Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRP000 | ||
Relator: | LILIANA DE PÁRIS DIAS | ||
Descritores: | CRIME DE HOMICIDIO NEGLIGENTE REQUISITOS LEGES ARTIS CAUSALIDADE ADEQUADA DEVERES OBJECTIVOS DE CUIDADOS PENA ACESSÓRIA PROIBIÇÃO DE CONDUZIR | ||
Nº do Documento: | RP2023061477/20.2GAVFR.P1 | ||
Data do Acordão: | 06/14/2023 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | RECURSO PENAL (CONFERÊNCIA) | ||
Decisão: | CONCEDIDO PROVIMENTO PARCIAL AO RECURSO INTERPOSTO PELO ARGUIDO. | ||
Indicações Eventuais: | 4. ª SECÇÃO CRIMINAL | ||
Área Temática: | . | ||
Sumário: | I - O tipo de ilícito do homicídio negligente não fica preenchido quando o agente, com a sua conduta, não criou, não assumiu ou não potenciou um perigo típico para a vida da vítima: ou porque o perigo não chegou ao limite do juridicamente relevante; ou porque, sendo embora a conduta em si perigosa, se manteve dentro dos limites do risco permitido (ex., o cirurgião que leva a cabo uma intervenção cirúrgica arriscada e na qual o paciente vem a falecer, apesar de ela ser medicamente indicada e se ter observado o escrupuloso cumprimento das leges artis); ou mesmo porque o agente se limitou a contribuir para a colocação em perigo dolosa de outra pessoa. II - Por outro lado, podendo a violação de normas de cuidado da mais diversa ordem (legais, regulamentares, profissionais, da experiência) constituir legitimamente indício do preenchimento do tipo de ilícito, não pode em caso algum fundamentá-lo. O que significa que o preenchimento do tipo de ilícito não dispensa a concreta verificação de um nexo causal entre a conduta, infratora do dever de cuidado, e o resultado danoso. III - Este nexo deve ser conforme aos critérios da teoria da causalidade adequada. IV - Para que a ilicitude se afirme, é ainda necessário que o resultado típico proibido possa ser imputado à concreta violação do dever objetivo de cuidado pelo agente, em conformidade com as regras da imputação objetiva. Dito de outro modo, é necessário que no dano ocasionado – no caso, a morte da vítima – se possa reconhecer uma concretização típica do perigo criado, assumido ou potenciado pelo agente ao não observar o dever de cuidado a que estava obrigado em razão das regras da experiência ou por força de determinada norma jurídica. V - Hipóteses de concausalidade (de contribuição culposa de terceiros ou das próprias vítimas para a ocorrência do resultado danoso), não influem no plano dos pressupostos da responsabilidade, relevando, unicamente, no momento da determinação das consequências jurídicas do crime. Com efeito, no âmbito da teoria da causalidade adequada defende-se que se verifica um nexo de causalidade adequada quando uma condição não é a única a contribuir para a produção do resultado, mas aumenta a possibilidade de ocorrência do mesmo de modo não irrelevante. Já á luz da teoria do incremento do risco, pode dizer-se que se verificará um nexo de imputação objetiva em casos de causalidade cumulativa e em relação a qualquer das causas, pois cada uma das ações, embora não seja causa única de produção do resultado, incrementou o risco dessa produção. VI - A concorrência de causas do acidente (e de culpas) não impede, pois, a condenação do arguido/recorrente pelo crime de homicídio negligente. Atenuando a sua responsabilidade, poderá unicamente influir na operação de escolha e medida da pena. VII - A comunidade em geral não ficará, certamente, indiferente à circunstância de a vítima ter contribuído de forma relevante para tão trágico desfecho do acidente, aceitando, por isso, a aplicação ao arguido de uma pena de multa a título principal. VIII - No que concerne à pena acessória de proibição de conduzir, o Tribunal Constitucional tem salientado que o núcleo essencial do direito ao trabalho não é afetado pela imposição da proibição de conduzir veículos com motor em dias seguidos | ||
Reclamações: | |||
Decisão Texto Integral: | Proc. nº 77/20.2GAVFR.P1 Recurso Penal Juízo Local Criminal de Santa Maria da Feira - Juiz 2 Acordam, em conferência, na 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto. I. Relatório No âmbito do processo comum singular que, sob o nº 77/20.2GAVFR, corre termos pelo Juízo Local Criminal de Santa Maria da Feira, foi submetido a julgamento o arguido AA, tendo, a final, sido proferida sentença, datada de 27/12/2022, com o seguinte dispositivo: «Nos termos supra expostos, decido: 1º). Condenar o arguido AA, pela prática de um crime de homicídio por negligência, previsto e punido pelo artigo 137.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 8 (oito) meses de prisão. 2º). Suspender a pena de prisão ora aplicada, pelo período de um ano, condicionada ao cumprimento dos seguintes deveres e regras de conduta: - entregar, no prazo de um ano, a quantia de €1.000 (mil euros) ao Centro Social ..., comprovando documentalmente nos autos o cumprimento de tal obrigação; - frequentar um curso de prevenção rodoviária, a suas expensas, comprovando documentalmente nos autos o seu cumprimento; - comunicar ao Tribunal a alteração de residência e requerer autorização para ausência para o estrangeiro; - a obrigação de se apresentar, quando convocado, a este Tribunal. 3º). Condenar o arguido AA na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 8 (oito) meses – artigo 69.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal. 4º). Condenar o arguido nas custas criminais do processo – artigo 513.º, n.º 1, do Código de Processo Penal. * Notifique e deposite.* Notifique, sendo, quanto ao arguido, com a expressa advertência de que deverá proceder à entrega da respetiva carta de condução e de todos os títulos de condução na secretaria deste Tribunal ou no posto policial da sua área de residência, no prazo de 10 dias, após trânsito em julgado da presente sentença, sob pena de incorrer na prática de um crime de desobediência – 500.º, n.º 2 do Código de Processo Penal. […]» Inconformado com a decisão condenatória, dela interpôs recurso o arguido para este Tribunal da Relação, com os fundamentos descritos na respetiva motivação e contidos nas seguintes “conclusões”, que se transcrevem [1]: «A) Pelos factos e fundamentos alegados em 3. a 30., do presente Recurso, deve a matéria de facto ser julgada ferida de vício grave, por manifesto erro notório na apreciação da prova, devendo ser alterada no sentido de ser consagrado para efeitos de diminuição da eventual culpa do recorrente, julgando da concorrência de culpa da própria vítima e, as concretas e reais condições da ocorrência do evento tudo conforme toda a prova fixada nos presentes autos, ou em alternativa, pede-se a sua anulação em 1ª instância e a repetição do Julgamento, nos termos do disposto no artigo 426º do Código de Processo Penal. B) Pelos factos e fundamentos alegados em 31. A 55., desta peça processual, por absoluta inexistência de nexo de causalidade entre o comportamento ou ação do recorrente nos factos “sub judice” e o decesso da vítima, ser julgado não provado o crime pelo qual este vem acusado, nos termos do artigo 137º, nº 1 do Código Penal e, em consequência, ser o recorrente Absolvido. Sem Prescindir, sempre, C) Pelos factos e fundamentos alegados em 56. a 86., do presente Recurso, deve em concreto as penas principal e acessória aplicadas ao recorrente serem alteradas, devendo ser fixadas nos seus limites mínimos, não mais de 3 meses, nos termos do disposto nos artigos 137º, nº e 69º, nº 1, alínea a), ambos do Código Penal, totalmente de acordo com os princípios gerais do nosso ordenamento jurídico penal, nomeadamente os artigos 40º, 43º, 50º, 51º, 52º, 65º, 70º, 71º, 72º, 73º, todos do Código Penal e, os princípios fundamentais do nosso ordenamento jurídico e consagrados na Constituição da República Portuguesa, nos seus artigos 30º, 58º, 64º, 65º e 67º. V. Exas., Farão a Prudente e Sábia, JUSTIÇA.» * O recurso foi admitido para subir nos próprios autos, de imediato e com efeito suspensivo. * O Ministério Público, em primeira instância, apresentou resposta, defendendo a manutenção da sentença recorrida, por considerar que a mesma não padece de qualquer vício (designadamente, o invocado erro notório na apreciação da prova), encontrando-se verificado o nexo de causalidade entre o comportamento negligente do recorrente e o resultado (morte da vítima), para além de se mostrarem criteriosamente fixadas as penas principal e acessória.* A Exma. Sra. Procuradora-Geral Adjunta, neste Tribunal, emitiu parecer, no qual, aderindo aos fundamentos da resposta do Ministério Público na 1ª instância, pronunciou-se pela negação de provimento ao recurso e confirmação da sentença recorrida, salientando, quanto ao mérito do recurso, a inexistência dos vícios decisórios invocados pelo recorrente, a inexistência de quebra do nexo causal invocada no recurso e a adequada dosimetria das penas principal e acessória determinadas pelo tribunal de primeira instância.* Foi cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, não tendo sido apresentada resposta pelo recorrente.Procedeu-se a exame preliminar e foram colhidos os vistos, após o que o processo foi à conferência, cumprindo apreciar e decidir. * II - FundamentaçãoÉ pelo teor das conclusões que o recorrente extrai da motivação, onde sintetiza as razões de discordância com o decidido e resume o pedido (artigos 412.º, n.º 1 e 417º, nº 3, do PP), que se delimita o objeto do recurso e se fixam os limites do horizonte cognitivo do Tribunal Superior, sem prejuízo das questões que devem ser conhecidas oficiosamente, como sucede com os vícios a que alude o art.