Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2018/19.0T8AVR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MIGUEL BALDAIA DE MORAIS
Descritores: EXECUÇÃO ESPECÍFICA
DEPÓSITO DO PREÇO
CONTRATO-PROMESSA
INCUMPRIMENTO DEFINITIVO
MORA
INTERPELAÇÃO ADMONITÓRIA
Nº do Documento: RP202302272018/18.0T8AVR.P1
Data do Acordão: 02/27/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O objetivo do 2º grau de jurisdição na apreciação da matéria de facto não é (nem pode ser) pura e simples repetição das audiências perante o Tribunal da Relação mas a deteção e correção de concretos, pontuais e claramente apontados e fundamentados erros de julgamento, sem prejuízo de aquando da apreciação dos meios probatórios colocados à sua disposição formar uma convicção autónoma sobre a materialidade impugnada.
II - A afirmação pelo tribunal de que um facto se considera provado (ou não provado) não depende da íntima e subjetiva convicção do julgador, mas mais, e prevalentemente, da aplicação de critérios racionais que se devem pautar pelo standard da “probabilidade prevalecente”, isto é, num juízo de preponderância em que esse facto se apresente, fundadamente, como mais provável ter acontecido do que não ter acontecido.
III - A realização do depósito do preço devido pelo promitente comprador, a que se alude no nº 5 do artigo 830º do Código Civil, constitui um requisito suplementar ou condição de procedência do exercício judicial da execução específica.
IV - Esse depósito deve ser efetivado (à ordem do tribunal) antes de ser proferida a respetiva sentença, já que não é possível que os efeitos desse ato decisório sejam condicionados a uma posterior e futura realização do pagamento desse preço.
V - Para ser despoletada a aplicação do nº 2 do artigo 442º do Código Civil, o incumprimento culposo a que aí se faz alusão, equiparável à impossibilidade da prestação imputável ao devedor, tem de ser definitivo.
VI - Incorrendo o devedor em mora, pode o credor, nos termos gerais estabelecidos no artigo 808º do Código Civil, convertê-la em incumprimento definitivo, quer mediante a perda (subsequente à mora) do interesse do credor, a apreciar objetivamente, quer em consequência da inobservância do prazo suplementar ou perentório que o credor fixa razoavelmente ao devedor relapso.
VII - Para que se considere devidamente feita a interpelação admonitória terá esta de conter três elementos: (i) a intimação para o cumprimento; (ii) a fixação de um termo perentório para o cumprimento; (iii) a admonição ou a cominação de que a obrigação se terá por definitivamente não cumprida se não se verificar o cumprimento dentro daquele prazo.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 2018/19.0T8AVR.P1
Origem: Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, Aveiro – Juízo Central Cível, Juiz 2
Relator: Miguel Baldaia Morais
1º Adjunto Des. Jorge Miguel Seabra
2ª Adjunta Desª. Maria de Fátima Andrade
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SUMÁRIO
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Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I- RELATÓRIO

AA instaurou a presente ação declarativa sob a forma de processo comum contra BB, CC e DD, esta última representada nos autos pelos primeiros réus, seus progenitores, na qual conclui pedindo que:
“A) – Seja proferida sentença que produza os efeitos da declaração negocial a que as Rés estão obrigadas, operando-se dessa forma a transmissão dos prédios objeto do contrato promessa e declare o Autor como único e legítimo proprietário dos imóveis referidos no artigo 3º da petição inicial.
B) – Subsidiariamente, no caso de não proceder o pedido anterior por eventualmente se entender que existe impossibilidade legal de haver a execução específica do contrato promessa:
i) - Declarar resolvido o contrato promessa referido em 1º, 2º e 3º da petição inicial;
ii) – Condenar as Rés a pagar, em dobro, ao autor a quantia referida em 4º da petição inicial, conforme cláusula 5ª do contrato contrato-promessa.
C) – Subsidiariamente, no caso de não procederem os pedidos anteriores de A) e B):
1 - Declarar resolvido o contrato promessa referido em 1º, 2º e 3º da petição inicial;
2 - Condenar as Rés a pagar/devolver ao autor a quantia referida em 4º da petição inicial”.
Para substanciar tais pretensões alegou ter celebrado com EE, representada no ato por procuradora a quem tinha conferido poderes bastantes, um contrato promessa de compra e venda, nos termos do qual declarou prometer comprar a esta, que por seu turno prometeu vender-lhe, um prédio urbano e metade indivisa de um prédio rústico.
Acrescenta que o preço acordado para a compra e venda foi desde logo pago, tendo a promitente vendedora entregado documento de quitação.
Alega ainda que, no entretanto, a promitente vendedora faleceu, sucedendo-lhe a primeira e a terceira rés, sendo que após tal óbito interpelou por diversas vezes os demandados para a outorga da escritura do contrato prometido, tendo, inclusive, procedido à sua marcação.
Refere, por último, que os réus nunca compareceram para a celebração desse ato notarial, alegando, para tanto, que estaria pendente um processo para suprimento da autorização da venda em relação à ré DD (menor de idade), decisão que nunca foi comunicada ao autor.
Devidamente citados, os réus apresentaram contestação em que se defenderam por exceção e por impugnação. Por exceção invocaram a nulidade do contrato promessa por simulação e bem assim a sua nulidade formal por não terem sido reconhecidas as respetivas assinaturas. Por impugnação, contrariando a versão fáctica apresentada pelo autor.
Foi proferido despacho saneador, definiu-se o objeto do litígio e fixaram-se os temas da prova.
Realizou-se audiência final, vindo a ser proferida sentença que julgou a ação improcedente.
Não se conformando com o assim decidido, o autor interpôs o presente recurso, que foi admitido como apelação, a subir nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
Com o requerimento de interposição do recurso apresentou alegações, formulando, a final, as seguintes

CONCLUSÕES:

1º. O presente recurso tem por objeto a decisão sobre a matéria de facto considerada provada e a matéria de direito.
2º. Os factos que a recorrente considera incorretamente julgados correspondem à matéria de facto dos pontos 5º e 17º da petição inicial, dada como não provada na fundamentação de facto da sentença.
3º. A prova produzida em audiência impunha decisão diversa quanto aos factos que constam dos pontos 5º e 17º da petição inicial todos da fundamentação da sentença, os quais deveriam ser dados como provados, designadamente, porque,
4º. O tribunal procedeu a uma errada ponderação do depoimento da testemunha do autor FF, e ainda dos documentos juntos aos autos.
5º. Face à não impugnação das assinaturas do contrato promessa e do recibo de quitação, o Tribunal teria de considerar verdadeiras as declarações constantes desses documentos, designadamente quanto ao pagamento do preço.
6º. O próprio teor do tema da prova, “apurar se o preço mencionado no contrato promessa não foi pago pelo promitente comprador, nem foi recebido pela promitente vendedora”, determina que o ónus da prova desse facto cabe aos Réus.
7º. Com o alegado em 41º e 42º da contestação, bem como com as cartas juntas aos autos, os Réus reconheceram, tacitamente, a genuinidade e autenticidade do contrato promessa e do recibo de quitação do preço.
8º. Com a entrega do cheque de 75.000,00€ pelo promitente comprador à procuradora da promitente vendedora foi efetuado o pagamento do preço.
9º. A menor encontra-se representada nos presentes autos pelos seus pais.
10º. Nos presentes autos de execução específica é desnecessária a autorização do Ministério Público para a transmissão dos imóveis prometidos vender, na medida em que tal resultaria de uma decisão judicial.
11º. Os Réus sempre poderiam cumprir o contrato promessa nos termos do artigo 1893º do Código Civil.
12º. Caberia aos Réus pedir e obter a autorização do Mº Pº para cumprir o contrato promessa.
13º. Desse incumprimento resulta uma impossibilidade culposa dos próprios Réus.
14º. Os pedidos formulados pelo Autor na petição devem ser considerados procedentes.
15º. A douta decisão recorrida violou o disposto no artigo 342º, 374º, 640º, 830º,1889º e 1893º do Código Civil e ainda no artº 615º do Código de Processo Civil.
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Notificados os réus apresentaram contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso.
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Após os vistos legais, cumpre decidir.
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II- DO MÉRITO DO RECURSO
1. Definição do objeto do recurso

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso – cfr. arts. 635º, nº 4, 637º, nº 2, 1ª parte e 639º, nºs 1 e 2, todos do Código de Processo Civil[1].
Porque assim, atendendo às conclusões das alegações apresentadas pelo apelante, são as seguintes as questões solvendas:
. determinar se o tribunal a quo incorreu num error in iudicando, por deficiente avaliação ou apreciação das provas e assim na decisão da matéria de facto;
. decidir em conformidade face à alteração, ou não, da materialidade objeto de impugnação, mormente dilucidar se mostram preenchidos os necessários pressupostos normativos para a procedência do pedido, aduzido a título principal, de execução específica do ajuizado contrato promessa ou, subsidiariamente, de resolução desse mesmo negócio jurídico.
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2. Recurso da matéria de facto
2.1. Factualidade considerada provada na sentença

O tribunal de 1ª instância considerou provada a seguinte matéria de facto:
1.º Com data de 24 de novembro de 2016, o autor e FF assinaram o documento particular denominado por “Contrato Promessa de Compra e Venda” constante de fls. 11 a 14;
2.º O autor interveio na qualidade de promitente comprador e segundo outorgante e FF, na qualidade de promitente vendedora, em representação de EE, no uso de uma procuração que lhe tinha sido conferida para o efeito, na qualidade de primeira outorgante;
3.º A procuração referida no artigo anterior foi conferida no dia 23 de Novembro de 2016, tendo a assinatura de EE sido autenticada presencialmente no Cartório Notarial de Ovar, no referido dia 23-11-2016;
4.º Da procuração referida no artigo anterior consta, de entre outras menções, o seguinte:
“(…)
EE (…) constitui sua bastante procuradora a sua irmã, FF (…) à qual confere os poderes necessários para prometer vender e/ou permutar (…) quaisquer bens móveis, bem como quaisquer imóveis, no todo ou em parte, situados no concelho de Ovar, designadamente os descritos na Conservatória do Registo Predial de Ovar sob os n.ºs ... e ... ambos da freguesia ..., concelho de Ovar, pelos preços, termos e demais condições que entender por convenientes, assinar os correspondentes contratos promessa, outorgar e assinar as competentes escrituras, podendo fazer negócio consigo mesmo, passando recibos e dando quitações (…).”
5.º Do contrato promessa de compra e venda referido no ponto 1º, consta:
“(…)

A primeira outorgante promete vender ao segundo outorgante os seguintes bens imóveis:
i) O prédio urbano (…) freguesia ... (…) inscrito na respectiva matriz sob o artigo urbano ... e descrito na Conservatória do Registo Predial de Ovar sob o n.º ... (…);
ii) Metade indivisa do prédio rústico (…) freguesia ..., inscrito na respectiva matriz sob o artigo rústico ... e descrito na Conservatória do Registo Predial de Ovar sob o n.º ... (…);

A promitente vendedora promete vender os imóveis identificados na cláusula anterior (…)

O preço global da referida venda é de 75.000,00€, sendo 70.000,00€ relativo ao prédio urbano (…) e 5.000,00€ relativo à metade indivisa do prédio rústico (…)

O preço supra referido já foi integralmente pago pelo promitente comprador e com a assinatura do presente contrato a promitente vendedora dá plena quitação do mesmo, nada mais tendo a exigir ou receber do segundo outorgante.

Em caso de incumprimento do presente contrato por parte da promitente vendedora, pode o promitente comprador exigir, em alternativa e à sua escolha, a devolução em dobro do valor referido nas cláusulas três e quatro ou a execução específica.

A escritura de compra e venda só será celebrada quando qualquer um dos outorgantes manifestar tal intenção e em dia, hora e local a indicar por qualquer um dos outorgantes ao outro promitente, com pelo menos, 05 dias de antecedência, mediante carta registada com aviso de recepção (…)

