Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
3212/19.0T8BCL.G1
Relator: MARIA AMÁLIA SANTOS
Descritores: NULIDADE DA SENTENÇA
EXCESSO DE PRONÚNCIA
AÇÃO DE REIVINDICAÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/02/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I- Nos termos da alínea d) do n.º 1 do artigo 615º do CPC, é nula a sentença quando o juiz conheça de questões de que não podia tomar conhecimento, sendo os poderes do juiz balizados pelo art.º 608º nº 2 do CPC, no qual se prevê que o juiz não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento ofícios de outras.
II- É nula a sentença, na parte em que o juiz tomou conhecimento da alegada prática de atos de posse por parte da ré, atos esses suscetíveis de levarem à aquisição da parcela reivindicada por usucapião, questão essa que não foi suscitada pela ré na contestação.
III- Declarada a nulidade (parcial) da sentença, deve o tribunal de recurso supri-la, retirando da sua fundamentação o segmento da decisão anulado, ou não o levando em consideração na apreciação das demais questões colocadas.
IV- Não há que conhecer da impugnação da matéria de facto, por desnecessidade, mesmo que verificados os requisitos legais para o efeito, se a alteração pedida for de todo indiferente à solução jurídica pretendida pelo recorrente por via do recurso.
V- A ação de reivindicação é uma ação de defesa da propriedade, em que a causa de pedir é o facto jurídico de que deriva o direito real alegado, cabendo ao demandante a prova desse facto, ou seja, a aquisição originária do direito de propriedade sobre o prédio reivindicado, do qual faz parte a parcela de terreno também disputada pelo demandado.
Decisão Texto Integral:
Relatora: Maria Amália Santos
1ª Adjunta: Fernanda Proença
2ª Adjunta: Paula Ribas
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AA e BB, casados entre si, residentes na rua ..., freguesia ..., concelho ..., propuseram a presente ação declarativa de processo comum contra EMP01..., S.A., com sede na ..., n.º 571, freguesia ..., concelho ..., e CC, com domicílio profissional na Rua ..., freguesia ..., concelho ..., pedindo:

- que se declare que são donos, legítimos proprietários e possuidores do prédio urbano identificado no item 1º da petição inicial, correspondente ao lote n.º ..., composto por casa de ..., andar e logradouro, sito na Rua ..., da freguesia ..., concelho ..., com a área de 423m2, a confrontar do Norte com DD, do Sul com estrada Nacional n.º ...05, do Nascente com EE cachada e do Poente com EMP01... – Investimentos Imobiliários e Mobiliários, S.A., inscrito na matriz predial urbana sob o n.º ...52... e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...23/...; e condenar as Rés a reconhecer tal direito de propriedade;
- que se condene os réus a reconhecer que a dita parcela de terreno ocupada, com a área de 207 m2, e em discussão nos presentes autos, faz parte integrante do dito prédio pertencente aos aqui Autores;
- que se condene a ré a demolir/remover da dita parcela ocupada, com a área de 207 m2, o pavilhão que foi por ela abusivamente implantado;
- que se condene os réus a restituir aos AA. a dita parcela de terreno com a área de 207 m2, ocupada indevidamente pelos mesmos, livre de pessoas e bens;
- que se condene os réus a pagar aos AA., a título de sanção pecuniária compulsória, a quantia de 50,00 € (…) diários por cada dia de atraso que se venha a verificar na restituição aos AA. da referida parcela de terreno ocupada, com a área de 207 m2, a contar desde a citação e até à efetiva restituição da parcela de terreno, livre de pessoas e bens; e
- que se condene os réus a absterem-se, no futuro, da prática de quaisquer atos que impeçam ou diminuam o exercício do direito de propriedade dos AA. sobre a referida parcela de terreno com a área de 207 m2.
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Alegam para tanto e em resumo, que adquiriram o prédio urbano identificado no artigo 1º da petição inicial, por compra e venda, encontrando-se o mesmo registado a seu favor, sendo que, além do mais, o adquiriram também por usucapião.
O referido prédio confronta com o prédio da ré, tendo esta, ou os anteriores proprietários, implantado um pavilhão sobre parte do prédio dos autores, designadamente sobre uma parcela de terreno destinada a logradouro, com a área de 207 m2, o qual é explorado pelo 2º réu, que lá exerce a sua atividade de venda de automóveis.
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Citados, apenas a ré EMP01... veio apresentar contestação.
Fê-lo por exceção, invocando a falta de conexão entre a causa de pedir e os pedidos formulados, e a cumulação ilegal de pedidos, e por impugnação, alegando a ocupação por si da parcela de terreno, a qual integra o seu prédio, que foi objeto de venda judicial num processo de insolvência. Assim, alega ser dona e legítima possuidora da parcela reivindicada, por a mesma integrar o seu prédio, assim como do pavilhão nela instalado há mais de 20 anos, tendo a posse sobre tal parcela sido exercida pelo anterior proprietário, FF.
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Foi proferido despacho saneador, no qual se decidiu pela improcedência da matéria de exceção invocada pela ré.
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Tramitados regularmente os autos, foi então proferida a final a seguinte decisão:

“Em face do exposto, o tribunal decide julgar a presente ação totalmente improcedente, e, em consequência, absolver os réus dos pedidos.
Custas a cargo dos autores – artigo 527º, nºs 1 e 2, do C.P.C….”
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Não se conformando com a decisão proferida, dela vieram os AA interpor o presente recurso de Apelação, apresentando alegações e formulando as seguintes conclusões:

