Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
95/17.8PBMAI-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: RAÚL CORDEIRO
Descritores: CONCURSO DE CRIMES
CONCURSO SUPERVENIENTE
PRESSUPOSTOS
PENAS
NATUREZA JURÍDICA
PENA ÚNICA
DESCONTO
Nº do Documento: RP2023061495/17.8PBMAI-A.P1
Data do Acordão: 06/14/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL (CONFERÊNCIA)
Decisão: JULGADO PROCEDENTE O RECURSO INTERPOSTO PELO MINISTÉRIO PÚBLICO.
Indicações Eventuais: 4. ª SECÇÃO CRIMINAL
Área Temática: .
Sumário: I - O concurso de crimes pressupõe, por um lado, que o agente tenha cometido mais do que um tipo de crime - concurso heterogéneo - ou mais do que uma vez o mesmo tipo de crime - concurso homogéneo - e, por outro, que a prática dos crimes em causa tenha tido lugar antes do trânsito em julgado da condenação por qualquer deles.
II - Com a alteração introduzida ao n.º 1 do artigo 78.º do Código Penal pela Lei n.º 59/2007, de 04-09, foi eliminado o requisito, para a integração no cúmulo, de a pena anterior não estar cumprida, prescrita ou extinta, o qual constava da sua anterior redacção, sendo agora a mesma, no caso de cumprimento, descontada na pena única a cumprir.
III - O conhecimento superveniente do concurso de crimes tem como razão de ser a assunção de um deficiente funcionamento da administração da justiça penal, uma vez que, frequentemente, não é detectada a existência de vários processos a correr contra o mesmo agente, para que pudessem operar as regras da conexão, além da consagração de limites legais à própria conexão processual (arts. 24.º a 29.º do Código de Processo Penal).
IV – Nessa medida, o regime do artigo 78.º do Código Penal é aplicável aos casos em que, posteriormente à condenação por um ou mais crimes, surge o conhecimento de que o agente praticou anteriormente outro ou outros crimes.
V – Os elementos determinantes para a existência ou não de concurso são os “crimes” - e não as penas, seja qual for a sua natureza -, conforme resulta do disposto nos artigos 77.º, n.º 1, e 78.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal, bem como da Secção III, do Capítulo IV, do Título III, do Livro I, que os antecede, a qual se reporta à “Punição do concurso de crimes e do crime continuado.”
VI – Assim, verificada que esteja a existência de concurso de crimes, as penas aplicadas relevam somente para a medida da pena única, mantendo aquelas, se diferente, a sua natureza na pena única ou conjunta (n.ºs 2 e 3 do art. 77.º). Ou seja, a eventual diferente natureza das penas só é levada em consideração num segundo momento, não podendo, caso a mesma exista, ser afastadas as regras, previamente verificadas, relativas ao concurso de crimes.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 95/17.8PBMAI-A.P1
Conferência de 14-06-2023.

Relator: Raul Cordeiro.
Adjuntas: Carla Oliveira e Paula Cristina Jorge Pires.


Sumário:
………………………..
………………………..
………………………..

I

Acordam, em conferência, os Juízes da 2.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:
Nos autos de Processo Comum Singular n.º 95/17.8PBMAI, do Juízo Local Criminal da Maia – Juiz 2, em que é arguido AA, foi proferido despacho, em 27-01-2023, pelo qual, na sequência de pedido de informação do TEP, se considerou haver lugar à realização de cúmulo jurídico superveniente de penas e ser aquele o processo competente para o efeito, com oportuna designação de data para a respectiva audiência (ref.ª 444141753).
*
Descontente com tal decisão, dela interpôs recurso o Ministério Público, tendo apresentado a respectiva motivação, com as seguintes conclusões:
1.°
Esteve mal o Tribunal a quo ao considerar que a pena a que o arguido foi condenado nos presentes autos está em concurso superveniente de crimes com a pena a que o arguido foi condenado no Processo n.° 414/16.6PBMAI.
2.°
Ao invés, consideramos que a pena do Processo n.° 414/16.6PBMAI, que é resultado de factos praticados em 7 de Junho de 2016, está, em abstracto, em concurso com a pena a que o arguido foi condenado no Processo n.° 248/15.3PBMAI, cuja condenação transitou em 5 de Dezembro de 2016 (independentemente da natureza distinta das duas penas em questão e da mesma ter sido ou não declarada extinta).