Se a outorga do contrato prometido não ocorrer na data fixada e comunicada ao outro promitente, dá-se o presente contrato promessa como incumprido pelo promitente faltoso. (…)”.
6.º Por documento escrito denominado por “Recibo de Quitação”, assinado por FF e com data de 24-11-2016, na qualidade de procuradora de EE, foi exarado o seguinte texto:
“EE (…) aqui representada pela sua bastante procuradora e irmã, FF (…) declara para todos os efeitos legais que recebeu de AA e por isso dá quitação do valor global de 75.000,00€ referente ao preço acordado no contrato promessa outorgado em 24 de Novembro de 2016.”
7.º EE faleceu no dia 2 de Dezembro de 2016.
8.º A ré BB é filha de EE e casada com o réu CC.
9.º DD, nascida em .../.../2004, é filha dos réus BB e CC.
10.º Por testamento outorgada por EE, no dia 23 de Novembro de 2016 (dia em que também foi outorgada a procuração referida no ponto 3º), foi instituída como herdeira a sua neta, DD, herdeira da quota disponível.
11.º BB e DD são as únicas herdeiras de EE.
12.º O autor AA é casado com FF, procuradora de EE.
13.º Com data de 17 de maio de 2018 o autor enviou às rés as cartas constantes de fls. 24 a 27, cujo teor aqui se dá por reproduzido e das quais consta, de entre outras menções, o seguinte:
“(…)
Em conformidade com a cláusula 6ª do contrato promessa outorgado em 24-11-2016 (…) venho marcar a escritura de compra e venda (…) para o dia 24 de maio de 2018, pelas 15h no Cartório Notarial (…) Ovar.
Mais informo que o preço da compra e venda destes imóveis foi por mim pago à D. EE. (…)”
14.º A ré BB respondeu, através de carta remetida pelo seu mandatário, com data de 23 de Maio de 2018, carta junta aos autos a fls. 28-29 e cujo conteúdo se dá por reproduzido e da qual consta, para além do mais, o seguinte:
“(…) sou pela presente a informar V. Exa. que a referida escritura pública não poderá outorgar-se por impossibilidade objectiva (…)
Como V. Exa. bem sabe a de cujus (…) instituiu sua herdeira universal, pela sua quota disponível, a neta, DD, menor de 13 anos de idade.
(…) uma vez que a menor não tem capacidade judiciária e terá (…) de ser representada para poder intervir na escritura, a diligência para que foi convocada a m/ constituinte (e também a filha menor) deverá ser dada sem efeito até que se conclua o processo de suprimento e autorização para a prática deste acto, bem como outros de idêntica natureza (…)
Assim e por este motivo, informo V. Exa. que nem a m/ constituinte, nem a filha menor se apresentarão no dia e hora agendados para o referido acto notarial.”
15.º Com data de 25 de maio de 2018 o autor enviou às rés as cartas constantes de fls. 30 a 33, cujo teor aqui se dá por reproduzido e das quais consta, de entre outras menções, o seguinte:
“(…)
Apesar da minha comunicação (…) de 17 de maio de 2018 (…) não compareceu no dia 24 de Maio de 2018, pelas 15h, no Cartório Notarial (…) Ovar (…)
No entanto e com o propósito de indicar nova data para ser celebrada a escritura, venho marcar (…) para o dia 17 de julho de 2018, pelas 14h30m (…)
Mais informo, conforme consta do contrato promessa, que a D. EE (…) já deu quitação do preço dessa venda. (…)”
16.º A ré respondeu, através de carta enviada pelo seu mandatário de 12 de Julho de 2018, constante de fls. 34 e cujo conteúdo aqui se dá por reproduzido e da qual consta, de entre outras menções, o seguinte:
“(…)
Não obstante a presente notificação, sou de novo a reiterar junto de V. Exa. que a referida escritura pública não poderá outorgar-se por impedimento legal e impossibilidade objectiva, manifestamente alheias à vontade da m/ constituinte.
(…) uma vez que a menor não tem capacidade judiciária e terá (…) de ser representada para poder intervir na escritura, a diligência para que foi convocada a m/ constituinte (e também a filha menor) deverá ser dada sem efeito até que se conclua o processo de suprimento e autorização para a prática deste acto, bem como outros de idêntica natureza (…)
Assim e por este motivo, informo V. Exa. que nem a m/ constituinte, nem a filha menor se apresentarão no dia e hora agendados para o referido acto notarial.”
17.º O artigo matricial rústico com o n.º ... e mencionado no contrato promessa de compra e venda, descrito na CR Predial de Ovar, freguesia ..., está registado em favor de EE e FF, aquisição registada em comum e sem determinação de parte, pela Ap. ... de 2002-09-09 por sucessão hereditária.
18.º EE à data da assinatura da procuração e do testamento, referidos nos pontos 3º e 10º era uma pessoa doente e padecia de hipotiroidismo e depressão neurótica, tendo sido assistida em episódio de urgência no dia 5 de Outubro de 2016 por dor abdominal com obstipação.
19.º No mesmo dia (5-10-2016) teve alta para reavaliação por médico de família e apresentava-se consciente, orientada no tempo e no espaço, autónoma nas AVDs. Em 27-10-2016 realizou TAC Abdominal, em que foram detectados problemas de natureza oncológica.
20.º De fls. 128 consta um documento particular denominado “Declaração” contendo duas assinaturas, uma com o nome de FF e outra com o nome de GG. O documento não está datado.
21.º Da “Declaração” referida no artigo anterior consta o seguinte:
“EE e marido GG, casados no regime de comunhão geral de bens, titulares dos Bilhetes de Identidade n.ºs ..., emitidos pelo Arquivo de Identificação de_____ em_____ residentes em France, declaram que se comprometem, aquando da celebração da escritura pública de compra e venda da casa sita em ..., inscrita na matriz predial urbana sob o n.º _____ da freguesia ..., concelho de Ovar, a entregarem a quantia de € 75.000,00 (sete e cinco mil euros) a FF e marido AA, residente na Entrada ..., 3º Esqe., Rua ... – Ovar.”
22.º Na pendência dos presentes autos correu seus termos um processo para suprimento do consentimento da menor DD, ao abrigo do DL n.º 272/2001, de 13 de Outubro, com o n.º 1986/20.0T8VNG, na Procuradoria do Juízo de Família e Menores de V.N. Gaia, instaurado pelo ora autor.
23.º No processo referido no artigo anterior foi proferida decisão final pelo Ministério Público, em 4-6-2020, a julgar improcedente a acção e, em consequência, a declarar não suprir o consentimento da menor nas vendas que o requerente (ora autor) pretendia realizar.
24.º A primeira ré mulher esteve presente em 23-11-2016 no Cartório Notarial em Ovar, juntamente com a sua mãe, quando esta outorgou a procuração referida no ponto 3º.
25.º Os réus não apresentaram qualquer processo a pedir o suprimento e autorização da sua filha menor de idade.
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2.2. Factualidade considerada não provada na sentença

O Tribunal de 1ª instância considerou não provados os seguintes factos:
Da petição inicial
. O preço total da venda prometida celebrar foi pago em 24-11-2016 (artigo 5º).
. Logo após o falecimento da D. EE, o autor contactou a 1ª ré e pediu-lhe para ela cumprir o contrato promessa (artigo 16º).
. A 1ª ré, por si e em representação da sua filha menor, concordou e aceitou cumprir o contrato promessa (artigo 17º).
. No entanto pediu ao autor algum tempo para, por razão da sua filha ser herdeira da avó e ser menor, requerer em Tribunal o suprimento do consentimento para efectuar a venda prometida pela sua mãe (artigo 19º).
Da contestação
. As partes (o pretenso comprador e a mandatária da promitente vendedora, marido e mulher) fingiram celebrar um certo negócio (promessa de compra e venda), quando na realidade mais não se tratou do que uma doação encapotada com o intuito de sonegar estes bens ao acervo patrimonial da cunhada e irmã, entretanto logo falecida, em claro prejuízo dos herdeiros desta (artigo 12º).
. EE estivesse à data da outorga da procuração com falta de discernimento, em estado de necessidade e/ou de dependência (artigo 13º).
. A promitente vendedora e mandante não tinha plena consciência, nem compreensão da finalidade e consequências da procuração, tal como não tinha noção de que a irmã, FF, enquanto procuradora, podia efetivamente outorgar tal contrato (artigo 20º).
. A outorgante foi instruída na aposição das assinaturas (artigo 22º).
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2.3. Apreciação da impugnação da matéria de facto

