Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
2/24.1GAABF-A.E1
Relator: RENATO BARROSO
Descritores: PRIMEIRO INTERROGATÓRIO JUDICIAL
GRAVAÇÃO ÁUDIO E REDUÇÃO A ESCRITO
MEDIDA DE COAÇÃO
FUNDAMENTAÇÃO
Data do Acordão: 04/23/2024
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Sumário: I - O artigo 141º, nº 7, do C. P. Penal, restringe a oralidade presente no primeiro interrogatório judicial de arguido detido ao interrogatório do arguido.
II - Da conjugação do disposto nos artigos 96º, nº 4, e 141º, nº 7, do C. P. Penal, decorre que o juiz de instrução que realiza tal diligência processual não pode deixar de verter em auto o ato oral decisório (o despacho que aplica ao arguido a medida de coação).
III - Um despacho de primeiro interrogatório judicial que não menciona qual a factualidade que se mostra indiciada e porque é que está indiciada, carecendo de fundamentação (de facto e de direito) sobre a aplicação de medidas coativas ao arguido, reconduz-se a uma decisão que contém o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, previsto no artigo 410º, nº 2, al. a), do C. P. Penal.
IV - A verificação do referido vício determina o reenvio do processo à primeira instância, para que o mesmo Juiz supra o apontado vício.
Decisão Texto Integral:

ACORDAM OS JUÍZES, EM CONFERÊNCIA, NA SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA


1. RELATÓRIO


A – Decisão Recorrida

No Proc. 2/24.1GAABF, que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Faro, Juízo Local Criminal de Albufeira, Juiz 2, foram os arguidos A, B e C submetidos a interrogatório judicial a solicitação do MP porquanto, no seu entendimento, existiam fortes indícios da prática, por cada arguido, em co-autoria material e concurso real, de dois crimes de furto qualificado, na forma consumada, p.p., pelos Artsº 203 nº1 e 204 nsº1 al. h) e 2 al. g), ambos do C. Penal.

Realizado o interrogatório, o Mmº Juiz a quo proferiu despacho, constando do respectivo auto o seguinte (transcrição):

Seguidamente, o Mm.° Juiz de Instrução proferiu Despacho, tendo o mesmo ficado gravado no sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso neste Tribunal, consignando-se que o seu início ocorreu pelas 16 horas e 34 minutos e o seu termo pelas 16 horas e 37 minutos. Do teor do douto despacho consigna-se o dispositivo:
Decisão.
Pelo exposto, ficarão os arguidos sujeitos às obrigações decorrentes do TIR

B – Recurso

Inconformado com o assim decidido, recorreu o MP, apresentando as seguintes conclusões (transcrição):

