Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1798/22.0T8BRR-B.L1-1
Relator: MANUELA ESPADANEIRA LOPES
Descritores: INSOLVÊNCIA CULPOSA
PRESUNÇÃO JURIS ET DE JURE
EMPRÉSTIMO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/07/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I- O apuramento de factualidade integradora do previsto nas alíneas a) e d) do nº2 do artigo 186º do CIRE consubstancia presunção inilidível ou presunção jure et de jure, da qualificação da insolvência como culposa, sem necessidade de prova do nexo de causalidade entre o facto e a insolvência ou o seu agravamento.
II- Naturalmente que tal presunção não determina que o afectado fique impedido de alegar e provar que não se verificaram os factos que a lei, pela sua gravidade, ali associa à existência de uma insolvência culposa, estando dessa forma garantido o direito previsto constitucionalmente a um processo equitativo.
III- Considera-se sempre culposa a insolvência do devedor quando este, pessoa singular, ou os respectivos administradores, em caso de pessoa colectiva, tenham, entre outras circunstâncias previstas na alínea a) do nº 2 do artº 186º supra referido, feito desaparecer, no todo ou em parte considerável, o património do devedor.
IV- Tendo ficado demonstrado que quatro dias antes da apresentação à insolvência a devedora contraiu um empréstimo no valor de € 15.000,00 e declarada que foi a insolvência, a insolvente não entregou qualquer quantia para apreensão, nem informou o Sr. Administrador da Insolvência da existência de saldo bancário passível de ser apreendido, não se pode deixar de concluir que aquela subtraiu a quantia em causa à possibilidade de ser apreendida e ingressar na disponibilidade fáctica do aludido Administrador, enquadrando-se a conduta em causa no disposto na supra referida alínea a) do nº 2 do artº 186º do CIRE.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam as Juízas na Secção do Comércio do Tribunal da Relação de Lisboa:
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I - Relatório
C…, residente …, apresentou-se à insolvência em 19.07.2022 e deduziu pedido de exoneração do passivo restante.
Por sentença proferida em 08.08.2022, transitada em julgado, a mesma foi declarada insolvente.
O Ministério Público requereu a abertura do incidente de qualificação da insolvência como culposa, invocando, em síntese, que o veículo com a matrícula … sobre o qual incidem créditos garantidos relativos a taxas de portagem, custos administrativos e encargos) foi propriedade da insolvente até 14-9-2022, tendo a propriedade sido transferida para R…, actual proprietário da viatura. De igual modo, o veículo com a matrícula … (sobre o qual também incidem créditos garantidos relativos a IUC, taxas de portagem, custos administrativos e encargos) foi propriedade da insolvente até 20-7-2022, tendo a respectiva titularidade sido transferida para R…, seu actual proprietário. A insolvente celebrou contrato de empréstimo junto da Cofidis, no valor de 15.000,00€, no dia 13-7-2022, ou seja, quatro dias antes de dar entrada o processo de insolvência que ocorreu em 19-7-2022 e não entregou qualquer quantia ao Administrador da Insolvência.
Alegou ainda que no âmbito do processo de insolvência foram reconhecidos créditos no montante global de 30.265.49€, correspondentes a dívidas tributárias, bem como dívidas relativas a crédito ao consumo e concluiu que se consideram verificados os requisitos a que se referem as alíneas a), b), d) e g) do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE.
Tendo tido conhecimento da dedução do incidente, a insolvente veio desde logo apresentar requerimento, sustentando que os veículos não tinham qualquer valor comercial e que, não obstante a venda só agora se tivesse formalizado, os mesmos já há muito tinham sido transmitidos a terceiros. O crédito já tinha sido pedido em momento anterior e serviu, não para enriquecer a insolvente, mas antes para pagar dívidas.
Em 07/07/2023 foi proferido despacho declarando aberto o incidente, com carácter limitado, com fundamento no facto de o processo de insolvência ter sido encerrado por insuficiência de bens.
O Administrador da Insolvência emitiu parecer no sentido de a insolvência dever ser qualificada como culposa nos termos do disposto no artº 186º, nº2, alínea a), do CIRE, com fundamento na circunstância de a devedora ter celebrado em 13/07/2022 - seis dias antes da instauração da acção de insolvência - contrato de crédito pessoal com a Cofidis no valor de 15.000,00 € e não ter entregue qualquer quantia para apreensão, nem ter informado o AI da existência de saldo bancário passível de ser apreendido. Diz que a insolvente ocultou ou fez desaparecer tal património em 6 dias. Quanto aos dois veículos, sustentou que, não obstante a mesma os ter transmitido nos dias 05 de Agosto de 2022 e 20 de Julho de 2022, respectivamente, tratando-se de viaturas dos anos de 1995 e 2008, ou seja, de baixo valor comercial, o valor de venda seria residual, pelo que não considera que tal transmissão tenha agravado a situação de insolvência.
