Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
999/21.3T8GRD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOÃO AREIAS
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
REPARTIÇÃO DE CULPAS
INDEMNIZAÇÃO
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
EQUIDADE
Data do Acordão: 04/09/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO CENTRAL CÍVEL E CRIMINAL DA GUARDA DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DA GUARDA
Texto Integral: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 496.º, N.º 1, 503.º, N.º 3, 566.º, N.º 3, DO CÓDIGO CIVIL, 24.º, N.º 1, E 101.º, N.º 1, DO CÓDIGO DA ESTRADA
Sumário:
I – Se na altura do acidente, a posição do sol dificultava a visibilidade (facto que, além do mais, já era por si conhecido), o condutor deveria ter adequado a sua velocidade à visibilidade de que dispunha ou à ausência dela, pelo que, se não avistou o peão por tal facto, vindo a atropelá-lo quando este já se encontrava próximo do eixo da via, é de fixar a sua contribuição para o acidente, em 50%.

II – Sendo a equidade o critério para a determinação dos danos não patrimoniais, é válido o recurso a fórmulas matemáticas, à Portaria nº 377/2008, e à analise comparativa dos valores aplicados na nossa jurisprudência.

III – Tendo a lesada 68 anos de idade à data do acidente, tendo ficado com um défice funcional permanente de incapacidade física de 50,36 pontos, impeditivo do exercício da atividade profissional ou de qualquer outra, necessitando do auxilio de terceiro e de ajudas técnicas, de tratamentos médicos regulares, com um quantum doloris de 6 pontos e de um dano estético de 4, surge como adequada a fixação de uma indemnização por danos não patrimoniais no montante de 140.000 €.


(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Integral:
Processo nº 999/21.3T8GRD.C1 – Apelação

Relator: Maria João Areias

1º Adjunto: Catarina Gonçalves

2º Adjunto: Paulo Correia

                                                                                               

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I – RELATÓRIO

AA intenta a presente ação declarativa sob a forma de processo comum, contra A... – Companhia de Seguros, S.A.,

pedindo a condenação da Ré condenada a pagar à autora a título de indemnização pelos danos sofridos, a quantia global de 314 183,00 €,

 alegando – em síntese – ter sido interveniente em acidente de viação no qual foi atropelada por viatura automóvel cuja responsabilidade civil por danos emergentes de acidente de viação estava transferida para a Ré.

A Ré contestou, aceitando alguma da factualidade alegada, desde logo no respeitante ao contrato de seguro e às características do sinistro, impugnando a demais factualidade alegada, concluindo pela improcedência total da ação por ter sido a Autora quem, com o seu comportamento, deu exclusiva causa ao acidente.

Realizada audiência final, foi proferida Sentença, a julgar a ação totalmente improcedente, absolvendo a ré do pedido.


*

Inconformada, a autora interpõe recurso de Apelação, terminando as suas alegações de recurso com as seguintes conclusões, que aqui se reproduzem por súmula, face ao nítido incumprimento do dever de sintetizar os fundamentos do recurso, ínsito no art. 639º, nº1 do CPC:

(…).

*
A Ré Seguradora apresentou contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso.
Cumpridos que foram os vistos legais, cumpre decidir do objeto do recurso.
II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
Tendo em consideração que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações de recurso, sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso – cfr., artigos 635º, e 639º, do Novo Código de Processo Civil –, as questões a decidir seriam as seguintes:
1. Impugnação da matéria de facto:
a. Aditamento de factos;
b. Impugnação da decisão proferida quanto aos pontos 12., 15., 17. e 2., da matéria de facto dada como “provada”.
2. Se é de atribuir responsabilidade total/parcial ao condutor do veículo seguro na Ré, pela presunção do artigo 503º, nº3, do CC, ou efetiva.
3. Em caso afirmativo, fixação do montante da indemnização a atribuir à autora.
*
III – APRECIAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO

A. Matéria de facto

1. Impugnação da matéria de facto.

(…).


*

É a seguinte, a decisão proferida em sede de matéria de facto na sentença recorrida, com as alterações aqui introduzidas na sequencia da apreciação da impugnação deduzida pela Apelante:

1. Factos provados

1. No dia 27 de agosto de 2018, pelas 08:00 horas, na EN ...24, ao Km 82,818, na freguesia e concelho ..., distrito ... o veículo ligeiro de mercadorias, marca ..., modelo ..., de cor ..., com matrícula ..-..-XD, propriedade de C... Unipessoal, Lda., conduzido por BB, circulava no sentido ... – ...;

1.a. O condutor do veículo encontrava-se em trabalho às ordens de “C... Unipessoal, Lda”, proprietária do veículo, tinha saído das instalações da entidade patronal, em ..., e dirigia-se para uma obra que estava a ser executada em ....