3.º
A pena que o arguido foi condenado nos presentes autos é resultado de uma condenação por factos praticados em 10 de Fevereiro de 2017, ou seja, já num “segundo ciclo de crimes”.
4.°
O Tribunal a quo ao “ficcionar” um “apagão” no C.R.C. do arguido do trânsito em julgado da decisão proferida no Processo n.º 248/15.3PBMAI, apenas em virtude da natureza diversa da pena ou pelo facto de a mesma se encontrar extinta, conduz a uma situação de “cúmulo por arrastamento”, o que não é pretendido pelo legislador.

Pelo exposto, deverá ser dado provimento ao presente recurso e, em conformidade, ser proferido douto acórdão que revogue o despacho sindicado, por deficiente interpretação e aplicação dos artigos 77.° e 78.°, n.º 1, ambos do Código Penal, e substitua por outro que reconheça que a pena a que o arguido foi condenado nos presentes autos não se encontra em concurso superveniente de crimes com a pena a que o arguido foi condenado no Processo n.º 414/16.6PBMAI, mas, ao invés, numa situação de cumprimento sucessivo de penas assim se fazendo inteira JUSTIÇA.” (ref.ª 34880539).
*
Admitido regularmente o recurso por despacho e tendo para tal sido notificado o arguido AA, o mesmo não apresentou resposta (ref.ª 445892802).
*
Remetidos os autos a este Tribunal, a Exm.ª Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer, sustentando, em síntese, que, em virtude da diferente natureza das penas, não poderia haver lugar à realização de cúmulo jurídico entre as aplicadas nos Processos n.ºs 248/15.3PBMAI e 414/16.6PBMAI, estando, por isso, em concurso a pena aplicada neste último e nos presentes autos, pelo que deverá ser mantido o despacho recorrido e julgado improcedente o recurso (ref.ª 16854666).
*
Foi proferido despacho liminar e colhidos os vistos, com decisão em conferência.
II
As conclusões formuladas, resultado da motivação apresentada, delimitam o objecto do recurso (art. 412.º, n.º 1, CPP), sem prejuízo da apreciação de questões de conhecimento oficioso que pudessem suscitar-se, como é o caso dos vícios indicados no n.º 2 do artigo 410.º do mesmo Código, mesmo que o recurso verse apenas sobre a matéria de direito (cfr. Acórdão do STJ de Uniformização de Jurisprudência n.º 7/95, de 19-10-1995, in DR I, de 28-12-1995).
Não se descortinando questões de conhecimento oficioso, passa a apreciar-se os argumentos apresentados, para o que importa ter presente o despacho recorrido, o qual é do seguinte teor:
“Em face do ofício remetido pelo TEP, considera o Ilustre Procurador da República não ser este juízo competente para realização do cúmulo jurídico das penas aplicadas ao arguido.
S.m.o, afigura-se-nos que padece em erro ao considerar tal realidade.
Senão vejamos.
Nos termos conjugados do disposto nos artigos 77.°, n.° 1, e 78.°, n.° 1, ambos do Código Penal, se, depois de uma condenação transitada em julgado, se mostrar que o agente praticou, anteriormente àquela condenação, outro ou outros crimes, será condenado numa pena única.
Seguindo o ensinamento do Tribunal da Relação de Coimbra de 21/05/2014 (Processo n.º 158/07.8JAAVR-C.0 1, relatado por Vasques Osório, disponível em www.dgsi.pt): “1. Há lugar a cúmulo jurídico de penas e à aplicação de uma pena unitária no caso de conhecimento superveniente do concurso, quando o agente praticou dois ou mais crimes antes do trânsito da condenação por qualquer deles, e a situação só vem a ser conhecida depois do trânsito em julgado da primeira condenação. 2. O momento a atender para efeitos da verificação da existência de concurso de crimes que imponha a aplicação, nos termos das normas citadas, de uma pena única, é portanto, o do trânsito em julgado da primeira condenação. E assim: - Se todos os crimes foram praticados antes do trânsito da condenação por qualquer deles, encontram-se todos numa relação de concurso a ser objecto do mesmo cúmulo jurídico, a sancionar com uma pena única; - Se alguns dos crimes foram cometidos antes do trânsito da condenação por qualquer deles, e outros foram cometidos depois desse trânsito, há que distinguir: a) os primeiros juntamente com o crime objecto da primeira condenação transitada integrarão o mesmo cúmulo jurídico, a sancionar com uma pena única; b) os segundos portanto, os cometidos a partir da primeira condenação transitada, integrarão outro cúmulo [ou outros cúmulos] a sancionar com outra pena única, verificados que sejam os mesmos pressupostos, ou manter-se-ão autónomos, no caso contrário; c) nas situações referidas em a) e b), as penas únicas mantêm-se autónomas e são cumpridas sucessivamente”.