“I. São as seguintes as questões objeto do presente recurso:
- Da nulidade da sentença (alínea d) do n.º 1 do artigo 615º do CPC);
- Do erro de julgamento;
- Do regime jurídico imperativo dos loteamentos urbanos e da sua prevalência sobre a usucapião; e
- Da impugnação da decisão relativa à matéria de facto.
Da nulidade da sentença:
II. A sentença padece da nulidade prevista na alínea d) do n.º 1 do artigo 615º do CPC.
III. O Tribunal a quo entendeu que a área e os limites do lote n.º ..., definidos no loteamento nº 2/91, são suscetíveis de ser modificados através da aquisição, por usucapião, da parcela de 212m2 que faz parte do lote ... e que se encontra ocupada pelo pavilhão, o que motivou a improcedência da ação.
IV. Na sua contestação a R./Recorrida EMP01... não invocou a usucapião como forma de aquisição originária do direito de propriedade sobre os 212 m2 de terreno ocupados pelo pavilhão em discussão nos autos, e muito menos alega factos concretos, praticados por si ou seus antecessores ou antepossuidores, suscetíveis de demonstrar os caracteres da posse boa para usucapião.
V. A nulidade por “excesso de pronúncia” é um vício da sentença que resulta da inobservância, pelo tribunal, do disposto no n.º 2 do artigo 608.º e no n.º 1 do artigo 609.º do CPC, segundo os quais o juiz não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.
VI. Não tendo tal forma de aquisição originária sido invocada pela R./Recorrida EMP01..., nem fazendo constar da causa de pedir os factos constitutivos da posse boa para usucapião, o Tribunal a quo dela não podia conhecer oficiosamente pois esta forma aquisitiva originária de direitos reais, para ser operante, tem de ser invocada, judicial ou extrajudicialmente, por aquele a quem aproveita e dela pretende prevalecer-se.
VII. Verifica-se, assim, a nulidade da sentença por “excesso de pronúncia” nos termos previstos na alínea d) do n.º 1 do artigo 615º do CPC, o que deverá ser reconhecido com as legais consequências.
Do erro de julgamento:
VIII. Sem prejuízo da impugnação deduzida infra quanto à resposta dada a determinada matéria de facto, entendem os AA./Recorrentes que o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento, equivocando-se na subsunção dos factos que considerou provados às normas jurídicas aplicadas e na interpretação destas, pois a factualidade considerada provada na sentença impunha, por si só, uma diferente solução jurídica.
IX. Os factos considerados provados pela sentença não são suscetíveis de demonstrar a prática de atos materiais (corpus) ou o elemento subjetivo (animus) da posse boa para usucapião.
X. Da matéria de facto provada não resultam factos concretos, praticados pela R./Recorrida EMP01..., por si ou seus antecessores ou antepossuidores, sobre a parcela de terreno ocupada pelo pavilhão em discussão nos autos.
XI. O item 22 dos factos provados não se trata de um facto, mas antes de uma conclusão que não se adquire em face da restante factualidade provada.
XII. Do ponto 22 dos factos provados nada resulta quanto ao momento da necessária inversão do título da posse, pois da redação do mesmo, ou da demais factualidade, nada decorre quanto à intenção de atuação como titular do direito de propriedade sobre a parcela de terreno com 212m2 ocupada pelo pavilhão e que integra o lote n.º ..., sendo os factos provados totalmente omissos quanto ao elemento subjetivo ou manifestação de atuação como titular do direito de propriedade.
XIII. Da matéria de facto provada não resulta que o ante possuidor declarado insolvente, FF, no período compreendido entre a edificação do pavilhão (anterior a 1995) e até ao início do processo de insolvência (2007), tenha em algum momento invertido o título da posse, pois dos factos provados não consta que aquele tenha dado conhecimento direto ao titular do lote n.º ... da sua intenção de atuar como titular do direito de propriedade sobre a parcela de terreno do lote n.º ... ocupada pelo pavilhão (212m2), para a partir daí começar a correr o prazo necessário para a usucapião, nos termos do art.º 1290.º do CC, parte final.
XIV. Como resulta da motivação da sentença quanto à prova do facto 22, a testemunha GG referiu expressamente que autorizou a construção do pavilhão no logradouro do seu lote, com a condição de ser demolido caso se mostrasse necessário.
XV. Daí que, dos factos provados (nestes se incluindo a respetiva motivação) resulta que o referido FF não era havido como possuidor, mas sim como detentor ou possuidor precário, tendo sido autorizado a construir no logradouro do lote n.º ..., propriedade do seu irmão GG, com a condição de demolir e restituir tal parcela de terreno ao seu possuidor legítimo possuidor logo que fosse necessário.
XVI. Dos factos provados não resulta demonstrada a atuação (corpus) ou o animus necessários à verificação da posse boa para usucapião.
XVII. Termos em que deverá ser reconhecido o invocado erro de julgamento, por incorreta subsunção dos factos provados às normas jurídicas aplicadas e na interpretação destas, com a consequente procedência da ação.
Do regime jurídico imperativo dos loteamentos urbanos e da sua prevalência sobre a usucapião;
XVIII. Independentemente da impugnação infra deduzida quanto à matéria de facto, a conhecer apenas na hipótese de improcedência das demais questões objeto do recurso, a presente ação deveria ter sido julgada procedente uma vez que não é possível, no caso concreto e mediante o recurso à usucapião, violar o regime imperativo dos loteamentos urbanos.
XIX. Resulta do ponto 16 da matéria de facto provada que o pavilhão referido em 6. Foi implantado nos logradouros dos lotes n.º ... e ..., ocupando 212 m2 do logradouro do lote n.º ..., propriedade dos AA./Recorrentes.
XX. Mais resulta dos factos provados que o pavilhão não está licenciado pela Câmara Municipal ... e, segundo a resposta dos Peritos constante do relatório pericial, o pavilhão não é, sequer, suscetível de ser licenciado ou legalizado.
XXI. O regime legal decorrente de um processo de loteamento, que conste do registo impõe-se a todos – incluindo aos proprietários e a todos aqueles que adquirirem tal prédio posteriormente, não podendo os proprietários prevalecer-se da usucapião para afastar tal norma legal de carácter imperativo.
XXII. A lei vigente comina com a sanção de nulidade a falta de referência e conformidade ao alvará de loteamento na operação urbanística.
XXIII. A legislação sobre loteamentos urbanos visa obstar à construção clandestina e evitar que através da acessão ou da usucapião possa ser defraudada essa finalidade legislativa.
XXIV. Por violar disposições legais de carácter imperativo, não pode, pois, considerar-se verificada a aquisição do direito de propriedade sobre uma parcela que envolva aquisição de áreas diferentes dos lotes ou dos limites destes, tal como estes se mostram definidos em alvará de loteamento, sem que dos autos conste a prova de que «a alteração dos lotes é lícita face às normas imperativas que regem o procedimento e a execução do loteamento» (Cf. citado Ac. do STJ de 3/12/2009).”
XXV. No caso concreto a alteração dos limites dos lotes n.º ... e ... não só não é lícita como o pavilhão em causa não se encontra licenciado, e não é, sequer, suscetível de licenciamento ou legalização, não podendo uma construção ilegal e não licenciável servir de base à aquisição do terreno que ele ocupa, por usucapião, e em violação do respetivo alvará de loteamento.
XXVI. Deve a sentença recorrida ser revogada e substituída por outra que determine a impossibilidade de aquisição, por usucapião, do direito de propriedade por parte da R./Recorrida EMP01... sobre a área ocupada pelo pavilhão, nomeadamente sobre a parcela de terreno com 212m2 que o pavilhão ocupa e que integram o lote n.º ... e, consequentemente, julgue procedente a ação.
Da impugnação da decisão relativa à matéria de facto:
XXVII. A título subsidiário, para a hipótese de improcedência de tudo quanto foi anteriormente alegado, os AA./Recorrentes discordam da factualidade dada como provada constante dos pontos 17º, 18º, 19º, 22º e 23º da sentença, que deverá ser dada como não provada.
XXVIII. Pese embora a matéria de facto dada como provada sob os pontos 17º, 18º e 19º não se trate de matéria essencial para a decisão final ou cuja impugnação se mostre absolutamente necessária para a procedência do recurso, ainda assim tal matéria não poderia ter sido dada como provada.
XXIX. Na petição inicial os AA. referiram - item 16º da p.i. - que o prédio da Ré EMP01..., corresponde ao lote n.º ..., inscrito na matriz predial urbana sob o n.º ...08 e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...33/...; – cfr. docs. n.º ... e ...0 – caderneta predial e descrição predial juntos com a petição inicial.
XXX. Na sua contestação a Ré EMP01... referiu - item 32º - ser dona e legítima possuidora do prédio constante das certidões, matricial e predial, juntas na PI como documentos ... e ...0, prédio este que adquiriu plenamente conforme verba constante no processo de insolvência referido, não tendo esta, na contestação ou posteriormente, alegado que o pavilhão possuía inscrição matricial ou descrição predial autónoma e diversa dos documentos n.º ... e ...0 juntos com a petição inicial.
XXXI. A referência à descrição predial n.º ...19 da Conservatória do Registo Predial ... e inscrição matricial urbana n.º ...71 surge apenas na audiência de discussão e julgamento realizada no dia 04.07.2022 e no decurso do depoimento da testemunha HH, funcionário da Ré.
XXXII. Junta pela Ré Recorrida a descrição predial n.º ...19 da Conservatória do Registo Predial ..., os AA./Recorrentes exerceram o contraditório por requerimento de 12.09.2022, impugnando aqueles documentos e alegando os motivos pelos quais tal descrição não poderia corresponder ao pavilhão.
XXXIII. Os pontos 17, 18 e 19 da matéria dada como provada devem ser dados como não provados porque: a) nunca foram alegados pelas partes; b) não se tratam de complementares aos factos essenciais da causa ou dos quais o Tribunal pudesse conhecer oficiosamente; c) não resultam comprovados por acordo ou pelo teor dos documentos a que se alude na motivação da sentença, atenta a posição assumida pelos AA. no exercício do contraditório; d) não existe prova minimamente segura que a descrição predial n.º ...84/... da CRP ... e matriz urbana n.º ...71 correspondam à parcela de terreno ocupada pelo pavilhão em discussão nos autos.
XXXIV. Na hipótese da descrição predial n.º ...84/... e matriz urbana n.º ...71 corresponderem ao pavilhão, nesse caso estaríamos perante uma duplicação de descrições e matrizes prediais urbanas, pois a área do pavilhão corresponderia nesse caso ao logradouro dos lotes n.º ... e ..., duplicação essa nula, ilegal e violadora do alvará de loteamento respetivo.
