Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
638/03.4TVPRT.1.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MANUEL DOMINGOS FERNANDES
Descritores: ALUGUER DE LONGA DURAÇÃO
RESTITUIÇÃO DE VEÍCULO
MORA
CLÁUSULA PENAL
REDUÇÃO DA CLÁUSULA PENAL
EQUIDADE
Nº do Documento: RP20230626638/03.4TVPRT.1.P1
Data do Acordão: 06/26/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 5. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Ainda que excecionalmente possa haver lugar a indemnização pelos danos positivos, numa ponderação casuística dos interesses em jogo, à luz do princípio da boa-fé, competindo ao contraente lesado alegar e provar, além do mais, os factos que possam integrar essa situação de excecionalidade, o certo é que danos consistentes em lucros cessantes não podem coincidir automaticamente com as rendas vincendas, quando se podia ter fixado uma indemnização equivalente a uma percentagem dessas rendas e do valor residual a par do pagamento das rendas vencidas.
II - A cláusula onde se estipule que, “no caso de o cliente se encontrar em mora relativamente ao dever de restituição do veículo, incorre no dever de indemnizar a alugadora em quantia igual ao dobro daquela a que este teria direito se o contrato permanecesse em vigor por um período igual ao de mora”, tem a natureza de cláusula penal (cfr. artigos 810.º e ss. do CCivil).
III - Considerando o teor da citada cláusula e sua natureza (com um misto de função indemnizatória e compulsória), o tipo de contrato em que se mostra inserida (ALD), o ramo de atividade de locação financeira e de aluguer de veículos a que se dedica a apelante entidade locadora e predisponente, o tipo de bem locado e o seu valor no mercado (trata-se de um veículo automóvel, marca de marca FORD, modelo ... ...), que quanto mais tempo passasse sobre essa mora na devolução do veículo, maior seriam os prejuízos sofridos pela locadora conclui-se que a cláusula penal consagrada na sobredita cláusula 17ª, inserta nas condições gerais do contrato, não se mostra (abstratamente) desproporcionada (e pelo menos de forma bastante sensível) no que concerne aos danos a ressarcir (resultantes da mora na entrega do veículo automóvel alugado, razão pela qual não se pode, nos termos conjugados dos arts. 12.º e 19.º al. c) da LCCG, considerar nula.
IV - A redução da cláusula penal, de acordo com a equidade, qualquer que seja a sua função, não pode ser feita oficiosamente.
V – A isso se opõem os princípios da autonomia privada, da autorresponsabilidade das partes e o argumento retirado dos regimes dos negócios usurários e da resolução ou modificação do contrato.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 638/03.4TVPRT.1.P1-Apelação
Origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto-Juízo Local Cível do Porto-J2

Relator: Des. Dr. Manuel Fernandes
1º Adjunto Des. Dr. José Eusébio Almeida
2º Adjunto Des. Drª. Eugénia Marinho da Cunha


Sumário:
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I - RELATÓRIO
Acordam no Tribunal da Relação do Porto:
A..., S.A., com sede na Rua ..., Porto veio deduzir incidente de liquidação contra AA e BB, residentes na Rua ..., ..., Amadora, pedindo que sejam condenados a pagar-lhe as seguintes quantias:
a)- de 8.786,50€ correspondente pelos prejuízos causados com a resolução do contrato, prevista na alínea b) da cláusula 16.ª do contrato, acrescido de juros calculados à taxa legal em vigor, acrescido de quatro pontos percentuais de acordo com a cláusula 6ª do contrato, desde a data de resolução até efetivo e integral pagamento;
b)- de 66.608,54€ correspondente à indemnização resultante dos prejuízos pela resolução contratual, prevista na cláusula 17ª do contrato, acrescido de juros calculados à taxa legal em vigor, acrescido de quatro pontos percentuais de acordo com a cláusula 6ª do contrato, desde a data de resolução até efetivo e integral pagamento.
