Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1871/23.8T8LRA-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA CATARINA GONÇALVES
Descritores: PROCESSO DE INSOLVÊNCIA
GRADUAÇÃO DE CRÉDITOS
CRÉDITOS GARANTIDOS POR PENHOR
CRÉDITOS DO ESTADO
CRÉDITOS DA SEGURANÇA SOCIAL
CRÉDITOS DOS TRABALHADORES GARANTIDOS POR PRIVILÉGIO MOBILIÁRIO
Data do Acordão: 04/09/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE COMÉRCIO DE LEIRIA DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA
Texto Integral: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 9.º, 666.º, 747.º, 749.º DO CÓDIGO CIVIL, 204.º, N.º 2, DO CÓDIGO DOS REGIMES CONTRIBUTIVOS DO SISTEMA PREVIDENCIAL DE SEGURANÇA SOCIAL E 333.º DO CÓDIGO DO TRABALHO
Sumário:
Na impossibilidade de conjugar as várias disposições legais aplicáveis no que toca à graduação de créditos em caso de concurso de créditos garantidos por penhor e créditos do Estado, da segurança social e dos trabalhadores garantidos por privilégio mobiliário, a solução que melhor respeita – ou que menos desrespeita – a letra da lei e o pensamento e a vontade do legislador corresponderá a graduar os créditos pela ordem seguinte: créditos com privilégio da segurança social, créditos garantidos por penhor, créditos com privilégio dos trabalhadores e créditos com privilégio do Estado.

(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Integral:

Apelação nº 1871/23.8T8LRA-B.C1
Tribunal recorrido: Comarca de Leiria - Leiria - Juízo Comércio - Juiz 3
Relatora: Maria Catarina Gonçalves
1.º Adjunto: Arlindo Oliveira
2.º Adjunto: Maria João Areias


Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:


I.
No âmbito do processo de insolvência referente a A..., Lda. – cuja insolvência foi declarada por sentença proferida em 24/05/2023 – foi proferida sentença de verificação e graduação de créditos que, na parte que agora releva, graduou os créditos em relação ao produto da venda dos bens móveis não sujeitos a registo apreendidos sob as verbas PM 1.1 e PM 1.2 nos seguintes termos:
- Em 1º lugar, o crédito privilegiado do Instituto da Segurança Social;
- Em 2º lugar, o parcial de crédito do Banco 1..., S.A. garantido por penhor sobre tais bens;
- Em 3º lugar, os créditos laborais reconhecidos como privilegiados aos credores ex-trabalhadores;
- Em 4º lugar, o parcial do crédito privilegiado da Fazenda Nacional respeitante a IRS/DMR e IRS;
- Em 5º lugar, o crédito privilegiado do IAPMEI, IP;
- Em 6º lugar, os créditos comuns;
- Em 7º lugar, os créditos subordinados.

Inconformado com essa decisão, o Banco 1..., S.A. veio interpor recurso, formulando as seguintes conclusões:
(…).

Não houve resposta ao recurso.
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II.
Questão a apreciar:
Atendendo às conclusões das alegações da Apelante – pelas quais se define o objecto e delimita o âmbito do recurso – a questão a apreciar e decidir consiste em saber se o crédito da Apelante – garantido por penhor – deve ser graduado, no que toca aos bens sobre os quais incide o penhor, com preferência relativamente aos créditos da segurança social, do Estado e dos trabalhadores que gozam de privilégio mobiliário.
/////