O Acórdão Uniformizador de Jurisprudência 9/2016, de 9 de Junho de 2016, fixou jurisprudência no mesmo sentido determinando que “O momento temporal a ter em conta para a verificação dos pressupostos do concurso de crimes, com conhecimento superveniente, é o do trânsito em julgado da primeira condenação por qualquer dos crimes em concurso”.

Quer isto dizer que o 1.° marco relevante é o que corresponde ao primeiro trânsito em julgado, isto é, o ocorrido em 21.12.2017, no âmbito do processo n.º 414/16.4PBMAI, uma vez que a pena de multa aplicada no âmbito do P. n.º 248/15.3PBMAI foi já declarada extinta pelo cumprimento e, inexistindo qualquer outra pena de multa a cumular, o processo em apreço tem que ser desconsiderado para efeitos do primeiro trânsito em julgado, sob pena de estarmos a praticar actos inúteis.
Assim, e uma vez que os factos em causa nos presentes autos foram praticados em 10.02.2017, todos os que tiverem sido praticados antes daquele trânsito em julgado estão numa relação de concurso a ser objecto do mesmo cúmulo.
Ademais, e tendo igualmente sido declarada extinta a pena de prisão suspensa na sua execução no âmbito do Processo n.º 1582/17.3T9VLG, também a mesma, ainda que estivesse em concurso jurídico aplicado com a pena destes autos, não será igualmente tida em consideração, atenta a abundante jurisprudência que nos escusamos de reproduzir acerca da circunstância de as penas suspensas na sua execução já declaradas extintas não poderem ser incluídas nas decisões de cúmulo jurídico.
Como assim, constata-se que a pena aplicada no âmbito do Processo n.º 414/16.4PBMAI está numa situação de concurso superveniente com a pena aplicada nos presentes autos, que se impõe cumular.
Do Tribunal competente
Dispõe o artigo 471.° do Código de Processo Penal que o tribunal territorialmente competente para apreciação do concurso corresponderá ao tribunal da última condenação, sendo que a formação singular ou colectiva dependerá dos casos, aplicando-se ainda a alínea b) do n.º 2 do art. 14.° do mesmo diploma legal.
O n.º 1 estipula a competência material para o conhecimento superveniente do concurso que cabe ao tribunal colectivo ou singular consoante os critérios estabelecidos no art. 14.° do Código de Processo Penal, sendo o tribunal colectivo competente quando a soma das penas aplicadas aos crimes em concurso seja superior a cinco anos.
Atendendo às penas parcelares aplicadas em cada um dos processos em referência e ao disposto no n.° 1, do artigo 471.° do Código de Processo Penal e no artigo 77.°, n.° 2, do Código Penal, o cúmulo deverá ser efectuado pelo tribunal singular.
E o n.º 2 do art. 471.° do mesmo diploma legal, preceitua que “sem prejuízo do disposto no número anterior, é territorialmente competente o tribunal da última condenação”.
Fazendo apenas a interpretação literal do preceito, com extrema facilidade se conclui que a competência há-de ser deferida ao tribunal da última condenação. Da última condenação e não do último trânsito em julgado, reza o preceito legal. E o elemento histórico e teleológico aponta no mesmo sentido.
Quando o legislador fala em “tribunal da última condenação” teve em mente implicar nele o tribunal que, justamente por ser o último a intervir em tempo e na cadeia das condenações, dispõe dos elementos de ponderação mais completos e actualizados.