Nas conclusões recursivas veio o apelante requerer a reapreciação da decisão de facto, em relação a um conjunto de factos julgados não provados, com fundamento em erro na apreciação da prova.
Como é consabido, o art. 640º estabelece os ónus a cargo do recorrente que impugna a decisão da matéria de facto, nos seguintes termos:
1. Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2. No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3. […]
O presente regime veio concretizar a forma como se processa a impugnação da decisão, reforçando o ónus de alegação imposto ao recorrente, prevendo que deixe expresso a solução alternativa que, em seu entender, deve ser proferida pela Relação em sede de reapreciação dos meios de prova.
Recai, assim, sobre o recorrente, face ao regime concebido, um ónus, sob pena de rejeição do recurso, de determinar com toda a precisão os concretos pontos da decisão que pretende questionar – delimitar o objeto do recurso -, motivar o seu recurso através da transcrição das passagens da gravação que reproduzem os meios de prova, ou a indicação das passagens da gravação que, no seu entendimento, impunham decisão diversa sobre a matéria de facto - fundamentação - e ainda, indicar a solução alternativa que, em seu entender, deve ser proferida pela Relação.
No caso concreto, realizou-se o julgamento com gravação dos depoimentos prestados em audiência e o apelante impugna a decisão da matéria de facto com indicação dos pontos de facto impugnados, prova a reapreciar e decisão que sugere.
Tal como dispõe o nº 1 do art. 662º a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto “ […] se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”, o que, na economia do preceito, significa que os poderes para alteração da matéria de facto conferidos ao tribunal de recurso constituem apenas um remédio a utilizar nos casos em que os elementos constantes dos autos imponham inequivocamente (em termos de convicção autónoma) uma decisão diversa da que foi dada pela 1ª instância.
No presente processo a audiência final processou-se com gravação da prova pessoal prestada nesse ato processual.
A respeito da gravação da prova e sua reapreciação, haverá que ter em consideração, como sublinha ABRANTES GERALDES[2], que funcionando o Tribunal da Relação como órgão jurisdicional com competência própria em matéria de facto, nessa reapreciação tem autonomia decisória, devendo consequentemente fazer uma apreciação crítica das provas, formulando, nesse julgamento, com inteira autonomia, uma nova convicção, com renovação do princípio da livre apreciação da prova.
Assim, competirá ao Tribunal da Relação reapreciar as provas em que assentou a parte impugnada da decisão, tendo em atenção o conteúdo das alegações do recorrente e recorrido, sem prejuízo de oficiosamente atender a quaisquer outros elementos probatórios que hajam servido de fundamento à decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados.
Decorre deste regime que o Tribunal da Relação tem acesso direto à gravação oportunamente efetuada, mesmo para além dos concretos meios probatórios que tenham sido indicados pelo recorrente e por este transcritos nas alegações, o que constitui uma forma de atenuar a quebra dos princípios da imediação e da oralidade suscetíveis de exercer influência sobre a convicção do julgador, ao mesmo tempo que corresponderá a uma solução justificada por razões de economia e celeridade processuais[3].
Cumpre ainda considerar a respeito da reapreciação da prova, que neste âmbito vigora o princípio da livre apreciação, conforme decorre do disposto no art. 396º do Cód. Civil.
Daí compreender-se o comando estabelecido na lei adjetiva (cfr. art. 607º, nº 4) que impõe ao julgador o dever de fundamentação da materialidade que considerou provada e não provada.
Esta exigência de especificar os fundamentos decisivos para a convicção quanto a toda a matéria de facto é essencial para o Tribunal da Relação, nos casos em que há recurso sobre a decisão da matéria de facto, poder alterar ou confirmar essa decisão.
É através dos fundamentos constantes do segmento decisório que fixou o quadro factual considerado provado e não provado que este Tribunal vai controlar, através das regras da lógica e da experiência, a razoabilidade da convicção do juiz do Tribunal de 1ª instância.
Atenta a posição que adrede vem sendo expressa na doutrina e na jurisprudência, quando o Tribunal da Relação é chamado a pronunciar-se sobre a reapreciação da prova, no caso de se mostrarem gravados os depoimentos, deve considerar os meios de prova indicados pela partes e confrontá-los com outros meios de prova que se mostrem acessíveis, a fim de verificar se foi cometido ou não erro de apreciação que deva ser corrigido[4].
Tendo presentes estes princípios orientadores, cumpre agora dilucidar se assiste razão ao apelante, neste segmento recursório da impugnação da matéria de facto, nos termos por ele preconizados.
Como emerge das respetivas conclusões recursivas, o apelante advoga que devem ser dadas como provadas as proposições vertidas nos artigos nºs 5 e 17 da petição inicial que foram dadas como não provadas.
Nos referidos artigos alegou o autor que:
. “O preço total da venda prometida celebrar foi pago em 24.11.2016” (artigo 5º da petição inicial);
. “A 1ª Ré, por si e em representação da sua filha menor, concordou e aceitou cumprir o contrato promessa” (artigo 17º da petição inicial).
Começando pela primeira das transcritas afirmações de facto, vejamos, antes do mais, em que termos o juiz a quo fundamentou o sentido decisório referente a essa materialidade, sendo que na respetiva motivação escreveu que «[a]pesar de constar do contrato promessa e da declaração de quitação que o preço tinha sido pago, o documento não foi emitido pelos réus, não sendo dos réus a autoria das assinaturas exaradas nos documentos, nem as declarações que dos mesmos constam.
Quer o contrato promessa quer a declaração de quitação são documentos particulares cuja conteúdo e assinaturas foram impugnadas pelos réus.
Nessa conformidade, não podem os documentos particulares assumir a força probatória prevista pelos artigos 374º, n.º 1 e 376º do C. Civil.
Tendo os documentos sido impugnados, em concreto, o pagamento do preço e não sendo obrigação dos réus saber da veracidade ou não do conteúdo das declarações porque as mesmas não lhes são imputadas, o ónus de prova do pagamento competia ao autor, atento o disposto nos artigos 374º, n.º 2 e 342º, n.º 1 do C. Civil.
O autor nada provou.
A testemunha, FF, que assinou a declaração de quitação em representação da promitente vendedora, não soube explicar como é que o preço foi pago. Referiu-se a um cheque, cuja existência se desconhece, que teria sido entregue, mas posteriormente devolvido por EE, porque teria uma dívida para com o autor, marido da testemunha. No entanto, referiu que desconhecia que dívida era, sua natureza, valor e data, depoimento muito pouco credível nesta parte.
Numa tentativa de provar a alegada dívida, o autor juntou o documento identificado no ponto 21º dos factos provados, documento impugnado, não datado e sem que do mesmo conste uma confissão de dívida. O documento não é idóneo para provar a constituição de uma dívida, nem tão pouco da sua análise resulta que os pretensos declarantes quisessem proceder a uma dação em pagamento desse valor com a compra e venda do imóvel. Acresce que, desse documento, consta que os declarantes se comprometiam a entregar a quantia de € 75.000,00 ao autor e sua esposa, a testemunha FF, quando a própria, nas suas declarações, referiu que desconhecia qual era a dívida que a sua irmã, EE, tinha para com o autor.
Os meios de prova indicados pelo autor não lograram provar que tenha ocorrido qualquer pagamento. A corroborar essa ausência de prova, consideramos também os documentos juntos pelos réus, os extratos bancários de fls. 58 a 61, que não evidenciam qualquer entrada nas contas bancárias da promitente vendedora da quantia correspondente ao preço referido no contrato promessa».