III.
Na 1.ª instância, julgaram-se provados os seguintes factos:
1) Por sentença proferida nos autos principais em 24/05/2023, já transitada em julgado, foi declarada a insolvência da sociedade comercial por quotas A..., Lda., com o NIPC ...15, onde foi fixado o prazo de 30 dias para reclamação de créditos.
2) Pela Exma. Administradora da Insolvência, em 14.07.2023, foi apresentada a lista dos credores reconhecidos e não reconhecidos a que alude o artigo 129.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
3) Foram apreendidos para a massa insolvente os seguintes bens (considerando o auto de apreensão rectificado junto ao ap. A a 14/07/2023, bem como o auto de apreensão aí junto a 17/11/2023):
a) Diversos bens móveis não sujeitos a registo.
b) O veículo automóvel com a matrícula ..-EZ-...
c) 4.450 acções da B..., S.A., no valor nominal de € 1,00 cada;
d) Saldo bancário no valor de € 10.007,85.
4) Sobre as verbas PM 1.1 (uma prensa da marca “MILLUTENSIL”, modelo “BLUE LINE – BV.28EGR”, com número de série ....072 do ano de 2018) e PM 1.2 (Lote composto por um centro de maquinação da marca “AXILE”, modelo “V5” (…), etc.) do auto de apreensão de bens móveis não sujeitos a registo, encontra-se constituído penhor a favor do credor Banco 1..., S.A..
5) Sobre as referidas acções encontra-se constituído penhor a favor da credora B..., S.A..
6) O processo principal de insolvência iniciou-se no dia 08/05/2023, com a junção da d. petição inicial pela devedora, ora insolvente.
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IV.
Coloca-se no presente recurso a questão de saber como deve ser graduado o crédito da Apelante – garantido por penhor – no concurso com créditos da segurança social e créditos laborais, sustentando a Apelante que, ao contrário do que se decidiu, o seu crédito deve ser graduado em primeiro lugar, preferindo ao crédito da segurança social.
Conforme veremos, a posição sustentada pela Apelante é perfeitamente legítima e defensável (colhendo apoio na jurisprudência ao nível, designadamente, do STJ). Não tem sido essa, contudo, a posição que temos vindo a assumir e que, pelo menos por ora, não encontramos razões para alterar.
Vejamos.

