Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
583/23.7PAENT-A.E1
Relator: RENATO BARROSO
Descritores: DECLARAÇÕES PARA MEMÓRIA FUTURA
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
VÍTIMA ESPECIALMENTE VULNERÁVEL
Data do Acordão: 05/07/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I - Na situação em que se investiga a eventual prática, pelo arguido, de um crime de violência doméstica, impõe-se a tomada de declarações para memória futura da mulher do arguido (ofendida) e de duas crianças (filhos comuns do casal) que assistiram às ofensas praticadas pelo seu pai sobre a sua mãe.
II - A prestação de declarações para memória futura constitui um dos direitos das vítimas do crime de violência doméstica.
III - A circunstância de o arguido, atualmente, estar a residir em Angola (em morada desconhecida do Tribunal) não impede a realização da referida diligência, já que o mesmo, ao abrigo do disposto no artigo 113º, nº 10, do C. P. Penal, sempre dela poderá ser notificado na pessoa do seu defensor, sendo ainda certo que o arguido prestou T.I.R. nos autos, nele indicando uma morada para ser notificado pelo Tribunal.
Decisão Texto Integral:

ACORDAM OS JUÍZES, EM CONFERÊNCIA, NA SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA


1. RELATÓRIO


A – Decisão Recorrida

Nos autos de inquérito nº 583/23.7PAENT, que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Santarém, Juízo Local Criminal de Tomar, em que é arguido A, e em que são investigados factos susceptíveis de integrar a prática de crime de violência doméstica, p.p., pelo Artº 152 nsº1 al. b) e 2 als. a) c), d) e e) e 2 al. a) do C. Penal, veio o MP apresentar o seguinte requerimento para recolha de declarações para memória futura dos ofendidos (transcrição):

Nos presentes autos investiga-se a prática de factos suscetíveis de configurar, em abstrato, a prática, pelo arguido A, dos crimes de violência doméstica, nas pessoas da sua esposa F e dos filhos comuns O, B, e J, (artigo 152º, n.º 1, alíneas a), c), d), e) e n.º 2, alínea a) do Código Penal) – conforme melhor descrito no despacho com a ref.ª 94319644, de 22.09.2023 (ponto 7), para onde, desde já, se remete.
*
Importa proceder à inquirição dos ofendidos F, O e J [Não se promovendo a inquirição do filho mais novo, atendendo à sua jovem idade, de forma a não perturbar o seu são desenvolvimento], de forma a impedir que os mesmos sejam diversas vezes confrontados com os factos, revivendo-os, de forma a evitar a vitimização daqueles e a evitar o agravamento da sua saúde e estado psicológico/ emocional.
Só com a audição dos ofendidos, em sede de declarações para memória futura, se garantirá a frescura das suas memórias e declarações.
Importa proceder à audição dos ofendidos, em ambiente formal e sem a presença do arguido, de modo a assegurar que o mesmo seja o mais livre e imparcial possível, sendo as declarações dos ofendidos fundamentais para a prova dos factos e para a realização da justiça.
Atendendo aos factos indiciados nos autos e aos elementos de prova recolhidos temos que as vítimas O e J são particularmente indefesas, desde logo, pela sua tenra idade. Os menores terão sido expostos a situações de violência doméstica, acabando por ser destinatários de atos de violência, sendo vítimas daquele crime (artigo 2º, al. a) da lei 112/2009 de 16.09; artigos 152º, n.º 1, al. d), e), CP e 67º-A, n.º 1, al.), iii) CPP).
Assim, apresente aos autos ao Mmo JIC, com a promoção que seja designada data para tomada de declarações para memória futura aos ofendidos:
1. F,
2. O, e
3. J
Nos termos dos artigos:
- 1º, alínea j) e artigo 67.º-A, n.º 1, alínea a), ponto i), alínea b), n.º 3 e n.º4 do Código de Processo Penal,
- 152º, 67º-A/1/a)iii)/b)/3 do Código Penal,
16º, n.º 2, artigos 2º, al. a), 33º da Lei n.º 112/2009, de 16 de setembro (com a redação da Lei n.º 57/2021, de 16/08),
- 28º da Lei n.º 93/99, de 14 de julho,
- 17º, 21º, al. d), 22º, 24º da lei n.º 130/2015 de 04 de setembro,
- E da Diretiva n.º 5/2019 da PGR (Ponto IV – A – 1 e 2), a fim de as mesmas poderem ser tomadas em conta aquando do julgamento e bem assim para evitar a vitimização secundária decorrente de futuras inquirições dos ofendidos,
Importando que a audição dos ofendidos seja feita o mínimo de vezes e o mais breve possível, assim se acautelando a frescura das suas memórias e se acautelando sucessivos e eventuais confrontos com o sistema judicial.
Mais se promove, que as declarações sejam tomadas na ausência do arguido, com a assistência de técnico especializado, a fim de garantir a espontaneidade dos seus depoimentos e bem assim que a documentação das declarações seja efetuada através de gravação audiovisual.
Nestes termos, e em conformidade com o que antecede, remeta os autos ao Mmo. Juiz de Instrução Criminal.
Mais se consignando:
Caso se apure que os ofendidos estão a residir fora da comarca, as folhas do processo que devem instruir a deprecada são cópia: deste despacho, auto de denúncia, de fls. 02 e seguintes; factos observados por OPC, a fls. 27 e seguintes; Aditamento n.º 1, de fls. 58, Auto de inquirição da ofendida F, de fls. 71 e seguintes.”

Sobre tal requerimento incidiu o seguinte despacho judicial (transcrição):

O arguido viajou para Angola conforme resulta da informação da DGRSP, pelo que, não é possível a sua notificação para a diligência. Nesta medida, dado que a diligência deve ser realizada mediante notificação do arguido, sob pena de nulidade, dado que constituído, devolvam-se os autos que deverão retornar quando houver informação de que o arguido regressou ao território português.
Mais acresce que a ofendida reside em Alcabideche, pelo que a diligência não pode ser aqui realizada, sendo que o M.P. não requere a extracção de carta precatória.
Devolvam-se os autos.