Colocado perante a transcrita motivação, o apelante, com vista ao rebatimento do sentido decisório nela acolhido relativamente à proposição factual em crise, argumenta que o tribunal recorrido não relevou devidamente a força probatória decorrente dos documentos juntos aos autos, mormente do contrato promessa e do recibo de quitação que juntou com o articulado inicial, dos quais consta que o pagamento do preço já foi efetuado, e bem assim o depoimento prestado pela testemunha FF.
É certo que do contrato promessa (cfr. documento nº 1 junto com a petição inicial) celebrado entre o autor (como promitente-comprador) e EE (como promitente-vendedora, que nesse ato foi representada por FF [mulher do autor], ao abrigo de procuração que aquela lhe outorgou) consta “que o preço global da venda de €75.000,00 já foi integralmente pago pelo promitente comprador e com a assinatura do presente contrato a promitente vendedora dá plena quitação do mesmo, nada mais tendo a exigir ou receber do promitente comprador” (cfr. cláusula 4ª). De igual modo, no denominado “recibo de quitação” (junto como documento nº 2 com a petição inicial) é referido que “EE (…), aqui representada pela sua bastante procuradora, FF, com poderes para o ato conferidos através da procuração outorgada e autenticada em 23 de novembro de 2016, no Cartório Notarial de Ovar, declara para todos os efeitos legais que recebeu de AA e por isso dá quitação do valor global de 75.000,00€ referente ao preço acordado no contrato promessa outorgado em 24 de novembro de 2016”.
No entanto, como emerge do articulado de defesa que apresentaram, os réus expressamente impugnaram a força probatória formal e material dos documentos supra mencionados (nos quais não tiveram qualquer intervenção ou participação), razão pela qual ficou a impender sobre o autor o ónus de provar a veracidade da materialidade neles inserta, mormente o pagamento do preço ajustado no ajuizado contrato promessa.
Com esse desiderato o ora apelante convocou o teor das missivas que os réus lhe enviaram e que se mostram juntas com a petição sob os nºs 9 e 12 (que, na leitura que delas faz, revelam que os demandados “aceitaram que o preço foi pago pelo promitente vendedor e recebido pela promitente compradora”) e bem assim o depoimento prestado pela testemunha FF (sua esposa) que, na sua perspetiva, confirmou ter dele recebido um cheque destinado a liquidar o preço convencionado nesse ajuizado contrato promessa, o qual entregou à promitente vendedora EE (sua irmã).
No concernente aos mencionados suportes documentais, da respetiva exegese não se extrai qualquer elemento significante no sentido de que os réus tenham reconhecido o pagamento do preço estipulado no contrato promessa.
Na verdade, em parte alguma dos mesmos é feita qualquer referência a um (putativo) reconhecimento desse recebimento, sendo que, na sua economia, tais missivas se destinaram a dar notícia ao autor de que a, por si pretendida, celebração da escritura pública destinada a formalizar o contrato prometido não poderia ter lugar em virtude de a ré DD, sendo menor, não poderia outorgar tal ato notarial sem que, previamente, a concretização desse negócio fosse autorizada em processo especialmente intentado para esse fim.
Já no que tange ao aludido depoimento, depois de se proceder à audição integral do respetivo registo fonográfico, resulta clara a forma confusa e titubeante como a mencionada testemunha depôs a respeito da factualidade em crise, posto que, malgrado tenha referido, no início do seu depoimento, ter entregado a sua irmã EE um cheque no montante de €75.000,00, emitido pelo autor, destinado à liquidação do preço mencionado no contrato promessa, acabou, mais tarde, por adiantar que, afinal, esse cheque foi devolvido ao seu marido pela sua irmã para compensar uma dívida que esta teria para com aquele (note-se que se trata de uma afirmação de facto que sequer tem tradução na materialidade que o demandante alegou na petição inicial). Instada no sentido de esclarecer qual seria a proveniência dessa dívida, rematou referindo que seria resultado de um empréstimo, não sabendo (apesar da sua relação familiar com o autor e com EE), no entanto, concretizar a razão desse empréstimo, valor do mesmo, data da sua realização, limitando-se a dizer que “sobre isso eu não posso responder, porque o meu marido não me disse nada”.
A questão que naturalmente se coloca é a de saber se na presença dos mencionados subsídios probatórios se justifica a impetrada alteração do decisório referente à proposição factual plasmada no artigo 5º da petição inicial.
Como deflui dos nºs 4 e 5 do já citado art. 607º, a afirmação pelo tribunal de que um facto se considera provado (ou não provado) não dependerá da íntima e subjetiva convicção do julgador, mas mais, e prevalentemente, da aplicação de critérios racionais que, conforme se bem majoritariamente entendendo[5], se devem pautar pelo standard da “probabilidade prevalecente”, isto é, num juízo de preponderância em que esse facto se apresente, fundadamente, como mais provável ter acontecido do que não ter acontecido.
Na esteira desse posicionamento, afigura-se-nos, in casu, que os elementos probatórios a que o recorrente apela não são de molde a permitir a formulação, em termos objetivos, de um juízo positivo sobre a sindicada proposição factual.
É que, para além desses elementos, existem nos autos outros subsídios probatórios que foram relevados pelo juiz a quo na emissão do juízo negativo sobre essa materialidade, posto que, inexistindo no processo qualquer evidência da entrega ou sequer da existência do alegado cheque, o recebimento da importância em causa não só foi expressamente negado por outras pessoas inquiridas na audiência final (cfr., v.g., declarações prestadas por BB), como também resulta dos extratos das contas bancárias de que EE era titular que, contemporaneamente, com a celebração do contrato promessa não se registou qualquer input em valor equivalente ao preço indicado nesse contrato.
Por conseguinte, a argumentação expendida pela apelante não tem, quanto a nós, o condão de desconstruir a motivação adrede tecida pelo julgador de 1ª instância, afigurando-se-nos que a prova produzida (como, aliás, se deixou evidenciado) não impõe - como é suposto pelo nº 1 do art. 662º - decisão diversa relativamente ao enunciado fáctico vertido no artigo 5º da petição inicial, decisão essa que é, nos termos expostos, perfeitamente racional e lógica.
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Idêntica conclusão se impõe relativamente à afirmação de facto constante do artigo 17º da petição inicial, cujo sentido decisório o tribunal recorrido filiou na “total ausência de prova”.
É que, diversamente do que sustenta o apelante, não se antolha que da alegação feita pelos réus nos artigos 41º, 42º e 44º da contestação (único elemento que aquele convoca para sustentar a sua impugnação) resulte a confirmação de que “a 1ª Ré, por si e em representação da sua filha menor, concordou e aceitou cumprir o contrato promessa”.
De facto, o que nesses artigos é, na sua essência, alegado pelos demandados é que, independentemente da regularidade formal e substancial do ajuizado contrato promessa (que consideram enfermar, entre outros, de vício de nulidade por simulação), esse negócio não estaria sequer em condições de ser cumprido “por impossibilidade objetiva” decorrente da falta de capacidade de exercício da ré DD o que obstaculizaria a formalização do contrato prometido até ser obtida a respetiva autorização em processo a intentar nos termos do artigo 3.º, n.º 3, al. b), do Decreto-Lei nº 272/2001, de 13 de outubro.
Como assim, na ausência de indicação de outros meios probatórios, a mencionada proposição factual deverá continuar a constar do elenco dos factos não provados.
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3. FUNDAMENTOS DE DIREITO
3.1. Do pedido (principal) de execução específica do contrato