1) O Ministério Público apresentou os arguidos a primeiro interrogatório judicial de arguido detido por considerar que se encontram fortemente indiciados factos suscetíveis de configurar a prática de dois crimes de furto qualificado, na forma consumada, previsto e punido pelos artigos 204.°, n.° 1, al. h), e n.° 2, al. g) e artigo 203.°, n.° 1, do Código Penal.
2) O Tribunal a quo apenas considerou como indiciada a factualidade respeitante à prática destes crimes na sua forma simples e decidiu que os arguidos deveriam ficar sujeitos apenas à medida de coação de termo de identidade e residência, tendo proferido o seu despacho de forma oral, consignando em acta apenas o dispositivo.
3) Neste tipo de despachos existe a obrigatoriedade da redução a escrito, a qual abrange todas as decisões onde são aplicadas medidas de coação, ou decidido manter a medida de coação já aplicada, como foi o caso nos presentes autos.
4) Analisado o despacho oral constante no citius, retemos que o tribunal recorrido pouco ou nada fundamentou a sua decisão de apenas manter a aplicação do termo de identidade e residência.
5) Ao decidir por não reduzir a escrito o despacho proferido em sede de primeiro interrogatório judicial de arguido detido, o tribunal a quo violou o disposto no artigo 97.°, n.° 4 e 5, do Código de Processo Penal.
6) Numa interpretação conforme a tais disposições legais, o tribunal a quo tinha o dever de proferir despacho por escrito no qual deveria indicar (a) quais os factos que considera indiciados e não indiciados, (b) relativamente aos factos indiciados qual o grau de indiciação, (c) quais as provas que fundamentam a sua convicção, (d) qual a qualificação jurídica dos factos e quais os fundamentos para que seja essa qualificação e não outra, (e) quais os perigos que se verificam e porquê e (f) quais as medidas de coação que deverão ser aplicadas de forma a colocar termo (ou pelo menos atenuar) os perigos existentes e porquê.
7) Por outro lado, nos presentes autos, em concreto, verifica-se a existência dos perigos de continuação da actividade criminosa e de perturbação da ordem e tranquilidade públicas.
8) Devido à intensidade dos perigos existentes, os arguidos não podem ficar apenas sujeitos à medida de coação de termo de identidade e residência.
9) Ao sujeitar os arguidos apenas a esta medida de coação, o Tribunal recorrido violou o disposto nos artigos 191.°, n.° 1, 192.°, 193.°, 198.°, n.° 1 e 2, e 204.°, todos do Código de Processo Penal.
10) De acordo com os factos fortemente indiciados e diante os perigos existentes, numa interpretação conforme a tais disposições legais, os arguidos deverão ser sujeitos às medidas de coação de obrigação de apresentações periódicas junto do Posto da PSP da área de residência dos arguidos, com uma periodicidade de 3 vezes por semana.
11) Assim, em suma, deverá o presente recurso ser julgado procedente, com a consequente anulação da decisão recorrida, determinando-se o reenvio do processo à primeira instância para que seja proferida nova decisão, com vista a que o vício da falta de fundamentação seja sanado ou, caso assim não se entenda, deverá o presente recurso ser julgado procedente, com a consequente revogação do despacho recorrido, determinando-se, em consequência, sejam os arguidos sujeitos às medidas de coação de obrigação de apresentações periódicas junto do Posto da PSP da área de residência dos arguidos, com uma periodicidade de três vezes por semana.

C – Resposta ao Recurso

Inexistem respostas ao recurso.

D – Tramitação subsequente

Recebidos os autos nesta Relação, foram os mesmos com vista à Exª Procuradora-Geral Adjunta, que se limitou a deixar o seu visto nos autos.
Efectuado o exame preliminar, determinou-se que o recurso fosse julgado em conferência.
Colhidos os vistos legais e tendo o processo ido à conferência, cumpre apreciar e decidir.


2. FUNDAMENTAÇÃO

A – Objecto do recurso

De acordo com o disposto no Artº 412 do CPP e com a Jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19/10/95, publicado no D.R. I-A de 28/12/95 (neste sentido, que constitui jurisprudência dominante, podem consultar-se, entre outros, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 12 de Setembro de 2007, proferido no processo n.º 07P2583, acessível em HYPERLINK "http://www.dgsi.pt/" HYPERLINK "http://www.dgsi.pt/"www.dgsi.pt, que se indica pela exposição da evolução legislativa, doutrinária e jurisprudencial nesta matéria), o objecto do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, que aqui e pela própria natureza do recurso, não têm aplicação.
Assim sendo, são duas as questões suscitadas pelo recorrente:

1) Nulidade do despacho recorrido
2) Alteração das medidas de coacção

B – Apreciação
Apreciando da bondade do recurso

B.1. Nulidade do despacho recorrido

Alega o recorrente que o Mmº Juiz a quo, ao decidir por não reduzir a escrito o despacho proferido em sede de primeiro interrogatório judicial de arguido detido, violou o disposto no Artº 97 nºs 4 e 5 do CPP.
Não desconhecendo alguma divisão jurisprudencial no tratamento desta questão, entende-se que o acerto da solução se encontra no Acórdão da Relação de Lisboa, proferido no Proc. 887/21.3SGLSB-A.L1-3, de 16/03/22 (disponível em www.dgsi.pt), e que, com devida vénia, aqui transcrevemos:
“A primeira questão com que nos deparamos é a de se é aceitável que um despacho que determina a imposição de medidas de coacção se mostre registado apenas em ficheiro áudio ou se, ao invés, necessita de ser reduzido a escrito.
A redução a escrito de um acto tem uma razão clara e objectiva. O suporte papel confere uma maior segurança ao acto. Confere a segurança de uma ponderação no conteúdo (por via de regra o que fica escrito é mais ponderado), confere a certeza de que o que se quis dizer está incorporado na escrita e no papel, confere a segurança de que a perda do documento é mais difícil do que num suporte digital (amiúde mais efémero que o suporte papel).
Embora alguma jurisprudência, designadamente os Ac. desta Relação de 10-02-2011 (proc. 73/10.8SXLSB-A.L1-9) e de 30-03-2011 (proc. nº167/10.0SHLSB-A.L1-3), todos acessíveis em www.dgsi.pt , hajam sustentado a obrigatoriedade da redução a escrito das declarações do arguido em primeiro interrogatório, sob pena de nulidade, designadamente a do artº 120º nº 2 al. d) do C.P.P., propendemos para aceitar que as declarações do arguido sejam alvo de registo áudio não tendo de ser transcritas.
Para tal estribamo-nos no disposto no artº 147º nº 7 do C.P.P. que dispõe que “O interrogatório do arguido é efectuado, em regra, através de registo áudio ou audiovisual, só podendo ser utilizados outros meios, designadamente estenográficos ou estenotípicos, ou qualquer outro meio técnico idóneo a assegurar a reprodução integral daquelas, ou a documentação através de auto, quando aqueles meios não estiverem disponíveis, o que deverá ficar a constar do auto”.

Acontece que o preceito é claro ao mencionar interrogatório e apenas o interrogatório. Percebe-se que assim seja. Num mundo massificado, a tarefa morosa de reduzir a escrito as declarações do arguido não se compagina com a necessidade de celeridade e com a dinâmica de pergunta-resposta que caracteriza um interrogatório.
Mas tal é válido apenas e só para o interrogatório, isto é, para o segmento em que existe o acto de confrontar o arguido com os factos, de conhecer a sua personalidade e suas motivações.
O acto de decidir, de afirmar a indiciação dos factos, de referir os fundamentos da medida de coacção e de, por fim, escolher qual a medida aplicável tem de ser reduzido a escrito e não está contemplado no supra citado nº 7.