Notificada, a insolvente veio dizer que vendeu os veículos para fazer face às despesas correntes da sua vida, não tendo intenção de sonegar bens.
Concluiu que a insolvência deve ser qualificada como fortuita.
Foi dispensada a realização da audiência prévia, foi proferido despacho saneador, fixado o objecto do litígio, enumerados os factos assentes e enunciados os temas de prova.
Procedeu-se a audiência final e foi proferida sentença que qualificou a insolvência como culposa e:
1) Qualificou a insolvência como culposa, sendo afectada com a qualificação a insolvente C…;
2) Decretou a sua inibição para administrar patrimónios de terceiros e para o exercício do comércio e para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa, pelo período de três anos;
3) Determinou a perda de quaisquer créditos sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente detidos pela mesma, devendo esta restituir os bens ou direitos eventualmente recebidos em pagamento desses créditos;
4) Condenou C… a indemnizar os credores da Insolvente até ao montante máximo dos seus créditos não satisfeitos, atento o montante reconhecido na sentença de graduação de créditos.
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Desta sentença foi interposto recurso pela requerida/afectada, apresentando as seguintes CONCLUSÕES:
1. A sentença recorrida viola os princípios do CIRE.
2. Pois não existe qualquer dolo, ou lesão dos interesses dos credores.
3. O prejuízo que eventualmente que os credores poderiam ter sofrido consiste na desvantagem económica diversa do simples vencimento de juros, que não são a consequência normal do incumprimento.
4. O prejuízo a que se refere o art. 238º, nº 1, alinea d), deverá corresponder a um prejuízo concreto que, nas concretas circunstâncias do caso, tenha sido efectivamente sofrido pelos credores consequência do atraso à apresentação à insolvência.
5. Cabia aos credores o dever de virem reclamar tais prejuízos, o que não aconteceu.
6. A recorrente estava e sempre esteve de boa-fé.
7. Não sonegou bens, nem os factos, o que poderia fazer caso estive a actuar de má-fe ou de forma dolosa.
8. Tanto mais que nenhum credor foi prejudicado.
Terminou peticionando que o recurso seja julgado procedente e revogada a sentença recorrida.
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O Ministério Público apresentou resposta ao recurso, formulando as seguintes CONCLUSÕES:
1- Resulta da douta sentença recorrida que, em consonância com a prova produzida nos autos, os factos apurados são susceptíveis de integrar a previsão da alínea a) do n.º 2 do artigo 186.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
2- Na verdade, a ora recorrente, quando celebrou o contrato de empréstimo junto da Cofidis, quatro dias antes de se apresentar à insolvência, sabia, por um lado, que não tinha qualquer possibilidade de efectuar o respectivo pagamento e, por outro, que tal montante nunca iria ser entregue ao Senhor Administrador de Insolvência como bem apreendido no âmbito do processo de insolvência.
3- Tendo a ora recorrente declarado, em sede de audiência final, que celebrou o referido contrato para proceder ao pagamento, a indivíduo que não identificou, de dívida
no montante de 15.000,00€, tal é suficiente para imputar à recorrente a previsão da al. a) do n.º 2 do art. 186.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
4- Por outro lado, a recorrente requereu, na petição inicial que deu início ao processo de insolvência, a concessão da exoneração do passivo restante, o que ainda não
foi decidido, conforme resulta do douto despacho proferido a 7-7-2023 do processo principal.
5- A referida concessão, a ocorrer, importaria, caso não houvesse cessão de rendimentos, a extinção dos créditos sobre a insolvência que ainda subsistissem à data da concessão, o que porventura abrangeria o crédito resultante da celebração do contrato de empréstimo com a Cofidis.
6- Face à prova produzida e devidamente fundamentada, o Tribunal a quo fixou, de forma rigorosa, os factos provados e elencou de forma pertinente o direito aplicável.