XXXV. Deverão os pontos 17, 18 e 19 da matéria de facto provada ser removidos do elenco dos factos provados constantes da sentença que antecede, ou se assim não se entender, serem os mesmos considerados como não provados nos seguintes termos:
Não provado que “17. O prédio descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...19, como edifício de r/c com uma divisão para armazém, e inscrito na matriz predial urbana sob o n.º ...71, se refira ao pavilhão em discussão nos autos;”
Não provado que “18 Pela AP. ...25 de 17/03/2017, se encontre inscrita a aquisição do dito pavilhão pela ré, por compra em processo de insolvência;”
Não provado que “19. O pavilhão tenha sido adjudicado à ré no referido Processo de Insolvência nº 22/07...., juntamente com o prédio referido em 13., pelo valor total de € 200.000,00”.
XXXVI. Os AA./Recorrentes consideram incorretamente julgada a matéria dada como provada sob o ponto 22º da sentença.
XXXVII. A prova que impõe decisão diversa reporta-se aos depoimentos das testemunhas GG, II e HH, com especial relevo para os trechos dos depoimentos transcritos para alegação, conjugados com o teor dos documentos contantes dos autos, nomeadamente do documento n.º ...6 junto com a petição inicial.
XXXVIII. A indicada matéria de facto provada, e respetiva motivação, não tem respaldo no depoimento das testemunhas, não tendo o Tribunal a quo efetuado uma correta valoração e interpretação dos depoimentos, os quais, devidamente valorados, demonstram uma realidade diversa da vertida na sentença, concretamente que os anteproprietários do prédio referido em 11. dos factos provados (lote n.º ...) sempre se intitularam proprietários da parcela de terreno que o pavilhão ocupava sobre o lote n.º ... (212m2).
XXXIX. A testemunha GG esclareceu que consentiu que o seu irmão edificasse o pavilhão a ocupar o logradouro do lote n.º ... na condição de que quando precisasse do terreno, de vender ou que quer que fosse, o mesmo lhe fosse entregue vazio, o que o seu irmão aceitou, referindo ainda que não vendeu nem doou essa parte de terreno do lote n.º ... ao seu irmão.
XL. Mais referiu que quando vendeu o seu lote (2) através de permuta, e com o seu irmão presente, referiu ao adquirente que o pavilhão tinha sido construído pelo seu irmão, mas que quando precisasse do terreno vazio o seu irmão destruía o pavilhão na parte que ocupava o lote n.º ... e entregava o terreno vazio e limpo como estava antes da construção.
XLI. O depoimento da testemunha comprova que a mesma sempre se intitulou proprietário da parcela de terreno de 212m2 do lote n.º ... ocupada pelo pavilhão, bem como que o seu irmão FF bem sabia que ocupava essa parte do lote n.º ... enquanto possuidor ou detentor precário, pois tinha conhecimento que a ocupação do lote n.º ... foi efetuada na condição de demolir e restituir tal parcela de terreno ao seu legítimo possuidor logo que fosse necessário, e que obsta à inversão do título da posse para efeitos de usucapião.
XLII. Já a testemunha II referiu que quando vendeu o lote n.º ... aos AA./Recorrentes informou estes que parte do pavilhão existente por trás da casa também fazia parte do lote.
XLIII. Esclareceu que antes de vender contactou com a R./Recorrida EMP01... pelo facto de depreender que esta seria a principal interessada na compra do lote uma vez que ocupava o pavilhão, sendo que nessas conversas falaram sobre o pavilhão e da desocupação da parte de trás do lote n.º ....
XLIV. Referiu que quando vendeu o lote n.º ... aos AA./Recorrentes deu-lhes conhecimento da situação do pavilhão e que este ocupava parte do lote, e tendo consciência de que estavam a transmitir um bem com esse problema para resolver acordaram um preço mais barato para compensar os transtornos e despesas relacionadas com a reivindicação da parte do lote n.º ... ocupada pelo pavilhão.
XLV. É igualmente relevante o documento n.º ...6 junto com a petição inicial, respeitante a uma missiva remetida pela testemunha e seus irmãos à entidade que então ocupava o pavilhão, interpelando-a para entrega do logradouro do lote n.º ..., o que bem demonstra que havia oposição dos proprietários à ocupação do lote n.º ... pelo pavilhão.
XLVI. Relava ainda o depoimento da testemunha HH, funcionário da Ré EMP01..., que referiu conhecer quer os AA./Recorrentes quer os anteriores proprietários do lote n.º ..., e que em reuniões ocorridas (primeiramente com o Sr. JJ e depois com os AA.) ambos reclamaram a parcela de terreno ocupada pelo pavilhão sobre o lote n.º ....
XLVII. Da conjugação de todos os citados depoimentos, assim como do documento n.º ...6 junto com a petição inicial, resulta que os anteriores proprietários do lote n.º ... sempre tiveram a convicção de que a parte desse lote ocupada pelo pavilhão, com a área de 212m2 lhes pertencia.
XLVIII. Deverá ser alterada a decisão sobre a matéria de facto mencionada no ponto 22 dos factos não provados, dando-se o mesmo como Não Provado.
XLIX. Os AA./Recorrentes consideram ainda incorretamente julgada a matéria dada como provada sob o ponto 23º da sentença.
L. A prova que impõe decisão diversa é o depoimento da testemunha II, desde que respeitado e não desvirtuado.
LI. Os AA./Recorrentes não questionam a redação literal do facto provado, mas o sentido que o Tribunal a quo lhe atribui e que vem expresso na motivação da sentença, fazendo crer que a área de terreno do lote n.º ... ocupada pelo pavilhão não havia sido incluída no negócio de compra e venda, o que não corresponde à verdade, sendo esse sentido interpretativo infirmado pelo depoimento da testemunha II,
LII. E por outro lado, contrariamente ao vertido na motivação da sentença quanto à prova desse facto, em lado algum do seu depoimento a testemunha II referiu “…que o preço do negócio era € 200.000,00 e que, por causa do problema da ocupação do logradouro pelo pavilhão que era da ré, reduziu € 60.000,00 ao preço, tendo a compra e venda sido realizada pelo preço real de € 140.000,00 (o que aconteceu com o conhecimento dos autores)”, o que constitui uma extrapolação sem qualquer respaldo ou sustentação no depoimento dessa testemunha ou na demais prova produzida.
LIII. O que resulta do depoimento da indicada testemunha é que quando concordou, juntamente com os seus irmãos comproprietários, vender o lote n.º ... aos AA./Recorrentes, deram conhecimento aos compradores da situação do pavilhão e que este ocupava parte do lote n.º ..., pelo que tendo consciência de que estavam a transmitir um bem com um imbróglio para resolver lhes fizeram um preço mais barato para compensar os problemas que aqueles iriam enfrentar para reivindicar a parte do lote n.º ... ocupada pelo pavilhão.
LIV. Já quanto ao preço do negócio, em lado algum do seu depoimento a testemunha II referiu que o preço do negócio foi reduzido em 60.000,00 € para o valor real de 140.000,00 €.
LV. Deste modo, pese embora corresponda à verdade que o preço do negócio referido em 12. tenha sido ajustado para menos, essa redução foi acordada, não porque pretenderam excluir do negócio a parte do lote n.º ... ocupada pelo dito pavilhão (212m2), como a sentença faz crer, mas antes para compensar os AA./compradores pelo imbróglio transmitido quanto a essa área de terreno e pelos transtornos que teriam que enfrentar para que a mesma lhes fosse restituída.
LVI. Assim, deverá retirar-se da motivação da sentença “…que o preço do negócio era € 200.000,00 e que, por causa do problema da ocupação do logradouro pelo pavilhão que era da ré, reduziu € 60.000,00 ao preço, tendo a compra e venda sido realizada pelo preço real de € 140.000,00 (o que aconteceu com o conhecimento dos autores)”, pois que se trata de matéria sem respaldo ou sustentação em qualquer elemento de prova e por isso deverá ser considerada Não Provada.
LVII. Deverá ser alterada a decisão sobre a matéria de facto mencionada no ponto 23 dos factos não provados, dando-se como Provado que: “23. O preço estabelecido no negócio referido em 12. foi reduzido pelo facto de o pavilhão estar implantado no prédio referido em 11., destinando-se a redução do preço a compensar os compradores pelos problemas que teriam que enfrentar para que lhes fosse restituída a parcela de terreno do lote n.º ... ocupada pelo pavilhão;
LVIII. Em face da alteração da factualidade impugnada, de cuja procedência se reforça a inexistência de factos atinentes ao instituto da usucapião, deverá a sentença em crise ser revogada e substituída por outra que, julgando o recurso procedente:
a) Declare que os AA./Recorrentes são donos, legítimos proprietários e possuidores do prédio urbano identificado no item 1º da petição inicial, correspondente ao lote n.º ..., composto por casa de ..., andar e logradouro, sito na Rua ..., da freguesia ..., concelho ..., com a área de 423m2, a confrontar do Norte com DD, do Sul com estrada Nacional n.º ...05, do Nascente com EE cachada e do Poente com EMP01... – Investimentos Imobiliários e Mobiliários, S.A., inscrito na matriz predial urbana sob o n.º ...52... e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...23/..., e se condene os RR. a reconhecer tal direito de propriedade;
b) Condene os réus a reconhecer que a dita parcela de terreno ocupada com a área de 212 m2, e em discussão nos presentes autos, faz parte integrante do dito prédio pertencente aos aqui Autores;
c) Condene a Ré a demolir/remover da dita parcela ocupada com a área de 212 m 2, o pavilhão que aí se encontra implantado;
d) Condene os RR. a restituir aos AA. a dita parcela de terreno com a área de 212 m2 livre de pessoas e bens;
e) Condene os RR. a pagar aos AA., a título de sanção pecuniária compulsória, a quantia de 50,00 € (cinquenta euros) diários por cada dia de atraso que se venha a verificar na restituição aos AA. da referida parcela de terreno ocupada com a área de 212 m2, a contar desde a citação e até à efetiva restituição da parcela de terreno livre de pessoas e bens;
f) Condene os réus a absterem-se, no futuro, da prática de quaisquer atos que impeçam ou diminuam o exercício do direito de propriedade dos AA. sobre a referida parcela de terreno com a área de 212 m2…”
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A recorrida veio apresentar Resposta ao recurso, pugnando pela sua improcedência, com a manutenção da decisão recorrida.
Alega ainda que o recurso não deveria ter sido admitido (na parte relativa à matéria de direito).
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No despacho de admissão do recurso, o tribunal recorrido pronunciou-se quanto à arguida nulidade da sentença, considerando que a mesma não se verifica.
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Tendo em consideração que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações dos recorrentes (acima transcritas), sem prejuízo da apreciação de questões de conhecimento oficioso (artigos 635º e 639º do CPC), as questões a decidir no presente recurso (por ordem lógica de conhecimento) são as seguintes:

I- A de saber se a sentença é nula por “excesso de pronúncia”;
I- Se é de alterar a matéria de facto;
III- Em caso afirmativo, se deve ser alterada a decisão jurídica em conformidade; e
IV- Se mesmo perante a matéria de facto dada como provada, deve ser alterada a decisão, com a total procedência da ação.
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Foram dados como provados na 1ª Instância os seguintes factos:

“1. Em 27/08/1985, a Câmara Municipal ... emitiu o Alvará de Loteamento nº 105/85 que autorizou a KK o loteamento urbano do prédio sito no lugar ..., freguesia ..., inscrito na matriz predial rústica da freguesia ... sob o artigo ...89 e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...08;
2. Em 21/04/1986, o Alvará referido em 1. foi substituído pelo Alvará de Loteamento nº 30/86 da Câmara ... e, em 13/02/1991, este Alvará foi alterado pelo Alvará de Licenciamento de Loteamento Urbano nº ...1;
3. Nos termos do Alvará de Licenciamento de Loteamento Urbano nº ...1 foi autorizada a criação, no prédio referido em 1., de seis lotes + A, com as seguintes características:
- lote n.º ..., com a área de 566,20 m2, destinado a habitação e anexos;
- lote n.º ..., com a área de 423 m2, destinado a habitação e anexos;
- lote n.º ..., com a área de 597,50 m2, destinado a habitação e anexos;
- lote n.º ..., com a área de 502,50 m2, destinado a habitação e anexos;
- lote n.º ..., com a área de 409 m2, destinado a habitação e anexos;
- lote n.º ..., com a área de 600 m2, destinado a habitação e anexos;
- lote ..., com a área de 1933,92 m2, destinado a área de serviço.
4. Por escritura de doação outorgada em 04/11/1985 na Secretaria Notarial ..., KK e LL, casados entre si, declararam doar, por conta das suas quotas disponíveis, com reserva de usufruto para si, a GG o lote nº ..., referido em 3..;
5. Por escritura de doação outorgada em 04/11/1985 na Secretaria Notarial ..., KK e LL, casados entre si, declararam doar, por conta das suas quotas disponíveis, com reserva de usufruto para si, a FF o lote nº ..., referido em 3.;
6. À data referida em 5., inexistia qualquer construção nos referidos lotes; posteriormente, em data não concretamente apurada, mas anterior a 1995, o donatário GG autorizou verbalmente ao donatário FF, a pedido deste, a construção de um pavilhão no lote nº ... (referido em 3.), na parte destinada a logradouro, destinada ao exercício da sua atividade profissional;
7. Pela AP. ...0 de 11/08/2000, encontra-se registada a aquisição do lote nº ... (referido no facto provado 3.), por permuta realizada entre GG e MM e mulher NN;
8. Pela AP. ...6 de 20/12/2000, encontra-se registada a aquisição do lote nº ... (referido no facto provado 3.) por Banco 1... Leasing, S.A., por compra;
9. Pela AP. ...7 de 20/12/2000, encontra-se registada a locação financeira do lote nº ... (referido no facto provado 3.) a favor de JJ, e mulher OO, JJ e esposa PP, II e mulher QQ;
10. Pela AP. ...85 de 08/06/2017, encontra-se registada a aquisição do lote nº ... (referido no facto provado 3.) por JJ, e mulher OO, JJ e esposa PP, II e mulher QQ, por compra ao Banco 1...;
11. O referido lote nº ... encontra-se atualmente descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o artigo ...23/..., e inscrita a aquisição, por compra, dos autores pela AP. ...76 de 2019/10/21;
12. Em 21/10/2019, o autor declarou comprar a JJ, e mulher OO, JJ e esposa PP, II e mulher QQ, que declararem vender àquele, pelo preço declarado de € 80.000,00 (oitenta mil euros), o prédio urbano composto de casa de ..., andar e logradouro, sito na rua ..., ..., lugar ..., freguesia ..., concelho ..., inscrito na matriz sob o artigo ...52 e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o artigo ...23/... (referido em 11.);
13. O lote nº ..., referido em 3., confronta de poente com o prédio referido em 11., e está atualmente descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...33/..., composto de casa de r/c, andar e logradouro, sito na rua ..., da freguesia ..., concelho ..., estando ainda inscrito na matriz predial urbana sob o n.º ...08;
14. Pela AP. ...25 de 17/03/2017, encontra-se inscrita a aquisição do prédio referido em 13. pela ré, por compra em processo de insolvência;
15. O prédio referido em 13. foi adjudicado à ré no Processo de Insolvência nº 22/07.... que correu termos no Juízo de Comércio de ... – Juiz ..., em que foi declarado insolvente FF;
16. Em data não concretamente apurada, mas nunca posterior a 1995, foi construído o pavilhão referido em 6., que foi implantado, em parte no prédio referido em 13., e no logradouro do prédio referido em 11., ocupando 212 m2 do referido lote nº ...;
17. O referido pavilhão encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...19, como edifício de r/c com uma divisão para armazém, estando ainda inscrito na matriz predial urbana sob o n.º ...71;
18. Pela AP. ...25 de 17/03/2017, encontra-se inscrita a aquisição do dito pavilhão pela ré, por compra em processo de insolvência;
19. O prédio referido em 17. foi adjudicado à ré no referido Processo de Insolvência nº 22/07...., juntamente com o prédio referido em 13., pelo valor total de € 200.000,00;
20. O referido pavilhão está arrendado, há cerca de seis anos, pelo réu, onde exerce a sua atividade de venda de automóveis;
21. O referido pavilhão não está licenciado pela Câmara Municipal ...;
22. Desde a data da construção, o referido pavilhão sempre foi usado e explorado pelos proprietários do prédio referido em 13., à vista de todos e sem que houvesse oposição dos proprietários do prédio referido em 11.;
23. O preço estabelecido no negócio referido em 12. foi reduzido em virtude de os vendedores e o autor saberem que o pavilhão estava implantado no prédio referido em 11.
*
Não se provaram quaisquer outros factos dos alegados, com interesse para a decisão da causa, designadamente que:

a) Os autores, por si e seus antecessores, usam e usavam o prédio referido em 11. na parte que está ocupada com o pavilhão referido em 16., colhendo e fruindo de todas as suas utilidades, nomeadamente limpando-o, benfeitorizando-o, desde o ano de 1986, o que sucede há mais de 10, 20 e 30 anos, de forma ininterrupta, à vista de todas as pessoas, sem a oposição de quem quer que seja, na intenção e convicção de que o mesmo lhes pertence;
b) A parcela do prédio referido em 11. em que está implantado o pavilhão referido em 16. tem a área de 207m2.”
*
DA REJEIÇÃO DO RECURSO QUANTO À MATÉRIA DE DIREITO

