Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1189/21.0T8STS.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: AUGUSTO DE CARVALHO
Descritores: PROCESSO ESPECIAL PARA ACORDO DE PAGAMENTO
PLANO DE PAGAMENTOS
VOTAÇÃO
DIREITO DE VOTO
EXCLUSÃO
Nº do Documento: RP202201121189/21.0T8STS.P1
Data do Acordão: 01/24/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 5.ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Subjacente ao disposto no artigo 212º, nº 2, alínea a), do CIRE, está a inexistência de motivo para que os credores cujos créditos não sejam afetados pelo plano votarem na aprovação do mesmo.
II - Tais credores, não sendo prejudicados pelo plano, não têm um real interesse no resultado do mesmo. Apenas os credores afetados pelo plano têm fundamento significativo para decidirem se o mesmo deve, ou não, ser aprovado.
III - A exclusão do direito de voto aos credores cujos créditos não são afetados pelos planos de insolvência e acordos de pagamento é um relevante instrumento para a sua aprovação que, muitas vezes, poderiam ser bloqueados, mesmo por razões pouco significativas e até egoístas.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Apelação nº 1189/21.0T8STS.P1

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

B… requereu processo especial para acordo de pagamento nos termos dos artigos 222º-A e seguintes do CIRE, alegando que se encontra em situação económica difícil, pelo que pretende estabelecer negociações com os respetivos credores de modo a concluir com estes acordos de pagamento.

Foi nomeado administrador judicial provisório, nos termos do disposto no artigo 222º-C/4 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.

O Sr. Administrador juntou lista provisória de créditos, a qual, por não ter sido objeto de qualquer impugnação, foi convertida em definitiva.

Concluídas as negociações, foi concedido prazo para votação do plano apresentado pela devedora, tendo votado credores representando 91,66% dos créditos constantes da lista definitiva de credores com direito a voto, não tendo votado os demais credores.

A credora C…, S.A., votou contra.

O acordo de pagamento foi aprovado por credores não subordinados, representando 91,66% dos votos emitidos.

Nos termos do artigo 222º-F, nº 5, do CIRE, o acordo de pagamento relativo à devedora B… foi homologado.

Inconformada, a credora C…, S.A., recorreu para esta Relação, formulando as seguintes conclusões:
A. No âmbito do presente processo especial para acordo de pagamento, a recorrente reclamou o crédito que detinha da recorrida B…, pelo valor de €59.086,57, onde constava expressamente que a data de incumprimento contratual era de 26-04-2013.
B. Na lista provisória de credores apresentada nos autos, o crédito da aqui recorrente foi reconhecido pelo montante reclamado e como garantido, atenta a garantia hipotecária que detém a seu favor.
C. A recorrente, no decurso das negociações, informou a recorrida de que para resolução do crédito hipotecário apenas estava na disposição de aceitar o pagamento total do valor em divida, ou a entrega do imóvel, para pagamento na totalidade do valor em dívida.
D. Considerando que à data do início do processo especial para acordo de pagamento se encontrava pendente a execução nº 1049/18.2T8PRT, que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo de Execução - Juiz 4, na qual havia sido vendido o imóvel penhorado e sobre o qual estava constituída garantia hipotecária.
E. Em 31-08-2021, a recorrente foi notificada para se pronunciar quanto ao plano apresentado pela recorrida, que apresentava a seguinte proposta “Quanto ao crédito hipotecário da C…, S.A., propõe-se a consolidação do crédito à data do trânsito em julgado da sentença de homologação, e a manutenção de todas as condições contratualizadas, sem qualquer alteração.”
F. Nessa sequência, em 03-09-2021, a recorrente votou contra a proposta apresentada pela recorrida, considerando que o incumprimento do contrato de crédito reclamado datava de 26-04-2013 e por não corresponder à realidade o que se encontrava vertido no acordo de pagamento apresentado.
G. No entanto, foi surpreendida pela decisão do tribunal a quo, que decidiu retirar o direito de voto à credora hipotecária C…, S.A.
H. Para o efeito considerou que “O credor C…, S.A., votou contra. No entanto, o seu crédito não lhe confere direito de voto, atendendo a que o mesmo não é modificado pela parte dispositiva do acordo de pagamento – artigo 212º/2/a), do CIRE”.
I. No caso concreto, considerando a data do incumprimento definitivo do crédito, que ocorreu em 26-04-2013, e o facto de o mesmo se encontrar numa fase de recuperação coerciva avançada, torna claro e inequívoco, que a retoma de um crédito de acordo com as suas condições iniciais, implica uma modificação da situação do crédito com a homologação do acordo de pagamento.
J. Sendo que a razão, subjacente a não se conferir direito de voto aos créditos não modificados, prende-se com o facto de estes não serem negativamente afetados pelo plano, o que não sucede na situação aqui em análise.
K. Ademais, o voto da recorrente corresponde a 75,56% dos créditos reclamados, o que levaria no caso concreto à não aprovação do plano de acordo de pagamento.
L. Atento ao supra exposto, deverá a decisão recorrida ser revogada e substituída por decisão que recuse o acordo de pagamento apresentado, por não se encontrar cumprido o requisito legal de aplicação do artigo 212º, nº 2, alínea a), do C.I.R.E., devendo o voto emitido pela recorrente ser considerado na votação do plano, uma vez que existe uma clara modificação da situação do seu crédito com a proposta efetuada pela recorrida.