2. A responsabilidade civil por danos emergentes de acidente de viação do veículo ..-..-XD estava transferida para a Ré por contrato titulado pela apólice de seguro n.º ...84.

3. O local do acidente configura um entroncamento à direita, atento o sentido de marcha do veículo;

4. A via configura uma subida muito acentuada, atento o sentido de marcha do veículo;

5. A largura da faixa de rodagem no local do acidente é de 7,30 metros e é dividida em duas hemifaixas de largura igual com 3,65 metros cada uma, dedicadas a cada um dos sentidos de trânsito;

6. O limite de velocidade para a circulação dos veículos no local é de 50 Km/hora;

7. Era dia, o piso e traçado estavam secos e em bom estado de conservação;

8. Naquelas circunstâncias de tempo e lugar, a Autora AA fazia a travessia da estrada, da direita para a esquerda – atento o sentido de marcha do veículo – no entroncamento, tendo sido colhida pelo veículo;

9. Não há passadeira para peões no local do embate, nem numa distância de 50 metros;

10. A estrada de acesso de onde provinha o peão tem uma inclinação ascendente, desde o seu início até intercetar com a Estrada Nacional;

11. A Autora realizava esse mesmo atravessamento, com periodicidade diária, há, pelo menos, 30 anos;

12. A Autora foi colhida pelo veículo na hemifaixa da direita, quando se encontrava na metade da via de trânsito mais próxima do eixo da faixa de rodagem e quando havia já percorrido 2,55 metros, a contar da berma.

13. Ocorrendo o embate na parte frontal esquerda da viatura;

14. A Autora transportava um balde equilibrado na sua cabeça contendo legumes no seu interior;

15. Após o embate, a Autora ficou prostrada no solo a distância não superior a 2 metros da viatura;

16. Não resultaram quaisquer marcas de travagem no solo;

17. A viatura imobilizou-se no local do embate;

18. Da placa com as indicações Quinta ... e ... até ao eixo do acesso de onde provinha o peão distam sensivelmente 86 metros;

19. Existe visibilidade livre desde pelo menos 7,60 metros antes do ponto de confluência do eixo da via de acesso de onde provinha o peão com a berma da Estrada Nacional e a 2ª curva situada à sua esquerda (sendo que, a curva mais próxima do peão é aquela que intercepta com a saída para a Quinta .../... e que se desenvolve para a esquerda atento o sentido de marcha de quem sobe; e a 2ª curva, aqui em causa, situa-se mais abaixo desenvolvendo-se para a direita atento o sentido de marcha de quem sobe, portanto aquele em que seguia a viatura interveniente nos autos);

20. O ponto de confluência do eixo da via de acesso de onde provinha o peão com a berma da Estrada Nacional e a 2.ª curva situada à sua esquerda conforme descrito em 19 distam aproximadamente 350 metros;

21. A via de trânsito onde ocorreu o sinistro situa-se fora de localidade e ladeada por campos;

22. Para quem seguia no sentido do veículo, àquela hora a luminosidade era encandeante, pelo que, a visão do condutor do veículo XD vinha sendo perturbada pela luminosidade do sol.

22. a. O condutor conhecia a estrada em que circulava, sabia que se aproximava de um entroncamento onde é frequente a travessia de peões.

23. Foi elaborada, pelo destacamento territorial de ..., Participação do Acidente de Viação, no qual não foi nomeado o peão em virtude de ter sido transportado para o Centro de Saúde antes da chegada dos elementos da GNR;

24. Na sequência do sinistro, a Autora, à data com 68 anos, foi assistida no local pela VMER que a transportou para a unidade de saúde da Guarda EPE;

25. Deu entrada no serviço de urgência com politraumatismos e fraturas diversas;

26. Esteve internada entre 27 de agosto e 16 de outubro de 2018 nos serviços de medicina intensiva e de ortopedia;

27. Em 16/10/2018 foi transferida para a UMDR SCM de ... onde permaneceu até 13/06/2019, data em que regressou para a sua residência;