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Pessoal e regularmente citados, veio a Requerida AA deduzir contestação pugnando pela improcedência do incidente.
Conclusos os autos foi proferido despacho saneador sentença que julgou incidente de liquidação improcedente e, em consequência, absolveu os Requeridos do pedido.
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Não se conformando com o assim decidido veio a Autora o Réu interpor o presente recurso rematando com as seguintes conclusões:
1. Vem o presente recurso interposto da decisão que julgou o incidente de liquidação improcedente, por nada de concreto foi alegado que permita concluir pelo concreto prejuízo causado com a impossibilidade/perda de interesse na restituição do veículo.
2. Nos termos e para os efeitos do disposto na alínea b) da cláusula 16º do contrato em crise, a Recorrente solicitou a quantia de 8.786,50€.
3. Não especificando a referida alínea a fórmula para efetuar os cálculos da referida indemnização, a Recorrente solicitou o montante correspondente ao valor das rendas que receberia dos Recorridos caso o contrato tivesse sido pontualmente cumprido.
4. Ponderando os interesses em jogo no caso concreto e à luz do princípio da boa fé, verificando que com o montante de indemnização, a Recorrente, pretende minimizar o esforço financeiro que fez com a aquisição do veículo com o intuito de o dar de aluguer aos Recorridos, obter uma compensação pela frustração das expectativas originadas pelo incumprimento do contrato, devem os Recorridos serem condenados pelo montante correspondente ao valor das rendas que receberia dos Recorridos caso o contrato tivesse sido pontualmente cumprido–interesse contratual positivo.
5. A Recorrente, no dia 01 de agosto de 1999, interpelou os Recorridos com a declaração de resolução extrajudicial do contrato e a restituição imediata da viatura.
6. Mantendo-se a ausência de entrega do bem, no dia 30 de janeiro de 2003 a Recorrente deu entrada de uma ação declarativa com processo ordinário, na qual os Recorridos foram condenados, na entrega imediata do veículo, pagar os alugueres vencidos e não pagos, às quantias que viessem a ser liquidadas em execução de sentença correspondente à mora na entrega da viatura e indemnização compensatória pelos prejuízos e encargos suportados.
7. Os Recorridos não entregaram o veículo à aqui Recorrente, nem liquidaram o valor correspondente aos alugueres vencidos e não pagos, valores que inclusive confessaram dever na contestação apresentada.
8. Em 25 de Outubro de 2006 informou os aqui Recorridos da perda de interesse na entrega do veículo.
9. Até essa data, é devido uma indemnização pela mora/atraso na restituição, devendo a mesma ser calculada conforme estipulado na cláusula 17ª do contrato.
10. Um eventual pedido de indemnização pela não restituição do veículo é devido após o incumprimento definitivo que ocorreu com o envio da missiva de 25 de outubro de 2006.
11. A Recorrida alegou estar impossibilitada de entregar o veículo, uma vez que o mesmo havia sido furtado.
12. Para prova do alegado furto apenas foi apresentada queixa, queixa essa que foi arquivada e estranhamente à data do furto o veículo não se encontrava assegurado por nenhuma apólice de seguro, caso contrário a recorrida teria acionado o seguro!
13. Contudo, por mera hipótese académica, caso que não se entendesse que era devido aquele montante a título de mora na entrega do veículo, por ter ficado provado a queixa apresentada por furto da viatura a 30 de julho de 2003, o montante seria reduzido àquela data, não reduzido a zero.
14. Mesmo que assim não se entenda, por mera hipótese académica, sempre seria devido à Recorrente a título de indemnização pela mora uma quantia igual ao dobro daquela a que teria direito contabilizada até à data prevista para o final do contrato, ou seja até 28 de junho de 2001.
15. Ao todo o exposto, acresce ainda que, na sentença proferida a 30 de outubro de 2003, os Recorridos foram condenados ao pagamento da quantia que se viesse a liquidar em execução de sentença correspondente à mora na restituição da viatura e ainda à quantia que se viesse a liquidar em execução de sentença a título de indemnização compensatória pelos prejuízos e encargos suportados, pelo que, não se entende nem se concebe que sejam absolvidos, agora, em sede de liquidação a qualquer pagamento.