Defende a recorrida, que a parte do recurso apresentado pelos recorrentes respeitante à impugnação da matéria de direito, deveria ter sido rejeitado, porquanto não cumpre os requisitos formais legalmente impostos pelo artigo 639.º do CPC, o qual prevê, no seu n.º 2, que os Recorrentes, ao impugnarem a decisão da matéria de direito, devem especificar nas conclusões “as normas jurídicas violadas” (alínea a), “o sentido com que, no entender do recorrente, as normas que constituem fundamento jurídico da decisão deviam ter sido interpretadas e aplicadas” (alínea b) e, “invocando-se erro na determinação da norma aplicável, a norma jurídica que, no entendimento do recorrente, devia ter sido aplicada” (alínea c).
Ora, da leitura do recurso interposto e das suas conclusões, resulta que os recorrentes se insurgem contra a matéria de Direito, mas não especificam quais as normas que foram violadas, nem como, no seu entender, deveriam ter sido interpretadas ou aplicadas, ou quais as normas que, no caso em apreço, deveriam ter sido aplicadas.
Conclui assim a recorrida, que as conclusões apresentadas são omissas quanto às indicações exigidas pelo n.º 2 do artigo 639.º do CPC, pelo que não pode o recurso da matéria de Direito ser admitido pelo Tribunal ad quem.
*
Mas sem razão, como é bom de ver, tendo o recurso sido admitido na primeira instância, e também neste tribunal de recurso – embora em mero despacho tabelar.
Pois se é certo que o preceito legal citado – o art.º 639º nº 2 do CPC -, impõe esse ónus ao recorrente – de indicação, nas conclusões de recurso, das normas jurídicas violadas na decisão recorrida, e da indicação das que deveriam ser as corretamente aplicadas -, trata-se de uma norma que não tem a consequência preclusiva que a recorrida lhe atribui. A falta daquelas “especificações”, a que alude o nº 2 do art.º 639º, teria apenas a consequência de levar a um convite de aperfeiçoamento ao recorrente, por parte do relator do processo (nº 3 do art.º 639º do CPC).
Acontece que, contrariamente ao caso - também previsto no nº 3 do art.º 639º-, em que as conclusões são deficientes, obscuras ou complexas, e que podem prejudicar o conhecimento do objeto do recurso e o exercício do contraditório pela parte contrária, a falta de indicação das normas jurídicas violadas não tem as mesmas consequências nem a mesma gravidade, porquanto o tribunal não está vinculado às alegações das partes no que toca à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (art.º 5º nº 3 do CPC), sendo por isso em prol da celeridade processual que se faz pouco uso do recurso ao nº 3 do art.º 639º, convidando o recorrente a completar as conclusões de recurso, para cumprimento integral e rigoroso do nº 2 daquele preceito legal.
E foi precisamente nesse espírito – de celeridade processual, princípio tão caro a toda a comunidade jurídica -, que não foi feito tal convite aos recorrentes, por parte da relatora deste processo.
Improcede assim, esta questão prévia suscitada pela recorrida.
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I – Da nulidade da sentença por excesso de pronúncia:

Invocam os recorrentes a nulidade da sentença, nos termos previstos na alínea d) do n.º 1 do artigo 615º do CPC, porquanto o tribunal a quo entendeu que a área e os limites do lote n.º ..., definidos no loteamento nº 2/91, são suscetíveis de ser modificados através da aquisição, por usucapião, da parcela de 212m2 que faz parte do lote ..., que se encontra ocupada pelo pavilhão, o que motivou a improcedência da ação.
Dizem que na sua contestação a Ré EMP01... não invocou a usucapião como forma de aquisição originária do direito de propriedade sobre os 212 m2 de terreno ocupados pelo pavilhão em discussão nos autos, e muito menos alega factos concretos, praticados por si ou seus antecessores ou antepossuidores, suscetíveis de demonstrar os caracteres da posse boa para usucapião.
Ora, a nulidade da sentença por “excesso de pronúncia” é um vício que resulta da inobservância pelo tribunal do disposto no n.º 2 do artº. 608.º do CPC, segundo o qual o juiz não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.
Donde, não tendo tal forma de aquisição originária sido invocada pela Ré EMP01..., nem fazendo constar da causa de pedir os factos constitutivos da posse boa para usucapião, o tribunal a quo dela não podia conhecer oficiosamente, pois esta forma aquisitiva originária de direitos reais, para ser operante, tem de ser invocada, judicial ou extrajudicialmente, por aquele a quem aproveita e dela pretende prevalecer-se.
Verifica-se, assim, a nulidade da sentença por “excesso de pronúncia” nos termos previstos na citada alínea d) do n.º 1 do artigo 615º do CPC, o que deverá ser reconhecido com as legais consequências.
A recorrida considera que não ocorreu a aludida nulidade, assim como a sra. Juíza, conforme despacho proferido a apreciar tal nulidade.
Mas temos de dar razão aos recorrentes.
                                                          
Efetivamente, nos termos da alínea d) do n.º 1 do artigo 615º do CPC, é nula a sentença quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento, sendo o que baliza os poderes e os limites do conhecimento do juiz, o disposto no art.º 608º nº 2 do CPC, no qual se prevê que o juiz não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento ofícios de outras.
Como sustenta Miguel Teixeira de Sousa (Estudos sobre o Novo Processo Civil, página 362, citado no Ac. do STJ de 21/03/2019, também disponível em www.dgsi.pt), reportando-se ainda ao código anterior, “um limite máximo ao conhecimento do tribunal é estabelecido pela proibição de apreciação de questões que não tenham sido suscitadas pelas partes, salvo se forem de conhecimento oficioso (art.º 660°, n° 2, 2.ª parte) (…). A violação deste limite determina a nulidade da sentença por excesso de pronúncia (art.º 668°, n° 1, al. d) 2.ª parte)…” (no mesmo sentido se pronunciou o Ac. desta RG, de 29/04/2021, também disponível em www.dgsi.pt, sendo também esse o entendimento de José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2º, 3ª Edição, Almedina, pág. 737).
A nulidade da sentença por excesso de pronúncia verifica-se efetivamente quanto o tribunal tiver conhecido de questões que as partes não tiverem submetido à sua apreciação, sendo essas questões os pontos de facto ou de direito relativos à causa de pedir, ao pedido, e às exceções invocadas, que centram o objeto do litígio (Ac. do STJ, de 6-12-2012, disponível em www.dgsi.pt).
A dificuldade costuma estar em saber o que deve entender-se por questões, para efeitos do disposto nos artigos 608º nº 2 e 615, n.º 1, d), do CPC.
E a resposta tem de ser procurada na configuração que as partes deram ao litígio, levando em conta a causa de pedir, o pedido, e as exceções invocadas pelo réu, o que vale por dizer que questões serão apenas as questões de fundo, isto é, as que integram matéria decisória, tendo em conta a pretensão que se visa obter. Não farão parte dessas “questões” os argumentos e as motivações produzidas pelas partes, mas apenas os pontos de facto ou de direito relevantes no quadro do litígio, ou seja, os concernentes ao pedido, à causa de pedir e às exceções invocadas (José Alberto dos Reis Código de Processo Civil anotado, Vol. V. pág. 142, e José Lebre de Freitas, A. Montalvão Machado e Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2, 2ª ed., Coimbra Editora, pág. 704).
O que importa, no fundo, é que o julgador conheça de todas as questões que lhe foram colocadas pelas partes, exceto aquelas cuja decisão tenha ficado prejudicada pela solução dada a outras, e/ou não tome conhecimento das que não lhe foram colocadas, com respeito absoluto pela configuração da ação, tal como ela foi feita pelas partes.
Deste modo, só haverá nulidade da sentença por omissão ou por excesso de pronúncia, quando o julgador tiver omitido pronúncia relativamente a alguma das questões que lhe foram colocadas pelas partes ou quando tiver conhecido de questões que aquelas não submeteram à sua apreciação.
Isto posto,
O tribunal tinha para conhecer no caso dos autos, como questões essenciais face à pretensão dos AA, os requisitos da ação de reivindicação, ou seja, o direito de propriedade de que os AA se arrogam sobre o prédio que identificam (nele se incluindo a parcela de terreno que também descrevem, na qual foi construído um pavilhão), e a ocupação, por parte dos RR, da aludida parcela, que os AA reivindicam.
Mas como também foi enunciado na sentença proferida, reconhecendo-se ao reivindicante o direito real de propriedade alegado, a restituição da coisa corpórea que constitui o seu objeto mediato só pode ser-lhe recusada nos casos expressamente previstos na lei (artigo 1311º, nº 2, do C.C.).
E a ré, na sua defesa, sem excecionar o direito invocado pelos AA, ou deduzir contra os mesmos pedido reconvencional, veio impugnar os factos por eles alegados (em defesa motivada), afirmando que o terreno onde está implantado o pavilhão, assim como este, lhe pertencem, porque os adquiriu em processo de insolvência (artºs 18º, 19º, e 20º da contestação), frisando que “a propriedade da Ré, adquirida em sede do Processo de insolvência (…) sempre teve por referência os valores e áreas que a Ré ocupa, nomeadamente no que respeita aos pavilhões já implantados no local há várias décadas, existentes já no imóvel à data da sua aquisição em sede de insolvência. Como tal (…), quando adquiriu as referidas propriedades, considerando as infraestruturas no seu todo, adquiriu os direitos que lhe foram apresentados…”, impugnando o invocado direito de propriedade dos AA sobre a parcela reivindicada e respetivo pavilhão (nos artºs 21º e ss.).
Ou seja, a defesa da ré em sede de contestação é a de que ocupa a parcela reivindicada, com as áreas que a mesma comporta, porque a adquiriu no processo de insolvência, assim como o pavilhão nela implantado.
Acompanhamos neste ponto a alegação dos recorrentes, de que a ré não invoca a posse da parcela (nem descrevendo os atos de posse nela praticados), muito menos a sua aquisição originária por usucapião.  
Aliás, a esse respeito, diz mesmo, que jamais poderão os AA invocar um alegado direito de usucapir, que dizem assistir aos anteriores proprietários, por carecerem de legitimidade para tal, direito ao qual também não se acham com direito. Já que, dizem, se assim não se entendesse, segundo a mesma lógica e em ultima ratio, permitir-se-ia que Ré viesse igualmente reivindicar a propriedade da dita parcela com base no exercício da posse do anterior proprietário a quem adquiriu o referido pavilhão, atendendo ao facto de existirem diversos registos de que tais infraestruturas existem há mais de vinte anos, e sabendo que FF sempre agiu como possuidor e proprietário desse mesmo local…” (art.º 25º da contestação).
Conclui, a final, que é dona e legítima possuidora do prédio constante das certidões matricial e predial (juntas na PI como documentos ... e ...0), prédio esse que adquiriu plenamente, conforme verba constante do processo de insolvência referido supra, com a área de 679 m2, conforme comprova a CRP e a AT (art.º 32º).
Verificamos assim que o segmento da decisão recorrida no qual foi apreciada a prática de atos de posse por parte da ré, os quais eram suscetíveis de levar à aquisição originária por parte daquela, da parcela reivindicada e do pavilhão nela construído, extravasou a alegação da ré em sede de defesa, constituindo a sua apreciação a apreciação de uma questão (essencial) da qual o tribunal não podia tomar conhecimento (porque não suscitada pela parte).