28. Na sequência do sinistro a Autora, à data com 68 anos, passou a padecer das seguintes sequelas:

i. Pescoço: cicatriz cervical anterior linear com 4cm normocromica;

ii. Ráquis: Cervicalgia mecânica com rigidez cervical mais marcada em inclinações laterais. Ligeira diminuição da força muscular apendicular dos quatro membros G4. ROT com ligeira hiperreflexia de bicipital e patelar de forma simétrica. Rigidez e dor lombar de características mecânicas. Sem capacidade para realização de Romberg. Mantem ortostatismo em posição com base alargada com necessidade de supervisão;

iii. Membro superior esquerdo: limitação da mobilidade do membro superior esquerdo, mais focalizada ao nível do ombro esquerdo. EA50⁰; EL30⁰; RE 0⁰' RI polegar a L5. Leva mão à boca, mas não permite mão a orelha ipsilateral

iv. Membro inferior direito: Limitação da mobilidade do membro inferior direito com arco em 0 e 100⁰

v. Membro inferior esquerdo: dor sacroilíaca e pélvica mais marcada à esquerda. Limitação da mobilidade do membro inferior esquerdo com arco em 0 e 80⁰. Realiza marcha com andarilho, lentificada, segura, com transferência de carga para o membro inferior direito;

29. A data de consolidação das lesões é fixável em 13/06/2019;

30. O défice funcional temporário total é de 56 dias;

31. O défice funcional temporário parcial é de 235 dias;

32. O quantum doloris de grau 6 numa escala de 7;

33. Padece de um dano estético de grau 4 numa escala de 7;

34. Como consequência do sinistro, a Autora passou a padecer de défice funcional permanente da integridade físico-psíquica em 50,36 pontos;

35. E de uma repercussão permanente nas atividades desportivas e de lazer num grau de 3 numa escala de 7;

35.a. Com repercussão na atividade sexual.

36. Por força do sinistro, a Autora passou a depender de:

a. tratamentos médicos regulares, estimados em até 3 ciclos de 20 sessões por ano de programa de reabilitação física;

b. ajudas técnicas, nomeadamente, andarilho, cadeiras de rodas e cadeira de banho;

c. ajuda de terceira pessoa, em período estimado em 5 horas diárias;

37. À data do sinistro, a Autora encontrava-se reformada desde 16/07/2016;

38. Como consequência do atropelamento de que foi vítima, a Autora suportou as seguintes despesas:

a. Medicamentos: 893,17 €

b. Consulta, exames: 780,00 €

c. Pagamentos Santa Casa da Misericórdia: 5 991,83 €

d. Tala de joelho: 128,00 €

e. Fraldas, fralda - cueca e resguardos de cama: 2 400,00 €

f. Obras de adaptação que na sua residência: 3 690,00 €

39. A Autora padeceu de sofrimento físico e psicológico resultante da vivência do traumatismo, lesões sofridas, tratamentos, consultas e o período de recuperação;


*

B. O Direito.

1. Contribuição do veículo seguro na Ré para o deflagrar do acidente.

A decisão recorrida veio a julgar a ação totalmente improcedente, atribuindo a culpa do acidente em exclusivo ao peão, com base na seguinte apreciação que faz do circunstancialismo dado como provado:

“Num rápido exercício reconstitutivo, percebeu-se que a viatura segurada na Ré segue, em síntese, em pleno respeito pelas normas estradais (incluindo as de velocidade), num sentido que a faz aproximar de um entroncamento com uma interseção à direita.

A estrada onde circula situa-se fora de uma localidade, num meio rural, apenas ladeada por campos.

Não existe qualquer elemento que dê nota da possibilidade da passagem de pões: evidentemente e desde logo, porquanto não se trata de uma zona na qual tal possibilidade esteja prevista ou seja de presumir (v.g., em face de sinalização existente; proximidade de habitações ou zonas industriais ou de lazer, etc.).

Numa palavra, é então totalmente inexigível que – ressalvadas as precauções de uma condução prudente e atenta, em respeito pelos preceitos legais aplicáveis, em termos perfeitamente gerais – um qualquer condutor preveja ou pressuponha o atravessamento da via por um peão em tal zona.

Nessa marcha correta, o condutor é confrontado com um peão no meio da via em que circula. Ora, as circunstâncias desse dito confronto são, então, determinantes.

Ficou claro que o peão tem visibilidade até cerca de 350 metros para a sua esquerda (i.e., para o local de onde viria a viatura) e que essa visibilidade lhe é concedida 7,60 metros antes de chegar à estrada nacional; ou seja, com a antecedência de quase 8 metros, já era possível à Autora começar a observar a via a uma distância de 350 metros e, dessa forma, averiguar se existia óbice ao atravessamento.

Note-se aqui que o raciocínio inverso já não é passível de ser realizado, bastando para isso considerar que o peão seguia com a intenção de atravessar a estrada (tendo por isso consciência prévia das implicações e requisitos de tal ato), mas já a viatura nada tinha perante si que lhe fizesse sequer imaginar essa possibilidade (portanto, seria irreal exigir ao respetivo condutor que conduzisse no pressuposto de que, a qualquer momento, um peão se lhe atravessaria no caminho de forma inopinada); logo, repete-se, este último nada mais tinha a fazer que não prosseguir a sua marcha em observância das normas legais, como fez.