16. Deve, pelo exposto, a presente decisão ser substituída por Douto Acórdão que admita o incidente de liquidação e ordene o prosseguimento dos autos.
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Devidamente notificada contra-alegou a Ré concluindo pelo não provimento do recurso.
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Corridos os vistos legais cumpre decidir.
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II - FUNDAMENTOS
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso-cfr. artigos 635.º, nº 4, e 639.º, nºs 1 e 2, do C.P.Civil.
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No seguimento desta orientação é apenas uma a questão que importa apreciar:
a)- saber se houve erro de julgamento na decisão proferida.
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A)- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
É a seguinte a matéria de facto que vem dada como provado pelo tribunal recorrido:
1. Por processo de fusão aprovada por deliberação de 28 de novembro 2005, a sociedade B... S.A, incorporou a Sociedade C... S.A., bem como a globalidade do seu património.
2. A sociedade C..., S.A. passou a denominar-se A..., S.A.
3. B... e aluguer de veículos e equipamentos. S.A. instaurou contra AA, residente na Rua ..., ... Amadora e BB, residente na mesma morada, ação declarativa com processo ordinário, que correu termos sob o n.º 638/03.4TVPRT, pedindo que seja declarada a resolução do contrato celebrado com os Réus, por culpa exclusiva destes, com efeitos a partir de 01 de agosto 1999 e, em consequências sejam os Réus condenados a entregar à Autora o veículo de marca FORD, modelo ... ..., com a matrícula ..-..-GX; a pagar à Autora a quantia de €5.797,12, correspondente aos alugueres vencidos e não pagos e respetivos juros, acrescida de juros vincendos à taxa publicitada pela Associação Portuguesa de Bancos à data de incumprimento, acrescida da sobretaxa de 4% sobre €3.937,49, desde a presente data até efetivo e integral pagamento; pagar à Autora a quantia que se vier a liquidar em execução de sentença correspondente à mora na restituição do veículo marca FORD, modelo ... ..., com a matrícula ..-..-GX, prevista na cláusula 17º do contrato e ao abrigo dos disposto nos artigos 471º e 661º do CPC; pagar à Autora a quantia que se vier a calcular em execução de sentença a título de indemnização compensatória pelos prejuízos e encargos por esta suportados em razão direta da resolução contratual, prevista na alínea b) da Cláusula 16º do contrato e ao abrigo do disposto nos artigos 471º e 661º do CPC.
4. Por sentença, proferida em 30/10/2003, na ação de processo ordinário n.º 638/03.4TVPRT, transitada em julgado, foi a ação julgada procedente e, em consequência, os Réus condenados no pedido.
5. Nos termos do disposto na cláusula 16ª do contrato de ALD, “como consequência da resolução do contrato, a B... terá direito a retomar o veículo, a reter as importâncias pagas pelo Locatário, e de exigir as vencidas e não pagas até à data da resolução, bem como a ser indemnizada pelos prejuízos resultantes da resolução do contrato”.
6. Nos termos do disposto na cláusula 17ª do contrato ficou estipulado que “se cessando o aluguer por decurso do prazo de denúncia ou resolução, o Locatário não devolver atempadamente o veículo, a B... terá direito, a título de cláusula penal, por esta mora na devolução, a receber uma quantia igual ao dobro daquela a que teria direito se o aluguer permanecesse em vigor e por um lapso de tempo igual à mora”.
7. Aquando da declaração de resolução extrajudicial do contrato, promovida pela requerente a 1.08.1999, os requeridos foram interpelados para a restituição imediata da viatura.
8. A Autora comunicou aos Réus que perdeu o interesse na entrega do veículo por carta enviada a 25.10.2006.
9. Foi participado à Polícia de Segurança Pública, por queixa apresentada em 30 de julho de 2003, o furto da viatura de marca Ford, modelo ..., com a matrícula ..-..-GX.1.