Referimo-nos concretamente à seguinte passagem da decisão recorrida:

“…Resulta da factualidade provada que o dito pavilhão foi construído em data não concretamente apurada, mas nunca posterior a 1995, e que o mesmo foi implantado no logradouro do prédio (…) hoje propriedade dos autores, ocupando 212 m2 do referido lote nº .... Face ao exposto, há que concluir que os autores lograram a prova da propriedade do prédio referido (…), sendo, aliás, os titulares registados, e, bem assim, a prova de que o pavilhão está implantado no logradouro do seu prédio, ocupando 212 m2 do referido lote nº ..., e parcialmente no (…) lote nº .... Como tal, pode impor-se a conclusão de que, com a construção do dito pavilhão, foram infringidos os limites de área definidos pelo respetivo alvará de loteamento. É certo que as normas relativas ao ordenamento do território proíbem os loteamentos ou destaques ilegais, enquanto resultado, e que a construção do pavilhão (para além do lote nº ...) no logradouro do lote nº ..., hoje prédio dos autores, consubstancia a violação do loteamento respetivo. Não obstante, haverá que considerar que tal construção do pavilhão foi autorizada pelo proprietário do lote nº ... à data, destinando-se o pavilhão ao exercício da atividade profissional do proprietário do lote nº .... Desde a construção do pavilhão que o mesmo sempre foi usado e explorado pelos proprietários do prédio (…) (correspondente ao lote nº ...), à vista de todos e sem que houvesse oposição dos proprietários do prédio referido (…) (correspondente ao lote nº ...). Ademais, resultou provado que o referido pavilhão tem descrição predial e matricial autónomas, tendo sido vendido à ré, juntamente com o lote nº ..., no Processo de Insolvência (…). Face ao exposto, provada a posse do pavilhão, pelo menos desde 1995, pelos proprietários do lote nº ..., entendemos que tal posse, conducente à usucapião, enquanto forma de aquisição originária de direitos reais, tem que se poder sobrepor às limitações de ordem pública decorrentes daquele processo administrativo de loteamento (…). Do exposto resulta que a posse exercida pela ré, e pelos antepossuidores, da área do logradouro do prédio dos autores em que se encontra implantado o pavilhão é suscetível de gerar a aquisição por usucapião, mesmo que essa posse seja baseada em ato ou facto proibido por normas imperativas do loteamento urbano (ou do destaque) (…). Decorre de todo o exposto que é de fazer preponderar sobre as normas imperativas do loteamento urbano a posse pública e pacífica do pavilhão implantado sobre a área de 212 m2 do logradouro do prédio dos autores, exercida desde 1995, pela ré e seus antepossuidores, posse essa fundamento da respetiva aquisição por usucapião. Na verdade, só esta preponderância assegura a estabilidade das relações jurídicas estabelecidas que tiveram por objeto tal parcela, sem que se ponha em causa a posição dos autores, já que, conforme resulta da factualidade provada e respetiva fundamentação, quando compraram o prédio referido em 11., viram o preço substancialmente reduzido pelo facto de o logradouro estar ocupado pelo dito pavilhão. Face ao exposto, considerando que a área e os limites do lote n.º ... definidos no loteamento nº 2/91 são suscetíveis de ser modificados através da usucapião da parcela de 212 m2 que integrava o dito lote e em que se encontra implantado o pavilhão, não poderá reconhecer-se que tal parcela é hoje propriedade dos autores. E tanto basta para se concluir pela improcedência total da ação”.
Ora, como se vê, dissertou-se na sentença recorrida (com muita assertividade, aliás) sobre uma questão que não foi suscitada pela ré na contestação – a prática de atos de posse sobre a parcela reivindicada e respetivo pavilhão, suscetíveis de levar à aquisição dos mesmos por usucapião -, e que, como tal, estava vedado ao tribunal recorrido apreciá-la - ainda que não haja sido violado o princípio do pedido, pois concluiu-se tão somente na sentença recorrida pela improcedência do pedido dos AA, concluindo-se a final que “não poderá reconhecer-se que tal parcela é hoje propriedade dos autores”.
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Tal conhecimento configura causa de nulidade (parcial) da sentença, nos termos da referida alínea d), do nº. 1, do art.º 615º do CPC – o que se declara.
Verificada a aludida nulidade, importa supri-la, segundo a regra da substituição do tribunal recorrido, conforme art.º 665.º nº 1 do CPC, e dispensando-se a audição das partes (conforme nº 3 do mesmo artigo), por absoluta desnecessidade, uma vez que a nulidade foi suscitada pelos recorrentes nas suas alegações de recurso, à qual veio a recorrida responder, tendo-se também a sra. Juíza pronunciado sobre a invocada nulidade.
Efetivamente, a nulidade da decisão não determina, necessariamente, a baixa dos autos à 1ª instância, pois cabe ao tribunal ad quem, no exercício dos seus poderes de substituição, suprir essa nulidade, o que se torna simples no caso dos autos, devendo apenas ser retirado da decisão proferida o segmento anulado da mesma, ou não se levar em consideração tal segmento, na apreciação das restantes questões colocadas.
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Em consequência do exposto, ficam prejudicadas as questões colocadas pelos recorrentes nas Conclusões VIII a XXVI – relacionadas com a posse e (potencial) aquisição pela ré, por via da usucapião, da parcela reivindicada pelos AA.
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II- Da impugnação da matéria de facto:

Insurgem-se ainda os recorrentes contra a decisão da matéria de facto, mais concretamente quanto aos factos dados como provados nos artigos 17º, 18º, 19º, 22º e 23º, que pretendem ver dados como não provados, convocando para o efeito a prova testemunhal e documental que indicam, dando assim cumprimento aos ónus que lhe são impostos pelo art.º 640º do CPC.

São esses os artigos seguintes:

“17. O referido pavilhão encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...19, como edifício de r/c com uma divisão para armazém, estando ainda inscrito na matriz predial urbana sob o n.º ...71;
18. Pela AP. ...25 de 17/03/2017, encontra-se inscrita a aquisição do dito pavilhão pela ré, por compra em processo de insolvência;
19. O prédio referido em 17. foi adjudicado à ré no referido Processo de Insolvência nº 22/07...., juntamente com o prédio referido em 13., pelo valor total de € 200.000,00;
22. Desde a data da construção, o referido pavilhão sempre foi usado e explorado pelos proprietários do prédio referido em 13., à vista de todos e sem que houvesse oposição dos proprietários do prédio referido em 11.;
23. O preço estabelecido no negócio referido em 12. foi reduzido em virtude de os vendedores e o autor saberem que o pavilhão estava implantado no prédio referido em 11”.
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Relativamente aos artigos 17º, 18º e 19º, segundo os recorrentes “não se trata de matéria essencial para a decisão final ou cuja impugnação se mostre absolutamente necessária para a procedência do recurso…”
Ora, se assim é, não vemos qualquer necessidade, nem utilidade, em proceder à sua apreciação, a qual redundaria numa atividade judicial despicienda e de todo irrelevante.
Tem sido, de facto, jurisprudência desta Relação – e das demais -, que em obediência ao princípio da limitação dos atos, e porque não é lícito realizarem-se no processo atos inúteis (art.º 130º do CPC), também em sede de impugnação da matéria de facto, hão-de os concretos pontos impugnados daquela matéria poderem - segundo as diversas soluções plausíveis das várias questões de direito suscitadas -, contribuir para a boa decisão da causa, máxime, a solicitada modificação há-de minimamente relevar para a pretendida alteração do julgado.
Não se antevendo tal alteração, nos dizeres dos próprios recorrentes, não haverá necessidade de proceder a uma atividade desnecessária, e, consequentemente, apreciar a matéria de facto impugnada.
Em suma, as questões fáticas suscitadas devem estar numa relação direta com aquilo que se pretende obter com o provimento do recurso; tudo o que seja espúrio e desnecessário ao efeito pretendido, não pode, nem deve, ser apreciado.
Citando o Ac. RL de 14/3/2013 (disponível em www.dgsi.pt.), “Não há que conhecer da impugnação da decisão sobre a matéria de facto, por desnecessidade, mesmo que verificados os requisitos legais, se a alteração pedida for meramente instrumental em relação à solução jurídica pretendida por via do recurso”.
Também no Ac. RP de 17/3/2014 (disponível no mesmo sítio) se decidiu que “Se os factos cuja reapreciação é pretendida não têm a virtualidade de influir na possível solução jurídica do caso, o tribunal ad quem, em estrita observância da regra legal de que são proibidos os atos inúteis (artigo 130º do CPCl), deve recusar-se a conhecer dessa matéria juridicamente inócua”.
É que, diz-se nesta última decisão, se a matéria de facto impugnada é inócua, então a mesma “não tem aptidão para constituir objeto de uma impugnação da decisão da matéria de facto, já que do que se trata em qualquer caso, não é do apuramento de uma qualquer verdade absoluta ou ontológica, mas sim e de modo mais modesto, de uma verdade factual prática apta a desencadear ou suportar certas consequências jurídicas”.
Decidiu-se também no Ac. RP de 19/5/2014 (também disponível em www.dgsi.pt), que “se a reapreciação de concreta matéria de facto é inócua, à luz das diversas soluções plausíveis das várias questões de direito, e atento o carácter instrumental da reapreciação da decisão da matéria de facto, no sentido de que a reapreciação pretendida visa sustentar uma certa solução para uma dada questão de direito, a inocuidade da aludida matéria de facto justifica que este tribunal indefira essa pretensão, em homenagem à proibição da prática no processo de atos inúteis”
Ora, à luz da posição defendida, e sendo exigível que subjacente a uma qualquer impugnação da decisão da matéria de facto esteja sempre a viabilidade e a pertinência de a pretendida modificação da decisão de facto poder contribuir com relevância para a alteração do julgado, a verdade é que, como os próprios recorrentes admitem, no tocante aos pontos de facto impugnados, não se descortina que as alterações preconizadas pelos recorrentes tenham qualquer relevância para o desfecho da ação, sendo as mesmas de todo irrelevantes para a modificação do julgado.
Ademais, a prova dos factos em análise resulta das certidões - predial e matricial -, e das cópias do título de transmissão, do auto de apreensão, e da sentença de declaração de insolvência, juntas com o requerimento da ré, de 14/07/2022 (junção ordenada pelo tribunal recorrido em sede de audiência final).
Trata-se de documentos, cujo teor e autenticidade não foram validamente postos em causa pelos recorrentes, pelo que não se vê também, como pudessem os mesmos ser alterados (dada a prova vinculada na qual os mesmos se alicerçaram).
Assim sendo, forçoso é concluir pelo não conhecimento do mérito da impugnação dos apelantes, dirigida para a decisão da matéria de facto vertidas nos pontos 16,17, e 18.
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Relativamente ao facto vertido em 22 – do qual consta que “Desde a data da construção, o referido pavilhão sempre foi usado e explorado pelos proprietários do prédio referido em 13., à vista de todos e sem que houvesse oposição dos proprietários do prédio referido em 11 – tal facto, segundo o que consta da motivação da decisão recorrida, foi dado como provado com base, “em 1ª linha, no depoimento da testemunha GG, conjugadamente valorado com o depoimento da testemunha II, ante proprietário do prédio referido em 11., que o vendeu ao autor. Assim, GG referiu que autorizou a construção do pavilhão no logradouro do seu lote (com a condição de ser demolido caso se mostrasse necessário) e que, quando o permutou, os adquirentes não se importaram com isso, afirmando que não precisavam da área ocupada pelo pavilhão. Por seu turno, II referiu que ocupou o lote nº ... desde 1998 (primeiro como inquilino, depois como proprietário), afirmando que o pavilhão já lá existia e que nunca o usou, nem ao mesmo acedeu, nunca tendo reivindicado o mesmo, nem reclamado pela ocupação do seu logradouro. Ora, conjugando os ditos depoimentos, que se revelaram espontâneos na descrição desta matéria, o tribunal convenceu-se do descrito no facto em referência, assim o dando como provado” – discordando os recorrentes da sua inclusão na matéria de facto provada.
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Começamos por dizer que a redação do artigo, nos termos em que o mesmo se apresenta – com a mera descrição da prática de atos materiais (corpus) -, desacompanhado de qualquer outro – donde se descrevam atos intencionais de propriedade (animus) -, não tem qualquer relevância jurídica, nomeadamente para efeitos possessórios, e de aquisição de direito real de propriedade por usucapião. Aliás, esta questão foi já resolvida – em termos favoráveis aos recorrentes, com a declaração da nulidade (parcial) da sentença, tendo-se considerada a parte viciada excluída da fundamentação da sentença.
Tudo isto para concluir, que também relativamente a este facto não vemos qualquer interesse na sua apreciação.
Ainda assim, auditados que foram os depoimentos prestados pelas testemunhas referidas na motivação, também ficamos com a mesma convicção da sra. Juíza, de que o referido pavilhão, desde que foi construído, em data não concretamente apurada mas nunca depois de 1995 (os tais 10 anos a que se referia a testemunha GG), sempre foi usado e explorado pelos proprietários do lote nº ..., inicialmente por FF, o seu construtor, para nele armazenar material relacionado com a bomba de gasolina que explorava na altura, e depois a ré (após a sua aquisição em processo de insolvência do referido FF), o que faziam à vista de todos, e sem que houvesse oposição de ninguém, nomeadamente dos proprietários do lote ..., inicialmente GG, irmão de FF, que autorizou a construção; depois MM, que adquiriu o prédio, por permuta, a GG, e que sempre tolerou a permanência de FF no local; e finalmente JJ (e outros) que o venderam aos AA.

Assim sendo, também por esta razão, não deve ser alterada a decisão quanto a esse facto.
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Quanto ao facto descrito em 23, só por mero lapso os Recorrentes impugnam tal matéria, porquanto, como os mesmos afirmam “não questionam a redação literal do facto provado, mas o sentido que o Tribunal a quo lhe atribui, e que vem expresso na motivação da sentença…”, concluindo, a final, “que deverá retirar-se da motivação da sentença…” o que da mesma consta.
Ora, como é por demais sabido, a impugnação da matéria de facto destina-se à alteração dos factos (provados e/ou não provados), não da motivação, que serve apenas para o tribunal que proferiu a sentença justificar/motivar a sua decisão, expondo naquela parte da sentença a sua convicção relativamente ao sentido que deu aos factos controvertidos na ação.
A redação final dos factos é a que releva, a final, para a subsunção dos mesmos às normas legais e aos institutos jurídicos aplicáveis, assim como para efeitos de impugnação de tais factos, em sede de recurso – não a motivação que lhe está subjacente.
Assim sendo, não se toma também conhecimento da matéria de facto vertida no ponto 23 (com a qual, de resto, os recorrentes estão de acordo).
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E perante a matéria de facto provada (e não provada), consideramos que a decisão recorrida não poderia ser outra que não a que foi proferida, embora com o seguinte esclarecimento:

Como bem se dissertou na sentença recorrida, estamos perante uma típica Ação de Reivindicação – o pedido de reconhecimento do direito de propriedade, com todas as consequências que daí advêm -, dispondo o art.º 1311º nº 1 do CC sobre a referida Ação, que “O proprietário pode exigir judicialmente de qualquer possuidor ou detentor da coisa o reconhecimento do seu direito de propriedade e a consequente restituição do que lhe pertence.”
Ora, a ação de reivindicação é uma verdadeira ação de defesa da propriedade, em que a causa de pedir é o facto jurídico de que deriva o direito real alegado; o direito real de gozo, violado com a posse ou a detenção do demandado.
Assim, o autor deve invocar nesta ação – e provar -, o facto jurídico aquisitivo do seu direito sobre a coisa, ou seja, o facto jurídico de que tal direito real deriva, assim como a detenção ou a posse pelo réu da coisa reivindicada, como factos constitutivos do seu direito (art.º 342º, nº 1 do C.C), a menos que beneficie de alguma presunção legal, caso em que se inverte aquele ónus da prova (art.º 344º nº 1do CC), ficando então o demandado onerado com o encargo da demonstração de que o autor não é titular do direito invocado.
Se não beneficiar de nenhuma presunção legal (derivada do registo da propriedade ou da posse), e se o demandado contestar a titularidade do direito real invocado, o demandante tem de cumprir o ónus da prova dessa titularidade (nos exatos termos em que a delineou) – conforme artºs 342º nº 1 e 1311º nº 1 do CC.
Acresce que, no que diz respeito à prova do direito real de propriedade, não basta ao demandante alegar e provar o facto aquisitivo derivado da propriedade; ele tem de fazer a reconstituição da cadeia de adquirentes anteriores até à sua aquisição originária, pois só assim demonstra que cada um dos transmitentes anteriores transmitiu ao seguinte um direito real legítimo, do qual era titular efetivo. Ou seja, o demandante tem de provar a validade dos factos translativos do direito anteriores ao seu, a fim de provar a titularidade do direito na esfera jurídica dos anteriores transmitentes. O que o leva necessariamente à aquisição originária do direito, ou à usucapião, que é, no fundo, a consolidação do direito real na titularidade de alguém, pelo decurso do tempo.
Reconhecendo-se o direito real de propriedade ao reivindicante, a restituição da coisa pode ser-lhe no entanto recusada, em determinados casos, expressamente previstos na lei (artigo 1311º, nº 2, do CC), cabendo então ao demandado invocar algum desses casos para não ser desapossado dela.
Isto posto,
No caso dos autos, alegam os autores a aquisição derivada, por compra e venda, assim como a aquisição originária, por usucapião, do prédio urbano descrito na petição, correspondente (originariamente) ao lote nº ... do Loteamento Urbano nº ...1, com a área de 423 m2, afirmando que do mesmo faz parte a parcela de terreno, com a área de 212 m2, na qual foi implantado (em parte) um pavilhão pertencente à ré, proprietária do lote nº ..., contíguo ao seu, e que se arroga também proprietária da aludida parcela.
Ora, como se disse, competia aos AA, não só a alegação, mas também a prova da titularidade do seu direito sobre a totalidade do prédio descrito (incluindo sobre a aludida parcela), e que não lograram fazer.
Efetivamente, pegando na matéria de facto provada, temos apenas como provado que o referido lote nº ... encontra-se atualmente descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o artigo ...23/..., encontrando-se inscrita a sua aquisição, por compra, a favor dos AA, pela AP. ...76 de 2019/10/21.
E que em data não concretamente apurada, mas nunca posterior a 1995, foi implantado um pavilhão em parte do lote nº ... (hoje pertencente à ré), e no logradouro do lote nº ... (prédio hoje pertencente aos AA), ocupando 212 m2 do referido lote.
O referido pavilhão encontra-se atualmente descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...19, como edifício de r/c com uma divisão para armazém, estando ainda inscrito na matriz predial urbana sob o n.º ...71. Pela AP. ...25 de 17/03/2017, encontra-se inscrita a aquisição do dito pavilhão pela ré, por compra em processo de insolvência.
Mais ficou provado nos autos que desde a data da construção, o referido pavilhão sempre foi usado e explorado pelos proprietários do prédio implantado no lote nº... (hoje pertencente à ré), à vista de todos, e sem que houvesse oposição dos proprietários do prédio implantado no lote nº ... (hoje pertencente aos AA).
E foi ainda dado como não provado, o facto alegado pelos autores – que o não impugnaram –, de que “por si e seus antecessores, usam e usavam o prédio referido em 11, na parte que está ocupada com o pavilhão referido em 16., colhendo e fruindo de todas as suas utilidades, nomeadamente limpando-o, benfeitorizando-o, desde o ano de 1986, o que sucede há mais de 10, 20 e 30 anos, de forma ininterrupta, à vista de todas as pessoas, sem a oposição de quem quer que seja, na intenção e convicção de que o mesmo lhes pertence.”
Isto dito,
A conclusão a tirar da matéria de facto provada é a de que os AA não lograram demonstrar que sejam titulares do direito de propriedade sobre a totalidade do prédio que descrevem (do qual faz parte a parcela de terreno ocupada com a construção do pavilhão, hoje pertencente à ré).
O que resulta da matéria de facto provada, é que houve efetivamente a permissão do dono do lote nº ... (GG), para que o seu irmão (FF) dono do lote nº ..., construísse em parte do seu terreno, numa área de 212 m2, um pavilhão para coadjuvar a sua atividade de venda de combustíveis (uma bomba de gasolina), sensivelmente no ano de 1995.
E que desde essa data em diante, esse pavilhão foi sendo utilizado pelos seus proprietários, à vista de toda a gente, e sem qualquer oposição dos donos do lote vizinho, ao ponto de se encontrar atualmente com total autonomia registral relativamente aos dois lotes em cujo terreno foi construído. Encontra-se tal pavilhão descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...19, como edifício de r/c com uma divisão para armazém, estando ainda inscrito na matriz predial urbana sob o n.º ...71, e pela AP. ...25 de 17/03/2017, encontra-se inscrita a aquisição do dito pavilhão pela ré, por compra em processo de insolvência (tendo a ré adquirido o pavilhão e o lote nº ..., como verbas autónomas).
É certo que se desconhece em que moldes essa utilização foi sendo feita pelos respetivos proprietários: se como meros detentores ou possuidores precários (com a tolerância do dono do lote nº ..., e sujeitos à sua demolição); se como verdadeiros possuidores, como se fossem os donos do pavilhão, e do solo onde o mesmo se encontrava implantado.
 Caberia então aos AA a prova, de que sempre se comportaram em relação ao terreno (à parcela edificada), como se nunca tivessem aberto mão dele, e não o fizeram, como resultou da matéria de facto provada.
Ora, tratando-se de facto constitutivo do seu direito (conforme art.º 1311º nº 1 do CC), era sobre os AA que recaía essa prova (art.º 342º nº 1).
Isto porque não beneficiam os AA de qualquer presunção legal a seu favor: nem da presunção derivada da posse – art.º 1268º nº 1 do CC (conforme facto dado como não provado) -, nem da presunção derivada do registo (art.º 7º do Código de Registo Predial), pois como é sabido e jurisprudencialmente pacífico, “a certidão de inscrição matricial (…) não faz prova plena quanto à constituição, confrontações, dimensão (…) do prédio, visto que tais elementos resultam, não de perceções da entidade documentadora, mas sim de informações que nesse sentido lhe são prestadas pelos próprios interessados” (Ac. RC de 28/09/2000, disponível em www.dgsi.pt.).
Concluímos assim do exposto, tal como se concluiu na sentença recorrida (mesmo não considerando a parte dela afetada), pela improcedência total da ação.
Improcedem assim (ainda que em parte) as Conclusões de recurso dos apelantes.
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IV- DECISÃO:

Por todo o exposto, Julga-se Improcedente a Apelação, e confirma-se (ainda que por fundamentos diferentes), a sentença recorrida.
Custas da Apelação pelos recorrentes (art.º 527º nº 1 e 2 do CPC).
Notifique e DN
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Sumário do Acórdão:

I- Nos termos da alínea d) do n.º 1 do artigo 615º do CPC, é nula a sentença quando o juiz conheça de questões de que não podia tomar conhecimento, sendo os poderes do juiz balizados pelo art.º 608º nº 2 do CPC, no qual se prevê que o juiz não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento ofícios de outras.
II- É nula a sentença, na parte em que o juiz tomou conhecimento da alegada prática de atos de posse por parte da ré, atos esses suscetíveis de levarem à aquisição da parcela reivindicada por usucapião, questão essa que não foi suscitada pela ré na contestação.
III- Declarada a nulidade (parcial) da sentença, deve o tribunal de recurso supri-la, retirando da sua fundamentação o segmento da decisão anulado, ou não o levando em consideração na apreciação das demais questões colocadas.
IV- Não há que conhecer da impugnação da matéria de facto, por desnecessidade, mesmo que verificados os requisitos legais para o efeito, se a alteração pedida for de todo indiferente à solução jurídica pretendida pelo recorrente por via do recurso.
V- A ação de reivindicação é uma ação de defesa da propriedade, em que a causa de pedir é o facto jurídico de que deriva o direito real alegado, cabendo ao demandante a prova desse facto, ou seja, a aquisição originária do direito de propriedade sobre o prédio reivindicado, do qual faz parte a parcela de terreno também disputada pelo demandado.
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Guimarães, 2.5.2024