B – Recurso

Inconformado com o assim decidido, recorreu o MP junto do tribunal recorrido, tendo concluído as respectivas motivações da seguinte forma (transcrição):

I. Nos presentes autos, em que é arguido A, investigam-se factos suscetíveis de integrar a prática, por aquele, de um crime de violência doméstica, sendo ofendidos F e os filhos comuns: O, nascido (…) 2014, B, nascido em (…..) 2016, e J, nascido em (…..) 2009 (artigo 152º, n.º 1, alíneas a), c), d), e) e n.º 2, alínea a) do Código Penal).
II. Por despacho proferido nestes autos, em 17.10.2023, foi rejeitada a tomada de declarações para memória futura aos referidos ofendidos, promovida pelo Ministério Público.
III. Está indiciado no presente inquérito (conforme promoção de interrogatório judicial, para onde se remeteu):
“1. O denunciado A e a ofendida F iniciaram uma relação de namoro no verão de 2008,
2. Sendo que, em novembro de 2009, passaram a residir em condições análogas às dos cônjuges, como se fossem marido e mulher, em Almada.
3. Após, o casal passou a residir para Angola, sendo que, em setembro de 2022, o casal regressou para Portugal.
4. O arguido e a ofendida casaram no dia 17.06.2011.
5. Na sequência dessa relação nasceram os filhos comuns:
a. O, nascido em (…..) 2014,
b. B, nascido em (…..) 2016 e
c. J, nascido em (…..) 2009.
6. O denunciado trabalha como despachante oficial e desloca-se a Angola, em trabalho, por períodos de cerca de dois meses a dois meses e meio, ficando em Portugal durante cerda de duas semanas.
7. A ofendida vive na dependência económica do denunciado.
8. Em 2020, a ofendida apresentou denúncia contra o denunciado, em Angola,
9. Sendo que, nessa sequência, o denunciado foi detido.
10. Ora, cerca daquela altura, o casal terminou a relação.
11. Porém, em data não apurada, mas antes de setembro de 2022, o casal acabou por reatar a relação.
12. Porém, desde que reataram a relação, o denunciado retirou o passaporte pessoal à ofendida e bem assim retirou-lhe o acesso aos passaportes dos filhos, o que fez de forma a impedir a ofendida de fugir.
13. Em setembro de 2022, o casal e os filhos vieram residir para Portugal, passando a residir na morada sita na Rua (…..) Entroncamento.
14. Ora, desde então, nos períodos temporais, de duas semanas seguidas, em que o denunciado se encontrava em Portugal, o denunciado dirigia-se à ofendida e dizia-lhe:
a. «que a ofendida andava com os clientes para cima e para baixo»,
b. «que a ofendida era uma prostituta, alcoólica e drogada»,
c. «sua puta de merda, sua cabra, cachorra»
d. «que não tem onde cair morta com as crianças»,
e. «que vai acabar como uma drogada e que toda a família lhe vai bater», humilhando, amedrontando e entristecendo a ofendida.
15. Desde a mesma altura, em datas não apuradas, mas que ocorreram em cinco ou seis ocasiões distintas, o denunciado agrediu fisicamente a ofendida, desferiu-lhe bofetadas, murros, puxões de cabelo, atirou-a para o chão, pisou-lhe as costas com os pés, desferiu-lhe encontrões e empurrões, causando-lhe dores e ferimentos,
16. E bem assim, desde setembro de 2022, o denunciado desferia pontapés nas portas, amedrontando a ofendida,
17. E, numa ocasião, o denunciado atirou com o comando da televisão à ofendida, acertando-lhe na testa, causando-lhe dor.
18. Desde setembro de 2022 até setembro de 2023, em três ocasiões distintas o denunciado, na presença do filho O, disse à ofendida:
a. «ouve-me com muita atenção, mas ouve bem, mesmo que eu não consiga te matar por não ter coragem, eu mando alguém te matar, olha não confies em mim», amedrontando a ofendida.
19. Ora, na sequência destes comportamentos, a ofendida deixou de partilhar quarto com o denunciado
20. E disse ao denunciado «que se queria divorciar», com o que o denunciado não concordou.
21. No dia 30.08.2023 o arguido manteve relações sexuais com a ofendida contra a vontade da mesma, penetrando-a na vagina,
22. Ora, nestas circunstâncias, a ofendida debateu-se e conseguiu afastar o denunciado,
23. Ato contínuo, o denunciado agarrou numa almofada e tentou asfixiar a ofendida, que gritou e esperneou, sendo que, o denunciado acabou por cessar a sua conduta.
24. O denunciado não deixava a ofendida aceder ao seu veículo automóvel, dizendo-lhe:
a. «que se fosse ao carro ficava caladinha já», fazendo ameaça velada, fazendo a ofendida temer que o denunciado ali pudesse ter guardada uma arma de fogo e que a pudesse matar com tal arma.
25. No dia 16.09.2023, a ofendida deslocou-se a Lisboa, a fim de ir comprar bens para os seus filhos,
26. Ora, no mesmo dia, quando a ofendida regressava para a residência comum, o denunciado enviou-lhe mensagens questionando a ofendida sobre «com quem estava», «se tinha feito sexo»,
27. Chamou a ofendida de «puta, oferecida, falsa, má mãe», humilhando a ofendida.
28. Ao chegar a casa, a ofendida foi deitar os filhos,
29. Após, o denunciado disse à ofendida:
a. «que ela se deita com todos os homens, que é uma alcoólica, que bebe em todos os sítios», humilhando a ofendida,
30. E bem assim o denunciado agarrou a ofendida pelo braço direito e desferiu duas bofetadas na ofendida na cara, com as costas da mão, causando-lhe dores.
31. Ora, apercebendo-se do barulho, o filho J compareceu no local e foi em auxílio da ofendida,
32. Assim, aflito com a situação, em pânico, chorando e gritando, J pedia ao denunciado «que não batesse na mãe» e colocou-se entre a sua mãe e o seu pai,
33.Porém, o denunciado ignorou os pedidos do seu filho e continuou a agredir fisicamente a ofendida, desferindo-lhe bofetadas,
34. Contudo, ainda nestas circunstâncias, o denunciado desferiu bofetadas no seu filho J, atingindo-o junto aos olhos e na zona da nuca, causando-lhe dores.