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Para além está também provado nos autos por acordo das partes que:[1]
10. Até à data da entrada do requerimento do incidente de liquidação a viatura XG ainda não tinha sido entregue à Autora.

III. O DIREITO
Como supra se referiu é apenas uma a questão que importa apreciar e decidir:
a)- saber se houve erro de julgamento na decisão proferida.
1- A questão da indemnização referente aos prejuízos sofridos pela Autora decorrentes da resolução do contrato.
Como se evidencia do requerimento inicial a Autora apelante pede a condenação dos Réus no da quantia de 8.786,50€, montante correspondente prejuízos causados com a resolução do contrato, prevista na alínea b) da cláusula 16.ª do contrato, acrescido de juros calculados à taxa legal em vigor, acrescido de quatro pontos percentuais.
Dúvidas não existem de que nos termos da citada cláusula contratual a recorrente em consequência da resolução tinha o direito de ser indemnizada pelos prejuízos resultantes desse ato (cfr. ponto 5. dos factos provados).
Significa, portanto, que no âmbito deste incidente, uma vez que não o fez no âmbito da ação declarativa-nessa solicitou a condenação dos Réus, sob este conspecto, na quantia que se viesse a liquidar em execução de sentença-a apelante teria de alegar e provar os danos sofridos em consequência da resolução do contrato e quantificá-los.
Ora, para liquidação desse dano a apelante utilizou a seguinte metodologia:
(i)- que as rendas do contrato eram no valor de 383,69€; (ii) que a data de resolução do contrato se verificou a 1.08.1999; (iii) que entre a data de resolução (1.08.1999) e a data prevista para o final do contrato, como se tivesse sido pontual e completamente cumprido (28.06.2001), decorreram 22,9 meses, daí resulta que o valor indemnizatório devido pela resolução do contrato é de 8.786,50€ (383,69€ x 22,9 meses).
Como se torna evidente isso não representa a alegação de qualquer dano que a Autora apelante tenha sofrido com a resolução do contrato.
Obtempera a recorrente que a citada cláusula não especifica a fórmula para efetuar os cálculos da referida indemnização.
Olvida, porém, a apelante o nº 1 do artigo 405.º do CCivil que preceitua que as partes têm a faculdade de fixar livremente o conteúdo dos contratos.
Como assim, sendo esse o conteúdo querido pelas partes para a cláusula em questão, a Autora apelante só lhe resta conformar-se com o teor da mesma, razão pela qual era no âmbito desse teor que teria de liquidar a respetiva indemnização.
E como?
Simplesmente alegando os danos (prejuízos) que sofreu com a predita resolução do contrato, quantificando-os depois.
Repare-se que a apelante liquida um dano (prejuízo) através da mencionada metodologia, mas não alega, e muito menos prova, a existência do mesmo.
Pergunta-se: que dano (prejuízo) a apelante sofreu com a resolução do contrato?
Nenhum está alegado nem provado.
Em retas contas o que apelante pretende, neste âmbito, é liquidar a citada indemnização por referência ao cumprimento do contrato, ou seja, pretende com esta liquidação receber as rendas vincendas por via da satisfação do interesse contratual positivo que depositou no cumprimento integral do contrato, depois de ter operado a sua resolução.
Ora, ainda que excecionalmente possa haver lugar a indemnização pelos danos positivos, numa ponderação casuística dos interesses em jogo, à luz do princípio da boa-fé, competindo ao contraente lesado alegar e provar, além do mais, os factos que possam integrar essa situação de excecionalidade, o certo é que, no caso em apreço, para além de nada estar alegado e provado nesse sentido, nem mesmo isso poderia ser sentenciado, face ao teor da citada cláusula, segundo a qual, neste particular, a indemnização há de corresponder aos prejuízos resultantes da resolução do contrato.
