Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
22126/22.0T8PRT-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MIGEL BALDAIA DE MORAIS
Descritores: PROPRIEDADE HORIZONTAL
DEFEITOS DO EDIFÍCIO
VARANDA
LEGITIMIDADE PROCESSUAL
Nº do Documento: RP2024040822126/22.0T8PRT-A.P1
Data do Acordão: 04/08/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGAÇÃO PARCIAL
Indicações Eventuais: 5. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Na propriedade horizontal, a legitimidade (ativa) para o exercício perante o construtor/vendedor dos direitos decorrentes da construção do edifício com defeitos não é sempre das mesmas pessoas/condóminos, dependendo do local em que esses vícios ou desconformidades se situam.
II - Assim, se os defeitos se localizam nas frações autónomas, como são os seus proprietários, individualmente considerados, que têm o poder de as administrar, são apenas eles que têm legitimidade para exercer junto do construtor/vendedor os direitos em causa; se os defeitos se situam nas partes comuns do edifício, como compete exclusivamente à assembleia de condóminos e ao administrador proceder à administração das partes comuns, o exercício dos referidos direitos – maxime, os direitos de eliminação dos defeitos e realização de obra nova – compete ao administrador do condomínio, devidamente mandatado pela assembleia de condóminos.
III - O legislador assumiu um critério de destinação objetivo ou material quanto ao uso ou gozo da parte do prédio em propriedade horizontal, a partir da sua natureza e aptidão funcional, para se determinar se estamos em presença de uma parte comum ou antes perante uma parte própria da fração.
IV - Portanto, a ideia fundamental sobre a qual deve repousar o critério de distinção entre as coisas comuns e as coisas de propriedade singular é a de que devem considerar-se comuns, na falta de título em contrário, as coisas que se encontram afetadas ao uso comum dos diversos proprietários.
V - Fazendo a varanda parte integrante da fração respetiva de acordo com o título constitutivo da propriedade horizontal, a mesma assumirá a qualidade de parte própria no que respeita à sua parte interior, incluindo o chão.
VI - Já no seu aspeto exterior a varanda, enquanto componente da fachada do edifício, constitui parte comum do mesmo.
VII - A legitimidade ativa para a causa tem subjacente o interesse em demandar que se exprime pela vantagem jurídica que resultará para o autor da procedência da ação, tendo-se em consideração o pedido e a causa de pedir nos termos em que são por ele configurados.
VIII - A essa luz, invocando o autor condomínio que a fachada do edifício se apresenta danificada pela colocação de guarda-corpos em vidro nas varandas, o que alegadamente provocou fissuras suscetíveis de originar infiltrações, não pode deixar de se lhe reconhecer legitimidade processual para demandar o construtor/vendedor do mesmo no sentido da reparação/eliminação desses defeitos.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 22126/22.0T8PRT-A.P1
Origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Porto – Juízo Central Cível, Juiz 1

Relator: Miguel Baldaia Morais

1º Adjunto Des. Jorge Martins Ribeiro

2º Adjunto Des. José Eusébio Almeida

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SUMÁRIO
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Acordam no Tribunal da Relação do Porto:



I- RELATÓRIO

Condomínio ..., representado por “A..., Ldª”, intentou a presente ação declarativa sob a forma comum contra “B..., Ldª” concluindo pela condenação desta:

. a) a realizar todas as obras de reparação, substituição e eliminação dos defeitos, vícios, anomalias e deteriorações do prédio do Autor, descritos na petição inicial e melhor identificados no elenco de patologias junto como documentos nºs 7 e 8 e no relatório de patologias junto como documento n.º 10, bem como os danos nas frações causados pelos referidos vícios, em prazo razoável a fixar em douta sentença e nunca superior a 3 meses;

. b) a pagar ao Autor todos os custos que este venha a ter de suportar com a reparação dos referidos defeitos, de valor a liquidar em execução de sentença, mas que nunca poderá ser inferior a € 198.850, 00, caso a Ré não efetue as obras de reparação e eliminação de defeitos no prazo fixado;

. c) a pagar ao Autor o montante de € 15.457,82, para ressarcimento dos danos patrimoniais até ao momento já causados;

. d) a pagar ao Autor o montante que vier a apurar-se em sede de execução de sentença relativo a quaisquer outros custos em que, comprovadamente, incorra por via dos defeitos do prédio, entre os quais o da coima que lhe venha a ser aplicada com base na contraordenação que seja imputada ou com base em outras que, com fundamento nos defeitos do prédio, venham ainda a ser-lhe imputadas;

. e) a entregar ao Autor a documentação descrita no artigo 104.º da petição inicial;

. f) no pagamento de uma sanção pecuniária compulsória, nos termos previstos no artigo 829.º-A do Código Civil, no montante de € 250,00 diários até efetivo cumprimento dos pedidos.