Naturalmente, para que dúvidas não restem, bem se sabe que a qualquer condutor é exigido que conduza de forma prudente a fim de fazer face a um imprevisto como o surgimento de um peão.

No entanto, não pode tal exigência ser levada ao ponto de impor que este conte com um peão que não se faz visível aos demais utentes da via e que inicia resoluta e repentinamente a sua marcha, caso contrário e permita-se o excesso de linguagem, estar-se-iam a exigir dotes sobrenaturais no exercício da condução a fim de evitar atropelamentos.

Mais ainda, contrariamente ao juízo encetado para o condutor, nem sequer é possível considerar que o peão se comportou de forma prudente pois que se percebeu que transportava, em equilíbrio, um balde sobre a sua cabeça o que, segundo as mais elementares regras da experiência comum, lhe condiciona invariavelmente a capacidade de movimentação da cabeça e respetiva agilidade nesse processo, sendo por isso de concluir que nem sequer terá havido um constante direcionamento do olhar para ambos os sentidos de trânsito aquando da aproximação à estrada, conduta mínima indispensável a quem se propõe realizar o temerário atravessamento da via ora em análise.

Ademais, encontra-se completamente afastada a possibilidade do condutor – ainda que usando de especial prudência – se apercebesse atempadamente da existência do peão pois que, ora este se tinha mostrado e confiado na segurança do atravessamento, tendo apesar disso o veículo prosseguido resolutamente a sua marcha (caso de manifesto dolo, estando esta hipótese absolutamente indemonstrada); ora – como se percebe ser o caso – apenas aquando do embate se apercebe da sua presença.

Ora, se assim foi, e encontrando-se demonstrada a interferência momentânea do sol retirando visibilidade ao condutor no momento do embate, tendo a carrinha parado praticamente de imediato, sem qualquer rasto de travagem e a projeção do peão ter ocorrido apenas num curto espaço, apenas é possível concluir que, apesar da conduta irrepreensível do condutor, o peão lhe surge inopinadamente e sem se fazer anunciar, ainda por cima de um local de onde não existia qualquer indício de que tal pudesse acontecer.

O fatídico e infeliz acontecimento é, então, provocado exclusivamente pela conduta temerária da Autora a qual, em evidente contravenção ao artigo 101.º do Código da Estrada e desafiando as mais elementares regras da prudência, atravessou a faixa de rodagem sem previamente se certificar de que, tendo em conta a distância que a separa dos veículos que nela transitam e a respetiva velocidade, o poderia fazer sem perigo de acidente”.

Insurge-se a Apelante contra o decidido, com base nos seguintes fundamentos:

- contrariamente ao entendimento plasmado pelo tribunal recorrido, a culpa do condutor do veículo presume-se, nos termos do disposto no nº3 do art. 503º do CC, atenta a relação comissário/comitente entre ele e a sua entidade patronal;

trata-se de uma presunção iuris tantum, suscetível de prova em contrário, prova que o condutor do veículo não fez;

- se o peão tivesse surgido inopinadamente e de forma repentina o embate teria ocorrido do lado direito da viatura e não na parte frontal esquerda e a autora teria ficado prostrada na faixa de rodagem no sentido de ...;

 se condutor fizesse uma condução atenta e respeitando as normas estradais, teria visto a Autora e não teria ocorrido o atropelamento; caso a luminosidade e os raios solares diminuíssem a visibilidade, conhecia, o condutor, perfeitamente as características da estrada em que circulava, tinha conhecimento da presença do sol e na posição em que este se encontrava, àquela hora da manhã,

sabia, de acordo com as declarações por si prestadas, da possibilidade de ficar encadeado pela luz solar, e, não obstante isso, não reduziu a velocidade em que circulava, como devia e podia ter feito, vindo a atropelar o peão.

O Apelante faz, assim, assentar a culpa do condutor do veículo seguro na Ré, em primeiro lugar, na existência de uma presunção de culpa e, em segundo lugar, na existência de culpa efetiva.

E, nesta, temos de reconhecer razão à Apelante.

Desde logo, a decisão recorrida não atentou na presunção de culpa contida no nº3 do artigo 503º do Código Civil, segundo o qual “aquele que conduzir o veículo por contra de outrem responde pelos danos que causar, salvo se se provar que não houve culpa da sua parte; se porém, o conduzir fora do exercício das suas funções de comissário, responde nos termos do nº1”.

A lei consagra uma presunção (ilidível) de culpa, que recai sobre quem conduzir na qualidade de comissário: este responde com base em culpa, que se presume, respondendo igualmente o detentor, solidariamente, nos termos do nº3 do artigo 500º.