Relativamente ao penhor dispõe o artigo 666.º do CC que ele “…confere ao credor o direito à satisfação do seu crédito, bem como dos juros, se os houver, com preferência sobre os demais credores, pelo valor de certa coisa móvel, ou pelo valor de créditos ou de outros direitos não susceptíveis de hipoteca, pertencentes ao devedor ou a terceiro”.
Relativamente aos créditos da segurança social, o artigo 204.º do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social – aprovado pela Lei nº 110/2009 de 16/09 – dispõe nos seguintes termos:
1 - Os créditos da segurança social por contribuições, quotizações e respectivos juros de mora gozam de privilégio mobiliário geral, graduando-se nos termos referidos na alínea a) do n.º 1 do artigo 747.º do Código Civil.
2 - Este privilégio prevalece sobre qualquer penhor, ainda que de constituição anterior” sublinhado nosso.
É indiscutível, portanto, que, por disposição expressa do legislador, o privilégio de que gozam os créditos da segurança social prevalece sobre o penhor (ainda que constituído anteriormente), sendo certo, por isso, que, no confronto – exclusivo – entre um crédito da segurança social com privilégio mobiliário geral e um crédito garantido por penhor, é o primeiro que prevalece. Nesse ponto, a lei não deixa margem para qualquer dúvida.
A situação complica-se, no entanto, quando – como acontece no caso dos autos – estão em concurso créditos da segurança social, créditos garantidos por penhor, créditos do Estado e créditos dos trabalhadores; nessa situação, a (aparente) clareza da solução resultante das citadas disposições legais entra em conflito com outras normas jurídicas e a resolução dessa questão não tem merecido resposta uniforme da nossa jurisprudência.
Expliquemos.
- De acordo com o disposto no citado artigo 204.º do CRCSPSS, os créditos com privilégio da segurança social são graduados nos termos referidos na alínea a) do n.º 1 do artigo 747.º do Código Civil e de acordo com o disposto no artigo 333.º do Código do Trabalho, os créditos dos trabalhadores com privilégio mobiliário geral são graduados antes dos referidos no artigo 747.º do CC, ou seja, os créditos dos trabalhadores seriam graduados antes dos créditos do Estado e da Segurança Social;
- Sucede que o privilégio mobiliário dos créditos do Estado e das autarquias locais referidos na alínea a) do n.º 1 do art.º 747.º, bem como o dos trabalhadores, não prevalecem sobre o penhor (uma vez que estão submetidos ao regime previsto no CC onde se determina – art.º 749.º – que o privilégio geral não vale contra terceiros, titulares de direitos que, recaindo sobre as coisas abrangidas pelo privilégio, sejam oponíveis ao exequente) e, portanto, os créditos dos trabalhadores seriam graduados antes dos créditos da segurança social, mas depois do crédito garantido por penhor;
- Todavia, o privilégio da segurança social está submetido ao regime excepcional previsto no n.º 2 do artigo 204.º do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social, prevalecendo sobre o penhor;
- Ou seja, por aplicação das normas referidas os créditos da segurança social e do Estado deveriam ser graduados na mesma posição e depois dos créditos dos trabalhadores, mas os créditos da segurança social prevalecem sobre o penhor e os demais não prevalecem, e tal significa que, existindo um penhor, não é viável a aplicação simultânea de todas essas normas.
Perante o conflito dessas normas, diversas soluções têm sido apontadas:
- Há quem entenda que, nesse caso, deve ser dada preferência ao penhor, pagando-se em primeiro lugar o crédito por ele garantido; assim se considerou, designadamente nos Acórdãos do STJ de 05/04/2022 (com voto de vencido) e de 22/09/2021[1], onde se considerou que o art.º 204.º, n.º 2, do CRCSPSS deve ser objecto de interpretação restritiva, apenas se aplicando em caso de confronto dual ou bilateral entre créditos pignoratícios e créditos da Segurança Social; neste sentido também se pronuncia Salvador da Costa[2], sendo essa também a posição adoptada no Acórdão da Relação de Lisboa de 09/11/2021[3] (citado nas alegações de recurso) e aqui propugnada pela Apelante;
- Há quem entenda que o penhor deverá ser graduado em último lugar (cfr. Acórdão do STJ de 26/09/1995, no processo nº 087303[4], e Acórdão da Relação de Coimbra de 16/05/2000[5]);
- Há ainda quem entenda que em tal situação deve ser graduado em primeiro lugar o crédito da segurança social, em segundo lugar o crédito garantido por penhor e só depois os créditos laborais e os créditos do Estado, como se decidiu no Acórdão da Relação do Porto de 28/10/2021 (processo n.º 630/20.4T8AMT-C.P1) e conforme tem sido decidido em vários Acórdãos desta Relação de Coimbra: Acórdãos de 21/05/2019 (processo n.º 4705/17.9T8VIS-B.C1), de 28/05/2019 (processo n.º 3810/17.6T8VIS-B.C1), de 11/01/2021 (processo n.º 182/18.5T8TCS-A.C1) e de 28/06/2022 (processo n.º 3620/21.6T8LRA-C.C1)[6].
Nas circunstâncias descritas e sendo inviável a aplicação simultânea de todas as normas envolvidas, é certo que não haverá soluções perfeitas e isentas de crítica, uma vez que qualquer uma das soluções implicará a cedência (não aplicação) de alguma das normas em causa.
Em todo o caso, pensamos que a melhor solução – ou, pelo menos, a que menos desrespeita a letra da lei e o pensamento legislativo – será a última, conforme tem sido considerado nos vários Acórdãos desta Relação que foram relatados pela ora relatora e, mais concretamente, o Acórdão de 28/05/2019, acima mencionado, bem como os Acórdãos 30/03/2020 e de 28/03/2023 (proferidos nos processos 167/17.9T8VIS-F.C1 e 772/16.0T8VIS-H.C2, respectivamente).
Iremos tentar explicar porquê.