Para substanciar tais pretensões alega que a ré, no âmbito da sua atividade, construiu o edifício do autor, submeteu-o ao regime da propriedade horizontal e vendeu, posteriormente, as frações que o integram, para habitação.

Acrescenta que o edifício apresenta inúmeras deficiências e defeitos de construção, detetados posteriormente à entrega do imóvel e devidamente denunciados à ré, sem que até ao momento a mesma tenha procedido à sua reparação.

Citada a ré apresentou contestação na qual se defende, além do mais, por exceção dilatória advogando que o autor carece de legitimidade para peticionar a reparação de alegados defeitos existentes nas frações autónomas.

Respondeu o autor pugnando pela improcedência da invocada exceção, argumentando que onde na petição inicial e nos documentos que a acompanham faz referência a patologias em frações autónomas, é porque as mesmas são resultantes de defeitos nas partes comuns.

Teve lugar a realização de audiência prévia, vindo a ser proferida decisão que, na procedência da invocada ilegitimidade ativa, absolveu a ré da instância «relativamente aos pedidos formulados relativamente a varandas (artºs 47º, 48º, 49º da p.i.), casas de banho e madeira (artºs 50º e 51º da p.i.), caixilharias (artº 52º da p.i.) e portas e rodapés e fissuras nas paredes interiores (artº 84º da p.i.)».

Não se conformando com o assim decidido veio o autor interpor o presente recurso, que foi admitido como apelação, a subir em separado e com efeito meramente devolutivo.

Com o requerimento de interposição do recurso apresentou alegações, formulando, a final, as seguintes


CONCLUSÕES:

1. Nos autos acima identificados, o Tribunal a quo proferiu despacho saneador, onde julgou o condomínio parte ilegítima relativamente aos defeitos nas frações autónomas constantes da petição inicial e absolveu a Ré da instância no que a esses defeitos diz respeito, sem pôr termo ao processo.

2. Porém, com o devido respeito, tal decisão enferma de vários erros de matéria de direito, mormente, no que à procedência da exceção de ilegitimidade diz respeito.

3. Na petição inicial o Autor reclama a reparação de diversos defeitos, desconformidades, anomalias e patologias das partes comuns do edifício que, pela sua gravidade, têm reflexo dentro das frações autónomas, na medida em que provocaram, já, diversos e graves danos no interior das frações autónomas, dos arrumos e das garagens (boxes).

4. Sobre as varandas, entende o Tribunal a quo, que as mesmas não são zonas comuns do edifício, sustentando a sua posição no artigo 1421.º do Código Civil e no título de constituição de propriedade horizontal.

5. Ora, relativamente às partes comuns, designadamente no artigo 1421.º do Código Civil, o legislador assumiu um critério de destinação objetivo quanto ao uso ou gozo da parte do prédio em propriedade horizontal, a partir da sua natureza e aptidão funcional, para se determinar se estamos perante uma parte comum ou uma parte exclusiva.

6. De facto, do título constitutivo da propriedade horizontal resulta que as varandas integram cada fração autónoma, contudo, alguns dos defeitos/patologias/desconformidades/danos elencados pelo Apelante, verificam-se nas “guardas” das varandas e na própria fachada do edifício, na qual as mesmas se encontram fixadas, nomeadamente, na chapa metálica de alumínio tipo “Alucobond”, material que reveste toda a fachada.

7. Essas guardas delimitam as varandas e não fazem parte da zona privada das frações, mas antes da sua face exterior, cujo destino se baseia na direta correspondência física com a fachada do edifício, bem como, com a linha estética e arquitetónica do prédio.

8. Deste modo, tal guarda deverá ser entendida como parte comum do edifício, cuja responsabilidade pela manutenção e conservação impende sobre o Condomínio em geral e não sobre o respetivo proprietário da fração, em particular.

9. Nesse sentido, se pronunciou o Tribunal da Relação de Lisboa, no acórdão de 27/10/2020, processo n.º 12847/18.7T8SNT.L1-7, que serve de base ao despacho saneador.