Pelo que, se atentarmos que a efectivação da operação de cúmulo jurídico se traduz na realização de um “novo julgamento” (cf. art. 472.º do Código de Processo Penal) faz todo o sentido que o legislador tivesse imposto essa tarefa ao foro da “última condenação”, que está em melhores condições de proferir uma decisão actualizada, quer quanto aos factos, quer quanto à personalidade do agente.
A este propósito, refere-se no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 06/01/2010 [proferido no processo n.º 98/04.2, 3.ª secção, relatado pelo Conselheiro Pereira Madeira, publicado no sítio www.dgsi.pt.], que “...teve (o legislador) em mente implicar nele o tribunal que, justamente por ser o último a intervir em tempo e na cadeia das condenações, dispõe dos elementos de ponderação mais completos e actualizados, nomeadamente, quanto aos factos (...) e que, portanto, a todas as luzes, é o que está em melhor plano para colher a visão que se quer de panorâmica completa e actual do trajecto de vida do arguido, circunstância que, manifestamente, arreda qualquer interpretação restritiva daquela disposição processual”.
No mesmo sentido, veja-se o acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 21/06/2016 (Processo n.º 73/16.4YREVR, relatado por Fernando Ribeiro Cardoso, disponível www.dgsi.pt), “O tribunal da última condenação, a que alude o n.º 2 do artigo 471.° do CPP, é aquele que por último efectivamente condenou o arguido e não o da condenação que por último transitou em julgado”.
Ora, no caso em apreço, a última condenação do arguido ocorreu no âmbito dos presentes autos (em 12.12.2017), sendo que, para efeitos de competência para a realização de tal cúmulo, deve considerar-se este Juízo Local.
Termos em que, estando verificados os pressupostos a que alude o art. 78.° do Código Penal, determina-se se solicite ao Processo n.º 414/16.4PBMAI o envio de certidão da sentença condenatória proferido nos presentes autos, com nota de trânsito em julgado, bem como do despacho que revoga a pena de trabalho a favor da comunidade aplicada ao arguido AA, com nota de trânsito em julgado e o estado de cumprimento da pena.
Mais solicite à DGRSP a elaboração de relatório social nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 370.°, n.º 1, do C. P. Penal.
**
Notifique e comunique ao TEP que será realizado o cúmulo jurídico nestes autos.
**
Oportunamente será agendada data para audiência de cúmulo jurídico, juntos que estejam aos autos os elementos que ora se vão solicitar.” (ref.ª 444141753).
*
Cumpre apreciar.
O presente recurso, atento o seu objecto, versa, exclusivamente, sobre matéria de direito, impondo a lei que, nesse caso, sejam indicadas, designadamente, “as normas jurídicas violadas” e “o sentido em que, no entendimento do recorrente, o tribunal recorrido interpretou cada norma ou com que a aplicou e o sentido em que ela deveria ter sido interpretada ou com que devia ter sido aplicada” (als. a) e b) do n.º 2 do art. 412.º do CPP).
Os recursos representam um meio de impugnação das decisões judiciais, cuja finalidade consiste na eliminação dos erros, defeitos ou lapsos das mesmas através da sua análise por outro órgão jurisdicional, constituindo um instrumento processual de consagração prática dos princípios constitucionais de acesso ao direito e de garantia do duplo grau de jurisdição (arts. 20.º, n.º 1, e 32.º, n.º 1, da CRP).
Está aqui em causa apurar se deverá haver lugar à realização de cúmulo jurídico superveniente de penas neste Processo Comum Singular n.º 95/17.8PBMAI, entre a pena aqui aplicada e aquela em que foi condenado o arguido no Processo n.º 414/16.4PBMAI, como se sustentou no despacho recorrido, ou se, pelo contrário, tal cúmulo não deverá ter lugar, por não estarem verificados os respectivos pressupostos legais, como defende o recorrente Ministério Público.
Resulta do alegado na motivação e do Certificado de Registo Criminal do arguido (ref.ª 447584329) que este foi, sucessivamente, condenado nos processos e nas penas seguintes:

1.º - Processo n.º 248/15.3PBMAI
Dada dos factos: 09-04-2015.
Data da sentença: 04-11-2016.
Data do trânsito em julgado: 05-12-2016.