35. Nesta sequência, a ofendida tentou fugir com o seu filho J, o que não conseguia, uma vez que o denunciado impedia-a, desferindo-lhe pontapés nas pernas,
36. Contudo, a ofendida acabou por conseguir fugir, com o filho J, para o quarto da habitação onde estavam os filhos mais novos a descansar,
37. Em seguida, a ofendida trancou a porta e colocou um armário atrás da porta, de modo a tentar impedir a entrada do denunciado no quarto.
38. Ora, nesta sequência, o denunciado desferiu pontapés e vários murros na porta do quarto onde a ofendida estava com os seus filhos, amedrontando-os.
39. No dia 17.09.2023, a ofendida saiu de casa, com os filhos, deixando de viver com o denunciado.
40. O denunciado levava a cabo as condutas acima descritas, agredindo a ofendida, na residência comum do casal e na presença dos filhos menores e comuns do casal.
41. Ora, quando os filhos tentavam defender/ proteger a ofendida, colocando-se à frente dela, para que o denunciado não a agredisse, o denunciado acabava por bater nos próprios filhos.
42. O denunciado dirigia-se aos filhos e dizia-lhes: «burros, matumbos, pretos, fracos», deixando-os muito tristes.
43. O denunciado é consumidor de bebidas alcoólicas em excesso, chegando a casa várias vezes alcoolizado
44. A ofendida tem muito medo do denunciado, temendo que o denunciado a mate.
45. O denunciado agiu com o propósito concretizado de, por forma repetida e continuada, maltratar a ofendida, ofendendo-a na sua integridade física e psicológica, provocando-lhe dor, ferimentos e sofrimento.
46. O denunciado agiu ainda com o propósito concretizado de, por forma repetida e continuada, insultar e ofender a ofendida na sua honra e consideração, bem sabendo que as expressões que utilizou eram adequadas e suscetíveis de as atingir e ofender, humilhando-a na sua qualidade de mulher e de esposa, o que pretendia, e levando-a a manter uma baixa autoestima.
47. O denunciado agiu com o propósito concretizado de, por forma repetida e continuada, ameaçar a ofendida, bem sabendo que as expressões por si proferidas eram idóneas a causar, como causaram, receio e intranquilidade à ofendida de que viesse a sofrer ato atentatório da sua vida e integridade física, não obstante quis agir da forma descrita.
48. O denunciado agiu com a intenção expressa de molestar a saúde e o corpo da ofendida e de lhe provocar as dores e lesões verificadas, o que quis e concretizou.
49. O denunciado agiu com o propósito concretizado de manter relações sexuais de cópula vaginal com a ofendida, bem sabendo que o fazia contra a vontade desta e que violava o direito à sua liberdade sexual, aproveitando-se da circunstância de a ofendida não lhe conseguir oferecer resistência física.
50. Com as condutas supra descritas, o denunciado agiu consciente e voluntariamente, bem sabendo que molestava física, verbal e psiquicamente a ofendida, debilitando-a psicologicamente, prejudicando o seu bem-estar e ofendendo-a na sua honra e dignidade humanas, bem sabendo que esta era sua mulher e mãe dos seus filhos, e que por isso lhe devia respeito e consideração.
51. Ao agir do modo descrito o denunciado fê-lo desprovido de qualquer justificação e de forma deliberada, livre, voluntária e consciente com o claro propósito de maltratar tanto física como psicologicamente a ofendida, querendo obriga-la a suportar a sua presença.
52. O denunciado bem sabia que atuando da forma descrita, colocava a ofendida sujeita ao seu humor, provocando-lhe humilhação, angústia e medo.
53. O denunciado bem sabia que debilitava física e psicologicamente a ofendida, prejudicando o seu bem-estar e ofendendo-a na sua honra e dignidade humanas, sendo que, com as suas condutas, assumiu uma posição de controlo e dominação sobre a mesma e revelou desconsideração e desprezo pela mesma.
54. O denunciado bem sabia que, atuando das formas descritas, corrompia a relação de confiança existente entre si e a ofendida, enquanto casal, inviabilizando uma convivência familiar e doméstica pacífica.
55. O denunciado bem sabia que as condutas que teve e que se deixaram supra descritas eram aptas a ofender a integridade física, mental e psicológica dos seus filhos.
56. O denunciado bem sabia que agredindo verbal e fisicamente a ofendida na presença dos seus filhos, perturbava o saudável crescimento e desenvolvimento daqueles.
57. O denunciado agiu ainda com o propósito concretizado de, por forma repetida e continuada, insultar e ofender os seus filhos na sua honra e consideração, bem sabendo que as expressões que utilizou eram adequadas e suscetíveis de as atingir e ofender, humilhando-os, o que pretendia, e levando-os a manter uma baixa autoestima.
58. O denunciado agiu consciente e voluntariamente, bem sabendo que molestava física e psiquicamente os seus filhos, na residência comum, debilitando-os física e psicologicamente, prejudicando o seu desenvolvimento e bem-estar e ofendendo-os na dignidade humana dos mesmos.
59. O denunciado agiu com o propósito concretizado de maltratar o seu filho João, ofendendo-o na saúde e integridade física, bem sabendo que com as suas condutas lhe provocava sofrimento físico, e bem assim dores e ferimentos, como marcas vermelhas, como pretendia e conseguiu.
60. O denunciado bem sabia que lhe era devido todo o respeito aos seus filhos, conhecendo as suas idades, o estado físico e emocional dos mesmos, bem sabendo que os mesmos não eram capazes, por eles próprios de se defender dos atos do denunciado.
61. O denunciado mais sabia que as suas condutas eram reprováveis, proibidas e punidas criminalmente, tendo-se, mesmo assim, conformado com as mesmas, sem agir de outro modo, como era capaz.
62. O denunciado agiu sempre de modo consciente, livre e voluntário, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei criminal.”

