocar o facto gerador do direito (i)usucapião (ou (aquisição derivada) e a posse/detenção por outrem.
Para aqui é indiferente que o réu seja proprietário confinante. O que releva é a detenção/posse da concreta parcela do prédio determinada na sua extensão e limites.
se as partes discutem o titulo de aquisição como por exemplo se o autor pede o reconhecimento do seu direito de propriedade sobre a faixa de ou sobre parte dela, porque a adquiriu por usucapião (…) a ação é de reivindicação. Está em causa o próprio titulo de aquisição. Se pelo contrário não se discute o titulo mas a relevância em relação ao prédio com por exemplo se o autor afirma que o titulo se refere a varas e não metros ou discute os termos em que deve ser feita a medição mesmo em relação à usucapião, se não se discute o titulo de aquisição do prédio de que faixa faz parte mas a extensão do prédio possuído, a ação é já de demarcação” (…) «Esta é, pois, uma ação como dizem alguns autores uma ação de acertamento ou de declaração de extensão de propriedade, sem que estejam em causa os títulos de aquisição. É por isso que, segundo a tradição justinianeia, esse acertamento pode ter lugar por uma repartição equitativa do terreno em causa”, (cfra artigo 1354º, nº 2 e 3 do CC) (..) Ibidem
Pelo que, afirmamos em linha com o acórdão deste Tribunal de 25.01.2021, (JOAQUIM MOURA) 4029/18.4T8STS.P1, in www/dgsi que: “ enquanto a ação de revindicação pressupõe a definição precisa da coisa imóvel reivindicada, nomeadamente dos seus limites, operando a restituição dentro desses limites, a ação de demarcação implica necessariamente uma situação de incerteza ou dúvida quanto a uma ou várias estremas do imóvel a demarcar, destinando-se precisamente à definição precisa das linhas que permitem a determinação dos limites dos prédios em que se regista essa incerteza. O efeito jurídico da procedência do pedido de restituição da parcela de terreno reivindicada pela autora (e do implícito pedido de reconhecimento do direito de propriedade) será o de excluir qualquer necessidade de demarcação, pois tal significa que inexiste incerteza ou indefinição quanto aos limites dos dois prédios confinantes, pressuposto da ação de demarcação. (…) Assim se evidencia a incompatibilidade substancial, não só dos pedidos formulados pela autora, mas também das causas de pedir em que se sustentam.”
2.2.3
Com efeito, se a reivindicação supõe a certeza quanto aos limites do imóvel reivindicado e a demarcação envolve necessariamente uma incerteza quanto à definição de uma ou mais confrontações do prédio a demarcar, a única conclusão é a de que as causas de pedir são inconciliáveis, pois a incerteza dos limites do prédio exclui a certeza dos mesmos limites.
Isto mesmo, ficou afirmado no acórdão de 21-10-2021, in dgsi, da pena, da ora Relatora, com intervenção do Ex.mo Desembargador, aqui 1º adjunto, processo 467/19.3T8ALB.P1, in dgsi em cujo sumário se afirmou: “ III - A ação de reivindicação de parcela de imóvel, consagrada no artigo 1311º do Código Civil, funda-se na discussão e reconhecimento do título aquisitivo de prédio identificado no mesmo título e de que o proprietário está desapossado e, portanto, supõe a definição certa, segura e concreta dos limites do prédio reivindicado.
IV - A ação de demarcação, prevista no artigo 1353º do Código Civil, supõe a certeza e indiscutibilidade dos títulos de propriedades confinantes, havendo duvidas apenas quanto aos respetivos limites.
V - A cumulação de tais pedidos é, em si mesma, substancialmente incompatível, pois, as causas de pedir de que decorrem são inconciliáveis. Não pode discutir-se a existência do titulo e requerer a restituição da coisa, (a qual como exige o artigo 581º, nº 4, tem de ser concretamente delimitada), e simultaneamente afirmar-se a existência dos títulos de Autor e Réu por modo a requerer a demarcação a qual supõe a incerteza da delimitação”.
Neste sentido se pronunciaram ainda os acórdãos: do STJ de 21 de janeiro de 2003, processo 02A1029; acórdão do TRE de 09 de outubro de 2008, processo 1192/08-3; e de 31 de outubro de 2013, processo 98/11.6TBNIS.E1; acórdão do TRG de 05 de abril de 2018, processo 75/15.8T8TMC.G1; e de 25 de março de 2021, processo 768/21.0T8BRG-B.G1; acórdão deste Tribunal de 25 de janeiro de 2021,, processo 4029/18.4T8STS.P1; e de 13 de julho de 2021, processo 500/20.6T8ALB.P1 e acórdão do TRC de 15 de fevereiro de 2022, processo 768/21.0T8CVL.C1. 9.
Em sentido contrário mas defendendo a interpretação da petição inicial a jurisprudência citada nas alegações de recurso e bem assim o Prof Miguel Teixeira de Sousa e o Conselheiro Urbano Dias ambos in blog/ippc e acórdãos desta Relação do Porto de 09.01.2023, proferido no Processo 41/21.4T8BAO.P1; do Tribunal da Relação de Évora de 09-02-2023, proc. 338/22.6T8ORM-A.E1; in dgsi.
2.2.4
Descendo aos autos.
Alegam os AA na petição inicial que:
26º “Conforme resulta da sentença proferida no indicado processo judicial que correu os seus termos na Comarca do Porto- Juízo Local Cível – Juiz 1, sob o n.º 2216/13.0 TBPVZ, foi considerado provado que o prédio adquirido pelos Autores confronta a norte com o prédio dos aqui Réus – conforme doc. 10, em anexo.