Crime e pena: crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo art. 143.º, n.º 1, do Código Penal – pena de 100 dias de multa, à taxa diária de 05,00€, no total de 500,00€ (já declarada extinta, pelo cumprimento/pagamento, por despacho de 20-12-2017).

2.º - Processo n.º 414/16.4PBMAI
Dada dos factos: 07-06-2016.
Data da sentença: 21-11-2017.
Data do trânsito em julgado: 21-12-2017.
Crime e pena: crime de furto qualificado, p. e p. pelos arts. 203.º, n.º 1, e 204.º, n.º 1, al. e), do Código Penal – 2 anos de prisão (ou 2 meses?)[1] de prisão, substituída por 480 horas de trabalho a favor da comunidade (tendo o arguido cumprido apenas 176 horas de trabalho, foi, por despacho de 05-04-2022, revogada a substituição e determinado o cumprimento de 1 ano, 6 meses e 5 dias de prisão).

3.º - Processo n.º 95/17.8PBMAI (estes autos)
Dada dos factos: 10-02-2017.
Data da sentença: 12-12-2017.
Data do trânsito em julgado: 24-01-2018 (ou 14-01?).[2]
Crime e pena: crime de furto qualificado, p. e p. pelos arts. 203.º, n.º 1, e 204.º, n.º 2, al. e), do Código Penal – 8 meses de prisão, substituída por 240 horas de trabalho a favor da comunidade (por despacho de 17-10-2022 foi revogada a substituição e determinado o cumprimento da pena de 8 meses de prisão).

4.º - Processo n.º 1582/17.3T9VLG
Dada dos factos: 09-2017.
Data do acórdão: 14-03-2019.
Data do trânsito em julgado: 13-05-2019.
Crime e pena: crime de tráfico de menor gravidade, p. e p. pelo art. 25.º, al. a), da Lei n.º 15/93, de 22-01 – 2 anos e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, com regime de prova (já declarada extinta, pelo decurso do período de suspensão, por despacho de 03-03-2022).
*
Relativamente ao conhecimento superveniente do concurso de crimes importa ter presentes as seguintes normas do Código Penal (na parte que agora releva):
Artigo 77.º
1 – Quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.
2 – A pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa; e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes.
3 – Se as penas aplicadas aos crimes em concurso forem umas de prisão e outras de multa, a diferente natureza destas mantém-se na pena única resultante da aplicação dos critérios estabelecidos nos números anteriores.
4 – (…).”
Artigo 78.º
1 – Se, depois de uma condenação transitada em julgado, se mostrar que o agente praticou, anteriormente àquela condenação, outro ou outros crimes, são aplicáveis as regras do artigo anterior, sendo a pena que já tiver sido cumprida descontada no cumprimento da pena única aplicada ao concurso de crimes.
2 – O disposto no número anterior só se aplica relativamente aos crimes cuja condenação transitou em julgado.
3 – (…).”
*
O concurso de crimes pressupõe, por um lado, que o agente tenha cometido mais do que um tipo de crime (concurso heterogéneo) ou mais do que uma vez o mesmo tipo de crime (concurso homogéneo), em concurso real ou efectivo (art. 30.º, n.º 1, do C. Penal), e, por outro, que a prática dos crimes em causa tenha tido lugar antes do trânsito em julgado da condenação por qualquer deles (n.º 1 do dito art. 77.º).
Este marco temporal - o trânsito em julgado – estabelecido para a verificação dos pressupostos do concurso delimita a fronteira entre este instituto e a sucessão de penas, que poderá levar à eventual reincidência (art. 75.º, n.ºs 1 e 2, do mesmo Código).
O mesmo constitui, pois, o marco intransponível para se considerar a anterioridade que é requisito do concurso de crimes. Ou seja, o pressuposto essencial para a realização de cúmulo jurídico de penas é a prática de diversas infracções pelo mesmo agente antes de transitar em julgado a condenação por qualquer delas.
A condenação transitada que aquele preceito tem como referência para averiguar dos pressupostos do concurso é a que se verificou em primeiro lugar (data do trânsito).