10. O Condomínio, tem, assim, legitimidade para intentar ação contra o construtor, com vista a obter a condenação do mesmo na realização das obras necessárias à eliminação de defeitos existentes nas mencionadas guardas das varandas.

11. Mas mais, para além dos defeitos, desconformidades e patologias das guardas das varandas, verificam-se, também, problemas na fachada do edifício, decorrentes da fixação dessas guardas, designadamente nas chapas metálicas de alumínio de tipo “Alucobond”.

12. Os defeitos das guardas e da fachada não são, pois, indissociáveis e a reparação de um passará, sempre, pela reparação do outro.

13. Ora, o facto de os defeitos terem por referência as varandas, a aferição da responsabilidade pela reparação dos mesmos e a legitimidade para peticionar essa reparação, não pode passar pela análise generalizada.

14. A análise dos defeitos deve ser casuística sob pena de o Condomínio, aqui Apelante, se ver coartado de imputar, por esta via, à entidade responsável a sua reparação.

15. Acresce que, no edifício de que tratamos, constata-se que o mesmo é composto por varandas em cima de varandas, o que significa que a disposição (funcional) das varandas é exercida no interesse de todo o edifício, considerando que têm uma função análoga à de cobertura.

16. Deste modo, sendo todas as varandas cobertura das varandas/frações inferiores, tratam-se, de partes forçosamente e necessariamente comuns, por integrarem a estrutura do edifício.

17. Pelo que, cabe ao Autor/Apelante o direito de reclamar a realização de obras tendentes à eliminação dos defeitos que se verificam nos tetos das varandas e que provêm das varandas dos pisos superiores, pela sua natureza comum.

18. Não podia, pois, o Tribunal a quo, decidir de forma genérica, sem qualquer análise individualizada dos defeitos e danos reclamados, acima melhor identificados, sendo necessária uma abordagem própria de cada defeito, na medida em que, a sua localização, poderá respeitar a uma zona comum – como respeita.

19. Nestes termos, a decisão genérica do Tribunal a quo sobre a ilegitimidade do condomínio para peticionar os defeitos das “varandas”, padece de uma errada interpretação de matéria de direito no que às partes comuns do edifício diz respeito e viola o direito do Apelado de ver discutidas todas as matérias para os quais lhe é atribuída legitimidade, designadamente, todos os assuntos que respeitem às partes comuns do edifício.

20. Deve, pois, ser revogada a decisão do Tribunal a quo, na parte em que considera a ilegitimidade do Apelante para reclamar os defeitos nas varandas e respectiva fachada, devendo ser proferida decisão onde são distinguidos, no que às varandas diz respeito, os defeitos cuja denúncia e pedido de reparação cabe ao Apelado e aqueles que cabem aos proprietários individualmente considerados.

21. E, nessa medida, decidir-se sobre a legitimidade do Condomínio, aqui Apelante, para reclamar as obras necessárias à eliminação dos defeitos de construção relativamente às guardas das varandas, à fachada onde as mesmas se encontram fixadas, respetivos materiais e defeitos dos tetos das varandas.

22. Acresce que, nos termos da petição inicial e do relatório de patologias junto, verifica-se que existem danos nas boxes, arrumos e frações, provenientes de defeitos de construção, patologias e desconformidades das partes comuns.

23. No caso dos danos nos arrumos e nas garagens (boxes) verifica-se que as patologias têm origem nas suas faces exteriores, como sucede com as por conseguinte, à estrutura do edifício, delas fazendo parte, sem qualquer dissociação.

24. Do relatório de patologias, é evidente que os defeitos/danos reclamados se verificam nas zonas comuns, como sucede com o isolamento da fachada e estruturas da garagem onde se inserem as paredes das boxes a arrumos, o pavimento das garagens, os tubos de águas residuais e pluviais e a tela exterior.

25. Todas estas zonas são comuns, nos termos e para os efeitos do artigo 1421.º do Código Civil, a sua aptidão funcional é, sem dúvida, em benefício da coletividade (todos os condóminos).

26. Ora, tal como sucede com as guardas das varandas, o facto de os defeitos terem por referência as boxes e os arrumos, não pode levar a uma análise generalizada desses defeitos.

27. Nestes termos, estando perante zonas comuns, ainda que por referências às boxes e arrumos, cabe ao Autor/Apelante o direito de reclamar a realização de obras tendentes à eliminação dos defeitos que se verificam nas paredes, tetos, telas, tubos e pavimentos das boxes e arrumos, pela sua natureza comum, nos mesmo termos já referidos para as “varandas”.