º 410º, nº 2 ou o art.º 379º, nº 1, do CPP (cf., por todos, os acórdãos do STJ de 11/4/2007 e de 11/7/2019, disponíveis em www.dgsi.pt). Podemos, assim, equacionar como questões colocadas à apreciação deste tribunal, as seguintes: 1) Vícios decisórios – em particular, a questão do «erro notório na apreciação da prova» (art.º 410.º, n.º 2, c), do CPP). 2) Questão da verificação do nexo de causalidade adequada entre o comportamento do recorrente e a morte da vítima. 3) Escolha da pena principal (multa ou prisão). 4) Dosimetria das penas principal e acessória (de proibição de conduzir). * Delimitado o thema decidendum, importa conhecer a factualidade em que assenta a condenação proferida.* Factos provados e não provados (segue transcrição):«FUNDAMENTAÇÃO Matéria de facto provada Da audiência de julgamento resultou provada a seguinte matéria de facto: Da acusação pública a). No dia 31 de Janeiro de 2020, cerca das 11:45 horas, na Rua ..., em ..., Concelho ..., o arguido AA conduzia o veículo automóvel pesado de mercadorias, da marca Renault, com a matrícula ..-JM-.., no sentido de marcha .../.... b). Naquele momento, na via de trânsito de sentido oposto àquele em que seguia o arguido, circulava a BB, ao volante do veículo automóvel da marca Mercedes, modelo ..., com a matrícula ..-..-NP, na direção .../.... c). BB transportava consigo, no veículo de matrícula ..-..-NP, no lugar de passageiro da frente, CC. d). Em frente à habitação com o n.º de porta ... da via acima identificada, a faixa de rodagem tinha a configuração de uma curva à esquerda atento o sentido de marcha em que circulava o arguido. e). Aí chegado, o arguido ao efetuar a referida curva, invadiu a via de trânsito de sentido oposto e, em consequência, colidiu com o veículo de matrícula ..-JM-.. que conduzia na parte frontal e lateral esquerda do veículo automóvel de matrícula ..-..-NP, onde seguiam BB e CC. f). Como consequência direta da colisão provocada pelo arguido, CC sofreu lesões traumáticas crânio-meningo-encefálicas e vertebro-medulares cervicais, que foram causa direta e necessária da sua morte. g). O embate ocorreu dentro da via de trânsito em que seguia o veículo automóvel de matrícula ..-..-NP, conduzido por BB. h). O local onde ocorreu o acidente configurava uma curva com inclinação aproximada de 3%, ascendente no sentido de circulação do arguido. i). A faixa de rodagem tinha uma largura de 5,70 metros, era constituída por duas vias de trânsito, uma em cada sentido, delimitadas por uma linha contínua de cor branca, encontrando-se a mesma bem visível. j). A via encontrava-se em bom estado de conservação e o piso estava molhado, porque chovia, embora com pouca intensidade. k). O arguido ao conduzir do modo acima descrito, efetuando uma curva com um veículo pesado de mercadorias e invadindo a via de trânsito oposta ao seu sentido de marcha e por onde estava a circular o veículo de matrícula ..-..-NP, transportando CC, colidindo com aquele automóvel, agiu com uma total falta de consideração, atenção, zelo e de cuidado, que era capaz de adotar e que devia ter adotado para evitar um resultado que de igual forma podia e devia prever, mas que não previu, dando, pois, causa ao acidente, de onde resultariam lesões corporais que vieram a provocar a morte de CC. l). O arguido sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei penal. * Mais se provou, com relevância para a determinação da sanção aplicável:m). No circunstancialismo supra descrito, a vítima mortal, CC, circulava sem cinto de segurança. n). À data dos factos o arguido não tinha antecedentes criminais e não lhe eram conhecidos antecedentes contra-ordenacionais de natureza estradal. o). O arguido tem o 6.º ano de escolaridade e é motorista profissional, na sociedade “A..., Lda.”, há dezanove anos, auferindo cerca de €800 mensais. p). Vive com a sua mulher, tendo o casal um filho de vinte e cinco anos de idade, o qual já desempenha atividade profissional e contribui para as despesas domésticas (pagando o fornecimento da água e da eletricidade). q). A sua mulher encontra-se reformada, por invalidez, há sensivelmente vinte anos, beneficiando de uma pensão de cerca de €300 mensais. r). O agregado familiar reside em casa arrendada, pagando €270 mensais de renda. s). O arguido é dono de um veículo automóvel da marca “Ford”, modelo ..., do ano de 2001. * Não existem factos não provados.»* Apreciando os fundamentos do recurso.A) Vícios decisórios – em particular, o erro notório na apreciação da prova (art.º 410.º, n.º 2, alínea c), do CPP). Defende o recorrente que a factualidade constante das alíneas e), f), g) e k) deveria ser considerada não provada, tendo o tribunal a quo incorrido num erro notório na apreciação da prova quanto aos factos suscetíveis de integrar o tipo objetivo e subjetivo do crime de homicídio negligente que lhe foi imputado. Vejamos se lhe assiste razão. Os poderes de cognição deste Tribunal da Relação abrangem matéria de facto e matéria de direito (cf. art.º 428.º do Código Processo Penal). A matéria de facto pode ser questionada por duas vias, a saber: - no âmbito restrito, mediante a arguição dos vícios decisórios previstos no art.º 410.º, n.º 2, do Código Processo Penal, cuja indagação tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo, por isso, admissível o recurso a elementos àquela estranhos para a fundamentar, ainda que se trate de elementos existentes nos autos e até mesmo provenientes do próprio julgamento; - mediante a impugnação ampla a que se reporta o art.º 412.º, nº 3, 4 e 6, do Código Processo Penal, caso em que a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência. A impugnação da matéria de facto baseada no chamado recurso de «revista ampliada» reconduz-se às patologias catalogadas nas alíneas do n.º 2, do art.º 410º do CPP, que devem surgir evidenciadas no texto decisório, por si ou em conjugação com as regras de experiência, sem recurso a quaisquer outros elementos que o extravasem. O elenco legal destes vícios, como decorre das alíneas a), b) e c), do citado normativo legal, abrange a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada [lacunas factuais que podiam e deviam ter sido averiguadas e se mostram necessárias à formulação de juízo seguro de condenação ou absolvição], a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão [incompatibilidade entre factos provados ou entre estes e os não provados e entre a matéria fáctica e a conclusão jurídica] e o erro notório na apreciação da prova [erro patente que não escapa ao homem comum] [2]. O “erro notório na apreciação da prova” refere-se às situações de falha grosseira e ostensiva na análise da prova e não se confunde com a mera discordância ou diversa opinião quanto à valoração da prova produzida levada a efeito pelo julgador, antes traduz-se em distorções de ordem lógica entre os factos provados ou não provados, ou na evidência de uma apreciação manifestamente ilógica, arbitrária, de todo insustentável e, por isso, incorreta e que, em si mesma, não passe despercebida imediatamente à observação e verificação comum do homem médio - ou, talvez melhor dito, ao juiz “normal”, ao juiz dotado da cultura e experiência que deve existir em quem exerce a função de julgar, devido à sua forma grosseira, ostensiva ou evidente.[3] Ou seja, há um tal erro quando o homem médio suposto pela ordem jurídica, perante o que consta do texto da decisão, facilmente se dá conta que o tribunal violou as regras de experiência ou se baseou em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios ou se desrespeitaram regras sobre o valor da prova vinculada ou das leges artis, traduzindo o vício em questão “um erro supino, crasso e inquestionável a partir da simples leitura do texto da decisão recorrida, que escapa à lógica das coisas, ou seja, quando sendo usado um processo lógico racional se extrai de um facto uma conclusão ilógica, irracional, arbitrária ou notoriamente violadora das regras da experiência comum” [4]. Em síntese, deve tratar-se de um erro manifesto, isto é, facilmente demonstrável, dada a sua evidência perante o texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum. [5] No presente caso, o recorrente mostra-se inconformado com a circunstância de o tribunal de primeira instância, na sentença recorrida, ter considerado demonstrado que o seu veículo invadiu a metade contrária da faixa de rodagem, tendo sido nesse local que ocorreu a colisão com o veículo ligeiro de passageiros que circulava em sentido oposto, e por ter concluído pela verificação de um nexo de causalidade entre o resultado danoso e o seu comportamento (negligente), apesar de reconhecer que a vítima circulava no interior daquele veículo automóvel sem a necessária colocação do respetivo cinto de segurança. A propósito da apreciação da prova tendente à demonstração do crime de homicídio negligente, cuja autoria foi imputada ao arguido, escreveu-se na sentença recorrida o seguinte (segue transcrição): «Motivação da matéria de facto: A decisão teve por base a prova produzida em audiência, globalmente considerada, nomeadamente: Relativamente ao acidente de viação em apreço, designadamente quanto ao seu enquadramento espácio-temporal e à sua dinâmica, foram, desde logo, consideradas as declarações do próprio arguido, o qual descreveu o local onde o mesmo ocorreu e situou-o no tempo em moldes similares aos vertidos na acusação pública, ainda que tenha terminantemente repudiado ter invadido a faixa de trânsito destinada