Na verdade, em sede de interrogatório judicial não existe norma equivalente à do artº 389º-A do C.P.P. que refere que a sentença é proferida oralmente para a acta, só não o sendo nos casos em que é aplicável uma pena privativa da liberdade ou em casos em que as circunstâncias o reputem como necessário.
É, pois, bom de ver que a regra é a redução a escrito dos actos sendo a oralidade a excepção no que respeita a actos decisórios.
Aliás, se a condenação em processo sumário em pena de prisão implica a redução a escrito de um acto que, por regra, é oral, por identidade de razão se dirá que um despacho que ordena medida cautelar privativa de liberdade terá de ser igualmente reduzido a escrito.
Mas a verdade, é que a obrigatoriedade da redução a escrito abrange não só a prisão preventiva (como é o caso) mas todas as medidas de coacção pois que o despacho que as determina não pode ser oral (artº 141º nº 7 do C.P.P. a contrario).
Ademais, dispõe o artº 99º do C.P.P. que o “auto é o instrumento destinado a fazer fé quanto aos termos em que se desenrolaram os actos processuais a cuja documentação a lei obrigar e aos quais tiver assistido quem o redige, bem como a recolher as declarações, requerimentos, promoções e actos decisórios orais que tiverem ocorrido perante aquele”.
Ora, o artº 96º nº 4 do C.P.P. é claro e cristalino: “Os despachos e sentenças proferidos oralmente são consignados no auto.”
No caso destes autos o que foi consignado no auto foi o que acima se transcreveu e o que acima se transcreveu não constitui base para a prisão de quem quer que seja.
Na verdade, não se diz qual a factualidade que se mostra indiciada, porque é que está indiciada, não se refere qual a factualidade que sustenta o perigo que se invoca e nem sequer se faz uma análise de quais as medidas de coacção aplicáveis de molde a excluir todas menos aquela que se escolheu.
O Tribunal a quo não pode, sem mais, deixar consignado numa decisão que leva alguém ao cárcere uma mão cheia de nada e não pode, de igual sorte, não verter em auto o acto oral decisório do juiz.
A conduta do Tribunal reconduz-se ao vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, previsto no art. 410.º, n.º 2, alínea a), do Código de Processo Penal.
Este vício consiste numa carência de factos que suportem uma decisão de direito dentro do quadro das soluções plausíveis da causa, conduzindo à impossibilidade de ser proferida uma decisão segura de direito, sobre a mesma. No fundo, é algo que falta para uma decisão de direito, seja a proferida efectivamente, seja outra, em sentido diferente, que se entenda ser a adequada ao âmbito da causa (neste sentido Ac. desta Secção de 18.09.2019, subscrito pelos mesmos aqui Desembargadores e de 18.07.2013 relatado pelo Desembargador Rui Gonçalves no NUIPC 1/05.2JFLSB.L1-3 ambos acessíveis em www.dgsi.pt).
A verificação do vício determina nos termos do disposto no artº 426º do C.P.P., o reenvio do processo à 1ª instância para que a mesma Sr.ª Juíza supra o apontado vícios, a saber refira quais os factos indiciados, fundamente tal afirmação, refira qual a imputação feita aos arguidos, quais os perigos que entende existirem e quais as medidas de coacção que entende correctas e adequadas e porquê.”
Crê-se que os fundamentos transcritos se aplicam, por inteiro, à situação dos autos, apesar de ali se tratar de um caso em que se aplicou a medida de coacção de prisão preventiva e aqui se ficou pela aplicação do mero TIR, diferença que, contudo, não afasta a aplicação daquela jurisprudência, na medida em que o vício é o mesmo, ou seja, a violação do estatuído nos Artsº 96 nº4 e 97 nsº4 e 5, ambos do CPP, traduzida no facto de estarmos na presença de um despacho proferido oralmente, que aplicou uma medida de coacção, e que não foi consignado nos seus exactos termos como facilmente se constata do seu registo áudio constante do sistema Citius.
Se entendermos, como é o caso, que existe a obrigatoriedade da redução a escrito de todas as decisões onde são aplicadas medidas de coação, ou decidido manter a medida de coação já aplicada, então nenhuma dúvida pode existir quanto à aplicação da jurisprudência supra citada.
Daí que seja imperativo que a decisão em causa descreva a factualidade considerada indiciada, o grau dessa indiciação, os meios de prova que a sustentam, as razões cautelares que se desenham, e a medida de coacção que, face a estes, se configura como adequada e proporcional ao caso concreto.
Ouvido o despacho recorrido, é o mesmo algo confuso na definição da factualidade indiciariamente apurada, bem como, na qualificação jurídica formulada, sendo que no mais e com o devido respeito, se perde em considerações laterais sobre a actuação do MP - o Ministério Público, mais uma vez, decide, entendeu que era engraçado remeter os autos para primeiro interrogatório, isto, por exemplo, depois de termos feito um crime de violação, fazemos agora um interrogatório de dois furtos simples, isto, o tribunal, apenas para referir que deve haver critério ao remeter para o Juízo de Instrução Criminal os processos, uma vez que a aplicação de medidas de coação é bastante relevante e não pode de todo ser banalizada. E assim, uma vez que este tribunal não aplica medidas de coação só porque parece bem ou só porque o Ministério Público pediu, entendemos que não há qualquer necessidade de aplicar medidas de coação a este processo - mas que nada esclarecem sobre a fundamentação, de facto e de direito, sobre a aplicação das medidas coactivas aos arguidos.
Assim sendo, como bem se disse no acórdão, citado, verifica-se uma carência de factos que suportem uma decisão de direito dentro do quadro das soluções plausíveis da causa, conduzindo à impossibilidade de ser proferida uma decisão segura, de direito, sobre a mesma, o que se reconduz ao vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, previsto no Artº 410 nº2 al. a) do CPP, o que implica, nos termos do estatuído no Artº 426 do mesmo diploma legal, o reenvio do processo à 1ª instância para que o mesmo Mmº Juiz a quo supra esse vício, dando cumprimento ao disposto no Artº 97 nº4 do CPP.
Procede, pois, o recurso, neste segmento, ficando por isso prejudicado o conhecimento do demais por si suscitado.