Este é um caso típico de condução por conta de outrem.

O condutor do veículo era trabalhador da empresa proprietária do veículo e conduzida no exercício das suas funções, deslocando-se para uma obra que a empresa andava a realizar e levando consigo o seu “patrão” e mais dois trabalhadores.

E, da materialidade dada como provada, tal presunção de culpa que incide sobre o condutor do veículo não se mostra ilidida.

Antes pelo contrário.

O peão – uma senhora de 68 anos que levava um balde à cabeça –, saindo de uma estrada situada à direita do veículo – veio a ser embatido pela frente, lado esquerdo, do veículo, quando havia já percorrido 2, 55 m (a contar da berma do lado direito).

O condutor da viatura não a viu porque foi encandeado pelo sol, num local que ele conhecia e onde este fenómeno é comum.

Ora, ao contrário do sustentado na decisão recorrida, o facto de não ter visto o peão que caminhava à sua frente com um balde na cabeça, durante todo o tempo em que este percorreu 2,55 metros na estrada à sua frente, não o absolve de qualquer contribuição para o acidente.

Se àquela hora, a posição do sol dificultava a visibilidade (facto que, além do mais, já era por si conhecido), deveria ter adequado a sua velocidade à visibilidade de que dispunha ou à total ausência de visibilidade com que se deparou.

Se um condutor, seja porque circunstâncias for, deixar de ter um espaço visível à sua frente de, pelo menos 30 metros, terá de se imobilizar, não lhe sendo lícito continuar a circular “no escuro”, esperando que nenhum obstáculo, viatura ou peão, lhe apareça pela frente.

Com efeito, segundo o disposto no nº1 do artigo 24º do Código da Estrada, “1 - O condutor deve regular a velocidade de modo a que, atendendo à presença de outros utilizadores, em particular os vulneráveis, às características e estado da via e do veículo, à carga transportada, às condições meteorológicas ou ambientais, à intensidade do trânsito e a quaisquer outras circunstâncias relevantes, possa, em condições de segurança, executar as manobras cuja necessidade seja de prever e, especialmente, fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente.

Se é certo que não se provou que circulasse ultrapassando os limites máximos previstos para o local pela sinalização aí existente (50Km/hora), teremos de afirmar que circulava com excesso de velocidade, ao não adequar a velocidade a que seguia às condições de visibilidade do local aquela hora.

A par de tal culpa que, em nosso entender, não é meramente presumida, mas efetiva, haverá que atender à comparticipação da conduta do peão para o deflagrar do acidente.

O acidente ocorreu porque o peão se meteu à estrada sem ter avaliado corretamente se tinha tempo de a atravessar em segurança (em violação do disposto no art. 101º, nº1, CE), mas, igualmente, porque o condutor do veículo, apesar de estar a ser encandeado pela luz do sol, manteve a sua marcha, o que o impediu de ver o peão que se encontrava a atravessar a estrada.

Tal circunstancialismo levar-nos-á a fixar a contribuição para o deflagrar do acidente, em 50% para cada um dos intervenientes.


*

2. Montante da indemnização a atribuir à autora por danos patrimoniais e não patrimoniais

Como compensação dos danos para si resultantes do sinistro, para além do valor das despesas por si efetuadas, peticiona ainda a autora:

1. uma indemnização em valor não inferior a 180.000 €, a titulo de dano não patrimonial, nele incluído o dano biológico;

2. bem como a quantia de 120.000 €, a título de dano patrimonial uma vez que necessitará do acompanhamento de terceiro para o resto da sua vida.

Na sua contestação, a Ré não se pronuncia quanto aos valores peticionados.

Comecemos pela análise dos danos não patrimoniais a indemnizar

São compensáveis os danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito (artigo 496º, nº1, do Código Civil), entre os quais se incluirão os resultantes da violação do direito à saúde e integridade física.

O dano corporal é atualmente visto como suscetível de uma tripla avaliação[1]:

a) como dano patrimonial futuro, sempre que seja gerador de rebate profissional concreto, ocasionando perda de rendimentos para o trabalho;

b) como dano biológico, enquanto violação do direito à integridade físico-psíquica, passível de avaliação enquanto tal, abarcando as incapacidades funcionais resultantes de uma alteração morfológica do lesado, limitativo da sua viver a vida como a vivia antes;

c) como dano não patrimonial, na sua vertente de dano moral e estético, no sentido de que qualquer disfunção na saúde é causa de um sofrimento moral.