à circulação em sentido oposto ao que seguia, afirmando estar convicto que tal invasão foi sim protagonizada pela condutora da outra viatura automóvel interveniente no acidente, que, na sua versão, seguiria para além da linha delimitadora das faixas. Por seu turno, a testemunha BB, condutora da outra viatura automóvel interveniente no acidente de viação e com a qual colidiu aquela que era conduzida pelo arguido, relatou, de forma assaz convincente e verosímil porque aparentemente imparcial, o seu enquadramento e dinâmica, muito embora revelasse algumas hesitações e notória incapacidade de concretização da dinâmica, claramente consequentes não só do tempo já decorrido, mas sobretudo em virtude da instantaneidade do evento e do trágico desfecho que tal acidente veio a ter, descrevendo, em suma, o modo como veio a ser surpreendida pelo veículo pesado conduzido pelo arguido a circular parcialmente na faixa de rodagem destinada ao seu sentido de marcha, já em plena curva (sem que antes o tivesse avistado), ficando “entalada”, sem margem de escapatória (já que, de facto, não existe qualquer berma, sendo a faixa de rodagem, naquele sentido de trânsito, ladeada por um passeio), uma vez que, na sua descrição, foi mesmo quase que “abalroada” pelo camião, existindo um primeiro contacto entre os veículos, logo aquando o seu cruzamento e, depois, sendo o veículo conduzido pela depoente como que arrastado pela lateral do camião, dando-se a colisão final e mais forte. A testemunha DD, pertencente ao Núcleo de Investigação Criminal da Brigada de Trânsito de ... da Guarda Nacional Republicana, foi ouvida quanto à matéria vertida no referido relatório técnico de acidente de viação, por si elaborado, junto de folhas 428 a 440, descrevendo o local do acidente de viação, reputando-o como perigoso, quer pela falta de espaço de manobra (por regra, sendo dois veículos pesados, nem sequer descrevem a curva em questão em simultâneo, não existindo quase berma no sentido de marcha do arguido e sendo mesmo inexistente no sentido tomado pelo outro veículo interveniente), quer pela falta de visibilidade (praticamente os veículos só se avistam aquando o seu cruzamento), aduzindo estar convicto que um veículo pesado dificilmente descreverá a curva em questão sem invadir a faixa reservada ao trânsito em sentido oposto, já que, segundo o depoente, a brecagem dos veículos pesados obriga-os a desviar-se um pouco para lá do eixo da via, até porque existe uma casa muito próxima da via, referindo que, no tempo em que esteve no local, aquando a sua inspeção (pelo menos trinta minutos), não houve um único veículo que descrevesse a curva sem realizar a aludida invasão parcial da faixa contrária, isto no sentido de trânsito tomado pelo arguido, certo que, no sentido de marcha seguido pela outra condutora, tal invasão ocorre habitualmente na contracurva que existe imediatamente a seguir. A testemunha EE, à data dos factos em funções no Posto da Guarda Nacional Republicana de Santa Maria da Feira, revelou não ter uma memória segura dos factos que testemunhou, designadamente do que verteu na participação de acidente 8 a 9. Ainda assim, o depoente revelou conhecer bem o local onde ocorreu o acidente, sítio onde é frequente a verificação de sinistros rodoviários, mercê a configuração da curva, a falta de visibilidade e a estreiteza da via (também este depoente, salientando a exiguidade da berma, no sentido de marcha do arguido, e a inexistência dela no sentido oposto, por a via ser ladeada por um passeio alto), afiançando que, tratando-se de dois veículos pesados, é habitual que os mesmos não descrevam a curva em simultâneo, bem como façam uso de sinais sonoros (buzina) para avisar a sua presença, também ele asseverando que, no sentido de marcha do arguido, a invasão da faixa de trânsito contrário é mais do que usual, estando mesmo convencido que, sendo um veículo pesado, a manobra nem se realiza de outro modo. Por outro lado, a testemunha descreveu as lesões que percecionou na vítima mortal, bem como os danos no vidro para-brisas indicavam que a mesma teria embatido naquele vidro. A testemunha FF, a qual se encontrava apeada a cerca de cem metros do local do acidente, tendo percecionado integralmente a sua dinâmica, referiu perentoriamente que o camião não descreveu a referida curva existente no local (“cortou a curva”), o que determinou a colisão com o veículo ligeiro, revelando segurança e precisão do relato (tendo localizado a dinâmica em conciliação com as fotografias juntas de folhas 277 a 284, que lhe foram exibidas), apesar de visivelmente consternada com o sucedido e as suas nefastas consequências. Já a testemunha GG, funcionária de um estabelecimento comercial sito nas imediações, não percecionou a eclosão do acidente, acorrendo ao local no momento imediatamente subsequente, reforçando apenas a já apontada perigosidade do local do acidente de viação (uma vez mais, asseverando que dois veículos pesados não se cruzam em simultâneo). Decisiva foi mesmo a perícia realizada pelo CENPERCA (Centro pericial de reconstituição científica de acidentes), cujo relatório se mostra junto de folhas 520 a 563, analisando-se igualmente os videogramas anexos, concluindo-se nesta, sem qualquer margem para explicação alternativa, que o acidente se teria ficado a dever à mencionada invasão da faixa contrária. Tal prova pericial colmatou o já de si sustentado e preciso relatório técnico de acidente de viação, realizado pelo Núcleo de Investigação Criminal da Brigada de Trânsito de ... da Guarda Nacional Republicana, e o relatório fotográfico anexo ao mesmo, juntos de folhas 428 a 440 e 441 a 444, e explicitou os elementos constantes da participação de acidente de viação, de folhas 8 a 9, do croqui junto a folhas 10, e do aditamento de folhas 6 a 7, tomando-se ainda em consideração o “relatório de averiguação” (e os elementos a ele anexos), realizado pela companhia de seguros e junto de folhas 262 a 329 e 333 a 341 (estas últimas, relativas à prova pericial também solicitada por aquela Seguradora, com idênticas conclusões). Na realidade, pela concreta configuração da via e o local provável da colisão, indicado no croqui exarado na participação de acidente (cf. folhas 10 – note-se, indicado pelo próprio arguido), foi possível estabelecer não só o mais crível ponto de colisão, mas, em especial, a razão pela qual a mesma ocorreu, ou seja, apurar, com segurança que o arguido invadiu, ainda que ligeiramente, a faixa de rodagem destinada ao trânsito em sentido oposto ao seu e que, confrontada com tal invasão, até porque sem espaço para realizar uma manobra evasiva, a condutora do veículo ligeiro foi simplesmente abalroada e arrastada. Com efeito, para além do depoimento das identificadas testemunhas, mormente a testemunha FF, a qual, não só não tinha qualquer ligação a qualquer um dos intervenientes, mas também se encontrava num local privilegiado, tendo percecionado toda a dinâmica do acidente, a versão dada como provada resultou igualmente afirmada da conjugação de todos os elementos probatórios acabados de referir, sendo de salientar o processo científico-dedutivo plasmado na referida prova pericial, ainda que tenha ficado por apurar a concreta razão da invasão da faixa de trânsito contrário empreendida pelo arguido, afigurando-se como muito provável que o mesmo tenha pretendido desviar-se da tampa de saneamento existente na sua via (cf. fotografias de folhas 445 e 446), tanto mais que, de acordo com a sua própria versão, o mesmo transportava material sensível (e por isso seguiria até devagar), sendo certo que, ainda que assim não fosse, sempre a mencionada configuração da via propiciaria aquela imprevidente invasão nos moldes já explicitados. No que tange às lesões sofridas pela vítima e respetivas consequências, o teor do assento de óbito de folhas 42, do relatório de pericial de autópsia, junto de folhas 125 a 132 e os registos clínicos, juntos de folhas 37 a 40, 82 a 93 e 110 a 111, elementos complementados pelos esclarecimentos prestados pelo Perito médico-legal, HH. Por seu turno, no que concerne ao facto de a vítima CC seguir sem o uso de cinto de segurança, foram consideradas as declarações da referida testemunha BB, a qual, muito embora afirmasse não ter a certeza quanto a tal pormenor, sustentou ser essa a sua convicção, uma vez que no trajeto anterior, realizado nesse mesmo dia, a depoente tivera de advertir aquela passageira para colocar o cinto de segurança, cuidado que aquela não tinha observado; sendo de não olvidar que a vítima mortal teve lesões bem mais graves do que esta condutora do veículo. Acresce que, dos esclarecimentos prestados pelo Perito médico-legal, HH, resultou também que a vítima não apresentava as lesões habitualmente associadas ao uso do cinto de segurança (v.g. lesões no tórax), sendo que as lesões documentadas eram, efetivamente, compatíveis com a falta de uso de cinto de segurança (muito embora também não excluíssem a sua utilização), sendo, neste ponto, de salientar que de toda a prova produzida e supra analisada, resultou igualmente afirmado que ambos os veículos seguiam a uma velocidade relativamente baixa. Por fim, a factualidade atinente à dimensão subjetiva do ilícito, sem embargo ser, de certo modo, conclusiva resultou provada pela demonstração dos factos instrumentais que permitiram alcançar esse mesmo circunstancialismo pelas mais elementares regras da razoabilidade e máximas da experiência de vida comum, até porque, não se ignorando a dificuldade que as características