28. Por outro lado, e ainda sobre os defeitos acima elencados, como é sabido, o poder de administrar as partes comuns cabe ao administrador do condomínio, devidamente mandatado pela assembleia de condóminos.

29. Ora, é ao Condomínio que incumbe o dever de conservação das partes comuns do prédio, recaindo sobre os condóminos o dever de suportar as correspondentes despesas de manutenção e conservação. (art.º 1424º, nº 1, do Código Civil).

30. Os atos de conservação são praticados pelo Condomínio com o objetivo de evitar a deterioração ou destruição das partes comuns do edifício e que possam provocar danos nas frações autónomas.

31. Neste contexto, quando os defeitos verificados nas zonas comuns, já causaram danos em frações autónomas (como sucede com as Condomínio, não só caberá exigir do construtor a obra necessária à reparação do defeito da zona comum, como reclamar o pagamento duma indemnização, nos termos do art.º 1223º, do CC, pelas despesas que suportou ou que irá suportar com as reparações das frações que apresentem danos provenientes dos defeitos das zonas comuns.

32. Assim, no que concerne aos danos acima identificados, causados nas boxes, arrumos e frações autónomas, assiste ao administrador do condomínio o direito de reclamar o pagamento duma indemnização por despesas a suportar com as reparações dos danos direta ou imediatamente ligados a defeitos a eliminar nas partes comuns do edifício.

33. Nenhuma dúvida subsiste quanto ao âmbito, à justeza e à razoabilidade do pedido de condenação da Ré na reparação dos danos verificados nas boxes, arrumos e frações autónomas, assistindo, desta forma, legitimidade ao Apelante para os peticionar.

34. Pelo exposto, no que ao Autor diz respeito, mostram-se preenchidos os pressupostos processuais da legitimidade e do interesse em demandar (art.º 30.º CPC), na medida em que o Condomínio intervém enquanto sujeito de uma relação material controvertida e com interesse direto em demandar quanto aos defeitos verificados nas partes comuns do edifício e quanto aos danos provocados nas frações por defeitos provenientes das zonas comuns.

35. Nestes termos, ao decidir como decidiu, o despacho saneador violou o disposto nos artigos 30.º do Código de Processo Civil, os artigos 1421.º, 1430.º, n.º 1, 1436.º, 1437.º, 564.º, n.º 2 e 1223.º do Código Civil.


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          A ré apresentou contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso.


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         Após os vistos legais cumpre decidir.


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          I- DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO

         O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso – cfr. arts. 635º, nº 4, 637º, nº 2, 1ª parte e 639º, nºs 1 e 2, todos do Cód. Processo Civil.

         Porque assim, atendendo às conclusões das alegações apresentadas pelo apelante, a única questão a decidir é a de saber se o mesmo detém ou não legitimidade processual para direcionar contra a ré os pedidos de reparação/eliminação de defeitos alegadamente existente em varandas (artºs 47º, 48º, 49º da p.i.), casas de banho e madeira (artºs 50º e 51º da p.i.), caixilharias (artº 52º da p.i.), portas, rodapés e fissuras nas paredes interiores (artº 84º da p.i.).


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         III- FUNDAMENTOS DE FACTO

         A materialidade a atender para efeito da decisão do objeto do presente recurso é a que dimana do antecedente relatório.


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         IV - FUNDAMENTOS DE DIREITO

Como se deu nota, a questão que é trazida à apreciação deste tribunal ad quem prende-se em determinar se o autor terá ou não legitimidade processual para acionar a ré, na sua qualidade de construtora/vendedora do ajuizado edifício – constituído em regime de propriedade horizontal -, dela exigindo a reparação de alegados defeitos existentes em varandas (artºs 47º, 48º, 49º da p.i.), casas de banho e madeira (artºs 50º e 51º da p.i.), caixilharias (artº 52º da p.i.), portas, rodapés e fissuras nas paredes interiores (artº 84º da p.i.).

A essa questão o decisor de 1ª instância respondeu negativamente por considerar que os alegados defeitos se registam em partes próprias das frações autónomas que integram o edifício, carecendo, assim, o administrador do condomínio de legitimidade ad causam para exigir a sua reparação.

O apelante rebela-se contra esse sentido decisório advogando, fundamentalmente, que os defeitos em causa ocorrem em partes comuns do edifício.

Que dizer?