IV. O Ministério Público, em face da factualidade fortemente indiciada, em 06.10.2023 promoveu a tomada de declarações para memória futura de F, O e J nos seguintes termos:
«“Nos presentes autos investiga-se a prática de factos suscetíveis de configurar, em abstrato, a prática, pelo arguido A Manuel, dos crimes de violência doméstica, nas pessoas da sua esposa F e dos filhos comuns O, nascido em (…..) 2014, B, nascido em (…..) 2016, e J, nascido em (…..) 2009 (artigo 152º, n.º 1, alíneas a), c), d), e) e n.º 2, alínea a) do Código Penal) – conforme melhor descrito no despacho com a ref.ª 94319644, de 22.09.2023 (ponto 7), para onde, desde já, se remete.
*
Importa proceder à inquirição dos ofendidos F, O e J [Não se promovendo a inquirição do filho mais novo, atendendo à sua jovem idade, de forma a não perturbar o seu são desenvolvimento], de forma a impedir que os mesmos sejam diversas vezes confrontados com os factos, revivendo-os, de forma a evitar a vitimização daqueles e a evitar o agravamento da sua saúde e estado psicológico/ emocional.
Só com a audição dos ofendidos, em sede de declarações para memória futura, se garantirá a frescura das suas memórias e declarações.
Importa proceder à audição dos ofendidos, em ambiente formal e sem a presença do arguido, de modo a assegurar que o mesmo seja o mais livre e imparcial possível, sendo as declarações dos ofendidos fundamentais para a prova dos factos e para a realização da justiça.
Atendendo aos factos indiciados nos autos e aos elementos de prova recolhidos temos que as vítimas O e J são particularmente indefesas, desde logo, pela sua tenra idade. Os menores terão sido expostos a situações de violência doméstica, acabando por ser destinatários de atos de violência, sendo vítimas daquele crime (artigo 2º, al. a) da lei 112/2009 de 16.09; artigos 152º, n.º 1, al. d), e), CP e 67º-A, n.º 1, al.), iii) CPP).
Assim, apresente aos autos ao Mmo JIC, com a promoção que seja designada data para tomada de declarações para memória futura aos ofendidos:
1. F,
2. O e,
3. J
Nos termos dos artigos: - 1º, alínea j) e artigo 67.º-A, n.º 1, alínea a), ponto i), alínea b), n.º 3 e n.º4 do Código de Processo Penal, - 152º, 67º-A/1/a)iii)/b)/3 do Código Penal, 16º, n.º 2, artigos 2º, al. a), 33º da Lei n.º 112/2009, de 16 de setembro (com a redação da Lei n.º 57/2021, de 16/08), - 28º da Lei n.º 93/99, de 14 de julho, - 17º, 21º, al. d), 22º, 24º da lei n.º 130/2015 de 04 de setembro, - E da Diretiva n.º 5/2019 da PGR (Ponto IV – A – 1 e 2), a fim de as mesmas poderem ser tomadas em conta aquando do julgamento e bem assim para evitar a vitimização secundária decorrente de futuras inquirições dos ofendidos,
Importando que a audição dos ofendidos seja feita o mínimo de vezes e o mais breve possível, assim se acautelando a frescura das suas memórias e se acautelando sucessivos e eventuais confrontos com o sistema judicial.
Mais se promove, que as declarações sejam tomadas na ausência do arguido, com a assistência de técnico especializado, a fim de garantir a espontaneidade dos seus depoimentos e bem assim que a documentação das declarações seja efetuada através de gravação audiovisual.
Nestes termos, e em conformidade com o que antecede, remeta os autos ao Mmo. Juiz de Instrução Criminal.
Mais se consignando: Caso se apure que os ofendidos estão a residir fora da comarca, as folhas do processo que devem instruir a deprecada são cópia: deste despacho, auto de denúncia, de fls. 02 e seguintes; factos observados por OPC, a fls. 27 e seguintes; Aditamento n.º 1, de fls. 58, Auto de inquirição da ofendida F, de fls. 71 e seguintes.”
V. Por seu turno, no despacho ora recorrido, decidiu-se do seguinte modo:
“O arguido viajou para Angola conforme resulta da informação da DGRSP, pelo que, não é possível a sua notificação para a diligência. Nesta medida, dado que a diligência deve ser realizada mediante notificação do arguido, sob pena de nulidade, dado que constituído, devolvam-se os autos que deverão retornar quando houver informação de que o arguido regressou ao território português.
Mais acresce que a ofendida reside em Alcabideche, pelo que a diligência não pode ser aqui realizada, sendo que o M.P. não requere a extracção de carta precatória.
Devolvam-se os autos.”
VI. Salvo o devido respeito, o Ministério Público não concorda com a decisão proferida pela Mma. Juiz de Instrução Criminal (JIC), desde logo, quando refere «não ser possível a notificação do arguido para a diligência».
VII. Os ofendidos nestes autos têm a saúde, integridade física e psicológica afetadas, encontrando-se numa posição de particular e especial vulnerabilidade, sendo de toda a importância, para a salvaguarda da integridade psíquica (e física) dos ofendidos que os mesmos possam, desde já, prestar declarações para memória futura, de forma rigorosa e esclarecedora, as quais poderão ser valoradas nas fases subsequentes do processo (inclusivamente de julgamento),
VIII. Na verdade, só assim se evita a vitimização secundária em (eventual) julgamento e bem assim se assegura a valoração das suas declarações em todas as outras fases do processo.
IX. Ora, não obstante a natureza urgente dos processos por crime de violência doméstica, não se pode ignorar que os mesmos, muitas vezes, demandam uma investigação que acaba por ser demorada, e em que os depoimentos das vítimas são essenciais na descoberta da verdade material, importando que os seus depoimentos sejam tomados com celeridade (sob pena de se poderem perder factos essenciais).
X. A audição dos ofendidos nesta fase do processo e em sede de declarações para memória futura permitira evitar uma contaminação do seu depoimento assim como a perda de memória dos factos na sua plenitude.
XI. O depoimento das vítimas é essencial na descoberta da verdade material, importando que os mesmos sejam tomados com celeridade (sob pena de se poderem perder factos essenciais) sobretudo quando estamos perante crianças.
XII. A circunstância de o arguido estar em outro país (em concreto, em Angola) não impede a possibilidade de se proceder à sua notificação, ao contrário do referido pela Mma JIC.