No caso em apreço, encontra-se em causa a fixação de uma indemnização pelo dano corporal, unicamente nas vertentes referidas nas als. b) e c), enquanto dano biológico, moral e estético, ou seja, encontrando-se em causa, a dimensão do dano biológico referida na citada alínea b) do artigo 3º da Portaria nº 377/2008 – a incapacidade funcional resultante das lesões sofridas pela autora e as suas repercussões nas suas atividades diárias e relacionais, nelas se incluindo os esforços significativos acrescidos que implica para o exercício da sua atividade habitual – e o dano moral e estético que aí surgem autonomizados.

Para qualquer um desses danos, o único e verdadeiro critério reside na equidade, nos termos do artigo 566º, nº3, do Código Civil.

A determinação do montante da indemnização com recurso à equidade, não dispensa que a busca de uma soma justa, não só, em si mesma, mas também quando reportada as indemnizações atribuídas em casos semelhantes, seja auxiliada através do recurso a critérios objetivos que possam balizar o valor do montante da indemnização, com vista a um tratamento igualitário das vítimas.

Assim sendo, tem-se por adequado o recurso pela jurisprudência a tabelas financeiras ou a cálculos matemáticos para alcançar o capital produtor do rendimento que se extinguirá no termo do período provável de vida do lesado, determinado com base na esperança média de vida (e não apenas em função do período de vida profissional ativa), com uma redução entre 1/3 ou ¼, pelo facto de correr uma antecipação do pagamento do capital.

Maiores divergências se têm revelado no rendimento que serve de base de a tal cálculo, reconhecendo-se a tendência atual no sentido de que, encarando-se o dano biológico como uma lesão da integridade psicofísica, esta será igual para todos.

O direito à saúde ou à integridade física, é igual para todos os seres humanos e deve ser autónomo e independente do nível do rendimento e da situação financeira da vítima. Este tem sido entendimento unânime nos tribunais quanto à atribuição de um valor à vida igual para todos, considerando como único elemento diferenciador a idade da vítima[2].

Dentro desta ordem de considerações e relativamente aos casos em que os lesados não sofram uma efetiva diminuição de rendimentos profissionais, Rita Mota Soares[3], sustentando não haver razão alguma para tratamentos diferenciados por referência ao salário ou ao rendimento habitual, propõe que o julgador parta de uma base uniforme que possa utilizar em todos os casos, para depois temperar o resultado final com elementos do caso que eventualmente aconselhem uma correção com base na equidade[4].

Também a jurisprudência vem defendendo que o dano biológico expresso no grau de incapacidade de que o lesado fica a padecer, quando não interfere na capacidade de ganho antes determinando um esforço acrescido para viver e para as todas as atividades diárias, é igualmente grave para quem exerce uma profissão remunerada com 5.000 € ou com 500 €, pelo que, estando em causa o mesmo tipo de dano, o ponto de partida para o cálculo da indemnização deve ser o mesmo para todos, em obediência ao princípio da igualdade[5].

E a proposta maioritária vai no sentido de se ter nestes casos, como ponto de partida mais adequado, o da remuneração média nacional, por tal valor refletir de forma mais coincidente com a realidade a situação económica global do país onde as indemnizações em causa se inserem[6].

No caso em apreço, quanto aos danos permanentes, o IML atribuiu à autora um Défice Funcional Permanente da Integridade Físico-Psíquica[7], fixável em 50,36 pontos, considerando ainda que as sequelas apresentadas por esta são, em termos de Repercussão Permanente na Atividade Profissional, impeditivas do exercício da atividade profissional ou de qualquer outra.

Atenderemos ainda aos seguintes factos:

- à data do sinistro a Autora tinha 68 anos e encontrava-se reformada há cerca de dois anos;

deu entrada no serviço de urgência com politraumatismos e fraturas diversas, tendo ficado internada entre 27 de agosto e 16 de outubro de 2018 nos serviços de medicina intensiva e de ortopedia;

em 16/10/2018 foi transferida para a UMDR SCM de ... onde permaneceu até 13/06/2019, data em que regressou para a sua residência;

o défice funcional temporário total é de 56 dias;

o défice funcional temporário parcial é de 235 dias;

o quantum doloris de grau 6 numa escala de 7;

padece de um dano estético de grau 4 numa escala de 7;

como consequência do sinistro, a Autora passou a padecer de défice funcional permanente da integridade físico-psíquica em 50,36 pontos;

e de uma repercussão permanente nas atividades desportivas e de lazer num grau de 3 numa escala de 7;

com repercussão na atividade sexual.