Conforme emerge do art. 1420º do Cód. Civil, na propriedade horizontal, coexistem, de modo incindível, dois direitos reais distintos: um direito de propriedade singular sobre a fração autónoma e outro complementar ou instrumental, de compropriedade sobre as partes comuns do edifício onde a mesma se integra. Portanto, o que carateriza a propriedade horizontal e constitui razão de ser do respetivo regime é o facto de as frações independentes fazerem parte de um edifício de estrutura unitária, o que, necessariamente, há de criar especiais relações de interdependência entre os condóminos, quer pelo que respeita às partes comuns do edifício, quer mesmo pelo que respeita às frações autónomas.

 Sendo assim – conforme, aliás, tem sido recorrentemente sublinhado na jurisprudência[1] -, a legitimidade (ativa) para o exercício (perante o construtor/vendedor) dos direitos decorrentes da construção do edifício/imóvel com defeitos não é sempre das mesmas pessoas/condóminos, ou seja, tal legitimidade depende do local em que se situam esses vícios ou desconformidades, sendo conferida a quem tem o poder de administração do concreto local onde os mesmos se verificam. Se os defeitos se situam nas frações autónomas, como são os seus proprietários, individualmente considerados, que têm o poder de as administrar, são apenas eles que têm legitimidade para exercer junto do construtor/vendedor os direitos em causa. Se os defeitos se situam nas partes comuns do edifício, como compete exclusivamente à assembleia de condóminos e ao administrador proceder à administração das partes comuns (cfr. 1430.º, nº 1 do Cód. Civil), o exercício dos referidos direitos – maxime, os direitos de eliminação dos defeitos e realização de obra nova – compete ao administrador do condomínio, devidamente mandatado pela assembleia de condóminos.

Efetivamente, o direito de compropriedade dos condóminos (sobre as partes comuns do edifício) tem especificidades em relação ao regime geral da compropriedade[2], não lhe sendo aplicável o art. 985.º do Cód. Civil (ex vi do art. 1407.º do Cód. Civil), ou seja, os condóminos não podem individual e isoladamente (ainda que só “na falta de convenção em contrário”) exercer os direitos inerentes à administração das partes comuns (em que se incluem o direito à reparação/eliminação dos defeitos existentes nas partes comuns), na medida em que, quanto à propriedade horizontal, estão estabelecidas específicas formas de organização/funcionamento e de formação da vontade do grupo constituído pelos condóminos em que o administrador é o órgão executivo e representativo do condomínio, competindo-lhe a gestão dos assuntos correntes relativos às partes comuns do edifício (art. 1436.º do C. Civil) e a representação judicial do grupo de condóminos (art. 1437.º do C. Civil); e em que a assembleia de condóminos é o órgão deliberativo do condomínio, onde se forma a vontade deste, através da tomada de deliberações vinculativas para todos os condóminos. Sendo justamente por isto, articulando tais poderes e competências, que compete à assembleia de condóminos decidir, por maioria, sobre o exercício dos direitos decorrentes de defeitos existentes nas partes comuns do edifício, competindo depois ao administrador, em execução da respetiva deliberação, acionar esses direitos, judicial ou extrajudicialmente, perante o construtor/vendedor.

No caso, tal como o problema se mostra equacionado, para a sua resolução torna--se, pois, mister apurar se os alegados vícios/desconformidades ocorrem em partes comuns do edifício ou antes em partes próprias de fração autónoma de propriedade exclusiva dos condóminos.

De acordo com o disposto no art. 1418º do Cód. Civil, as frações autónomas serão individualizadas no respetivo título de constituição da propriedade horizontal[3], aí se especificando as partes do edifício pertencentes a cada uma delas. O que aí não esteja especificado como pertencente a cada fração, será, em princípio, havida como parte comum, a não ser que esteja afetada ao uso exclusivo de um dos condóminos (art. 1421.º, n.º 2, al. e), do Cód. Civil).

Dessas partes comuns do edifício, algumas são imperativamente comuns a todos os condóminos, enquanto outras apenas o são presuntivamente.

As primeiras mostram-se enunciadas  no nº 1 do art. 1421º, onde se consideram como tal «[a]s seguintes partes do edifício: a) O solo, bem como os alicerces, colunas, pilares e paredes mestras e todas as partes restantes que constituem a estrutura do prédio; b) O telhado ou os terraços de cobertura, ainda que destinados ao uso de qualquer fração; c) As entradas, vestíbulos, escadas e corredores de uso ou passagem comum a dois ou mais condóminos; d) As instalações gerais de água, eletricidade, aquecimento, ar condicionado, gás, comunicações e semelhantes».