da via criavam à circulação rodoviária, o certo é que, vista a experiência do arguido, enquanto condutor profissional e habituado àquele trajeto (segundo o próprio, passaria no local, pelo menos, uma vez por semana) e às características específicas do veículo que conduzia, o mesmo deveria e certamente poderia ter adotado outro comportamento que evitasse o resultado verificado. As testemunhas II e JJ, colegas de trabalho do arguido (ainda que o segundo, atualmente, se encontre reformado), foram ouvidas quanto ao seu perfil como condutor profissional e quanto ao seu carácter. Por último, teve-se também em consideração registo individual de condutor, junto a folhas 567, o certificado do registo criminal de folhas 568, e as declarações do arguido quanto às suas condições sociais, profissionais e familiares.» Analisada a motivação do recurso e a decisão recorrida, constatamos que o recorrente limita-se a manifestar a sua discordância relativamente ao modo como o tribunal de primeira instância valorou a prova produzida, contrapondo a sua própria análise valorativa, mostrando-se, porém, inequívoco que o tribunal não incorreu em “erro notório na apreciação da prova”. [6] Com efeito, o vício em causa não se confunde com a diversa perspetiva do recorrente em relação á apreciação da prova efetuada pelo tribunal e de modo algum se pode concluir que a perspetiva do tribunal sobre a prova carece de fundamento, mostrando-se arbitrária, irracional, ilógica ou notoriamente violadora das regras da experiência comum. Bem pelo contrário, resulta da leitura da sentença recorrida que o tribunal a quo explicitou, claramente e de forma perfeitamente lógica, as razões pelas quais se convenceu, para além da dúvida razoável, [7] de que o arguido/recorrente adotou os comportamentos descritos na acusação e incluídos no elenco da factualidade provada, tendo agido com culpa negligente. Na verdade, a leitura da sentença recorrida permite-nos concluir que o tribunal a quo extraiu dos elementos de prova que tinha ao seu dispor – analisados de forma lógica e em consonância com juízos de normalidade – as premissas objetivas que o conduziram, de forma igualmente racional e congruente, à conclusão sobre a concreta dinâmica do acidente e à verificação de um comportamento descuidado do recorrente que esteve na sua génese. [8] Improcede, desta forma, o presente fundamento do recurso, considerando-se definitivamente fixada a matéria de facto – sem prejuízo, porém, da resolução da questão relacionada com a verificação do nexo causal entre a conduta negligente e o resultado típico, que analisaremos de seguida. * B) Verificação do nexo de causalidade - a questão da relevância do comportamento culposo da vítima.Estabelece o n.º 1, do art.º 137.º do Código Penal que “Quem matar outra pessoa por negligência é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa”. O elemento que confere especificidade ao tipo de ilícito é a “violação objetiva de um dever de cuidado” ou, no dizer de Claus Roxin, a “criação, pelo agente, de um perigo não permitido”. Absolutamente seguro é que o tipo de ilícito do homicídio negligente não fica preenchido quando o agente, com a sua conduta, não criou, não assumiu ou não potenciou um perigo típico para a vida da vítima: ou porque o perigo não chegou ao limite do juridicamente relevante; ou porque, sendo embora a conduta em si perigosa, se manteve dentro dos limites do risco permitido (ex., o cirurgião que leva a cabo uma intervenção cirúrgica arriscada e na qual o paciente vem a falecer, apesar de ela ser medicamente indicada e se ter observado o escrupuloso cumprimento das leges artis); ou mesmo porque o agente se limitou a contribuir para a colocação em perigo dolosa de outra pessoa [9]. Por outro lado, podendo a violação de normas de cuidado da mais diversa ordem (legais, regulamentares, profissionais, da experiência) constituir legitimamente indício do preenchimento do tipo de ilícito, não pode em caso algum fundamentá-lo, como adverte Jorge de Figueiredo Dias [10]. O que significa que o preenchimento do tipo de ilícito não dispensa a concreta verificação de um nexo causal entre a conduta, infratora do dever de cuidado, e o resultado danoso. Este nexo deve ser conforme aos critérios da teoria da causalidade adequada. Como adverte o Prof. Eduardo Correia (“Direito Criminal”, vol. I, Almedina, 2001, (reimpressão), pág. 258), “(...) para que se possa estabelecer um nexo de causalidade entre um resultado e uma ação não basta que a realização concreta daquele se não possa conceber sem esta: é necessário que, em abstrato, a ação seja idónea para causar o resultado. (...) O processo lógico deve ser o de uma prognose póstuma, ou seja, de um juízo de idoneidade, referido ao momento em que uma ação se realiza, como se a produção do resultado se não tivesse ainda verificado, isto é, o de um juízo «ex ante» (...) segundo as leis, as regras gerais da experiência comum aplicado às circunstâncias concretas da situação.”. Embora a circulação rodoviária não consubstancie uma atividade proibida, a mesma oferece uma razoável probabilidade de lesão dos bens jurídicos, designadamente, a vida humana, e é por isso que constitui uma atividade tida como perigosa, afigurando-se o veículo automóvel – especialmente no contexto histórico-social hodierno – como uma "arma" potencialmente letal. Para se responder à questão fundamental e decisiva de saber se uma violação do dever de cuidado à qual se segue uma morte, fundamenta, ou não, um homicídio negligente, Claus Roxin propõe o seguinte procedimento: examine-se qual a conduta que não se poderia imputar ao agente como violação do dever de acordo com os princípios do risco permitido; faça-se uma comparação entre ela e a forma de atuar do arguido, e comprove-se então se, na configuração dos factos submetidos a julgamento, a conduta incorreta do autor fez aumentar a probabilidade de produção do resultado em comparação com o risco permitido. Se assim for, existe uma violação do dever que se integra na tipicidade e dever-se-á punir a título de crime negligente. Se não houver aumento do risco, o agente não poderá ser responsabilizado pelo resultado e, consequentemente, deve ser absolvido.[11] No presente caso, o tribunal de primeira instância não teve qualquer dúvida em imputar o resultado danoso (morte da vítima) ao comportamento imprevidente e descuidado do arguido/recorrente, assinalando o seguinte (segue transcrição): «Segundo resulta dos factos tidos por demonstrados, o arguido ingressando numa curva à esquerda, atento o seu sentido de marcha, invadiu a faixa de trânsito destinada ao trânsito que circulava em sentido contrário, onde surgiu a viatura automóvel conduzida por BB e em que era transportada, como passageira a vítima mortal, CC, vindo a colidir com aquele outro veículo, já depois da linha da separação contínua da faixa de rodagem contrária. Quer isto dizer que, ainda que se houvesse demonstrado (o que não aconteceu) algum comportamento imprevidente da condutora da outra viatura automóvel (designadamente, o seguir em velocidade superior à recomendada para o local ou o de não conseguir manobrar convenientemente o seu veículo, descrevendo corretamente a curva), o certo é que tal comportamento não teria sido o que determinou a colisão, mas sim e apenas a invasão da faixa contrária pelo arguido e, consequentemente, a falta de espaço para a identificada condutora descrever a dita curva com a sua viatura automóvel de modo a evitar a colisão (…). Com efeito, ao invadir a faixa contrária com o veículo que conduzia, o arguido não teve o discernimento suficiente para tomar as necessárias e adequadas cautelas de modo a evitar que o risco introduzido se viesse a converter num resultado danoso, tanto mais que, como sabia, o seu veículo tinha grandes dimensões. E, do nosso ponto de vista, aqui começa a violação pelo arguido do dever objetivo de cuidado a que se encontrava vinculado. Na verdade, um dos princípios fundamentais que rege em matéria de circulação rodoviária é o chamado princípio da segurança, amplamente consagrado no artigo 3.º, n.º 2, do Código da Estrada. Significa esse princípio que o condutor de um veículo deve adotar na condução todas as medidas necessárias para garantir a segurança do tráfego, evitando riscos, respeitando as exigências decorrentes do tráfego e, em especial, as decorrentes da sinalização que o regula. Trata-se de impor a todos os intervenientes um desempenho ativo e dinâmico na circulação rodoviária, designadamente a abstenção da prática de quaisquer atos que perturbem a fluidez do trânsito ou comprometam a tranquilidade dos utentes das vias públicas.» É inequívoco que o arguido/recorrente violou os deveres objetivos de cuidado traduzidos nas regras de circulação rodoviária contidas nos artigos 13.º, n.º 1 e 18.º, n.º 2 do Código da Estrada; e foi este o único comportamento que esteve na origem da colisão com o veículo que circulava em sentido oposto, pela metade contrária da faixa de rodagem, provocando a morte da respetiva passageira. Este resultado não só era previsível, pois configura um resultado frequente e, neste sentido, normal dos acidentes de viação, como poderia ter sido evitado, caso o arguido tivesse adotado um comportamento conforme com a observância dos mencionados deveres objetivos de cuidado. Com efeito, bastava que não tivesse invadido a metade contrária da faixa de rodagem, mantendo uma distância lateral suficiente para evitar acidentes entre o seu veículo e os veículos que circulavam em sentido contrário, como prescrevem os artigos 13.