Na petição inicial o autor formulou, a título principal, pedido de execução específica do denominado “contrato promessa de compra e venda” que celebrou com EE (entretanto falecida, tendo-lhe sucedido como únicas herdeiras a 1ª e 3ª rés), que teve por objeto mediato o prédio urbano, sito na freguesia ..., inscrito na respetiva matriz sob o artigo urbano ... e descrito na Conservatória do Registo Predial de Ovar sob o n.º ... e metade indivisa do prédio rústico, sito na mesma freguesia, inscrito na respetiva matriz sob o artigo rústico ... e descrito na Conservatória do Registo Predial de Ovar sob o n.º ....
Na sentença recorrida julgou-se improcedente essa concreta pretensão de tutela jurisdicional com um duplo fundamento: (i) falta de comprovação do pagamento do preço estipulado no contrato promessa para a alienação dos referidos imóveis; (ii) inviabilidade da execução específica sem que, previamente, seja autorizada, nos termos do art. 1889º, nº 1, al. a) do Cód. Civil, a realização do contrato prometido pela ré DD, ainda menor de idade.
O apelante insurge-se contra esse sentido decisório no segmento em que se afirmou a inviabilidade da execução específica sem prévia obtenção de autorização do Ministério Público, argumentando que caberia aos réus pedir e obter essa autorização.
Que dizer?
Como postula o nº 1 do art. 830º do Cód. Civil “[s]e alguém se tiver obrigado a celebrar certo contrato [o definitivo] e não cumprir a promessa, pode a outra parte, na falta de convenção em contrário, obter sentença que produza os efeitos da declaração negocial do faltoso, sempre que a isso não se oponha a natureza da obrigação assumida”.
São, assim, três os pressupostos que devem estar preenchidos para aplicação do normativo, concretamente:
. a existência de uma situação de mora do devedor;
. a falta de convenção em sentido contrário à execução especifica, ressalvados os casos de imperatividade da mesma;
. a não oponibilidade da natureza da obrigação [de celebração de certo contrato] assumida.
Ainda a propósito da concretização da execução específica, dispõe o nº 5 do mesmo preceito que “[n]o caso de contrato em que ao obrigado seja lícito invocar a exceção de não cumprimento, a ação improcede, se o requerente não consignar em depósito a sua prestação no prazo que lhe for fixado pelo tribunal”.
Referem a este respeito PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA[6] que com esta norma «se procura evitar que uma das partes fique impossibilitada de invocar a exceção de não cumprimento. Se se trata, por exemplo, duma promessa de compra e venda, o tribunal não pode lavrar sentença de venda, sem que o promitente comprador deposite o preço no prazo que lhe for fixado, para não acontecer que o promitente vendedor fique despojado da coisa sem o recebimento simultâneo do preço».
Também ANA PRATA[7] refere que esta obrigação se destina a «evitar que o remédio da execução em forma específica possa ser requerido pelo contraente que, por sua vez, seja inadimplente, isto é, a prevenir um incumprimento por parte do requerente da execução forçada da obrigação contratual emergente da sentença que substitui o contrato prometido».
Sendo essa a ratio essendi do transcrito inciso normativo, tem a doutrina e a jurisprudência[8] maioritariamente entendido que a realização do depósito do preço devido pelo promitente comprador constitui um requisito suplementar ou condição de procedência do exercício judicial da execução específica, depósito esse que deverá ser efetivado (à ordem do tribunal) antes de ser proferida a sentença já que, à luz da lei adjetiva[9], não é possível que os efeitos desse ato decisório (que, na sua economia, visa constituir um título translativo do domínio, posto que, com o seu trânsito, o promitente adquirente torna-se, de imediato, o titular do imóvel objeto mediato do respetivo contrato promessa) sejam condicionados a uma posterior e futura realização do pagamento desse preço.
Ora, no caso vertente, perante a não comprovação do pagamento do preço e face à alegação feita pelos réus no articulado de defesa de ausência de realização dessa prestação debitória pelo autor (o que equivale a invocação da exceptio), impunha-se, pois, que este realizasse nos autos o depósito do preço convencionado (€75.000,00), comportamento esse que, todavia, não adotou por persistir no entendimento de que já tinha efetuado esse pagamento, o que, como se viu, não provou.
Consequentemente, constituindo a realização do depósito do preço condição de procedência do exercício judicial da execução específica, a sua falta implicaria, per se, a improcedência do pedido formulado a título principal.
Acresce que, no caso, estaria igualmente precludido o recurso ao citado art. 830º do Cód. Civil, por se registar uma situação de inviabilidade de cumprimento espontâneo do contrato promessa por parte da ré DD, dada a sua menoridade.
É que, nessas circunstâncias, a possibilidade de celebração do negócio prometido estaria comprometida face à inexistência de capacidade de exercício para o efeito da referida demandada[10]. Para tanto, tornar-se-ia mister obter, através do recurso ao processo especial previsto no art. 1014º do Cód. Processo Civil, a competente autorização judicial de venda de bem pertencente à incapaz, o que pressupõe uma análise circunstanciada das condições projetadas para esse ato alienatório de acordo com o interesse daquela[11], objetivo esse que, naturalmente, não pode ser prosseguido numa ação como a presente que não está especialmente vocacionada para esse fim.
Daí que, na ausência de obtenção dessa autorização judicial, estaria inviabilizada a execução específica do ajuizado contrato, sendo que, ao invés do que sustenta o apelante, a ação mencionada no ponto nº 22 dos factos provados (intentada com esse desiderato), culminou com uma decisão “de não suprimento do consentimento da menor” na venda dos imóveis que constituem objeto mediato do ajuizado contrato promessa em virtude de, como aí refere, “o requerente [o ora recorrente] não ter aperfeiçoado o requerimento inicial, de modo a que constassem como requerentes os progenitores da menor, por se estar perante uma situação de litisconsórcio necessário ativo”.
Impõe-se, por isso, a confirmação da sentença recorrida no segmento em que julgou improcedente o pedido aduzido a título principal.
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3.2. Dos pedidos (subsidiários) de resolução do ajuizado contrato promessa e de condenação dos réus no pagamento do dobro da quantia de €75.000,00 ou da sua restituição em singelo