Decorre do inciso transcrito que serão imperativamente comuns as partes que integrarem a estrutura do prédio (como elementos vitais de toda a construção); e sê-lo-ão, como enfatizam PIRES DE LIMA/ANTUNES VARELA[4], “ainda que o seu uso esteja afetado a um só dos condóminos, pela razão simples de que a sua utilidade fundamental, como elemento essencial de toda a construção, se estende a todos os condóminos”, acrescentando, mais adiante, que “serão ainda imperativamente comuns as partes que, transcendendo o âmbito restrito de cada fração autónoma, revistam interesse coletivo por serem objetivamente necessárias ao uso comum do prédio, já que, se a sua utilidade pode ser mais ou menos ampla, (…) a justificação da sua natureza está no facto de constituírem, isolada ou conjuntamente com outras, instrumentos do uso comum do prédio”[5].

Por seu turno, o nº 2 do mesmo normativo, enuncia (ainda que exemplificativamente) como presuntivamente comuns: «[a)] Os pátios e jardins anexos ao edifício; b) Os ascensores; c) As dependências destinadas ao uso e habitação do porteiro; d) As garagens e outros lugares de estacionamento; e) Em geral, as coisas que não sejam afetadas ao uso exclusivo de um dos condóminos».

Nessas situações estar-se-á perante uma presunção (de comunhão) ilidível, a qual deve considerar-se afastada em relação a coisas que, não integrando o elenco das imperativamente comuns, não podem servir senão, pela sua destinação objetiva, a um dos condóminos. Quer isto dizer que deixam de ser (presuntivamente) comuns aquelas coisas que estejam afetadas ao uso exclusivo de um dos condóminos, bastando, para o efeito, a fim de afastar a presunção de comunhão, uma afetação material, uma destinação objetiva ainda que a respetiva afetação não conste do título constitutivo da propriedade horizontal.

Resulta do exposto que o legislador assumiu um critério de destinação objetivo ou material quanto ao uso ou gozo da parte do prédio em propriedade horizontal, a partir da sua natureza e aptidão funcional, para se determinar se estamos em presença de uma parte comum ou antes perante uma parte própria da fração. Portanto, a ideia fundamental sobre a qual deve repousar o critério de distinção entre as coisas comuns e as coisas de propriedade singular é a de que devem considerar-se comuns, na falta de título em contrário, as coisas que se encontram afetadas ao uso comum dos diversos proprietários.

Importa, então, dilucidar se a realização das obras reclamadas pelo autor no terminus da petição inicial se destinam ou não a ser levadas a cabo em partes comuns do edifício, sendo que, nos termos expostos, somente na afirmativa terá legitimidade processual para demandar a ré para esse efeito, havendo a registar, neste conspecto, que - tendo em conta a delimitação temática do presente recurso - apenas nos interessa debruçar  sobre a eventual ilegitimidade processual daquele e não tanto sobre a sua legitimidade substantiva para exigir a execução desses trabalhos. É que, uma coisa é saber se, do ponto de vista processual, as partes que estão em juízo podem considerar-se certas (o que, em conformidade com o disposto no art. 30º do Cód. Processo Civil, se exprime pelo interesse direto em demandar ou contradizer em face do pedido e da causa de pedir nos termos em que esses elementos objetivos da instância foram configurados pelo demandante na peça processual com que dá início à ação), outra coisa é saber se as partes que se apresentam em juízo, julgadas certas, têm o direito substantivo que reivindicam com a sua pretensão (legitimidade material)[6].

Como se viu, no ato decisório recorrido, o juiz a quo considerou carecer o demandante dessa legitimidade ad causam quanto «aos pedidos formulados relativamente a varandas (artºs 47º, 48º, 49º da p.i.), casas de banho e madeira (artºs 50º e 51º da p.i.), caixilharias (artº 52º da p.i.), portas, rodapés e fissuras nas paredes interiores (artº 84º da p.i.)».

         Vejamos, antes de mais, em que moldes, nos referidos artigos da mencionada peça processual, o autor alegou essa materialidade.