XIII. A notificação do arguido poderia ter sido efetuada na pessoa do seu defensor (artigo 113º, n.º 10 do Código de Processo Penal).
XIV. Por outro lado, não podemos desconsiderar que, no caso, o arguido prestou termo de identidade e residência (TIR) (conforme folhas 233 e 234), tendo indicado uma morada sita em Portugal (na Rua ……….), sabendo o arguido que «as notificações serão feitas por via postal simples para a morada, por ele indicada» (artigo 196º do CPP).
XV. Quando o arguido presta TIR não cabe ao Ministério Público a tarefa, ou o dever de averiguar, em cada momento, onde é que o arguido se encontra, se em Portugal, se em Angola ou em qualquer outro local/país – antes cabendo ao arguido a obrigação de comunicar a sua nova residência ou local onde pode ser encontrado (artigo 196º do CPP).
XVI. Por outro lado, e ainda que assim se não entendesse, poderia ainda a Mma JIC ter ordenado a expedição de carta rogatória à República de Angola a fim de as autoridades competentes procederem à notificação do arguido.
XVII. Assim, era possível a notificação do arguido para a diligência, ao contrário do referido pela Mma JIC.
XVIII. Mais se refira que, nos autos existe arguido constituído. Ora, mesmo quando não existe arguido constituído, tem vindo a ser entendimento maioritário que tal não impede a tomada de declarações para memória futura.
XIX. Se é permitida a tomada de declarações quando não há arguido constituído, mais deverá ser permitida quando existe arguido constituído - ainda que não esteja presente na diligência.
XX. As garantias de defesa e contraditório que assistem ao arguido sofrem limitações de modo a satisfazer outro interesse / valor igualmente relevante, o de garantir o interesse público da descoberta da verdade material e da realização da justiça «cuja satisfação não raras vezes passa pela necessidade de aquisição e salvaguarda de prova que, ao não ser produzida de forma imediata, mesmo numa fase em que não há arguidos constituídos, pode ficar irremediavelmente perdida» (in: Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, da Relatora MADALENA CALDEIRA, de 12/01/2023 – disponível em ttp://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/f80dc38b74274bbc80258942004f642b?OpenDocument).
XXI. Sendo que, as garantias de defesa e o contraditório que assistem ao arguido estão salvaguardadas por «cautelas processuais maximizadas no que respeita, por exemplo, à necessidade de notificar os intervenientes processuais já identificados como tal (n.º 3 do art.º 271º, do CPP), à necessidade de cumprimento de certas regras próprias da audiência de julgamento (n.º 6) e, por fim, prevendo-se a possibilidade de prestação de novo depoimento na audiência de julgamento da pessoa ouvida antecipadamente, desde que as condições de saúde a isso não se oponham (n.º 8). A prestação de declarações para memória futura está, portanto, configurada, na medida do que é possível, como uma antecipação parcial da audiência de julgamento, em que o exercício do contraditório deve ser exercido em toda a plenitude possível» (in: Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, da Relatora MADALENA CALDEIRA, de 12/01/2023).
XXII. Desta forma, ainda que o arguido não estivesse presente na diligência, sempre o mesmo veria as suas garantias de defesa e contraditório assegurados.
XXIII. Ora, o Ministério Público promoveu ainda que «as declarações sejam tomadas na ausência do arguido, com a assistência de técnico especializado, a fim de garantir a espontaneidade dos seus depoimentos e bem assim que a documentação das declarações seja efetuada através de gravação audiovisual» (sublinhado nosso).
XXIV. Desta forma, pretendendo-se que a diligência fosse realizada na ausência do arguido, não se vislumbra a utilidade prática de se aguardar pelo seu regresso a Portugal – não cabendo ao Ministério Público averiguar o concreto paradeiro do arguido, uma vez que o mesmo prestou TIR.
XXV. Por outro lado, nada garante que o arguido, algum dia, regresse a Portugal, pelo que, mais uma vez, resulta que se impõe, com urgência, a designação de dia para ouvir todos os ofendidos, em sede de declarações para memória futura – nada justificando que os autos fiquem a aguardar uma circunstância que poderá até nunca se concretizar.
XXVI. Por fim, a Mma JIC referiu ainda que «Mais acresce que a ofendida reside em Alcabideche, pelo que a diligência não pode ser aqui realizada, sendo que o M.P. não requere a extracção de carta precatória».
XXVII. Ora, o Ministério Público, na sua promoção, referiu expressamente «Caso se apure que os ofendidos estão a residir fora da comarca, as folhas do processo que devem instruir a deprecada são cópia: deste despacho, auto de denúncia, de fls. 02 e seguintes; factos observados por OPC, a fls. 27 e seguintes; Aditamento n.º 1, de fls. 58, Auto de inquirição da ofendida F, de fls. 71 e seguintes.”, o que configura uma promoção de expedição de carta precatória.
XXVIII. Assim, ao ter decidido como decidiu, a Meritíssima Juiz de Instrução Criminal violou os artigos 26º/2, 28º da Lei n.º 93/99, de 14 de julho, artigo 17º, 21º, al. d), 22º, 24º da lei n.º 130/2015 de 4 de setembro, 152º, 67º-A/1/a)iii)/b)/3 do Código Penal, 16º, n.º 2, artigos 2º, al. a), 33º da Lei n.º 112/2009, de 16 de setembro (com a redação da Lei n.º 57/2021, de 16/08), artigos 1º, alínea j) e artigo 67.º-A, n.º 1, alínea a), ponto i), alínea b), n.º 3 e n.º4, 53.º n.º 2 al. b), 67º-A, n. º1/a)i), iii), al. b), n.ºs 3 e 4, 113º, n.º 10, 196º, 271º, 262° e 263° do Código de Processo Penal.
XXIX. Deve, em conformidade, o despacho recorrido ser revogado e ser em sua substituição proferido despacho que determine a prestação de declarações para memória futura aos ofendidos.
XXX. Assim, e nos termos de tudo o que foi supra exposto, substituindo o despacho recorrido por outro que determine a prestação de declarações para memória futura aos ofendidos F e dos filhos comuns O e J, farão V.as Exas. a habituada Justiça!