Art.29º Verifica-se, assim, que os prédios em causa são contíguos e pertencem a proprietários distintos, os aqui Autores e Réus.
Art.30º Inexistindo, porém, entre eles, nas indicadas estremas norte/sul uma linha física a separá-los.
Art.31º Sendo divergente o entendimento que cada uma das partes tem quanto aos respetivos limites na parte em que confinam.
Sucede que a partir do art 32º da petição os AA vêm referir
Art.32º Os Réus têm vindo a praticar atos no prédio descrito no artigo 1º, alterando a sua configuração, criando uma falsa realidade material dos prédios dos Autores e dos Réus.
Art.33º Assim, no passado mês de junho de 2020, durante o dia, mais uma vez, os Réus (…) mediante o recurso a máquinas retroescavadoras, procederam ao corte de árvores bem como à remoção de vegetação do terreno dos Autores.
(…)
Art.35º As obras efetuadas pelos Réus (…) consistiram na colocação de pilares em volta do terreno dos Autores em ordem a delimitar o terreno, invadindo o prédio do identificado no artigo 1º supra (…)
. Art.36º Constatando-se, assim, que os Réus ocupam uma área superior àquela que resulta do seu título de propriedade.
Art.37º E essa construção tem excedido os limites do prédio que lhes pertence.
Art.38º Com efeito, os Réus apropriaram-se de uma parcela de terreno que pertence ao prédio dos Autores.
Art.39º Atuação efetuada sem qualquer autorização ou consentimento dos Autores.
(…)
Art.41º Com o único propósito de se apropriar de uma parcela do terreno dos Autores.
Art.42º Sendo, pois, divergente o entendimento que cada uma das partes tem quanto aos respectivos limites na parte em que confinam.
A nosso ver, existe inconcludência entre os factos alegados nos pontos 32º a 39º e 40º e ss e os factos alegados nos pontos 26º, 29º, 30º e 31º, e 41º da petição, uma vez que estes últimos supõem a o reconhecimento dos limites do prédio ou seja a ausência de incerteza.
Não decorre da alegação constante dos artigos 36º a 39º e 40º qualquer dependência desta causa da causa da demarcação. Bem ao contrário, ali afirma-se (embora com deficiência da causa de pedir uma vez que não está concretamente delimitada a parcela de terreno alegadamente invadida) que os RR ocupam uma “parcela de terreno que pertence aos AA”.
2.2.5
O juiz tem de conhecer simultaneamente das pretensões formuladas, pelo que, esta alegação é inconcludente, pois, se por um lado se afirma como causa de pedir que os RR ocupam parcela do prédio dos AA (que nem identificam cabalmente a apontar aqui até para a deficiência da causa de pedir (artigo 581º nº 4), que no entanto, atento o objeto do recurso, não está aqui em causa ), por outro lado, afirma-se desconhecer qual a concreta delimitação desse prédio.
Esta inconcludência das causas de pedir transfere-se para os pedidos reivindicatórios, tornando-os substancialmente incompatíveis com o pedido de demarcação.
Não se pode discutir, sem contradição, a existência do titulo e requerer a restituição da coisa a qual como exige o artigo (581º, nº 4) tem de ser concretamente delimitada, e simultaneamente afirmar-se a existência dos títulos de Autor e Réu por modo a requerer a demarcação, a qual supõe a incerteza dos limites.
A cumulação de tais pedidos é portanto, em si mesma, substancialmente incompatível, pois as causas de pedir em que assentam são inconciliáveis.
Não é defensável, em face do exposto, como os AA sustentam no recurso, que os pedidos formulados sob as alíneas b) e seguintes da petição são dependentes do pedido de demarcação, desde logo, porque a causa de pedir dos mesmos é a que resulta dos pontos 32 e ss da petição cuja alegação se não faz depender da demarcação.
Também não há qualquer subsidiariedade que poderia legitimar a incompatibilidade de pedidos uma vez que os pedidos subsidiários supõem a improcedência dos pedidos anteriores e aqui o que se sustenta é o contrário a procedência dos pedidos b) e ss decorrentes da procedência do anterior.
2.2.6
Efeitos processuais da incompatibilidade substancial dos pedidos formulados:
A incompatibilidade substancial dos pedidos constitui vício processual declarado no artigo 186º, (nº 1 alínea c) norma que estabelece que: “É nulo todo o processo quando for inepta a petição inicial (…) Quando se cumulem causas de pedir ou pedidos substancialmente incompatíveis.”
O artigo 186º/3 trata da sanação do vício da ineptidão. Apesar de este número se referir especificamente à alínea a) aplica-se também à alínea b).
No nº 4 vem fixar-se que “No caso da alínea c) do nº 2 a nulidade subsiste, ainda que um dos pedidos fique sem efeito por incompetência do tribunal ou por erro na forma de processo”
Donde que concluímos que no caso dos autos se verifica a nulidade de todo o processado por via da procedência da exceção da ineptidão por cumulação de pedidos substancialmente incompatíveis a qual configura exceção dilatória que obsta ao conhecimento do mérito da causa e que dá lugar à absolvição do Réu da instância (cfr. art.º. 576º, nºs 1 e 2, 577º, al. b)).
Confirmamos, pelos motivos expostos, o entendimento do tribunal recorrido.

SEGUE DELIBERAÇÃO.
NÃO PROVIDO O RECURSO. CONFIRMADA A SENTENÇA RECORRIDA
Custas pelos Recorrentes.

Porto, 4 de abril, de 2024
Isoleta de Almeida Costa
Ernesto Nascimento
Paulo Duarte Teixeira