         Assim:

47.º

Em todas as varandas dos dois blocos o pavimento encontra-se mal calçado ou empenado.
48.º

Em diversas varandas, o revestimento da fachada foi danificado pela colocação do guarda-corpo em vidro, provocando fissuras suscetíveis de originar infiltrações.
49.º

Sendo que se verifica já o surgimento de água no revestimento do teto das varandas, o que denota a existência de infiltrações.
50.º

Todas as casas de banho apresentam madeira inchada, humidade e infiltrações.
51.º

Em todas as habitações, e ao contrário do mapa de acabamentos e ficha técnica da habitação fornecida pela Ré, as madeiras não foram lacadas, mas antes esmaltadas.
52.º

As caixilharias foram mal calafetadas, originando fugas térmicas.
84.º

Aos referidos vícios acrescem ainda:

- Portas e rodapés não lacados;

- Fissuras nas paredes interiores (…).

À luz do critério anteriormente enunciado, do elenco dos alegados defeitos verifica-se que os que se mostram mencionados nos artigos 50º, 51º, 52º e 84º são indiscutivelmente defeitos nas frações, carecendo, por isso, o administrador do condomínio de legitimidade (processual) para demandar a ré no sentido da sua reparação.

Já no concernente aos defeitos alegadamente existentes nas varandas a solução não se coloca com a mesma evidência.

Em primeiro lugar é necessário consultar o título constitutivo da propriedade horizontal, para ver se ele se refere ou não às varandas; em segundo lugar, é necessário saber se a varanda serve ou não de cobertura a uma fração, parte de fração ou área comum.

No caso vertente resulta do título constitutivo (cfr. documento nº 5 junto com a petição inicial) que as varandas fazem parte integrante da fração que servem.

No entanto, tal facto, per se, não legitima que se qualifique juridicamente a varanda como propriedade exclusiva do proprietário da fração que a ela acede (isto é, como parte própria da fração), havendo, quanto a nós, que estabelecer um distinguo consoante se trate da parte exterior ou da parte interior da mesma. É que, no seu aspeto exterior, as varandas são uma componente da fachada do edifício, enquanto concorrem para formar a linha arquitetónica, o arranjo estético, o seu aspeto ornamental. Ora, as fachadas, enquanto paredes perimetrais, mesmo quando não tenham função de paredes mestras[7], delimitam a superfície coberta, determinado a consistência volumétrica do edifício e delineando o seu perfil arquitetónico, razão pela qual, por mor do disposto na al. a) do nº 1 do art. 1421º do Cód. Civil, serão de considerar comuns a todos os condóminos e destinadas ao serviço exclusivo do próprio edifício[8]. Já a parte da varanda que está exclusiva e comprovadamente ao serviço do condómino proprietário da fração autónoma que lhe dá acesso, isto é, a sua base, a sua parte interior, é uma parte própria (não comum).

Perante tais considerações impõe-se, pois, concluir que, in casu, as varandas do ajuizado edifício revestem uma natureza, diríamos, mista, ou seja, o exterior integra a fachada do prédio e, como tal, é parte comum, enquanto o seu interior deve considerar-se como constituindo parte própria da fração que lhe dá acesso.

Acresce que, em função dos elementos que se colhem nos autos, tais varandas não constituem terraço de cobertura servindo para o arejamento, para a iluminação e para a vista panorâmica das respetivas frações autónomas, motivo pelo qual a sua função de cobertura da varanda que se situa no piso inferior é meramente acessória e secundária, não podendo, assim, serem juridicamente qualificadas como terraço de cobertura para os efeitos da al. b) do nº 1 do citado art. 1421º do Cód. Civil.

Assim sendo, independentemente da sorte que possa merecer a ação, temos que, de acordo com o critério plasmado no citado art. 30º do Código de Processo Civil, o autor possui legitimidade processual (que, como se referiu, não se confunde com a legitimidade substantiva ou material) para direcionar contra a ré – na sua qualidade de vendedora/construtora do ajuizado edifício – pedido de reparação/eliminação dos defeitos alegados nos artigos 48º e 49º da petição inicial[9].

Por conseguinte, impõe-se, ainda que parcialmente, a procedência da presente apelação.

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V - DISPOSITIVO

Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação parcialmente procedente, revogando a decisão recorrida na parte que considerou carecer o autor de legitimidade processual quanto ao pedido de reparação/eliminação dos defeitos alegados nos artigos 48º e 49º da petição inicial e absolveu a apelada da instância.

Custas do recurso por apelante e apelada na proporção, respetivamente, de 2/3 e 1/3.


Porto, 2024-4-8.