O momento a considerar para aferir do concurso é, pois, a data do primeiro trânsito em julgado (podendo ser o da primeira decisão ou não), entrando no concurso todos os crimes que tenham sido praticados anteriormente a essa data, sendo esse o entendimento que vinha sendo perfilhado maioritariamente pela doutrina e pela jurisprudência (cfr. Paulo Dá Mesquita, O Concurso de Penas, Coimbra Editora, págs. 39 a 49, e Acs. do STJ de 27-02-2008, CJ STJ I, pág. 236, e de 28-10-2015, CJ STJ III, pág. 205).
O Tribunal Constitucional já havia julgado não inconstitucional esta interpretação normativa que vinha sendo feita, designadamente pelo STJ (Ac. n.º 212/2002).
Contudo, havendo decisões em sentido diferente, tal regime veio a ser objecto de jurisprudência obrigatória, através do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 9/2016, o qual estabeleceu que o momento temporal a considerar é efectivamente a data do “trânsito em julgado da primeira condenação por qualquer dos crimes em concurso.” (in DR I, de 09-06-2016).
Os crimes que tenham sido praticados após a data do primeiro trânsito em julgado já não podem ser englobados nesse cúmulo. Trata-se, nesse caso, não de um concurso de crimes, mas de uma sucessão de crimes e penas.
Efectivamente, se os crimes forem praticados depois do trânsito em julgado, afastado que está o regime da punição do concurso, tem lugar a execução sucessiva de várias penas, segundo as regras estabelecidas no artigo 63.º do Código Penal.
Porém, se, em função daquela regra, ficarem fora do cúmulo jurídico mais que uma pena, devem ser estas cumuladas entre si, em novo cúmulo superveniente, caso se verifiquem os aludidos pressupostos do artigo 78.º, n.º 1, do Código Penal. Neste sentido aponta a generalidade da jurisprudência dos Tribunais Superiores (vejam-se, entre muitos outros, os Acs. do STJ de 14-05-2009, CJ STJ II, pág. 233, e de 19-05-2010, CJ STJ II, pág. 191, de da RC de 21-05-2014, CJ III, pág. 61).
Verificados os pressupostos legais, é aplicada ao agente uma pena única conjunta, podendo ser várias se houver lugar a cúmulos sucessivos.
Com as alterações introduzidas ao Código Penal pela Lei n.º 59/2007, de 04-09, foi eliminado o requisito, para a integração no cúmulo, de a pena anterior não estar cumprida, prescrita ou extinta, o qual constava do n.º 1 do artigo 78.º.
Efectivamente, se a pena tiver sido cumprida (seja ela de prisão ou de multa), não há qualquer razão para a sua não integração no cúmulo, pois que isso poderá beneficiar o condenado, na medida em que a mesma será objecto de desconto na pena única a cumprir (art. 81.º do C. Penal), conforme tem sido entendido pelos Tribunais Superiores (cfr. Acs. da RE de 19-02-2008, CJ I, pág. 266; do STJ de 02-04-2009, CJ STJ II, pág. 187).
Tal desconto das penas cumpridas tem, agora, até consagração expressa na 2.ª parte do dito n.º 1 do artigo 78.º.
Esta norma já foi, aliás, objecto de apreciação pelo Tribunal Constitucional, o qual decidiu “não julgar inconstitucional a norma contida nos artigos 77.º, 78.º e 81.º do Código Penal, quando interpretada no sentido de, em sede de cúmulo jurídico superveniente, se dever considerar no cômputo da pena única as penas parcelares, desconsiderando-se uma pena única já julgada cumprida e extinta, resultante da realização de cúmulo jurídico anterior.” (cfr. Ac. 112/2011).
Contudo, caso se trate de penas de prisão e de multa, a sua diferente natureza mantém-se na pena única (n.º 3 do citado art. 77.º). Essa autonomia tem sido considerada pela jurisprudência dos Tribunais Superiores, pelo que não existe cumulação jurídica entre penas de prisão e de multa, mesmo que esta tenha sido convertida em prisão, pois que mantém a sua natureza originária (cfr. Acs. do STJ de 10-01-2013, CJ STJ I, pág. 187, e da RP de 12-03-2014, CJ II, pág. 235).
O conhecimento superveniente do concurso de crimes (art. 78.º) tem como razão de ser a assunção de um deficiente funcionamento da administração da justiça penal, uma vez que, frequentemente, não é detectada a existência de vários processos a correr contra o mesmo agente, por forma a que pudessem operar as regras da conexão, além da consagração de limites legais à própria conexão processual (arts. 24.º a 29.º do CPP).