No ato decisório recorrido foram igualmente julgados improcedentes os pedidos que o autor formulou a título subsidiário, por se ter considerado que, no caso vertente, não ocorreu qualquer situação de incumprimento definitivo do contrato promessa legitimadora da sua resolução por banda do autor/promitente comprador.
No recurso que apresentou, o apelante limitou-se, neste conspecto, a alegar que tais pedidos “devem ser considerados procedentes”, não apresentando, no entanto, qualquer argumentação no sentido de demonstrar que o decisor de 1ª instância incorreu num erro de julgamento.
Mas também neste ponto não lhe assiste razão.
Sobre esta matéria é conhecida a divergência doutrinal e jurisprudencial sobre se as consequências estabelecidas do art. 442º, nº 2 do Cód. Civil consagram um regime específico para o incumprimento no contrato-promessa, segundo o qual bastaria uma simples mora ou demora no cumprimento de um dos promitentes para que o outro recorresse a tais sanções, ou se, pelo contrário, às mesmas é aplicável o regime geral da resolução do contrato, sendo necessário um incumprimento definitivo para serem desencadeadas.
Na doutrina tem sido predominante o segundo entendimento[12]. De igual modo, a casuística dos tribunais superiores tem sido, nos últimos anos, praticamente unânime nesse mesmo sentido[13].
Temos assim que, em consonância com este entendimento, largamente dominante, perante um incumprimento do promitente-vendedor, o promitente-comprador tem duas faculdades, consoante o incumprimento constitui um mero atraso na prestação ou constitui um incumprimento definitivo: no primeiro caso poderá recorrer à execução específica do contrato-promessa, de acordo com o art. 830º do Cód. Civil, forçando o promitente faltoso a cumprir o acordado; no segundo caso, considerando o contrato findo, poderá recorrer às sanções previstas no art. 442º, nº 2, do mesmo diploma.
Aderindo à orientação (prevalecente) de que que a resolução pressupõe o incumprimento definitivo, temos, pois, que a sua validade pressupõe a comprovação do incumprimento definitivo imputável ao promitente vendedor, que tanto pode reportar-se à prestação principal, como incidir sobre os deveres acessórios de conduta, desde que assumam gravidade tal que afete a base de confiança subjacente.
Isto posto, recorrendo ao substrato factual apurado, temos que os réus, apesar de interpelados, por duas vezes, para a realização do contrato prometido não compareceram ao ato notarial agendado para tal efeito.
Todavia (independentemente da motivação apresentada para essa não comparência – cfr. pontos nºs 14 e 16 dos factos provados), tal incumprimento não pode reputar-se como definitivo.
Na verdade, é hoje pacífico na doutrina e na jurisprudência que o incumprimento do contrato-promessa se encontra submetido às normas respeitantes aos contratos em geral e às que sejam específicas do contrato prometido, e, por maioria de razão, ao regime geral do não cumprimento das obrigações.
Daí que, para ser despoletada a aplicação do citado nº 2 do art. 442º do Cód. Civil, o incumprimento culposo a que aí se faz alusão, equiparável à impossibilidade da prestação imputável ao devedor, tem, conforme acima se advogou, de ser definitivo.
No entanto, incorrendo o devedor em mora, pode o credor, nos termos gerais estabelecidos no art. 808º do Cód. Civil, convertê-la em incumprimento definitivo, quer mediante a perda (subsequente à mora) do interesse do credor, a apreciar objetivamente, quer em consequência da inobservância do prazo suplementar ou perentório que o credor fixa razoavelmente ao devedor relapso.
Não tendo o autor alegado qualquer materialidade passível de legitimar a transformação da mora em incumprimento definitivo por perda do interesse na prestação, resta, pois, dilucidar se se pode afirmar essa conversão por recurso à segunda hipótese legalmente prevista, o que, in casu, passa por apurar se as missivas que o autor remeteu aos réus em 17 e 25 de maio de 2018 (cfr. pontos nºs 13 e 15 dos factos provados) assumem natureza de interpelação admonitória.
A este respeito, tem-se entendido, na esteira de BAPTISTA MACHADO[14], que para que se considere devidamente feita a interpelação admonitória terá esta de conter três elementos:
. a intimação para o cumprimento;
. a fixação de um termo perentório para o cumprimento;
. a admonição ou a cominação (declaração admonitória) de que a obrigação se terá por definitivamente não cumprida se não se verificar o cumprimento dentro daquele prazo.
No ensinamento de ANTUNES VARELA[15], a interpelação admonitória consagrada no art. 808º constitui “uma ponte essencial de passagem do atravessadouro (lamacento e escorregadio) da mora para o terreno (seco e limpo) do não cumprimento definitivo da obrigação”.
Conforme o espírito da lei, por um lado, o credor tem a possibilidade de impor à outra parte um prazo para cumprir, como meio de obter a realização efetiva da prestação a que tem direito ou de lançar mão das providências com que a lei castiga o não cumprimento definitivo da obrigação, entre as quais se conta a de resolver o contrato, donde nasceu a obrigação que também a ele vincula.
Por outro lado, o devedor tem a garantia de que a contraparte (o credor) não goza ainda da possibilidade de desencadear contra ele nenhuma das sanções ou providências correspondentes ao não cumprimento, enquanto não lhe der uma nova e derradeira chance de corrigir o seu descuido, de emendar a sua negligência, de superar a mora em que incorreu.
E têm os autores entendido, em face do espírito da lei e do próprio texto legal, que, para o devedor em mora ficar nessa situação de faltoso em definitivo, se torna mister que na interpelação feita pelo credor, ao abrigo do disposto no citado art. 808º, se inclua expressamente a advertência de que, não cumprindo o devedor dentro do prazo suplementar fixado, a obrigação se terá para todos os efeitos por não cumprida.
Esta interpelação, na perspetiva da lei, constitui uma intimação formal do credor ao devedor, através da fixação de um prazo perentório para o cumprimento, acompanhada da cominação de que a obrigação ficará definitivamente insatisfeita se o prazo não for respeitado.
Tendo em conta tais considerações, procedendo à análise das referidas missivas, resulta claro que as mesmas não contêm os mencionados elementos, mormente a cominação que carateriza uma típica declaração admonitória.
Nessa decorrência, não se operou, pois, a convolação da mora em incumprimento definitivo por facto imputável aos réus, não estando, assim, legitimada a impetrada resolução e o consequentemente direito às reclamadas prestações pecuniárias à luz do preceituado no citado art. 442º, nº 2 do Cód. Civil.
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III- DISPOSITIVO

Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação improcedente, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas, da ação e do recurso, a cargo do apelante (art. 527º, nºs 1 e 2).

Porto, 27.02.2023
Miguel Baldaia de Morais
Jorge Seabra
Fátima Andrade
_____________
[1] Diploma a atender sempre que se citar disposição legal sem menção de origem.
[2] In Recursos no Novo Código de Processo Civil, pág. 225; no mesmo sentido milita REMÉDIO MARQUES (in A ação declarativa, à luz do Código Revisto, 3ª edição, págs. 638 e seguinte), onde critica a conceção minimalista sobre os poderes da Relação quanto à reapreciação da matéria de facto que vem sendo seguida por alguma jurisprudência.
[3] Isso mesmo é ressaltado por ABRANTES GERALDES, in Temas da Reforma de Processo Civil, vol. II, 3ª ed. revista e ampliada, pág. 272.
[4] Assim ABRANTES GERALDES Recursos, pág. 299 e acórdãos do STJ de 03.11.2009 (processo nº 3931/03.2TVPRT.S1) e de 01.07.2010 (processo nº 4740/04.7TBVFX-A.L1.S1), ambos acessíveis em www.dgsi.pt.
[5] Cfr., por todos, na doutrina, PIRES DE SOUSA, in Direito Probatório Material Comentado, Almedina, 2020, págs. 55 e seguintes; na jurisprudência, acórdão do STJ de 6.12.2011 (processo nº 1675/06.2TBPRD.P1.S1), acessível em www.dgsi.pt.
[6] In Código Civil Anotado, Vol. II, 2ª edição, Coimbra Editora, pág. 109.
[7] In O Contrato Promessa e o seu Regime Civil, Almedina, 1995, pág. 972.
[8] Cfr., neste sentido, entre outros, na doutrina, MENEZES CORDEIRO, in Tratado de Direito Civil Português – II Direito das Obrigações, tomo 2º, 2010, Almedina, págs. 432 e seguinte, CALVÃO DA SILVA, in Sinal e Contrato Promessa, 13ª edição, Almedina, pág. 183, MENEZES LEITÃO, in Direito das Obrigações, vol. I, 4ª edição, Almedina, pág. 216 e ANA PRATA, ob. citada, pág. 974; na jurisprudência, acórdãos do STJ de 19.06.2012 (processo nº 2641/06.3TBVNG.P1.S1), de 14.09.2010 (processo nº 1449/08.6TBVCT.G1.S1), de 03.02.2009 (processo nº 08A3949) e de 01.03.2007 (processo nº 07B477), acessíveis em www.dgsi.pt.
[9] Sobre a inadmissibilidade, por via de regra, de sentenças condicionais, vide, inter alia, na doutrina, ISABEL ALEXANDRE, in Modificação do caso julgado material civil por alteração das circunstâncias, Almedina, págs. 322-337; na jurisprudência, acórdãos do STJ de 24.04.2013 (processo nº 2424/07.3TBVCD.P1.S1) e de 7.04.2011 (processo nº 419/06.3TCFUN.L1.S1), acessíveis em www.dgsi.pt.
[10] Em análogo sentido se pronuncia ANA PRATA, ob. citada, pág. 935 e seguinte. Note-se que, ao contrário do que refere o apelante, a mencionada autora, a pág. 940 dessa obra, aborda problema diverso do que se coloca nos presentes autos, reportando-se antes às situações “de perda de capacidade pelo obrigado a contratar supervenientemente à respetiva promessa”.
[11] Cfr., neste sentido, acórdãos da Relação de Lisboa de 13.01.2022 (processo nº 18960/00.TJLSB-D.L1-2) e de 19.12.2007 (processo nº 9684/2007-6), acessíveis em www.dgsi.pt.
[12] Cfr., por todos, CALVÃO DA SILVA, ob. citada, págs. 85 e seguintes, GALVÃO TELLES, Manual dos Contratos, 6ª edição, Coimbra Editora, pág. 112, ANA PRATA, ob. citada, págs. 780 e seguintes, MENESES LEITÃO, ob. citada, pág. 240, SOUSA RIBEIRO, O Campo de Aplicação do Regime Indemnizatório do artigo 442 do Código Civil: Incumprimento Definitivo ou Mora?, BFDUC, volume comemorativo, 2003, págs. 209 e seguintes e GRAVATO MORAIS, Contrato-Promessa em Geral – Contratos Promessa em Especial, Almedina, 2009, págs. 202 e seguintes.
[13] Cfr., inter alia, acórdãos do STJ de 15.01.2015 (processo nº 473/12.9TVLSB) e de 27.11.97 (processo nº 97B528), ambos disponíveis em www.dgsi.pt.
[14] In Obra Dispersa, vol. I, Scientia Juridica, 1991, págs. 164 e seguintes.
[15] In Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 128º, págs. 112 e seguintes.