Miguel Baldaia de Morais
Jorge Martins Ribeiro
José Eusébio Almeida

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[1] Cfr., por todos, acórdãos da Relação de Coimbra de 1.02.2022 (processo nº 2281/20.4T8LRA-A.C1) e de  12.03.2019 (processo nº 190/15.8T8CNT.C2) e acórdão da Relação de Guimarães de 10.07.2023 (processo nº 2362/21.7T8BCL.G1), acessíveis em www.dgsi.pt.
[2] A este propósito HENRIQUE MESQUITA (A propriedade horizontal no Código Civil português, in Revista de Direito e Estudos Sociais, XXIII, pág. 129) fala de uma “compropriedade necessária e permanente”.
[3] Como, a este respeito, escreve HENRIQUE MESQUITA (ob. citada, pág. 100), o título constitutivo da propriedade horizontal «é, fundamentalmente, um ato gerador de autonomização jurídica das frações do edifício que preencham os requisitos indicados no art. 1415º e poderá ser também um ato modelador do estatuto da projetada propriedade horizontal, sempre que nele se estabeleçam regras que completem o regime legal ou dele se afastem (na medida em que a lei o permita). Estas regras, embora resultantes de uma declaração negocial, adquirem força normativa ou reguladora, vinculando desde que registadas, os futuros adquirentes das frações, independentemente do seu assentimento».
[4] In Código Civil Anotado, vol. III, 2ª edição revista e atualizada, Coimbra Editora, pág. 420.
[5] Sobre esta temática CARVALHO FERNANDES (in Lições de Direitos Reais, Quid Juris, 1996, pág. 342), depois de ressaltar que a enumeração prevista na lei não é taxativa, advoga que as partes necessariamente comuns podem reconduzir-se a quatro categorias fundamentais: solo, elementos estruturais do edifício, zonas de circulação interna comum e instalações correspondentes a serviços comuns.  
[6] A jurisprudência e a doutrina têm marcado essa diferença, destacando que o conceito de legitimidade como pressuposto processual exprime a relação entre a parte no processo e o objeto deste e, portanto, a posição que a parte deve ter para que possa ocupar-se do pedido, deduzindo-o ou contradizendo, enquanto que a legitimidade substantiva ou material se reporta à relação entre o sujeito e o objeto do ato jurídico, postulando em regra a coincidência entre o sujeito do ato jurídico e o titular do interesse por ele posto em jogo – cfr., por todos, na doutrina, ANTUNES VARELA et al., in Manual de Processo Civil, 2.ª edição, Coimbra Editora, págs. 132 e seguinte e LEBRE DE FREITAS/ISABEL ALEXANDRE, in Código de Processo Civil Anotado, volume I, 2ª edição, Almedina, págs. 70 e seguinte; na jurisprudência, acórdãos do STJ de 12.10.2023 (processo nº 731/224T8PRL.A.T1.S1) e de 28.01.2021 (processo nº 164/15.9T8VNF.P1.S2), acessíveis em www.dgsi.pt.
[7] Sendo de registar, de qualquer modo, que alguns autores (por exemplo ARAGÃO SEIA, in Propriedade Horizontal, 2ª edição, Almedina, pág. 72) vêm considerando que as paredes exteriores, que delimitam o perímetro da construção, “embora não sendo mestras ou resistentes no verdadeiro sentido do termo, ao serem construídas tendo em vista não só as exigências de segurança, como também as de salubridade, especialmente no que respeita à proteção contra a humidade, as variações de temperatura e a propagação de ruídos e vibrações, podem ser consideradas como elementos estruturais das edificações e, portanto, paredes mestras”.
[8] Neste sentido se pronunciam, entre outros, na doutrina, SANDRA PASSINHAS, in A assembleia de condóminos e o administrador na propriedade horizontal, 2ª edição, Almedina, pág. 33 e MENEZES LEITÃO, in Direito Reais, 5ª edição, Almedina, 281; na jurisprudência, acórdão da Relação de Coimbra de 20.10.1998, CJ, ano XXIII, tomo 4º, pág. 39, acórdão do STJ de 19.02.2008 (processo nº 07A4756) e acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 27.10.2020 (processo nº 12847/18.7T8SNT.L1-7), de 7.05.1985 (processo nº 021338) e de 3.06.1993 (processo nº 09334), estes três últimos acessíveis em www.dgsi.pt.
[9] Não sendo, aliás, despiciendo sublinhar que a ré, na contestação que apresentou, sequer havia posto em crise a legitimidade do autor quanto ao pedido de reparação dos vícios/desconformidades alegados nos mencionados artigos 48º e 49º (cfr. art. 2º desse articulado de defesa).