7- Tendo o Tribunal a quo efectuado o correcto enquadramento fáctico-jurídico e não tendo sido violada qualquer norma jurídica, não merece reparo a qualificação como culposa da insolvência de C…, nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 186.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, abrangendo tal qualificação C…
Terminou peticionando que não seja concedido provimento ao recurso e que seja mantida a sentença recorrida.
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A Mmª Juíza a quo proferiu despacho admitindo o recurso, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito devolutivo.
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Foram colhidos os vistos dos Exmºs Adjuntos.
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II – Questões a decidir:
É entendimento uniforme que é pelas conclusões das alegações do recurso que se define o seu objecto e se delimita o âmbito de intervenção do tribunal ad quem (artigo 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do Código de Processo Civil), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigo 608º, nº 2, ex vi do artigo 663º, nº 2, do mesmo Código). Acresce que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido.
Assim, em face das conclusões apresentadas pela recorrente importa analisar e decidir se se encontram verificados os pressupostos considerados na sentença recorrida para qualificação da insolvência como culposa e para a afectação da ora apelante.
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III - Fundamentação
A) Na sentença sob recurso foi considerada como provada a seguinte factualidade:
1. O veículo com a matrícula … (sobre o qual incidem créditos garantidos relativos a taxas de portagem, custos administrativos e encargos) foi propriedade da insolvente até 14-9-2022, tendo a respectiva titularidade sido transferida para R…
2. O veículo com a matrícula … (sobre o qual incidem créditos garantidos relativos a IUC, taxas de portagem, custos administrativos e encargos) foi propriedade da
insolvente até 20-7-2022, tendo a respectiva titularidade sido transferida para R…
3. Trata-se de viaturas dos anos de 1995 e 2008, portanto, com 28 e 15 anos de antiguidade, das marcas Seat e Volkswagen, ou seja, de baixo valor comercial.
4. A Insolvente vendeu os veículos para fazer face as despesas correntes da sua vida e não para sonegar bens.
5. A insolvente celebrou contrato de empréstimo junto da Cofidis, no valor de 15.000,00€, no dia 13-7-2022, ou seja, quatro dias antes de dar entrada o processo de insolvência que ocorreu em 19-7-2022.
6. Não tendo sido entregue qualquer quantia para apreensão, tampouco tendo sido o o(a) Sr.(a) Administrador(a) da Insolvência informado da existência de saldo bancário passível de apreensão.
7. No âmbito do processo de insolvência foram reconhecidos créditos no montante global de 30.265.49€, correspondentes a dívidas tributárias, bem como dívidas relativas a crédito ao consumo.
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B) Verificação dos pressupostos de qualificação da insolvência como culposa
Conforme consta da sentença ora sob recurso, entendeu o tribunal a quo que, face aos factos provados, se encontra preenchido o disposto no artº 186º, nº2, alínea a), do CIRE e que assim não se pode deixar de concluir que a insolvência é culposa.
O artigo 185º indica claramente a finalidade do incidente de qualificação da insolvência: averiguar as razões que conduziram à situação de insolvência para qualificá--la numa das categorias tipificadas na lei.
Desta forma, a insolvência pode ser culposa ou fortuita.
Estabelece o artigo 186.º, n.º 1, do CIRE, que: “A insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.”
São, assim, requisitos da insolvência culposa:
1) o facto inerente à actuação, por acção ou omissão, do devedor ou dos seus administradores, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência;
2) a culpa qualificada (dolo ou culpa grave);
3) e o nexo causal entre aquela actuação e a criação ou o agravamento da situação de insolvência.
Por sua vez, estabelece o n.º 2 deste artigo – aplicável, tal como o n.º 3, por força do n.º 4, a pessoas singulares, com as necessárias adaptações e onde a isso não se opuser a diversidade de situações - que se considera sempre culposa a insolvência do devedor quando os seus administradores tenham incorrido em algum dos comportamentos elencados nas suas diversas alíneas.
Como referem Luís Carvalho Fernandes e João Labareda, in Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 3ª edição, Quid Juris – Sociedade Editora, 2015, pág. 680, o legislador veio estabelecer no nº 2 do mesmo artigo uma presunção inilidível que complementa a noção geral fixada no nº 1. O nº 3, mediante uma presunção ilidível, dá por verificada a existência de culpa grave quando ocorram determinadas circunstâncias ali previstas.
Continuam os mesmos autores que: “Segundo o nº1, a insolvência culposa implica sempre uma atuação dolosa ou com culpa grave do devedor ou dos seus administradores, de direito ou de facto, determinados, estes, nos termos do artº 6º. Essa atuação deve ter criado ou agravado a situação de insolvência em que o devedor se encontra.