De acordo com o disposto no artigo 9.º do CC, a interpretação da lei não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada; não poderá, no entanto, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.
A primeira posição acima mencionada – segundo a qual o crédito garantido por penhor deve ser graduado em primeiro lugar, e, portanto, antes dos créditos da Segurança Social e que foi adoptada pelo STJ nos Acórdãos citados – assenta, como se referiu, numa interpretação restritiva n.º 2 do art.º 204.º do CRCSPSS, ou seja, esta norma (e a preferência nela estabelecida) apenas teria aplicação em caso de confronto dual ou bilateral entre créditos pignoratícios e créditos da Segurança Social e não se aplicaria quando esses créditos estivessem em confronto ou concurso com créditos de outra natureza, igualmente privilegiados (sendo que, neste caso, a graduação seria efectuada pelos critérios legais gerais).
Ressalvando o natural e devido respeito pela referida posição, temos alguma dificuldade em admitir a referida interpretação.
A interpretação restritiva pressupõe que o intérprete chegue à conclusão de que o legislador “...adoptou um texto que atraiçoa o seu pensamento, na medida em que diz mais do que aquilo que se pretendia dizer[7]. Pressupõe, portanto, que o alcance resultante da letra da lei não se compatibilize com o pensamento legislativo porque há elementos para concluir que o pensamento e a vontade legislativa eram mais restritos, o que acontecerá, designadamente, nos casos em que a aplicação da norma sem qualquer restrição ultrapassa o fim para a qual foi instituída (daí que se diga – como diz Baptista Machado[8] – que este tipo de interpretação assenta no seguinte argumento: “...lá onde termina a razão de ser da lei termina o seu alcance”). 
Ora, não há, no nosso entender, a menor evidência – nem sequer indício – de que o legislador não pretendesse dizer aquilo que efectivamente disse – de modo expresso e cristalino – na referida disposição legal. Não há qualquer evidência ou indício de que, ao dispor na norma referida que o privilégio da segurança social ali referido prevalecia sobre o penhor, o legislador tivesse pretendido apenas regular os casos de concurso isolado entre esses dois créditos e que não pretendesse reportar-se aos casos em que tais créditos estivessem em concurso com outros de diferente natureza. Em primeiro lugar, porque, se fosse esse o caso, não seria difícil consignar essa restrição na letra da lei e, portanto, se o legislador não o fez e se, à luz do disposto no art.º 9.º do CC, devemos presumir que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados, não poderemos deixar de concluir que o legislador não pretendeu estabelecer tal restrição. Em segundo lugar, porque, do ponto de vista da razão ou finalidade da lei – assente na necessidade de assegurar a sustentabilidade da segurança social e o direito à segurança social que a todos é garantido pelo artigo 63.º da Constituição da República – também não vislumbramos razões para considerar que ela apenas faça sentido quando os créditos da Segurança Social estão em confronto ou concurso exclusivo com créditos pignoratícios, ao ponto de considerar que o legislador pretendeu prescindir da prevalência do privilégio da segurança social relativamente ao penhor – expressamente consignada na referida disposição legal – quando esses créditos estejam em concurso com créditos do Estado e créditos laborais.
Pensamos, portanto, que o legislador pretendeu – e disse-o de modo claro, expresso e sem margem para qualquer dúvida – que os privilégios da segurança social prevalecessem sobre o penhor e, perante a clareza e assertividade da norma em questão sem qualquer ressalva ou restrição, pensamos não ser viável qualquer interpretação que contrarie esse pensamento e essa vontade e restrinja o seu âmbito de aplicação. Refira-se que a prevalência do privilégio da segurança social relativamente ao penhor já constava do Dec. Lei n.º 103/80 de 09/05 (cfr. artigo 10.º, n.º 2) e a transposição da norma em questão para a legislação actualmente em vigor evidencia o claro e firme propósito do legislador em assegurar a prevalência dos créditos por contribuições devidas à segurança social relativamente ao penhor, propósito que se insere na necessidade de assegurar a sustentabilidade da segurança social e o direito à segurança social que a todos é garantido pelo artigo 63.º da Constituição da República.
Entendemos, por isso, que não poderá prevalecer a solução de graduar o crédito garantido por penhor com preferência em relação aos créditos da segurança social. Essa solução violaria, aberta e frontalmente, o disposto no n.º 2 do art.º 204.º do CRCSPSS e o pensamento legislativo que, de modo cristalino e assertivo, ficou expresso na citada disposição legal.
Razões idênticas poderão ser apontadas para justificar a inviabilidade da segunda solução (que gradua o crédito garantido por penhor em último lugar e, portanto, depois dos créditos do Estado e dos trabalhadores garantidos por privilégio mobiliário), uma vez que essa solução também contraria, aberta e frontalmente, o disposto no art.º 749.º do CC quando ali se determinou que “O privilégio geral não vale contra terceiros, titulares de direitos que, recaindo sobre as coisas abrangidas pelo privilégio, sejam oponíveis ao exequente”. Tal solução também não tem, portanto, qualquer apoio na letra na lei e também contraria abertamente o pensamento do legislador e, portanto, não se compatibiliza com as regras de interpretação que estão consignadas no art.º 9.º do CC.