Por força do sinistro, a Autora passou a depender de:

a. tratamentos médicos regulares, estimados em até 3 ciclos de 20 sessões por ano de programa de reabilitação física;

b. ajudas técnicas, nomeadamente, andarilho, cadeiras de rodas e cadeira de banho;

c. ajuda de terceira pessoa, em período estimado em 5 horas diárias;

Se recorrêssemos ao primeiro dos critérios que referimos, tendo em consideração uma esperança média de vida de cerca de 85,98 anos para a mulher portuguesa[8], a idade da autora à data do acidente – 68 anos –, a remuneração média mensal de 1.505,00 €[9] reportada a 2023, data mais próxima que este tribunal pode atender, e um défice de 50,36 pontos, obteremos o seguinte valor:

1.505 € x 14 x 0,5036 = 7.035,54 € x 17,98 anos de esperança de vida = 190 783,11 €

Atendendo a que tal capital é recebido de uma vez só, haverá de ser objeto de uma redução na ordem de 1/3 ou de ¼, atingindo-se aos valores de 127 188,75 € e de 143.087,33 €, respetivamente.

Utilizando a tabela constante do Anexo IV da Portaria nº 377/2008, de 26 de maio (nos valores atualizados pela Portaria 679/2009, de 25 de junho), obteremos um resultado entre 365 € a 525 € o valor do ponto – para uma incapacidade entre 46 a 50 e uma idade entre 56 a 59, e tendo em conta que nesse intervalo a incapacidade em apreço está no valor máximo e que a idade também, optaríamos por um valor médio – 445 (valor este que seria depois multiplicados por cada ponto de incapacidade), o que daria, pela aplicação direta de tal tabela, uma indemnização no valor de 22.410,20 €.

Os critérios constantes da Portaria nº 377/2008, destinando-se expressamente a facilitar a obtenção de uma proposta “razoável” ao nível extrajudicial, e não sendo vinculativos para o julgador, podem ser utilizados como mera base de trabalho, no sentido de harmonização dos valores a arbitrar.

E como base de trabalho, haverá de nela introduzir uma correção relativamente à sua base de cálculo, uma vez que parte do valor da Retribuição Mínima Mensal Garantida (RMMG) reportada a 2007, ou seja 430€, havendo que a substituir pelo rendimento médio mensal verificado à dada mais próxima que pudermos considerar – 1.505,00 €, reportado a 2023.

Assim, se optarmos por partir, não pelo rendimento mensal garantido de 2007, mas pelo rendimento médio mensal verificado à data mais próxima que pudermos considerar – um valor de 1.505,00 € reportado a 2023 –, e através da aplicação da regra de três simples, chegaríamos a uma indemnização no valor de 83.689,00 €.

Contudo, haverá ainda que atentar que a Portaria nº 377/2008 procede à autonomização de outros danos que ao nível conceptual se poderiam dizer incluídos no chamado “dano biológico”, prevendo aí indemnizações pelo dano estético, pelo quantum doloris e por cada dia de internamento hospitalar[10], no que denomina de Danos Morais Complementares (Anexo I), a acrescer à indemnização do dano biológico.

Assim sendo, de acordo com os critérios aí previstos, haveria ainda de ter em consideração o tempo de internamento – 50 dias nos serviços de medicina intensiva e de ortopedia, o que a multiplicar por 30,78€, daria um valor de 1.539,00 € – mais um quantum doloris de 6, cuja compensação poderia ir até 3.283,20 €, e para um dano estético de grau 4, um valor que poderia ir até 4.104,00 €.

Tendo em consideração os valores a que nos levou a aplicação das duas identificadas fórmulas de cálculo, o facto de, no caso em apreço, este défice funcional permanente de 50,36 %, envolver uma incapacidade para qualquer atividade (profissional ou outra) e uma dependência do auxilio de terceiro e de ajudas técnicas tais como cadeira de rodas, andarilho e cadeira de banho, ainda o facto de para além do tempo de internamento hospitalar ter estado internada durante mais oito meses em cuidados continuados, leva-nos a ter como adequada, a fixação do dano não patrimonial, nele incluídas todas as componentes aqui referidas, no valor de 140.000 €.


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Quanto ao valor necessário a compensar a autora pelas despesas que terá de suportar por se ver obrigada a socorrer-se dos serviços de 3ª pessoa, a contratar para o efeito, 5 horas por dia, os 120.000,00 € propostos parecem corretos (No Anexo V, como despesa emergente para ajuda doméstica temporária, prevê-se aí um valor de até 6,16 €/hora).

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Somados os valores das despesas consequentes do atropelamento de que foi vitima e que acham discriminadas no ponto 38 dos factos provados 13.883 €, temos um valor indemnizatório global de 273.883 €.

Aplicando a tal montante a redução proporcional à culpa do lesado (50%), a indemnização a arbitrar à autora ascenderá à quantia de 136.951,50 €. com juros desde a citação relativamente às despesas a que se reportam o ponto 38 e com juros vincendos relativamente aos demais valores desde a presente decisão, por se tratarem de valores atualizados[11].