Uma vez que o preceito nada dispõe, em particular, nessa matéria, as noções de dolo e de culpa grave devem ser entendidas nos termos gerais de Direito”.
A qualificação impõe que tenha ocorrido (pelo menos) uma conduta do devedor ou dos seus administradores de facto ou de direito, no caso de se estar perante uma pessoa colectiva, na asserção do disposto no art.º 6º do CIRE que: 
- tenha criado ou agravado a situação de insolvência; 
- tal conduta seja dolosa ou com culpa grave, excluindo-se, assim, a culpa simples – neste sentido v.g., entre outros, Manuel Carneiro da Frada in “A responsabilidade dos administradores na insolvência”, ROA, Ano 66, Set. 2006, pág. 689;  
- tenha ocorrido nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência, ou seja, nos três anos anteriores ao dia da entrada do requerimento inicial do processo de insolvência na secretaria do tribunal, relevando, para além desse prazo, todos os actos praticados entre aquele dia e a data de declaração de insolvência, nos termos previstos no art.º 4º, n.º 2, do CIRE.
A doutrina e a jurisprudência têm-se questionado sobre o alcance das presunções previstas nos nºs 2 e 3 do referido artigo 186º, nomeadamente, no que concerne a saber se é de presumir também o nexo de causalidade entre a conduta legalmente tipificada e a criação ou agravamento da situação de insolvência.
Relativamente às presunções previstas no n°2, tem sido entendimento maioritário que se tratam de presunções quer da existência de culpa grave, quer do nexo de causalidade.
Refere-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 6/10/2011, P.46/07.8TBSVC-O.L1.S1, in www.dgsi.pt:
«1. A insolvência culposa implica sempre uma actuação dolosa ou com culpa grave do devedor ou dos seus administradores, a qual deve ter criado ou agravado a situação de insolvência em que o devedor se encontra.
2. O nº 2 do art. 186.º do CIRE estabelece, em complemento da noção geral antes fixada no nº 1, presunções inilidíveis que, como tal, não admitem prova em contrário. Conduzindo, assim, necessariamente, os comportamentos aí referidos à qualificação da insolvência como culposa.
3. O nº 3 do mesmo art. 186.º estabelece, por seu turno, presunções ilidíveis, que admitem prova em contrário, dando-se por verificada a culpa grave quando ocorram as situações aí previstas.
4. Não se dispensando neste nº 3 a demonstração do nexo causal entre o comportamento (presumido) gravemente culposo do devedor ou dos seus administradores e o surgimento ou o agravamento da situação de insolvência. Sendo, pois, necessário, nessas situações, verificar se os aí descritos comportamentos omissivos criaram ou agravaram a situação de insolvência, pelo que não basta a simples demonstração da sua existência e a consequente presunção de culpa que sobre os administradores recai. Não abrangendo tais presunções ilidíveis a do nexo causal entre tais actuações omissivas e a situação da verificação da insolvência ou do seu agravamento”. Esclarece-se igualmente no aresto em referência: “Definindo, assim, este preceito legal em que consiste a insolvência culposa, começando por fixar, para o efeito, uma noção geral no seu nº 1. Implica sempre, tal insolvência culposa, uma actuação dolosa ou com culpa grave do devedor ou dos seus administradores, a qual deve ter criado ou agravado a situação de insolvência em que o devedor se encontra. Deixando, contudo, tal actuação de ser atendida – devendo considerar-se as noções de dolo e de culpa grave, na falta de outro critério específico, nos termos gerais de Direito – para o efeito da qualificação da insolvência em análise, se não tiver ocorrido nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência. Estabelecendo, de seguida, em complemento da noção antes fixada, o seu nº 2, presunções inilidíveis, ou seja, presunções absolutas ou jure et de jure, não admitindo prova em contrário (cfr., ainda, art. 350.º, nº 2 do CC). Conduzindo, assim, necessariamente, os comportamentos dos administradores aí referidos – sem prejuízo de se dever atender às circunstâncias próprias da situação de insolvência do devedor – à qualificação da insolvência como culposa.»