C – Resposta ao Recurso

Inexiste resposta ao recurso.

D – Tramitação subsequente

Aqui recebidos, foram os autos com vista ao Exmº Procurador-Geral Adjunto, que militou pela procedência do recurso.
Cumprido o disposto no Artº 417 nº2 do CPP, não foi apresentada resposta.
Efectuado o exame preliminar, determinou-se que o recurso fosse julgado em conferência.
Colhidos os vistos legais e tendo o processo ido à conferência, cumpre apreciar e decidir.

2. FUNDAMENTAÇÃO

A – Objecto do recurso

De acordo com o disposto no Artº 412 do CPP e com a Jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19/10/95, publicado no D.R. I-A de 28/12/95 (neste sentido, que constitui jurisprudência dominante, podem consultar-se, entre outros, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 12 de Setembro de 2007, proferido no processo n.º 07P2583, acessível em HYPERLINK "http://www.dgsi.pt/" HYPERLINK "http://www.dgsi.pt/"www.dgsi.pt, que se indica pela exposição da evolução legislativa, doutrinária e jurisprudencial nesta matéria), o objecto do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extraiu da respectiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, impostas pelos Artsº 410 e 379 do CPP.
O objecto do recurso cinge-se à questão de saber se assiste, ou não, razão ao recorrente, no requerimento que dirigiu ao juiz de instrução, no sentido de deferir a tomada de declarações para memória futura dos ofendidos F, O e J.

B – Apreciação

Definida a questão a tratar, de carácter eminentemente jurídico, é manifesto que assiste inteira razão ao recorrente.
Atente-se, antes de mais, no quadro legal aplicável.
Diz o Artº 271 nº1 do CPP, regulando as declarações para memória futura, que:
Em caso de doença grave ou de deslocação para o estrangeiro de uma testemunha, que previsivelmente a impeça de ser ouvida em julgamento, bem como nos casos de vítima de crime de tráfico de pessoas ou contra a liberdade ou a autodeterminação sexual, o juiz de instrução, a requerimento do Ministério Público, do arguido, do assistente ou das partes civis, pode proceder à sua inquirição no decurso do inquérito, a fim de que o depoimento possa, se necessário, ser tomado em conta no julgamento
É um procedimento, como se sabe, de natureza excepcional em relação aos princípios de imediação e da oralidade, que demandam, como regra, que toda a prova seja produzida em Audiência de Julgamento.
Ora, se o regime desta norma é, em si mesmo, uma excepção à norma geral, aquele que decorre do Artº 24 nº1 da Lei nº 130/2015, de 04/09 (Estatuto da Vítima), consagra, na verdade, uma excepção à excepção, na medida em que estabelece um regime próprio com pressupostos de aplicação menos restritivos dos que são exigidos pelo Artº 271 nº1 do CPP.
Estipula a referida norma que:
O juiz, a requerimento da vítima especialmente vulnerável ou do Ministério Público, pode proceder à inquirição daquela no decurso do inquérito, a fim de que o depoimento possa, se necessário, ser tomado em conta no julgamento, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 271.º do Código de Processo Penal.”.
Por outro lado, o nº6 deste normativo estatui que:
Nos casos previstos neste artigo só deverá ser prestado depoimento em audiência de julgamento se tal for indispensável à descoberta da verdade e não puser em causa a saúde física ou psíquica da pessoa que o deva prestar
Como se constata, para a aplicação deste regime legal, basta que se esteja na presença de vítima especialmente vulnerável para que, em regra, se proceda à tomada das suas declarações para memória futura, pois estas só não devem ser colhidas antecipadamente se se concluir que, desse modo, se coloca em causa a saúde física ou psíquica da pessoa a depor e que o depoimento a prestar em julgamento se mostra indispensável à descoberta da verdade.
Sendo seguro que este regime não é de aplicação automática, no sentido de o juiz não estar vinculado ao requerido pelo MP ou pela própria vítima, é contudo evidente, pela mera leitura das normas, que tratando-se de uma situação de uma vítima especialmente vulnerável, o juiz apenas pode recusar a prestação antecipada do seu depoimento se verificar uma das duas situações alinhadas pelo nº6 do Artº 24 da citada Lei: estar em risco a saúde física ou psíquica de declarante, ou a verdade material exigir, como indispensável, que o seu depoimento seja prestado em audiência de julgamento (Cfr, neste sentido, Ac. da Relação de Évora de 23/06/2020, Proc. 1244/19.7PBFAR-A.E1, da Relação do Porto, de 24/09/2020, Proc. 2225/20.3JAPRT-A.P1 e da Relação de Lisboa, de 10/09/20).
Não estando em causa nenhuma destas duas realidades, a regra terá de ser a do deferimento do pedido de declarações para memória futura da vítima, conclusão que se retira, não só, como se disse, pela simples linearidade do comando legal, como também pela sua inserção sistemática no diploma de protecção das vítimas especialmente vulneráveis.
Este regime prevalece, quer sobre o regime geral, de produção de toda a prova em julgamento, quer sobre o do Artº 271 nº1 do CPP que tem, manifestamente, critérios mais restritivos - como os da necessidade de averiguação de requisitos como a possibilidade de falecimento, doença ou deslocação para o estrangeiro - prevalência que se justifica amplamente, se considerarmos a intenção do legislador de proteger a evicção da vitimização da depoente, tendo, para o efeito, estabelecido rígidas regras de produção e de registo do acto: o MP, o arguido, o defensor e os advogados constituídos no processo são notificados da hora e do local da prestação do depoimento para que possam estar presentes, sendo obrigatória a comparência do MP e do defensor; a tomada de declarações é realizada em ambiente informal e reservado, com vista a garantir, nomeadamente, a espontaneidade e a sinceridade das respostas e efectuada, em regra, através de registo áudio ou audiovisual, (nsº2 a 4 do mencionado Artº 24 da Lei 130/2015 de 04/09).
Por fim, refere o Artº 67-A nº1 al. b) do CPP que se considera vítima especialmente vulnerável:
a vítima cuja especial fragilidade resulte, nomeadamente, da sua idade, do seu estado de saúde ou de deficiência, bem como do facto de o tipo, o grau e a duração da vitimização haver resultado em lesões com consequências graves no seu equilíbrio psicológico ou nas condições da sua integração social
E, adianta a sub-alínea iii), da alínea a), do nº 1 da mesma norma, que vítima é a criança ou jovem até aos 18 anos que sofreu um dano causado por ação ou omissão no âmbito da prática de um crime, incluindo os que sofreram maus tratos relacionados com a exposição a contextos de violência doméstica.
Ora, perante este acervo normativo, torna-se evidente que o enquadramento da situação dos autos sempre teria de ser feito à luz do Artº 24 da Lei 130/95, de 04/09, como pretendido pelo recorrente.
Com efeito, estamos na presença de uma situação em que se investiga a eventual prática, pelo arguido A, de crime de violência doméstica, p.p., pelo Artº 152 nsº1 al. b) e 2 als. a) c), d) e e) e 2 al. a) do C. Penal, sendo ofendidos F, mulher daquele e progenitora dos filhos comuns O e J, cuja tomada de declarações para memória futura se requereu e que terão assistido a tais ofensas praticadas pelo seu pai sobre a sua mãe.
Como bem se escreveu no acórdão desta Relação de 06/02/24, no Proc. 121723.1PAENT-A.E1;
“Assim e desde logo, para melhor se interpretarem as normas vigentes em Portugal, nomeadamente as que respeitam aos direitos das vítimas, entre os quais se inclui a prestação de declarações para a memória futura (art.º 21.º e 22.º do Estatuto da Vítima) há que ter em conta a Diretiva 2012/29/UE do Parlamento Europeu e do Conselho de 25 de Outubro de 2012, estabelece normas mínimas relativas aos direitos, ao apoio e à proteção das vítimas da criminalidade e que substituiu a Decisão-Quadro 2001/220/JAI do Conselho, publicada no Jornal Oficial da União Europeia L 315/72 de 14.11.2012, conhecida como Diretiva das Vítimas; Como é sabido, esta Diretiva foi transposta para a ordem jurídica nacional através da Lei nº 112/2009 de 16 de Setembro, que estabelece um regime jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica, à proteção e à assistência das suas vítimas, bem como para o Estatuto da Vítima aprovado pela Lei 130/2015 de 4 de Setembro.
São estes diplomas e respetivas normas, complementadas pela Lei de Proteção de Testemunhas, aprovada pela Lei n.º 93/99, de 14 de julho, maxime o seu art.º 28.º (por força do que se dispõe no art.º 20.º, n.º 8 da LVD, Lei 112/2009), e a Lei 112/2009 de 16 setembro, concretamente no seu art.º 33, que regem esta temática, porquanto constituem normas especiais relativamente à regra geral vertida no art.º 271.º do CPP, que regulam a prestação de declarações para memória futura das vitimas de violência doméstica.
Por força do disposto no art. 14.º, n.º 1 da Lei 112/2009 de 16 de setembro
Apresentada a denúncia da prática do crime de violência doméstica, não existindo fortes indícios de que a mesma é infundada, as autoridades judiciárias ou os órgãos de polícia criminal competentes atribuem à vítima, para todos os efeitos legais, o estatuto de vítima.
A atribuição deste estatuto determina a aquisição por parte da vítima vários direitos de natureza processual, a que não é alheio o conhecimento científico sobre as fragilidades emocionais das vítimas de violência doméstica, que determinou, aliás, que a Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência contra as Mulheres e a Violência Doméstica, vulgo Convenção de Istambul, a Diretivas da União Europeia a que já se fez referência e bem assim a recente Proposta de Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho relativa ao combate à violência contra as mulheres e à violência doméstica (Estrasburgo, 8.3.2022, COM(2022) 105 final, 2022/0066 (COD).