3. DECISÃO

Nestes termos, decide-se conceder provimento ao recurso e em consequência, anula-se o despacho recorrido e determina-se o reenvio do processo à 1ª instância a fim de ser proferida nova decisão, por escrito, pelo mesmo Juiz, e que supra o apontado vício, referindo os factos indiciados, fundamente essa indiciação, explique a imputação jurídico-criminal, quais os perigos que entende existirem, e justifique as medidas de coacção que considera correctas e adequadas para a situação em causa.
Sem custas.
xxx
Consigna-se, nos termos e para os efeitos do disposto no Artº 94 nº2 do CPP, que o presente acórdão foi elaborado pelo relator e integralmente revisto pelos signatários.

Évora, 23 de abril de 2024
Renato Barroso
Maria Gomes Perquilhas (com voto de vencida)
Fernando Pina

VOTO DE VENCIDA:
Voto vencida o presente Acórdão, pelas razões que exponho de seguida.
Está em causa a falta de consignação no auto, da decisão que aplicou a medida de coação imposta aos arguidos, defendendo o MP que o tribunal a quo violou o disposto no artigo 97.°, n.° 4 e 5, do Código de Processo Penal, sem contudo invocar qualquer nulidade quanto à inobservância de forma, antes atacando o despacho quanto ao seu conteúdo – mérito.
Considerou-se neste acórdão que se mostra verificado o vício decisório previsto no art.º 410.º, n.º 2, al. a) do CPP, solução que não subscrevemos pelas razões que se avançam de seguida.
Não está em causa a necessidade e regra da redução a escrito do despacho que aplica medida de coação, o qual deve constar do auto, aderindo por isso a tudo quanto sobre este aspeto consta no acórdão de que o presente faz parte integrante, apenas não concordamos com a sanção para tal falta constitua nulidade.
O CPP pune com a sanção de nulidade a falta de fundamentação do despacho que aplica as medidas de coação que não o TIR, no art.º 194.º, n.º 6. Mas esta norma não tem aplicação à forma do despacho; respeita apenas à sua estrutura e conteúdo.
Por força do disposto no art.º 96.º, n.º 4 do CPP os despachos e sentenças proferidos oralmente são consignados no auto. Desta norma conclui-se desde já e sem qualquer dúvida que os despachos proferidos em diligência prevista na lei, onde intervenha o tribunal e os demais sujeitos processuais, são orais, mas devem ser consignados no auto (comummente designado de acta).
O art.º 94.º enuncia como devem ser redigidos e o que devem conter os actos que devam ser reduzidos a escrito.
A forma dos atos decisórios mostra-se regulada no art.º 97.º, assumindo os judiciais a forma de sentença ou despacho, aí se prevendo de forma expressa que tais actos decisórios revestem os requisitos formais dos actos escritos ou orais, consoante o caso (n.º 4).
Tendo o despacho em causa nos presentes autos de recurso sido proferido em primeiro interrogatório, são-lhe aplicáveis as regras expressamente previstas para tal acto, isto é nos art.ºs 141.º, 101.º, por força do 141.º, n.º 9, e o 99.º, todos do CPP.
O art.º 101.º, n.º 4.º do CPP prevê que sempre que for utilizado registo áudio ou audiovisual não há lugar a transcrição e o funcionário, sem prejuízo do disposto relativamente ao segredo de justiça, entrega, no prazo máximo de 48 horas, uma cópia a qualquer sujeito processual que a requeira, bem como, em caso de recurso, procede ao envio de cópia ao tribunal superior.
Uma leitura literal deste último preceito tem levado a primeira instância a concluir que estando o despacho que aplica as medidas de coação gravado no sistema, que neste momento apenas procede a registo áudio, não existe obrigatoriedade da sua redução a escrito.