Pensamos, portanto – conforme se disse e se concluiu nos anteriores acórdãos relatados pela aqui relatora, acima identificados – que a observância da lei e o respeito pelo pensamento e vontade legislativos impõem necessariamente que os créditos da segurança social sejam graduados com preferência relativamente aos créditos garantidos por penhor e que estes sejam graduados com preferência relativamente aos demais créditos garantidos por privilégio mobiliário, designadamente, os créditos laborais e os créditos do Estado.
Esta solução respeita a vontade expressa do legislador que foi consignada no n.º 2 do art.º 204.º do CRCSPSS, uma vez que faz prevalecer o privilégio dos créditos da segurança social sobre o penhor e respeita também respeita o disposto no art.º 749.º do CC, uma vez que faz prevalecer o penhor sobre os privilégios mobiliários (com exclusão, naturalmente, dos privilégios da segurança social relativamente aos quais, conforme vimos, existe disposição expressa em sentido diferente).
É certo que a graduação dos créditos assim efectuada implica que os créditos dos trabalhadores e os créditos do Estado sejam graduados após os créditos da segurança social, quando é certo que, por aplicação dos artigos 204.º, n.º 1, da Lei nº 110/2009, 333.º do Código do Trabalho e 747.º do CC, os créditos da Segurança Social seriam graduados a par dos créditos do Estado e depois dos créditos dos trabalhadores. Importa notar, no entanto, que essa graduação nem sequer entra em colisão directa e frontal com o artigo 333.º do Código do Trabalho, uma vez que aqui apenas se determina que os créditos dos trabalhadores são graduados antes dos referidos no artigo 747.º do CC e esta disposição nem sequer alude aos créditos da segurança social (sendo que estes são graduados nos termos da alínea a) desse artigo 747.º por força de disposição legal que consta de outro diploma) e, portanto, se os créditos dos trabalhadores forem graduados antes dos créditos do Estado e depois dos créditos da segurança social, estar-se-á a respeitar – ou pelo menos não se estará a desrespeitar abertamente – o citado artigo 333.º onde não se determina (de modo expresso) que os privilégios mobiliários dos trabalhadores devam prevalecer sobre os privilégios da segurança social; essa prevalência resulta apenas da conjugação do citado art.º 333.º (quando determina que esses privilégios são graduados antes dos referidos no art.º 747.º do CC) com o art.º 204.º, nº 1, do CRCSPSS (quando dispõe que os créditos da segurança social são graduados nos termos referidos na alínea a) do nº 1 do art.º 747.º do CC).
Esta solução apenas desrespeita o disposto no art.º 204.º, nº 1, do CRCSPSS quando dispõe que os créditos da segurança social que gozam de privilégio mobiliário geral são graduados nos termos referidos na alínea a) do nº 1 do art.º 747.º do CC, o que implicaria, mediante a conjugação de todas as normas aplicáveis, que os créditos da segurança social fossem graduados a par dos créditos do Estado e depois dos créditos dos trabalhadores. Pensamos, no entanto, que, apesar de tudo, a inobservância dessa regra será menos ostensiva e assumirá uma menor gravidade quando comparada à inobservância das demais regras supracitadas por via das quais o legislador manifestou, de modo claro e expresso, a sua vontade de que o privilégio da segurança social prevalecesse sobre o penhor e que este prevalecesse sobre os demais privilégios. Na verdade, o citado art.º 204.º, nº 1, ao determinar que aqueles créditos são graduados nos termos referidos na alínea a) do nº 1 do art.º 747.º do CC, é compatível com um lapso ou descuido do legislador que não atentou devidamente na conjugação de todas as disposições legais aplicáveis e, como tal, não fornece indícios seguros relativamente àquela que seria a sua vontade no que toca à resolução do conflito em análise. O mesmo não acontece com as demais disposições legais citadas onde o legislador manifestou, de modo expresso e sem margem para qualquer dúvida, a sua vontade de fazer prevalecer os privilégios da segurança social relativamente ao penhor e de fazer prevalecer o penhor sobre os demais privilégios (sem que exista qualquer margem para ponderar a possível existência de lapso ou descuido do legislador), razão pela qual não poderá ter qualquer viabilidade a consideração de uma solução que contraria, de forma frontal e ostensiva, o disposto nestas normas e o pensamento legislativo que expressamente nelas foi consignado .   
Concluímos, portanto, em face do exposto, que, na impossibilidade de conjugar as várias disposições legais aplicáveis, a solução que melhor respeita – ou que menos desrespeita – a letra da lei e o pensamento e a vontade do legislador corresponderá a graduar os créditos pela ordem seguinte: créditos com privilégio da segurança social, créditos garantidos por penhor, créditos com privilégio dos trabalhadores e créditos com privilégio do Estado. Qualquer outra solução (seja a de graduar o crédito garantido por penhor em 1º lugar e, portanto, antes do crédito com privilégio da Segurança Social, seja a de graduar o crédito garantido por penhor em último lugar e após os créditos com privilégio dos trabalhadores e do Estado) violaria e desrespeitaria, aberta e frontalmente, a letra da lei e a vontade do legislador quando determinou que o privilégio da segurança social prevalece sobre o penhor e quando determinou que o penhor prevalece sobre os demais privilégios mobiliários.