º, n.º 1 e 18.º, n.º 2 do CE. E ainda que não se ignore que a via onde seguiam aqueles veículos não era muito larga, como corretamente se observou na sentença recorrida, «não menos certo é que, se o arguido entendesse não conseguir descrever a curva sem invasão da faixa do trânsito em sentido contrário, sempre teria de parar, dando prioridade aos veículos que transitassem em sentido oposto ao por si seguido, como o impõe o artigo 34.º do Código da Estrada, o que o arguido não fez, não se assegurando que não existiam veículos a circular no sentido contrário, invadindo a faixa destinada à sua circulação, violação esta que foi diretamente causal da colisão.» Concluiu, fundadamente, o tribunal de primeira instância que, no caso que nos ocupa, mais do que a previsão de um comportamento deficiente por parte de um terceiro – que, reforce-se, não existiu –, o arguido poderia e deveria ter adequado a condução da sua viatura não só à concreta configuração da via, mas também ao que lhe era imposto pela mais elementar regra estradal de seguir pela faixa de rodagem destinada ao seu sentido de trânsito, abstendo-se de transpor uma linha contínua. Esta violação do princípio da segurança por parte do arguido caracteriza idoneamente a violação do dever objetivo de cuidado que estruturalmente define o ilícito negligente e contribuiu adequadamente para a eclosão do acidente. Tanto basta, pois, para considerar que, com a sua condução, o arguido agiu negligentemente, surgindo o resultado típico proibido (desvalor de resultado) como consequência adequada da violação do dever de cuidado inobservado. Como também justamente é assinalado na sentença recorrida, necessário se torna ainda, para que a ilicitude se afirme, que o resultado típico proibido possa ser imputado à concreta violação do dever objetivo de cuidado pelo agente, em conformidade com as regras da imputação objetiva. Dito de outro modo, é necessário que no dano ocasionado – no caso, a morte da vítima – se possa reconhecer uma concretização típica do perigo criado, assumido ou potenciado pelo agente ao não observar o dever de cuidado a que estava obrigado em razão das regras da experiência ou por força de determinada norma jurídica. Ora, os princípios rodoviários inobservados têm exatamente por fim minimizar os riscos de acidente, particularmente os provocados pela colisão de veículos. Com efeito, a imposição de circulação pelo lado direito da faixa de rodagem e a proibição de circulação pelo lado esquerdo da via naquele local (imposta pela linha longitudinal contínua), certamente visa evitar colisões entre os veículos que circulam em sentidos opostos. Nesta perspetiva, pode dizer-se que, ao violar as mencionadas regras atinentes à circulação rodoviária, o arguido potenciou o risco de produção do resultado danoso tipicamente previsto, tendo sido precisamente no desenvolvimento desse risco potenciado que veio a ocorrer a morte da vítima CC. [12] Para estabelecer, em definitivo, o nexo causal para que se vai apontando, impõe-se determinar se o resultado típico teria provavelmente ocorrido ainda que os deveres objetivos de cuidado atrás assinalados tivessem sido observados pelo arguido/recorrente. Como é salientado na sentença recorrida, trata-se aqui de fazer aplicação do contributo proporcionado pela chamada “teoria do comportamento lícito alternativo” ou “doutrina da evitabilidade”, tendente a determinar se o resultado se apresentava como inevitável, mesmo que o agente cumprisse os deveres de cuidado a seu cargo. Ora, tal como concluiu o tribunal a quo, facilmente se percebe que o concreto resultado danoso nada tinha de inevitável, pois caso o arguido houvesse circulado pela sua “mão de trânsito”, não invadindo a faixa de trânsito contrária, o acidente não teria ocorrido e, consequentemente, nenhuma morte haveria a registar. [13] É certo que resultou provado que a vítima seguia sem cinto de segurança apertado, em inobservância ao disposto no artigo 82.º, n.º 1, do Código da Estrada, e a sua morte resultou de traumatismo craniano meningo-encefálico, com hemorragia intracraniana, situação que levou o tribunal a quo a concluir que a atuação da própria vítima contribuiu para a verificação do resultado ocasionado - ou, mais rigorosamente, que «este provavelmente não teria ocorrido, ao menos nos termos em que ocorreu, sem a articulação da circunstância colocada pela vítima e a causa posta em marcha pelo arguido». Simplesmente, hipóteses como a presente, de concausalidade, não influem no plano dos pressupostos da responsabilidade, relevando, unicamente, no momento da determinação das consequências jurídicas do crime. Com efeito, no âmbito da teoria da causalidade adequada defende-se que se verifica um nexo de causalidade adequada quando uma condição não é a única a contribuir para a produção do resultado, mas aumenta a possibilidade de ocorrência do mesmo de modo não irrelevante [14]. Já á luz da teoria do incremento do risco, pode dizer-se que se verificará um nexo de imputação objetiva em casos de causalidade cumulativa e em relação a qualquer das causas, pois cada uma das ações, embora não seja causa única de produção do resultado, incrementou o risco dessa produção.[15] A concorrência de causas do acidente (e de culpas) não impede, pois, a condenação do arguido/recorrente pelo crime de homicídio negligente, como corretamente decidiu o tribunal de primeira instância.[16] Atenuando a sua responsabilidade, poderá unicamente influir na operação de escolha e medida da pena.[17] Improcede, deste modo, o presente fundamento do recurso, nenhuma censura merecendo a sentença recorrida.[18] * C) Escolha e medida concreta das penas. Discorda o recorrente da decisão tomada pelo tribunal de primeira instância quanto à escolha da pena de prisão em detrimento de uma pena de multa, alegando que a pena de multa mostra-se suficiente para acautelar as necessidades de prevenção geral e especial, considerando o circunstancialismo que rodeou a ocorrência do acidente e a sua situação pessoal e profissional. Como é sabido, são finalidades exclusivamente preventivas que devem presidir à operação da escolha da espécie de pena a aplicar ao agente, devendo o tribunal dar preferência à pena não detentiva, a não ser que razões ligadas à socialização do delinquente (no seu conteúdo mínimo, traduzido na prevenção da reincidência) ou de preservação do limite mínimo da prevenção geral positiva, no sentido de "defesa do ordenamento jurídico", imponham a pena de prisão. Por outro lado, e como lapidarmente se afirma no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 28/10/2009 (disponível para consulta em www.dgsi.pt), em caso de conflito entre os vetores da prevenção geral e especial, o primado pertence à prevenção geral. Analisada a decisão recorrida, verificamos que o tribunal de primeira instância fundou em razões de prevenção geral, traduzidas na necessidade do reforço do sentimento comunitário de confiança na validade da norma violada, a opção pela aplicação de uma pena de prisão, em detrimento de uma pena de multa. Com efeito, sobre esta matéria o tribunal de primeira instância fez constar da sentença recorrida o seguinte: «O crime de crime de homicídio por negligência é punido, em alternativa, com pena de prisão ou pena de multa. De acordo com o que dispõe o artigo 70.º do Código Penal «Se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa da liberdade e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.». Pese embora se siga o entendimento segundo o qual, o facto de se haver cominado, no n.º 1 do artigo 137.º do Código Penal, pena de multa alternativa apesar de se tratar de um crime contra as pessoas se fica a dever ao facto de se estar perante um crime sem dolo e sem negligência grosseira – e que, por conseguinte, pode assumir, segundo o seu conteúdo de culpa, uma gravidade relativamente pequena que afaste a verificação, quanto a ele, das exigências preventivas conducentes à aplicação da pena de prisão (cf. “Comentário Conimbricense ao Código Penal”, V.I, pg.113) –, cremos, todavia, que, no caso em apreço, a opção pela pena não detentiva seria entendida como uma injustificada indulgência contra o crime, comprometendo as exigências de exteriorização física da reprovação. Relevando de forma preponderante as exigências da prevenção geral no domínio dos chamados homicídios negligentes estradais (cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24.02.88, BMJ n.