E essa deficiência de funcionamento, tal como refere Maria João Antunes, não pode reverter “contra o agente da prática do crime, relativamente ao qual não é de afirmar qualquer dever de colaboração com a administração da justiça penal”. Daí que a exigência de que o crime de que só mais tarde haja conhecimento tenha sido cometido antes da primeira condenação (trânsito em julgado) tem como pressuposto que “o tribunal tê-lo-ia tomado em conta para o efeito de determinar uma pena conjunta, se dele tivesse tido conhecimento” (in Penas de Medidas de Segurança, Almedina, 2021, pág. 62).
Nessa medida, o regime do artigo 78.º do Código Penal é aplicável aos casos em que, posteriormente à condenação por um ou mais crimes, surge o conhecimento de que o agente praticou anteriormente outro ou outros crimes.
Voltando ao caso sub judice temos que a decisão que primeiramente transitou em julgado foi a proferia no Processo n.º 248/15.3PBMAI, pois que tal ocorreu em 05-12-2016, sendo, por isso, este o marco temporal a considerar para aferir do concurso de crimes.
E antes dessa data foram praticados os factos criminosos que deram origem à condenação proferida no Processo n.º 414/16.4PBMAI, os quais ocorreram em 07-06-2016.
Ambos estes crimes estão, por isso, em relação de concurso entre si.
Já os factos criminosos que levaram às condenações nos Processos n.ºs 95/17.8PBMAI (estes autos) e 1582/17.3T9VLG ocorreram posteriormente àquela data do primeiro trânsito em julgado, mais concretamente em 10-02-2017 e 09-2017, respectivamente.
Todos estes elementos são assumidos pelo despacho recorrido e pelo recorrente Ministério Público. A divergência está no facto de a pena aplicada naquele primeiro processo (248/15.3PBMAI) já ter sido declarada extinta pelo cumprimento e tratar-se de pena de diferente natureza, pois que aí o arguido foi condenado em pena de multa e no segundo processo (414/16.4PBMAI) foi condenado em pena de prisão, substituída por trabalho a favor da comunidade (tendo essa substituição sido, entretanto, revogada).
Contudo, como já se disse, as penas cumpridas não deixam, por tal razão, de ser integradas em eventual cúmulo jurídico, desde que se mostrem verificados os pressupostos legais, sendo depois descontadas, se for o caso, no cumprimento da pena única aplicada.
Por outro lado, o facto de se tratar de penas de diferente natureza não derroga, a nosso ver, o critério temporal definidor do concurso de crimes, que é o primeiro trânsito em julgado, nem as regras respectivas.
Esse primeiro trânsito assumiu-se como uma solene advertência ao arguido, contida na respectiva condenação.
Assim, os crimes praticados pelo arguido nos ditos processos processo n.ºs 248/15.3PBMAI e 414/16.4PBMAI estão em relação de concurso entre si, havendo, em conformidade com o n.º 1 do artigo 78.º, que aplicar as regras do artigo 77.º, o qual, pelo seu n.º 3, estabelece a manutenção da diferente natureza das respectivas penas (multa / prisão).
Na verdade, neste caso, estando somente esses dois crimes em relação de concurso, não há lugar a cúmulo jurídico mas sim a uma verdadeira acumulação material de penas, pois que são de diferente natureza, com a manutenção das que foram aplicadas. Isso mesmo ocorreria se todos esses factos tivessem sido objecto de apreciação e julgamento num só processo e ocasião, tendo presentes as regras do concurso de crimes enunciadas no citado artigo 77.º, n.ºs 1 e 3.
Tratou-se, como se diz na motivação do recurso, duma “primeira fase” do percurso criminal do arguido, momento (trânsito em julgado) até ao qual não havia sido censurado pela via sentencial, ganhando, assim, confiança na possibilidade de outras prevaricações com êxito, sem intervenção do sistema de justiça.