Concluímos, portanto, em face de tudo o exposto, que o crédito da Apelante (garantido por penhor) não preferia ao crédito da segurança social; se não existissem outros créditos em concurso era óbvio e evidente que assim tinha que ser por existir disposição expressa que faz prevalecer o privilégio da segurança social sobre o penhor e, na nossa perspectiva e pelas razões acima mencionadas, continua a ser essa a solução a adoptar ainda que existam outros privilégios a considerar.

Acrescentamos apenas uma última nota em relação à argumentação da Apelante constantes das conclusões 14.ª a 16.ª das suas alegações.
Em favor da sua posição, a Apelante alude ao princípio da confiança e da segurança jurídica, dizendo que, aquando da concessão do crédito, louvou-se nas expectativas jurídicas que lhe eram concedidas para a eventual falta de pagamento voluntário, passando assim a beneficiar de uma garantia real sólida que, à luz da Lei, prefere, inclusivamente, sobre créditos laborais, não podendo aceitar-se que o seu crédito seja sacrificado por uma graduação que privilegie a Segurança Social em relação aos seus créditos.
Não vislumbramos, no entanto, como poderiam ter sido frustradas as expectativas da Apelante em relação à garantia do seu crédito. Com efeito, à luz da lei – há muito vigente – os créditos com privilégio da segurança social preferem ao penhor e, portanto, a Apelante nunca poderia ter criado a expectativa de que os seus créditos fossem pagos com preferência em relação aos créditos da segurança social. Por outro lado, se é certo que a sua garantia (penhor) lhe dava a expectativa de o seu crédito ser pago com preferência sobre os outros créditos, designadamente os créditos laborais, também é certo que essa expectativa não foi frustrada na medida em que, segundo a posição que aqui sustentamos, a Apelante será efectivamente paga com preferência em relação a todos os outros créditos, incluindo os laborais. Na verdade, se há alguém que saia prejudicado com esta graduação – por ver, de algum modo, frustradas as suas expectativas – são os titulares dos créditos laborais, na medida em que deveriam ser pagos com preferência sobre os créditos da segurança social e, por força do penhor e da posição que aqui sustentamos, perdem essa preferência e passam a ser graduados depois desses créditos.

Confirma-se, portanto, a decisão que graduou o crédito da Apelante após os créditos da segurança social.
******

SUMÁRIO (elaborado em obediência ao disposto no art. 663º, nº 7 do Código de Processo Civil, na sua actual redacção):
(…).
/////

V.
Pelo exposto, nega-se provimento ao presente recurso e, em consequência, confirma-se a sentença recorrida.
Custas a cargo da Apelante.
Notifique.

                              Coimbra,

                                             (Maria Catarina Gonçalves)
                                                   (Arlindo Oliveira)
                                                  (Maria João Areias)   




[1] Proferidos nos processos n.º 1855/17.5T8SNT-A.L1.S1 e 775/15.2T8STS-C.P1.S1, respectivamente, disponíveis em http://www.dgsi.pt.
[2] O Concurso de Credores, 2ª edição, Almedina, págs. 250 a 252.
[3] Proferido no processo n.º 211/11.3TYLSB-C.L1-1, disponível em http://www.dgsi.pt.
[4] Disponível em http://www.dgsi.pt.
[5] Colectânea de Jurisprudência, Ano XXV, tomo 3º, pág. 9.
[6] Todos disponíveis em http://www.dgsi.pt.
[7] Baptista Machado, Introdução ao Estudo do Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina 1989, pág. 186.
[8] Ob. cit., pág. 186.