Não houve contra-alegações.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

Com interesse para a decisão do recurso consideram-se assentes os seguintes factos:
1. A credora C…, S.A., reclamou o crédito de €59.086,57, consignando que a data de incumprimento contratual era a de 26.4.2013.
2. Na lista provisória de créditos, nos termos do artigo 222º-D, nºs 2 e 3, do CIRE, o crédito da apelante foi reconhecido pelo montante reclamado e como garantido por hipoteca.
3. O crédito referido no ponto 1 foi peticionado na execução nº 1049/18.2T8PRT, que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo de Execução - Juiz 4.
4. No plano de acordo de pagamento junto a fls. 29 e seguintes ficou a constar o seguinte:
a) Quanto ao crédito hipotecário da C…, S.A., propõe-se a consolidação do crédito à data do trânsito em julgado da sentença de homologação e a manutenção de todas as condições contratualizadas, sem qualquer alteração.
b) Os créditos dos restantes credores, vencidos à data do trânsito em julgado da sentença de homologação do plano, correspondendo o mesmo ao montante de 10% do capital reclamado e reconhecido na lista de créditos; perdão total de juros vencidos e vincendos; a amortização integral do capital em dívida será em 120 prestações mensais, iguais e sucessivas, de igual valor, vencendo-se a primeira até ao final do mês seguinte após o trânsito em julgado; extinção de todas as ações suspensas, com a aprovação e homologação do plano proposto, conforme previsto pelo nº 1 do artigo 222º-E, do CIRE.
5. A credora C…, S.A., nos termos e para os efeitos do artigo 222º-F, ex vi do artigo 216º do CIRE, veio declarar votar contra o acordo de pagamento e requereu a não homologação do mesmo (fls. 34).
6. Na ata da abertura de votos ficaram a constar as seguintes conclusões:
a) O crédito da credora C…, S.A., não lhe confere direito de voto, atendendo a que o mesmo não é modificado pela parte dispositiva do acordo de pagamento, aplicando-se o disposto no artigo 212º, nº 2, alínea a), do CIRE;
b) O acordo foi votado por credores cujos créditos representam 91,66% dos créditos com direito de voto;
c) O acordo recolheu o voto favorável de 100% dos votos emitidos.

São apenas as questões suscitadas pelos recorrentes e sumariadas nas respetivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar – artigos 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do C.P.C.
A questão a decidir consiste em saber se a homologação do plano de acordo de pagamento apresentado afeta negativamente o crédito hipotecário da credora/apelante.