Aludindo ao Ac. do STJ supra citado, diz o Ac. da RG de 18/10/2018, relatora Maria Luísa Ramos, o qual pode ser consultado in www.dgsi.pt: «Com efeito, como se deduz do preceito legal em referência - artº 186º do CIRE que regulamente a “Insolvência Culposa”, e é cabalmente esclarecido no Ac. STJ citado, apenas nas situações previstas no nº3 do indicado artigo, estabelecendo este presunções ilidíveis, relativas ou juris tantum, que assim podem ser ilididas por prova em contrário, se exige a demonstração do nexo causal entre o comportamento (presumido) gravemente culposo do devedor ou dos seus administradores e o surgimento ou o agravamento da situação de insolvência, não abrangendo esta presunção ilidível a do nexo de causalidade entre tais actuações omissivas e a situação da insolvência verificada ou do seu agravamento, e, já não nas situações previstas no nº2 do artº 186º do CIRE, em que a lei estabelece presunções inilidíveis, ou presunções absolutas ou jure et de jure, que não admitem qualquer prova em contrário, conduzindo, assim, necessariamente, os comportamentos dos administradores referidos nas respectivas alíneas à qualificação da insolvência como culposa.
No mesmo sentido v. Luís Alberto Carvalho Fernandes e João Labareda C.I.R.E. Anot., Vol. II, Pags. 14 e 15. “...as previsões deste número 2, consubstanciam presunções jure et de jure de insolvência culposa, portanto em si mesmas definitivas, por não elidíveis”».
Como se refere no Ac. da Rel. de Guimarães de 09/04/2019, relatora: Margarida Almeida Fernandes, o qual também pode ser consultado in www.dgsi.pt: «Para facilitar a determinação de uma insolvência culposa o legislador optou estabelecer factos-índice da mesma, de diferente natureza, nos nº 2 e 3 do citado preceito.
Da verificação de algum dos factos-índices previstos no nº 2 resulta sempre a insolvência culposa do devedor que não seja pessoa singular. Encontramo-nos nesta sede perante presunções absolutas, iuris et de iure ou inilidíveis (não admitem prova em contrário – art. 350º nº 2 in fine do C.C.), quer da culpa grave, quer do nexo de causalidade entre a conduta e a criação ou agravamento da situação de insolvência.
Mas, da verificação dos factos-índices previstos no nº 3 resulta apenas, quanto a nós, uma presunção ilidível da violação, com culpa grave, de obrigações impostas aos administradores do insolvente exigindo-se a subsequente prova do referido nexo de causalidade.
Esta tese baseia-se na letra da lei, pois, enquanto no nº 2 se refere “Considera   -      -se sempre culposa a insolvência” (sublinhado nosso), no nº 3 alude apenas a “Presume-se a existência de culpa grave” inexistindo aqui qualquer presunção quanto à verificação dos demais requisitos previstos no nº 1. A propósito do nº 3 do citado preceito refere-se no Ac. da R.G. de 12/07/2017 (Conceição Bucho), in www.dgsi.pt “este normativo é claro e inequívoco, no sentido de que não admite, com o apoio mínimo no texto da lei que o artigo 9º, nº 2 do Código Civil exige, uma interpretação mais abrangente, que inclua no âmbito da presunção estabelecida no nº 3 do artigo 186º do CIRE também o exigido nexo de causalidade entre a actuação descrita naquele preceito legal e o despoletar da situação de insolvência ou do seu agravamento.” Esta é a posição da jurisprudência largamente maioritária defendida, entre outros, também pelos Ac. do S.T.J. de 06/10/2011 (Serra Baptista), da R.L. de 26/04/2012 (Ezaguy Martins), R.C. de 10/07/2013 (Falcão de Magalhães), R.E. de 08/05/2014 (Francisco Xavier), R.G. de 01/06/2017 (Maria João Matos) e de 11/07/2017 (José Cravo) todos consultáveis no www.dgsi.pt. Cremos que a doutrina maioritária também o defende - vide, entre outros, Carvalho Fernandes e João Labareda, in Código de Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 3ª ed., Quid Juris, p. 680-681; A. Soveral Martins, in Um Curso de Direito da Insolvência, 2016 – 2ª ed. ver. e actual., Almedina, p. 423.»
Dispõe o nº 2 do referido artigo 186º:
“2 - Considera-se sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham:
a) Destruído, danificado, inutilizado, ocultado, ou feito desaparecer, no todo ou em parte considerável, o património do devedor;
(…)”
A acção de insolvência foi instaurada em 19-07-2022.