Uma vez que o crime de violência doméstica, tendo em conta a sua natureza, preenche a previsão legal de criminalidade violenta ou especialmente violenta, como definidas no art.º 1º al. j) e l) do Código de Processo Penal, a vítima deste tipo de crime é sempre especialmente vulnerável, nos termos do artigo 67°-A n° 1 al. a) i) e por força do estabelecido no n° 3 do mesmo diploma.
Ora, a prestação de declarações para memória futura da vítima especialmente vulnerável constitui um direito seu, como se verifica do disposto nos art.ºs 21.º, n.º 2, al. d) do Estatuto da Vítima, e no caso das crianças expressamente consagrado no art.º 22.º do mesmo Estatuto.
Para além de um direito seu, as declarações para memória futura constituem meio de prova e por isso pode revelar-se essencial para que a partir delas se possa desenvolver a investigação de modo mais concreto e eficaz, ao mesmo tempo que constituem um meio de proteção da própria vitima.
Vejamos:
A Lei n.º 112/2009, de 16 de setembro, conhecida por Lei da Violência Doméstica, tem entre outras como
Finalidades, definidas no art.º 3.º
A presente lei estabelece um conjunto de medidas que têm por fim:
a) Desenvolver políticas de sensibilização nas áreas da educação, da informação, da saúde, da segurança, da justiça e do apoio social, dotando os poderes públicos de instrumentos adequados para atingir esses fins,
b) Consagrar os direitos das vítimas, assegurando a sua protecção célere e eficaz;
c) Criar medidas de protecção com a finalidade de prevenir, evitar e punir a violência doméstica;
Determinando o art.º 16.º da mesma LVD, que consagra o direito à audição e à apresentação de provas, no seu n.º 2 que as autoridades apenas devem inquirir a vítima na medida do necessário para os fins do processo penal.
Por sua vez o art.º 20.º, ainda da LVD, sobre o direito à proteção, nomeadamente que - Às vítimas especialmente vulneráveis deve ser assegurado o direito a beneficiarem, por decisão judicial, de condições de depoimento, por qualquer meio compatível, que as protejam dos efeitos do depoimento prestado em audiência pública. Donde se retira, sem qualquer margem para dúvidas que as declarações para memória futura constituem em si mesmas um meio de prova e um meio de proteção da vítima.
A preocupação do legislador de proteção da vítima contra a vitimização secundária, estende-se inclusivamente ao modo como a mesma deve ser ouvida/inquirida e para evitar que sofra pressões, o que expressamente consagrou no art.º 22.º da LVD,
Condições de prevenção da vitimização secundária, tendo consagrado de forma expressa, no seu n.º 1 que a vítima tem direito a ser ouvida em ambiente informal e reservado, devendo ser criadas as adequadas condições para prevenir a vitimização secundária e para evitar que sofra pressões.
Ora, é conhecimento público e comum, decorrente da investigação científica sobre as vítimas de violência doméstica, que estas vítimas sofrem pressões por parte dos agressores, para que alterem os seus depoimentos, o que logram conseguir atentas as sabidas fragilidades emocionais da vítima, caracterizadas por uma igualmente conhecida dependência emocional, psicológica e afetiva relativamente à pessoa do agressor, o que no caso concreto se verifica com particular acuidade dada a relação de pai e filha.
As declarações para memória futura constituem, assim, um meio de proteção da vítima, pelo que entendemos ser-lhe de aplicar o disposto no art.º 29.º-A da LVD, medidas de proteção à vítima, e por conseguinte as mesmas devem ser prestadas no prazo de 72 horas a que alude o n.º 1 deste normativo:
1 - Logo que tenha conhecimento da denúncia, sem prejuízo das medidas cautelares e de polícia já adotadas, o Ministério Público, caso não se decida pela avocação, determina ao órgão de polícia criminal, pela via mais expedita, a realização de atos processuais urgentes de aquisição de prova que habilitem, no mais curto período de tempo possível sem exceder as 72 horas, à tomada de medidas de proteção à vítima e à promoção de medidas de coação relativamente ao arguido.
Esta interpretação sai reforçada se tivermos em conta o elemento histórico e já consagrado no art.º 28.º da Lei n.º 93/99, de 14 de julho, que institui a Lei de Proteção de Testemunhas, aplicável ao caso atento o disposto no art.º 20.º, n.º 8 da LVD, Lei 112/2009, o qual dispõe, sobre a Intervenção no inquérito, que:
1 - Durante o inquérito, o depoimento ou as declarações da testemunha especialmente vulnerável deverão ter lugar o mais brevemente possível após a ocorrência do crime.
Quer garantir-se que a testemunha especialmente vulnerável preste depoimento o mais rapidamente possível a seguir à prática factos para garantir a sua memória mais viva e próxima da ocorrência e bem assim garantir a obtenção de prova, já que nas situações como a presente como já dissemos e repetimos, as vítimas estão ligadas ao agressor por laços afetivos e sofrem pressões para alterar os seus depoimentos ou não os produzirem de todo.
(…)
Assim, repita-se, da inserção sistemática das declarações para memória futura na Lei n.º 112/2009, de 16 de setembro, que instituiu o Regime Jurídico aplicável à Prevenção da Violência Doméstica e à Proteção e Assistência suas Vítimas (LVD), resulta sem qualquer dúvida que as mesmas constituem, para além de por natureza um acto judicial que consubstancia uma antecipação da audiência de julgamento, sujeito à observância do seu formalismo dentro do possível, um meio de proteção da vítima, constituindo mesmo um direito seu, já que estas vítimas são vítimas especialmente vulneráveis (cf. art.º 67.º A, n.º 3, 1.º al. j) e l) do CPP e art.º Lei n.º 130/2015, de 04 de setembro, que aprovou o Estatuto da Vítima)”.