º 374, pg.235), a gravidade que – conforme melhor se verá – pode legitimamente reconhecer-se num persistente alheamento das condições da via e do tráfego impede que, perante a crescente inquietação comunitária provocada por temerários desempenhos rodoviários e a cada vez maior perplexidade com que tendem a ser encaradas as perturbadoras estatísticas dos acidentes mortais, a confiança comunitária pudesse ser restabelecida através da aplicação de uma pena de multa. A retrospetiva tutela do bem jurídico em causa impõe, portanto, a opção pela pena de prisão. […]». É certo que a generalidade das decisões dos tribunais superiores tende a acentuar a necessidade da pena de prisão para reforçar a confiança da comunidade na validade da norma violada, nas situações em que são cometidos crimes de homicídio por negligência, em particular na decorrência de acidentes de viação. Assim, é salientado no acórdão do STJ, de 3/4/2003 [19], que “Em matéria de crimes rodoviários, impõe-se hoje, como meio de tratamento penal preventivo mais adequado ao desenfreado e cada vez mais alarmante desregramento reinante nas estradas portuguesas, o recurso às penas de prisão, ainda que por vezes de curta duração - short sharp shock - por terem uma especial eficácia curativa, dado o seu cariz intimidatório sobre pessoas socialmente estabelecidas.” [20]. Parece-nos, porém, que o presente caso, dadas as suas especificidades, coaduna-se perfeitamente com a aplicação de uma pena de multa ao arguido/recorrente. A comunidade em geral não ficará, certamente, indiferente à circunstância de a vítima ter contribuído de forma relevante para tão trágico desfecho do acidente em que o arguido se viu envolvido, aceitando, por isso, a aplicação de tal pena não detentiva. Por outro lado, a pena de multa coaduna-se com as exigências de prevenção especial pouco significativas, não sendo de esperar um risco elevado de repetição de comportamentos de idêntica natureza pelo arguido/recorrente. A moldura abstrata da pena de multa oscila entre o limite mínimo de 10 dias e o máximo de 360 dias, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 137.º 2 e 47.º, n.º 1, do Código Penal. A pena visa finalidades exclusivamente preventivas (de prevenção geral e especial), constituindo a culpa pressuposto e limite inultrapassável da pena [21]. Deste modo, através das exigências de prevenção, dá-se satisfação à necessidade comunitária de reafirmação da confiança geral na validade da norma violada, bem como ao objetivo de reinserção social do delinquente e, por esta via, à realização dos fins das penas no caso concreto (art.º 40.º, n.º 1 do C. Penal). A consideração da culpa do agente, liga-se à vertente pessoal do crime e decorre do incondicional respeito pela dignidade da pessoa humana - a culpa é entendida como um "princípio liberal, limitador do poder punitivo do Estado" (na expressão de Claus Roxin), e estabelece um limite inultrapassável às exigências de prevenção (art.º 40º, n.º 2 do C. Penal). O parâmetro primordial do «modelo» de determinação da pena judicial é primariamente fornecido pela medida da necessidade de tutela dos bens jurídicos violados estabelecendo, in concreto, o limiar mínimo abaixo do qual se perde aquela função tutelar ou, noutra expressão, o limiar abaixo do qual a pena não satisfaz a necessidade de reafirmação estabilizadora das normas. Parâmetro co-determinante do modelo de determinação da medida da pena judicial é também a culpa na execução do facto, estabelecendo o limiar máximo acima do qual a pena aplicada é excessiva, subalternizando a dignidade pessoal do agente à «paz» comunitária. Entre aquele limiar mínimo e este limiar máximo, o modelo de determinação da medida da pena completa-se com a finalidade de reintegração do agente na sociedade, ou finalidade de prevenção especial de socialização [22] . Necessidade, proibição do excesso ou proporcionalidade e adequação são os princípios orientadores que devem presidir à determinação da pena. Relevantes para a determinação da medida concreta da pena são os fatores elencados no art.º 71.º do Código Penal e que, fundamentalmente, se relacionam quer com o facto típico praticado, quer com a personalidade do agente neles documentada, podendo tais fatores ser valorados, simultaneamente, por via da culpa e da prevenção [23]. Assim, o nº 2 do artigo 71º do Código Penal, manda atender, no caso concreto, a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra o arguido, nomeadamente: “o grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente; a intensidade do dolo ou da negligência; os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram; as condições pessoais do agente e a sua situação económica; a conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime; a falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena”. As circunstâncias e critérios do art.º 71.º do CP devem contribuir tanto para co-determinar a medida adequada à finalidade de prevenção geral (a natureza e o grau de ilicitude do facto impõe maior ou menor conteúdo de prevenção geral, conforme tenham provocado maior ou menor sentimento comunitário de afetação dos valores), como para definir o nível e a premência das exigências de prevenção especial (as circunstâncias pessoais do agente, a idade, a confissão, o arrependimento), ao mesmo tempo que também transmitem indicações externas e objetivas para apreciar e avaliar a culpa do agente [24]. Analisada a sentença condenatória, verificamos que todos os aludidos fatores foram atendidos e ponderados, tendo o tribunal de primeira instância assinalado na decisão objeto do presente recurso o seguinte: «Em favor do arguido depõem as seguintes circunstâncias: - a conduta da própria vítima, a qual contribuiu para a verificação do resultado, pela falta de utilização de cinto de segurança; - a concreta configuração da via – estreita e com fraca visibilidade; - à data dos factos o arguido não tinha antecedentes criminais ou contra-ordenacionais de natureza estradal; - a sua aparente inserção social, profissional e familiar. Em desfavor do arguido depõem as seguintes circunstâncias: - o considerável grau de ligeireza denunciado pela não antecipação dos nefastos resultados a que poderia vir a dar causa a violação de uma elementar regra de cuidado – a de circulação pela faixa de rodagem destinada ao seu sentido de marcha –, numa atitude que, quando globalmente considerada, com relevo se distancia daquela que teria sido observada pelo homem medianamente prudente; - o local onde decorria o ato de conduzir (dentro de uma localidade, sendo de atentar que o arguido conduzia um veículo pesado de mercadorias); - as características do veículo conduzido pelo arguido (um pesado de mercadorias (o qual, inegavelmente, introduz um risco superior); - o arguido é motorista profissional; - a deficiente (ou quase ausente) capacidade de autocrítica que o arguido revelou em julgamento, não reconhecendo na conduta empreendida a inerente e evidente perigosidade, não conseguindo sequer, retrospetivamente, assumir a sua responsabilidade pelo infeliz desfecho, incapacidade ainda mais preocupante quando vista a atividade profissional que o mesmo desempenha; - as prementes necessidades de prevenção geral, designadamente, a particular ressonância que, mercê dos insuportáveis níveis de sinistralidade rodoviária, estes crimes sempre provocam na comunidade e, particularmente nesta Comarca, a elevada incidência da prática deste tipo de ilícito penal.» Ponderados todos estes fatores, com evidente reflexo nas exigências de prevenção geral e especial, afigura-se-nos adequada a pena de 250 dias de multa, que não ultrapassa a medida da culpa do arguido/recorrente.[25] Considerando a situação sócio-económica do arguido/recorrente decide-se fixar o quantitativo da pena de multa em 6€ (cf. o art.º 47.º, n.º 2, do Código Penal). Analisemos, agora, a pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados, que o recorrente reputa de desproporcionada e excessiva. A pena acessória tem uma função preventiva adjuvante da pena principal, que se destina, sobretudo, a prevenir a perigosidade do agente, ainda que se lhe reconheça, também, um importante efeito de prevenção geral, reforçando e diversificando o conteúdo penal sancionatório da condenação (cf., neste sentido, o acórdão deste Tribunal da Relação do Porto, de 17/1/2018 [26]). Trata-se, inclusivamente, de medida na qual o legislador tem vindo a depositar expectativas acrescidas: após as alterações introduzidas no Código Penal pelo Decreto-Lei nº 48/95 de 15 de Março, esta pena acessória mereceu novamente a atenção do legislador através da Lei nº 77/2001, de 13 de Julho, que introduziu uma alteração significativa na estatuição do art.º 69º do Código Penal, definindo com maior rigor o âmbito da sua aplicação e elevando o limite mínimo e o limite máximo (de 1 para 3 meses e de 1 para 3 anos, respetivamente), tendo subjacente fortes preocupações de prevenção geral no combate aos elevadíssimos índices de sinistralidade rodoviária verificados em Portugal. A determinação da medida concreta da pena acessória é efetuada de acordo com os critérios gerais utilizados para a fixação da pena principal, enunciados no art.