Contudo, esta interpretação peca por não ter em conta o que se dispõe no já supra citado art.º 141.º, norma especificamente prevista e aplicável ao acto do primeiro interrogatório de arguido, e do qual resulta sibilino que a gravação apenas se impõe às declarações do arguido e não já ao despacho (n.º 7). Existe uma relação de especialidade entre a norma do art.º 101.º, n.º 4 e o art.º 141.º, n.º 7. Assim, o despacho que aplica medidas de coação em primeiro interrogatório judicial deve constar do respetivo auto, isto é, deve ser reduzido a escrito, não bastando a sua gravação com as exigências de forma prescritas no CPP.
No caso o despacho foi proferido oralmente, não se mostrando consignado no auto, situação que foi já objeto de decisão dos nossos Tribunais da Relação, quer no sentido vertido no presente Acórdão de que é exemplo o que ali é seguido, quer no sentido da inexistência de qualquer nulidade ou vício de decisório, entendimento este que merece a minha inteira concordância. Vão neste sentido os Acórdãos da RL, de 07/02/2023 (relatora: Isilda Pinho; em www.dgsi.pt,este Acórdão está identificado com a data de 07/02/2022, o que constitui um lapso) e de 09/03/2023 (relatora: Paula Penha) e no Ac. RP, de 24/11/2021 (relator: Paulo Costa), todos em www.dgsi.pt , e bem assim o Ac. igualmente da RL de 11-01-2024, proc. 511/23.0S6LSB-A.L1-9, Relator Nuno Matos, que igualmente cita e identifica os acórdãos referidos e em itálico.
O vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada constitui, em nosso entender um vício material que afeta o despacho, sentença ou acórdão, que a jurisprudência e a doutrina qualificam, a par dos restantes dois previstos nesse n.º 2 do art.º 410.º, de vício decisório, porque afeta a decisão. No caso encontramo-nos apenas perante um vício de forma – o despacho tem que ser consignado no auto, reduzido a escrito, ou basta-se com a forma oral gravado em áudio. Na verdade, não estamos a analisar se os factos que foram considerados indiciados são ou não suficientes para a decisão jurídica encontrada/medida de coação aplicada (insuficiência de factos para a decisão). Estamos apenas a analisar e decidir se esse despacho, independentemente do seu conteúdo (quanto a este aplica-se o disposto no art.º 194.º, n.º 6 do CPP), deve ou não ser reduzido a escrito e se sim, qual a consequência de tal omissão.
Ora, quanto à necessidade de consignação no auto do primeiro interrogatório do despacho determinativo das medidas de coação não temos dúvida em afirmar que o nosso CPP assim aponta, pelas razões já expostas, pelo que deveria ter sido ditado para o auto, deste fazendo parte integrante.
Como não foi observada tal forma, vejamos agora a consequência.
O nosso CPP consagrou o regime da taxatividade das nulidades processuais como de forma expressa fez constar no art.º 118.º, n.º 1 a violação ou a inobservância das disposições da lei do processo penal só determina a nulidade do acto quando esta for expressamente cominada na lei.
A falta de redução a escrito do despacho determinativo das medidas de coação proferido oralmente não se mostra abrangido pelas normas que prevêem e indicam as faltas que constituem nulidades, principais ou secundárias, art.ºs 119.º e 120.º do CPP, sendo certo ainda que tal consequência não se encontra prevista em qualquer outra norma, nem se mostra abrangida pela previsão do art.º 194.º, n.º 6 já acima referido. Assim, esta falta apenas constitui uma irregularidade sujeita, por isso, ao regime previsto no art.º 123.º do mesmo CPP, a qual está sujeita, porque menos grave, a um regime de arguição diferente do consagrado para as nulidades dependentes de arguição ou sanáveis, mostrando-se a mesma totalmente sanada porque o MP e o arguido, pessoalmente e representado por defensor estavam presentes no acto nada tendo arguido, sendo certo ainda que à data da entrada em juízo do recurso já havia decorrido o prazo de 3 dias fixado no citado art.º 123.º para que a mesma pudesse ser suscitada – o que no caso, repita-se não poderia pois estava sanada atenta a falta de arguição no decurso do acto.
Termos em que voto vencida a decisão tomada.

Maria Gomes Perquilhas