In casu, pela Mmª Juiz a quo, não é negada a necessidade da realização das requeridas declarações para memória futura, que apenas foram indeferidas porquanto, tendo o arguido viajado para Angola, se entendeu não ser possível a sua notificação para as mesmas.
Ora, tal circunstância – de o arguido estar a residir em Angola, em morada aparentemente desconhecida do tribunal – não impede a realização da diligência, já que o mesmo, ao abrigo do disposto no nº10 do Artº 113 do CPP, sempre dela poderia ser notificado na pessoa do seu defensor, sendo certo que o arguido prestou TIR, nele indicando uma morada para ser notificado do tribunal nos termos e para os efeitos constantes do Artº 196 do mesmo diploma legal.
Ainda que o arguido tivesse dito em tribunal que pretendia viajar para Angola – sendo autorizado para tanto – e que informaria os autos da sua morada nesse país para futuras notificações, a verdade é que não a indicou pelo que valem, por inteiro, as obrigações decorrentes do Artº 196 do CPP, no sentido de ser notificado na morada constante do TIR, bem se sabendo que cabe ao arguido a obrigação de comunicar a nova residência ou o local onde possa ser encontrado.
Por outro lado, é sabido que é amplamente maioritário o entendimento jurisprudencial no sentido de que a não constituição de arguido não impede a tomada de declarações pela memória futura pelo que, por maioria de razão, quando há arguido constituído, como é o caso dos autos, inexiste motivo para afastar tal diligência processual.
Acresce, que o MP requereu que as declarações fossem tomadas na ausência do arguido, pelo que sendo este notificado na morada por si indicada no TIR e na pessoa do seu defensor, estão assegurados todos os seus direitos de defesa.
Por fim, e ao contrário do que refere o despacho recorrido, o MP, na sua promoção, expressamente previu a possibilidade de tal diligência ser feita por carta precatória, tendo indicado os documentos que a deviam acompanhar, inexistindo razão, também aqui, para o seu indeferimento.
Nestes termos, ao abrigo das disposições combinadas dos Artsº 271 nsº3 e 6 do CPP, 33 da Lei 112/2009 de 16/09 e, máxime, 21 nº2 al. d) e 24 nsº1 e 6 da Lei n.º 130/2015, de 04/09, o recurso não pode deixar de proceder, no sentido de o despacho recorrido ser objecto de revogação, devendo ser proferido outro que defira o requerido.

3. DECISÃO

Nestes termos, decide-se conceder provimento ao recurso e em consequência, revoga-se o despacho recorrido, que deverá ser substituído por outro que determine a prestação de declarações para memória futura aos ofendidos F, O e J.
Sem custas.
xxx
Consigna-se, nos termos e para os efeitos do disposto no Artº 94 nº2 do CPP, que o presente acórdão foi integralmente revisto e elaborado pelo primeiro signatário.

Évora, 07 de maio de 2024
Renato Barroso
Fátima Bernardes
Carlos de Campos Lobo