º 71º do Código Penal, uma vez que depende da gravidade do ilícito e da culpa do agente do crime [27]. Importa, quanto a esta matéria, ter presente o referido no acórdão deste TRP, de 29/9/2010 (também disponível em www.dgsi.pt): posto que o conjunto das penas principal e acessória deva observar uma reação penal proporcionada, já na determinação de cada uma delas não vigora a exigência de uma proporcionalidade simétrica (assim uma próxima do máximo da moldura, não significa a outra também próxima do limite máximo). Analisada a sentença condenatória, verificamos que todos os aludidos fatores foram atendidos e ponderados, não se vislumbrando qualquer excesso ou desproporção [28] da medida concreta da pena acessória de proibição de conduzir, quer por referência ao limite da culpa, quer por referência às necessidades de prevenção (geral de prevenção e especial de socialização). É de notar, aliás, que o tribunal a quo prestou particular atenção à necessidade de conciliação do interesse de salvaguarda das elevadas exigências de prevenção geral, associadas ao tipo de crime em análise, com o interesse de preservação, na medida do possível, da atividade profissional do recorrente, que é motorista profissional. Com efeito, escreveu-se na sentença recorrida, a este propósito, o seguinte: «Ademais, não será igualmente de descurar a circunstância de relativamente ao crime aqui em apreço são fortes e prementes as exigências de prevenção geral, em especial, considerada a particular ressonância que, mercê dos insuportáveis níveis de sinistralidade rodoviária que atingem um País com a dimensão do nosso, os crimes estradais, sempre provocam na comunidade, pelo que a pena acessória deverá fixar-se numa medida em que não seja entendida como uma injustificada indulgência e prova de fraqueza contra o crime, comprometendo de modo inexorável a defesa do ordenamento jurídico e exigências da exteriorização física da reprovação, tanto mais quando vista a gravosidade e intensa censurabilidade da imagem global dos factos apurados. Ora, à luz dos enunciados princípios fica claro que as fortíssimas exigências de prevenção geral reclamariam a fixação da medida concreta da pena acessória num quantum muito superior ao mínimo legal. Não obstante, o certo é que, no caso concreto, tal medida ideal seria muito mais gravosa para o arguido do que para um agente normal uma vez que o cumprimento desta pena acessória implicará que o mesmo ficará inibido de exercer a sua atividade profissional, o que poderá até ser prejudicial para a sua ressocialização. Assim, considerando a atividade profissional do arguido – motorista – e não obstante ser ainda mais reprovável a assumida conduta por via das especiais competências que dele são esperadas, entende-se que a fixação de uma pena num limite ótimo da punição – próximo do meio da pena ou, pelo menos, coincidente com o período probatório supra fixado da suspensão da execução da pena de prisão – poderia fazer perigar a subsistência do seu posto de trabalho, não sendo de descurar também na dosimetria da pena o acrescido esforço por banda do arguido. Nessa medida, e em face da factualidade dada como provada, decide-se ainda condenar o arguido na referida pena acessória, fixando-se em oito meses o período de proibição de conduzir.» Assim, e se o recorrente se encontra bem inserido social e familiarmente, para além de não apresentar antecedentes criminais e de exercer a atividade profissional de motorista, tais circunstâncias, também ponderadas pelo tribunal de primeira instância, de modo nenhum justificam a redução do quantum da pena acessória para uma medida coincidente ou próxima do mínimo legal, como proposto pelo arguido.[29] A premência da necessidade de reafirmação da confiança comunitária na validade da norma violada, associada à necessidade de readaptação social do delinquente (prevenção especial positiva) e de dissuasão da prática de futuros crimes (prevenção especial negativa) fundamentam a fixação do quantum concreto da pena acessória [30]. Aplicada em medida concreta mais reduzida, a referida pena acessória não teria, provavelmente, a virtualidade de cumprir as finalidades preventivas a que se propõe e destina, ficando comprometida a sua eficácia punitiva, em particular o seu potencial de dissuasão do recorrente da prática de novos crimes. [31]. Por fim, resta salientar que a circunstância de o recorrente estar dependente da possibilidade de condução do seu veículo automóvel para o exercício da sua atividade profissional em nada abala a correção da decisão recorrida. Razões de índole laboral não podem conceder ao arguido o direito a uma especial clemência. Antes lhe impõem o dever (de cidadania) de especial cuidado de conduzir com estrita observância de todas as regras e deveres de cuidado, nomeadamente no intento de prevenir o aumento do risco de estropiar ou de tirar a vida ao seu semelhante já decorrente da circulação rodoviária, como é observado no acórdão do TRL de 13/7/2016.[32] Além disso, o Tribunal Constitucional tem salientado que o núcleo essencial do direito ao trabalho não é afetado pela imposição da proibição de conduzir veículos com motor em dias seguidos.[33] Com efeito, a Constituição não proíbe a possibilidade de a lei definir como penas (ou medidas de segurança) a privação definitiva ou temporária de direitos. O que proíbe, isso sim, é tão somente a perda automática desses direitos como consequência automática de uma condenação penal. [34] Não estando o recorrente perante qualquer perda do direito de conduzir, mas apenas perante uma limitação do exercício da condução, não poderá considerar-se que a liberdade de exercer a sua profissão esteja totalmente postergada. O núcleo desse direito, está, pois, plenamente assegurado. Concluímos, assim, pela procedência parcial do recurso, optando-se pela aplicação de uma pena de multa em detrimento de uma pena de prisão e confirmando-se, quanto ao demais, a sentença recorrida. * III – DispositivoPelo exposto, acordam os juízes da 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em conceder parcial provimento ao recurso do arguido, alterando-se a decisão quanto à aplicação de uma pena de 250 dias de multa, à taxa diária de 6€ (em detrimento de uma pena de prisão, determinada pelo tribunal de primeira instância) e confirmando-se, quanto ao demais, a sentença recorrida. Sem custas do presente recurso (artigo 513º, nº 1, do CPP). Notifique. * Porto, 14 de junho de 2023.(Elaborado e revisto pela relatora – art.º 94º, nº 2, do CPP) * Liliana de Páris Dias Maria Dolores Silva e Sousa William Themudo Gilman – vota a decisão. ________ [1] Mantendo-se a ortografia original do texto. [2] Cf., neste sentido, o acórdão deste Tribunal da Relação do Porto, de 15/11/2018, consultável em www.dgsi.pt. [3] “Estão incluídas, evidentemente, as hipóteses de erro evidente, escancarado, escandaloso, de que qualquer homem médio se dá conta. Porém, esta interpretação do preceito pecaria por demasiado restritiva do seu alcance e deixaria a descoberto muitas situações de matéria de facto viciada por erro notório de apreciação da prova. Na verdade, seria inconcebível que, não obstante ser inacessível ao homem médio, mas evidente para qualquer jurista ou, mesmo para o tribunal, ainda assim, o vício não devesse ser sanado pela previsão do preceito em causa. Assim, estão aqui também previstas todas as situações de erro clamoroso, e que, numa visão consequente e rigorosa da decisão no seu todo, seja possível, ainda que só ao jurista, e, naturalmente ao tribunal de recurso, assegurar, sem margem para dúvidas, que, nelas, a prova foi erroneamente apreciada. Certo que o erro tem que ser «notório». Importa, pois, para assegurar essa notoriedade, que ela ressalte do texto da decisão recorrida, ainda que, para tanto tenha que ser devidamente escrutinada e sopesado à luz de regras da experiência, não necessariamente só do homem comum. Ponto é que, no fim, não reste qualquer dúvida sobre a existência do vício e que essa existência fique devidamente demonstrada pelo tribunal ad quem, demonstração esta que, naturalmente, deve ser acessível a toda a gente, enfim, agora sim, ao homem comum” (cf. CPP Comentado, A. Henriques Gaspar e outros, 2016, 2ª. ed. rev., pág(s) 1275, parág(s) 6). [4] Cf. o acórdão do TRP de 15/11/2018, e o acórdão do STJ de 18/5/2011, também disponível em www.dgsi.pt. Como é assinalado no acórdão do TRP de 30/1/2019 (relatado por Neto de Moura e disponível em www.dgsi.pt, reproduzindo o comentário do Conselheiro Pereira Madeira ao artigo 410.º in “Código de Processo Penal Comentado”, Almedina, 2014, pág. 1359), “basta para assegurar essa notoriedade que ela ressalte do texto da decisão recorrida, ainda que, para tanto tenha que ser devidamente escrutinada – ainda que para além das perceções do homem comum – e sopesado à luz de regras da experiência. Ponto é que, no fim, não reste qualquer dúvida sobre a existência do vício e que a sua existência fique devidamente demonstrada pelo tribunal ad quem”. [5] As situações de falha grosseira e ostensiva na análise da prova podem consubstanciar-se em: - Factos provados e/ou não provados inconciliáveis entre si; - Conclusões ilógicas ou inaceitáveis; - Extração a partir de um facto provado de uma conclusão logicamente inaceitável. [6] Ou qualquer um dos outros vícios a que alude o n.º 2 do art.º 410.º do CPP, todos de conhecimento oficioso. Com efeito, a decisão mostra-se, neste aspeto, coerente, harmónica, destituída de antagonismos factuais, de factos contrários às regras da experiência comum ou de erro patente para qualquer cidadão, nela inexistindo também qualquer inconciliabilidade na fundamentação ou entre esta e a decisão, sendo, por outro lado, a fundamentação de facto suficiente para fundar uma segura decisão de direito. [7] A decisão da matéria de facto, em processo penal, constitui, não só a superação da dúvida metódica, mas também da dúvida razoável sobre a matéria da acusação e da presunção de inocência do arguido. Tal superação é sujeita a controlo formal e material rigoroso do processo de formação da decisão e do conteúdo da sua motivação, a fim de assegurar os padrões inerentes ao Estado de Direito moderno (cf., neste sentido, o acórdão do TRP de 14/7/2020, relatado pelo Desembargador Jorge Langweg e disponível em www.dgsi.pt). [8] É de notar que a prova dos elementos subjetivos, por via de regra, na ausência de confissão do arguido, terá de ser feita através de prova indireta a partir da leitura do comportamento exterior e visível do agente, mediante os elementos objetivamente comprovados e em conjugação com as regras da experiência comum (cf. o acórdão deste TRP de 31/10/2018, in www.dgsi.pt). Na verdade, “a intenção de praticar o crime pertence ao foro íntimo, psicológico, da pessoa e, se negada ou reconduzindo-se o agente ao silêncio, só a ela normalmente se chega através de factos