A apelação é de proceder parcialmente.


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IV – DECISÃO

 Pelo exposto, acordam os juízes deste tribunal da Relação em julgar parcialmente procedente a Apelação, revogando-se a decisão recorrida, e condenando-se a Ré no pagamento à autora de uma indemnização no montante de 136.951,50 €, com juros desde a citação relativamente às despesas a que se reportam o ponto 38 e com juros vincendos relativamente aos demais valores desde a presente decisão, por se tratarem de valores atualizados.

Custas da Apelação a suportar pela Apelante e pela Apelada, na proporção de vencimento.

Notifique.

                                                                   Coimbra, 09 de abril de 2024                                             

V – Sumário elaborado nos termos do artigo 663º, nº7 do CPC.

(…).



[1] Cfr., neste sentido, Conselheiro Joaquim José de Sousa Dinis, “Avaliação e reparação do dano patrimonial e não patrimonial (no direito civil)”, in Revista Portuguesa do Dano Corporal (19), 2009, pág. 56, o qual situa o dano corporal enquanto gerador de esforços acrescidos para a manutenção do mesmo rendimento, na categoria do dano não patrimonial, e ainda José Alvarez Quintero e Paulo Figueiredo, “Avaliação do Dano Corporal e Seguros”, in “Aspectos Práticos da Avaliação do Dano Corporal em Direito Civil”, Biblioteca Seguros, Julho de 2008, número 2, p. 26.
[2] J. Alvarez Quintero e M. João Sales Luís, “A atualização do sistema de indemnização nos acidentes de viação. Uma reforma necessária?”, Revista Portuguesa do Dano Corporal (18), 2008, [p.89-33], disponível in https://digitalis.uc.pt/pt-pt/artigo/actualiza%C3%A7%C3%A3o_do_sistema_de_indemniza%C3%A7%C3%A3o_nos_acidentes_de_via%C3%A7%C3%A3o_uma_reforma_necess%C3%A1ria.
[3] “Poderes/deveres da Relação na reapreciação da matéria de facto. O Dano Biológico quando da afectação funcional não resulte perda da capacidade de ganho – o princípio da igualdade”, in Revista Julgar, nº33 – 2017, p.126.
[4] Tal autora propôs então que se tomasse por base um rendimento de 800€ (x14) – valor que se situava entre a RMMG (de 557,00 € desde 1 de janeiro de 2017) e o salário médio (de 913,9 € de acordo com a PORDATA), tendo por razoável que os cálculos tivessem por referência o salário médio ou outro que se mostre razoável, importando acima de tudo obter alguma uniformidade quanto ao valor a considerar naquele cálculo primário - Artigo e local citado, p. 126, nota 38.
[5] Neste sentido, entre outros, Acórdão do TRC de 04.06.2013, relatado por Maria Inês Moura, disponível in www.dgsi.pt.
[6] Acórdão TRC de 28-05-2013, citado no Acórdão do TRC de 04-06-2013, relatado por Inês Moura, e Ac. STJ de 17-01-2023, relatado por António Barateiro Martins, ambos disponíveis in www.dgsi.pt.
[7] Como consta da pág. 6 de tal relatório, corresponde à “afetação definitiva da integridade física e/ou psíquica da pessoa, com repercussão nas atividades da vida diária, incluindo as familiares ou sociais e, sendo independente das atividades profissionais corresponde ao dano que vinha sendo tradicionalmente designado por Incapacidade Permanente Geral – nomeadamente no Anexo II do Decreto-Lei nº 352/2007, de 23 de Outubro, e referido na Portaria nº 377/2008, de 26 de Maio, como dano biológico”.
[8] Segundo os dados do INE, a esperança de vida aos 65 anos, no período 2020-2022, foi estimada em 19,61 anos para o total da população. Aos 65 anos, os homens podiam esperar viver 17,76 anos e as mulheres 20,98 anos - file:///C:/Users/MJ01318/Dropbox/My%20PC%20(MAG9GW6YY200010)/Downloads/31TabuasMortalidade2020_2022%20(1).pdf.
[9] Remuneração média mensal dos trabalhadores por conta de outrem segundo os dados da Pordata, disponíveis in https://www.pordata.pt/Portugal/Sal%C3%A1rio+m%C3%A9dio+mensal+dos+trabalhadores+por+conta+de+outrem+remunera%C3%A7%C3%A3o+base+e+ganho-857.
[10] A que a Portaria atribui um valor diário entre 20,52 € a 30,78 €.
[11] Em consonância com o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência nº 4/2002, de 09.05.