Mas o que ocorreu após esse primeiro trânsito integra já um novo período da vida do arguido, pelo que os crimes por ele praticados depois desse momento temporal ficam excluídos, no caso aqueles pelos quais foi condenado nos referidos Processos n.ºs 95/17.8PBMAI (estes autos) e 1582/17.3T9VLG, podendo, se verificados os pressupostos legais, ser realizado novo cúmulo entre as respectivas penas.
Contudo, tal não poderá ocorrer porque a pena (de substituição) aplicada no último deles já foi declarada extinta, pelo decurso do respectivo período de suspensão, o que também é afirmado pelo despacho recorrido, sendo esse o entendimento que vem sendo sustentado pela jurisprudência dos Tribunais Superiores (assim, entre muitos outros, os Acs. do STJ de 20-01-2010, CJ STJ I, pág. 191, e de 18-02-2021, CJ STJ I, pág. 192, e da RL de 11-01-2017, CJ I, pág. 122).
Compreendemos a argumentação do Tribunal a quo e da Exm.ª Procuradora-Geral Adjunta neste Tribunal, mas acolhê-la significaria retirar total relevância ao primeiro trânsito em julgado, ocorrido no Processo n.º 248/15.3PBMAI, o qual, independentemente da natureza e cumprimento da respectiva pena, representa o marco intransponível e constitui o pressuposto essencial para se afirmar a existência ou não do concurso de crimes conhecido supervenientemente.
Ou seja, tal raciocínio só terá sustentação se forem “apagados” os factos criminosos e a condenação infligida ao arguido nesse Processo n.º 248/15.3PBMAI, como se os mesmos não tivessem ocorrido, o que, com o devido respeito por diferente opinião, não nos parece que possa ficcionar-se.
Atente-se que os elementos determinantes para a existência ou não de concurso são os “crimes” - e não as penas, seja qual for a sua natureza -, conforme resulta do disposto nos artigos 77.º, n.º 1, e 78.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal, bem como da Secção III (do Cap. IV, do Tít. III, do Liv. I), que os antecede, a qual se reporta à “Punição do concurso de crimes e do crime continuado.”
Verificada que esteja a existência de concurso de crimes, as penas aplicadas relevam somente para a medida da pena única, mantendo aquelas, se diferente, a sua natureza na pena única ou conjunta (n.ºs 2 e 3 do art. 77.º).
Ou seja, a eventual diferente natureza das penas só é levada em consideração num segundo momento, não podendo, caso a mesma exista, ser afastadas as regras, previamente verificadas, relativas ao concurso de crimes.
Nesta conformidade, atenta a data do primeiro trânsito em julgado, ocorrido no Proc. n.º 248/15.3PBMAI, que não pode deixar de ser considerada, e estando esse crime em relação de concurso com o crime pelo qual o arguido foi condenado no Processo n.º 414/16.4PBMAI, mas já não com o crime pelo qual foi punido no Processo n.º 95/17.8PBMAI (estes autos), não podem as penas destes dois últimos ser cumuladas entre si, como se o crime que deu origem àquela primeira condenação transitada em julgado não tivesse sido praticado, sob pena de serem postergadas as aludidas regras relativas ao concurso superveniente de crimes.
Assim, tem de proceder o recurso.
III

Pelo exposto, decide-se julgar procedente o recurso interposto pelo Ministério Público, revogando-se o despacho recorrido, dado que os crimes pelos quais o arguido AA foi condenado nos Processos n.ºs 414/16.4PBMAI e 95/17.8PBMAI (estes autos), não estão em relação de concurso entre si, não havendo, por isso, lugar à realização de cúmulo jurídico superveniente, entre as respectivas penas, para aplicação de uma pena única.

Sem custas.
*
Notifique.
*

Porto, 14-06-2023.
Raul Cordeiro
Carla Oliveira
Paula Pires
______________
[1] Do CRC constam dois registos diferentes, mencionando-se no primeiro “2 meses” (BOLETIM N.º 2) e no segundo “2 anos” (BOLETIM N.º 3), sendo que tal divergência não releva para o que está agora em análise. Na motivação refere-se a “pena de 2 (dois) meses de prisão” (pág. 7).
[2] Constando do CRC o trânsito em julgado em 24-01-2018, o recorrente Ministério Público refere na motivação o dia “14 de Janeiro de 2018” (pág. 7). Mas também tal divergência não releva para o que agora está em apreciação.