Ficou provado que a insolvente celebrou contrato de empréstimo junto da Cofidis, no valor de 15.000,00€, no dia 13-7-2022, ou seja, quatro dias antes de a mesma se ter apresentado à insolvência.
A insolvente não entregou qualquer quantia para apreensão, nem informou o Sr. Administrador da Insolvência da existência de saldo bancário passível de apreensão.
Conforme se escreveu no Ac. do TRL de 18/04/2023, Proc. nº 3146/20.5T8VFX-A.L1-1, em que foi relatora Amélia Sofia Rebelo e subscrito pela ora relatora na qualidade de 1ª adjunta, o qual pode ser consultado in www.dgsi.pt: “A diminuição patrimonial especificamente prevista pelo fundamento de qualificação da insolvência previsto pela al. a) do nº 2 do art. 186º do CIRE distingue-se da diminuição patrimonial implícita à previsão da al. d) da mesma norma porque, diversamente do que aqui sucede, aquela pressupõe ou reporta a uma ação física sobre os bens, no sentido de diminuir o seu valor comercial (destruído ou danificado), de os tornar imprestáveis ou inoperacionais para o fim a que tendem (inutilizado), ou, através da não revelação do seu paradeiro ou da sua colocação em paradeiro desconhecido ou local geográfica ou espacialmente inacessível à sua apreensão, de os subtrair à possibilidade de serem localizados e/ou fisicamente apreendidos para ingressarem na disponibilidade fáctica do AI, do processo de insolvência e da liquidação que nele se cumpra (ocultado ou feito desaparecer)”.
Sustentou a insolvente na oposição que deduziu ao incidente e nas contra-alegações que ora apresentou que utilizou o dinheiro que lhe foi disponibilizado, através do empréstimo contraído junto da Cofidis, para pagar dívidas que havia contraído junto de terceiros.
Independentemente de se saber se tal situação, a verificar-se, sempre implicaria a violação de um dos princípios estruturantes do processo falimentar - o princípio do tratamento igualitário dos credores sociais - e se poderia, ou não, determinar a qualificação da insolvência nos termos do disposto na alínea d) do nº 2 do referido artº 186º , o que é certo é que a mesma não resultou demonstrada.
Quatro dias antes de se ter apresentado à insolvência, a devedora contraiu junto da Cofidis o referido empréstimo no valor de € 15.000,00, agravando a sua situação financeira. Recebeu a aludida quantia e nada entregou ao Administrador da Insolvência, subtraindo a totalidade da mesma à possibilidade de ser apreendida e ingressar na disponibilidade fáctica do aludido Administrador e, assim, do processo de insolvência e da liquidação que nele se cumpre, tendo a credora reclamado nos autos de insolvência o valor em causa, acrescido de juros.
Deste modo, tem que se concluir que se encontram demonstrados os factos previstos na alínea a) do mesmo nº 2 do artº 186º, aplicável com as adaptações a que alude o nº 4 do mesmo preceito legal, factos esses que, pela sua gravidade, ali se encontram associados à existência de uma insolvência culposa.
Como se explicitou supra, esses factos, por si, integram uma presunção iuris et de iure de insolvência culposa e, ao contrário do que acontece com o n.º 3 do art.º 186º, o n.º 2 deste artigo não presume apenas a existência de culpa, mas também a existência de nexo de causalidade entre a actuação do devedor e a criação ou agravamento do estado de insolvência.  Acresce que foram reclamados créditos no valor de € 30.265.49, créditos esses que foram reconhecidos por sentença transitada em julgado e foi determinado o encerramento do processo por inexistirem quaisquer bens suscetíveis de apreensão, liquidação e distribuição do seu produto pelos credores, pelo que, contrariamente ao que sustenta a apelante, não restam quaisquer dúvidas que a sua conduta foi geradora de prejuízos para os credores.
Assim, contrariamente ao invocado pela apelante, a insolvência não pode deixar de ser qualificada como culposa e, considerando que apenas este segmento do decisório constitui o objecto do recurso, há que julgar o mesmo improcedente, nada mais havendo a decidir.
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IV-Decisão
Em face do exposto acordam as juízas na Secção do Comércio do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar o recurso improcedente, mantendo a sentença recorrida.
Custas: pela apelante, sem prejuízo do benefício de apoio judiciário que lhe venha a ser concedido.
Registe e Notifique.                                                             

Lisboa, 07/05/2024
Manuela Espadaneira Lopes
Isabel Fonseca
Renata Linhares de Castro