externos ao agente, concludentes desse nexo psicológico e, assim, através de prova indireta (indiciária)”, como se reconhece no acórdão deste TRP de 27/1/2021 (igualmente consultável em www.dgsi.pt). No presente caso, é evidente que o tribunal não podia deixar de concluir, como concluiu, quanto à verificação da culpa negligente do recorrente, em face de todo o circunstancialismo descrito na matéria de facto provada. [9] Cf., neste sentido, Jorge de Figueiredo Dias, in “Comentário Conimbricense do Código Penal – Parte Especial – Tomo I”, Coimbra Editora, pág. 107. [10] Obra citada, pág. 108. [11] In “Problemas Fundamentais de Direito Penal”, Coleção Veja Universidade, 2ª edição, páginas 257/258. [12] Como observa Hans-Heinrich Jescheck, in “Tratado de Derecho Penal – Parte General”, Editorial Comares – Granada, pág. 530, o nexo de antijuridicidade exige duas coisas: por um lado, que o resultado fosse evitável com um comportamento cuidadoso e, por outro, que a norma infringida com a ação descuidada servisse precisamente para evitar resultados como o produzido no caso concreto. [13] Como é observado no acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 10/12/2013 (Ana Barata Brito, in www.dgsi.pt), «Não sendo processualmente exigível ao arguido (para a sua absolvição) a demonstração da verificação do resultado independentemente da sua atuação negligente, sob pena de violação do in dubio pro reo, também não pode impor-se à acusação a prova de que o resultado não ocorreria sem a violação do dever, sob pena de prova diabólica.» [14] Ver Claus Roxin, Derecho Penal, Parte General, tomo I, Editorial Civitas, Madrid, 1997, pág. 360. [15] Cf., neste sentido, o acórdão deste TRP de 6/6/2018 (Pedro Vaz Pato), consultável em www.dgsi.pt. [16] Como se salientou na sentença recorrida, a conduta contra-ordenacional da vítima só poderá atuar por forma a excluir a punibilidade se implicar uma interrupção do nexo causal entre a conduta do agente e o resultado proibido, situação que no presente caso não se verifica. A propósito desta questão – ou seja, da relevância do comportamento concorrente da vítima ou de um terceiro para a imputação do resultado ao agente – observa Jescheck (obra citada, páginas 533/534) que a jurisprudência inclina-se para estender amplamente a previsibilidade, exceto naquelas situações em que o curso dos acontecimentos (do processo causal) é de tal modo distanciado da normalidade que ninguém poderia contar com a verificação do resultado ao observar o cuidado devido. [17] Neste sentido, cf. o acórdão do TRP de 6/6/2018, já citado, e ainda o acórdão do TRL de 3/8/2009 (Simões de Carvalho), igualmente disponível em www.dgsi.pt. A circunstância de a vítima não trazer o cinto de segurança colocado não pode transformar o risco não permitido, que o arguido assumiu ao efetuar a manobra fatal, nos termos em que a realizou, num risco permitido, para por essa via ver afastada a sua responsabilidade penal. Sobre o assunto ver, ainda, os acórdãos deste TRP de 11/4/2019 (Francisco Mota Ribeiro) e de 9/5/2018 (Jorge Langweg), ambos disponíveis em www.dgsi.pt. Como é observado neste último aresto, a relação de causalidade entre o comportamento e o evento é satisfeita com a verificação de que a ação é uma das condições do resultado, não sendo necessário que ele seja a primeira (ou a última) condição da sua verificação. [18] É de notar, finalmente, que a invocação, pelo recorrente, do denominado “princípio da confiança” – e a sua alegada desconsideração pelo tribunal a quo - não tem fundamento. Tal princípio significa que “quem se comporta no tráfico de acordo com a norma de cuidado deve poder confiar que o mesmo sucederá com os outros”. Ora, é manifesto que o recorrente não só não agiu com o dever de cuidado que lhe era exigível, como ainda violou esse dever de uma forma flagrante – comportamento esse que deu causa ao acidente -, razão pela qual nunca poderia prevalecer-se de tal princípio. [19] Relatado pelo Conselheiro Pereira Madeira e disponível em www.dgsi.pt. [20] Trata-se da aplicação, pela jurisprudência, da doutrina de Jescheck, no sentido de que «a pena curta privativa da liberdade pode, para os delinquentes de tráfico rodoviário e para os de carácter económico, ter uma eficácia curativa, dado o seu cariz intimidatório sobre pessoas socialmente estabelecidas (...)», como dá conta o Tribunal da Relação de Lisboa, nos acórdãos datados de 1/10/2003 e de 15/10/2003 (relatados pelo Desembargador Clemente Lima e disponíveis em www.dgsi.pt). [21] Cf. Jorge Figueiredo Dias, “Direito Penal – Parte Geral”, Tomo I, 2004, pág. 75 e seguintes. [22] Cf. o acórdão do STJ, de 9/5/2019 (relatado pelo Conselheiro Nuno Gonçalves e disponível em www.dgsi.pt) e, ainda, para maiores desenvolvimentos, o acórdão do STJ, de 18/2/2016, relatado pelo Conselheiro Raúl Borges, igualmente disponível em www.dgsi.pt. [23] Cf. Anabela Miranda Rodrigues, “A determinação da medida da pena privativa de liberdade”, 1995, pág. 658 e seguintes. [24] Como bem salienta o Conselheiro Henriques Gaspar, no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11/4/2007, disponível em www.dgsi.pt. [25] É de notar que, no que diz respeito especificamente à pena de multa, indispensável é que “a aplicação da pena de multa represente, em cada caso, uma censura suficiente do facto e, simultaneamente, uma garantia para a comunidade da validade e vigência da norma violada… com a clara consciência tanto para o legislador, como para o juiz, de que o único limite inultrapassável é constituído, em nome da preservação da dignidade da pessoa, pelo asseguramento ao condenado do nível existencial mínimo adequado às suas condições sócio-económicas…” (como sublinha Figueiredo Dias, “Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime”, Aequitas, editorial notícias, 1993, pág. 119). [26] Relatado pelo Desembargador Jorge Langweg e igualmente disponível em www.dgsi.pt. [27] Cf. os acórdãos deste TRP de 17/1/2018 e de 7/12/2018, disponíveis em www.dgsi.pt. Na doutrina, Germano Marques da Silva, in “Crimes Rodoviários. Pena acessória e medidas de segurança”, Universidade Católica Editora, pág. 28. [28] Muito menos assinalável, a justificar a intervenção corretiva deste Tribunal. [29] Na verdade, só circunstâncias atenuantes verdadeiramente excecionais justificam a fixação da pena no mínimo legal, como é salientado no acórdão deste TRP de 21/3/2018 (Jorge Langweg, in www.dgsi.pt). [30] A particular eficácia preventiva desta pena acessória é salientada por Germano Marques da Silva, obra citada, pág. 32, nota 53. [31] Já o Prof. Figueiredo Dias (“Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Ed. Aequitas/Editorial Notícias, 1993), depois de salientar «(…) a necessidade e a urgência político-criminais de que o sistema sancionatório português passe a dispor – em termos de direito penal geral e não somente de direito penal da circulação rodoviária – de uma verdadeira pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados”, referia, quanto às finalidades da pena acessória em causa, que «(…) se (…) o pressuposto material de aplicação desta pena deve ser que o exercício da condução se tenha revelado, no caso, especialmente censurável, então essa circunstância vai elevar o limite da culpa do (ou pelo) facto. Por isso à proibição de conduzir deve também assinalar-se (e pedir-se) um efeito de prevenção geral de intimidação, que não terá em si nada de ilegítimo porque só pode funcionar dentro do limite da culpa. Por fim, mas não por último, deve esperar-se desta pena acessória que contribua, em medida significativa, para a emenda cívica do condutor imprudente ou leviano (…)». [32] Disponível em www.dgsi.pt e já citado. [33] Como justamente se observa no acórdão do TC n.º 440/02, de 23/10/2002, relatado pelo Conselheiro Bravo Serra, disponível em www.tribunalconstitucional.pt. [34] Como é salientado no acórdão do TC n.º 440/02, se pode afirmar-se que, com a medida em causa, se pode configurar uma certa constrição - legitimada nos termos acima expostos – deste direito, também, inquestionavelmente, se pode asseverar que se não está, todavia, perante uma limitação que se possa considerar manifestamente desproporcional ou excessiva, na medida em que a garantia do conteúdo essencial do direito, enquanto "baliza última de defesa" (...) "delimitando um núcleo que em nenhum caso deverá ser invadido" (para se utilizarem as palavras de Gomes Canotilho e Vital Moreira na Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª edição revista, Coimbra Editora, 153), permanece respeitada. Efetivamente, como prosseguem os mesmos autores (dita obra, 54) se, em termos práticos, se pode dizer "que o requisito da proporcionalidade (...) é uma primeira aproximação, dado que a existência de uma restrição arbitrária, desproporcionada é um índice relativamente seguro da ofensa do núcleo essencial", então, na situação sub judice, haverá que concluir-se que o núcleo essencial do direito ao trabalho não é afetado pela imposição da proibição de conduzir veículos com motor em dias seguidos. Tanto mais que, a perfilhar-se o entendimento de que a sanção de inibição da condução apenas deveria operar em dias não úteis, isso redundaria, como já se realçou, no esvaziar de sentido útil da aplicação desta medida, enquanto verdadeira pena – acessória -, pois o sentido profundamente pedagógico, corretivo, ressocializador e ético que se pretende com o aplicar de uma sanção esvanecer-se-ia em face da não imposição de verdadeiro sacrifício ao agente. |