I. A apelante alega que no decurso das negociações terá informado a devedora de que apenas estava na disposição de aceitar o pagamento total do valor em dívida, ou a entrega do imóvel, para pagamento na totalidade da dívida.
No plano de acordo de pagamento que acabou por ser homologado, quanto ao crédito hipotecário da C…, S.A., ficou prevista a consolidação do mesmo, à data do trânsito em julgado da sentença de homologação, e a manutenção de todas as condições contratualizadas, sem qualquer alteração.
Nos termos do artigo 212º, nº 2, alínea a), do CIRE, não conferem direito de voto os créditos que não sejam modificados pela parte dispositiva do plano.
Subjacente ao disposto neste preceito está a inexistência de motivo para que os credores cujos créditos não sejam afetados pelo plano votarem na aprovação do mesmo. Tais credores, não sendo prejudicados pelo plano, não têm um real interesse no resultado do mesmo. Apenas os credores afetados pelo plano têm fundamento significativo para decidirem se o mesmo deve, ou não, ser aprovado.
A exclusão do direito de voto aos credores cujos créditos não são afetados pelos planos de insolvência e acordos de pagamento é um relevante instrumento para a sua aprovação que, muitas vezes, poderiam ser bloqueados, mesmo por razões pouco significativas e até egoístas.
A credora/apelante alega que, no decurso das negociações, informou a devedora de que para a resolução do crédito hipotecário apenas estava na disposição de aceitar a liquidação total do valor em dívida, ou a entrega do imóvel, para pagamento na totalidade do valor em dívida.
E, invocando a data do incumprimento definitivo do crédito (26.4.2013), e o facto de o mesmo se encontrar numa fase de recuperação coerciva avançada, considera a credora que a retoma do crédito de acordo com as suas condições iniciais implica uma modificação da situação do mesmo.
No fundo, a apelante reclama do fracionamento do seu crédito (pagamento em 150 prestações, segundo a proposta preliminar que a devedora apresentou), pese embora o mesmo ser reconhecido pelo montante reclamado e como garantido por hipoteca.
Nestes casos em que não é previsto o pagamento imediato do valor devido, Carvalho Fernandes e João Labareda referem que «a lei mudando a orientação, exclui agora a intervenção dos créditos que não sejam atingidos pelas medidas determinadas no plano, sendo este o sentido da alínea a) do nº 2.
A este propósito, justifica-se uma observação, que se prende com a estatuição geral do nº 1 do artigo 91º.
Diz-se aí que a declaração de insolvência determina o vencimento de todas as obrigações do insolvente não subordinadas a uma condição suspensiva, o que implica que os direitos correspondentes dos credores possam de imediato ser exercidos no quadro e nos termos do processo de insolvência, em conformidade com o CIRE.
Pois bem, à luz deste regime pode perguntar-se se, na hipótese provável de o plano não contemplar o pagamento imediato pelo valor devido, não haverá então sempre afetação ou modificação dos créditos.
Cremos que a resposta é negativa e que o sentido do texto só pode ser o de haver como afetados apenas os créditos que se proponha venham a ser considerados em termos distintos daqueles que revestiam à data da declaração de insolvência, seja pelo montante, condições de pagamento, garantias ou outros aspetos.
É este, com efeito, o único entendimento compatível com a nossa tradição, e com a própria razão de ser do preceito anotando, sendo certo que a disposição do artigo 91º, nº 1, só se justifica para assegurar a regra par conditio creditorum e facilitar a liquidação do património do devedor de acordo com o modelo legal, a qual, todavia, é, precisamente, afastada pela adoção do plano de insolvência». Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, pág. 819.
No caso, apesar de nele se prever a consolidação do crédito à data da homologação e a manutenção de todas as condições contratualizadas, sem qualquer alteração, o plano de acordo de pagamento afeta a posição da credora.
O crédito em questão foi peticionado na execução nº 1049/18.2T8PRT, que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo de Execução – Juiz 4, e quando se iniciou o presente processo para acordo de pagamento, o imóvel hipotecado já havia sido vendido judicialmente.
Ou seja, o crédito encontra-se já em fase muito adiantada de execução e o retorno às condições contratuais inexistentes há alguns anos (desde 26.4.2013, na versão da apelante) modifica-o em prejuízo da credora. O plano de acordo modifica significativamente as condições de pagamento do crédito.
Também, entendendo-se ser o crédito da C…, S.A., afetado pelo plano de acordo de pagamento, não lhe pode ser retirado o direito de voto e, portanto, dado que os créditos dos restantes credores apenas totalizam €19.000,00, não perfazem a maioria exigida pelo nº 1 do citado artigo 212º do CIRE, o que impede a homologação do acordo, nos termos do disposto no artigo 222º, nºs 5 e 6, do CIRE.
Deste modo, procede o recurso da credora C…, S.A.
Decisão:
Pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes desta secção cível em revogar a decisão recorrida e, consequentemente recusar a homologação do plano de acordo de pagamento apresentado pela devedora B….

Custas pela apelada.

Sumário:
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Porto, 24.1.2022
Augusto de Carvalho
José Eusébio Almeida
Carlos Gil