É que se é verdade, como a propósito da locação financeira refere Menezes Leitão[2], que não está excluída uma indemnização por lucros cessantes, a apelante tinha de a ter invocado e demonstrado, já que ela não resulta, nos termos pretendidos, do contrato, onde, ao abrigo da liberdade contratual, se poderia ter fixado uma indemnização equivalente a uma percentagem da rendas vincendas e do valor residual a par do pagamento das rendas vencidas.
O certo é que a apelante não concretizou os danos consistentes em lucros cessantes, os quais não podem coincidir, automaticamente, com as rendas vincendas, quer porque optou pela resolução do contrato, não tendo direito às mesmas quer, como já se referiu, porque o direito consagrado no contrato à indemnização pelos prejuízos resultantes da resolução nem sequer remete para um cálculo feito nesses termos havendo, pois, que discriminar fundadamente em que consistiram os aludidos prejuízos.
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2- A questão da mora na restituição do veículo.
Estipula a cláusula 17ª do contrato que: “se cessando o aluguer por decurso do prazo de denúncia ou resolução, o Locatário não devolver atempadamente o veículo, a B... terá direito, a título de cláusula penal, por esta mora na devolução, a receber uma quantia igual ao dobro daquela a que teria direito se o aluguer permanecesse em vigor e por um lapso de tempo igual à mora”.
Trata-se, como nos parece evidente, de uma cláusula penal que tem a natureza de cláusula acessória da chamada obrigação principal assumida no contrato pela parte devedora, tendo essa figura entre nós a sua consagração legal e disciplina nos artigos 810.º a 812.º do Código Civil.
Vem provado nos autos que, aquando da declaração de resolução extrajudicial do contrato, promovida pela requerente a 01/08/1999, os requeridos foram interpelados para a restituição imediata da viatura (cfr. ponto 7. da fundamentação factual).
Vem também provado que Autora comunicou aos Réus que perdeu o interesse na entrega do veículo por carta enviada a 25/10/2006 e até à data da entrada do requerimento do incidente de liquidação a viatura XG ainda não tinha sido entregue à Autora. (cfr. pontos 8. e 10. da fundamentação factual).
Afirma-se na decisão recorrida que a alegação da Autora apelante é contraditória, pois que, pede uma indemnização pelo atraso na restituição do veículo, mas alega ter perdido o interesse nessa restituição.
Salvo o devido respeito, não se divisa que ocorra a referida contradição.
Com efeito, a referida cláusula apenas poderá ser acionada no caso de haver mora na devolução do veículo objeto do contrato, após a resolução do mesmo.
Importa recordar que visando a resolução a restituição integral, até onde é possível e sem prejuízo das situações ressalvadas pelo artigo 434.º do Código Civil, é manifesto que uma das obrigações que, nessa medida e como consequência da declaração resolutória, impendia sobre os aqui apelados era a da restituição do veículo locado.
Se resolvido o contrato e a viatura não é devolvida fica preenchida a factie species da citada cláusula podendo, portanto, a apelante exigir dos apelados, a título de cláusula penal, por esta mora na devolução, uma quantia igual ao dobro daquela a que teria direito se o aluguer permanecesse em vigor e por um lapso de tempo igual à mora.
Bom, mas diz o tribunal recorrido existe aqui uma contradição, pois que, a apelante pede uma indemnização pelo atraso na restituição do veículo, mas alega ter perdido o interesse nessa restituição.
Ora, nada há aqui de contraditório.
Efetivamente, quando a apelante comunica aos apelados que perdeu o interesse na restituição da viatura está apenas a por termo à mora em que os mesmos estavam em curso quanto à referida restituição, o que equivale a dizer a que, o cômputo da indemnização nos termos contratualizados na citada cláusula, terminou nessa data.
Sob este conspecto alega a apelada AA nas contra-alegações que não procedeu a entrega da viatura porque mesma havia sido furtada, facto que foi comunicado à apelante.
Acontece que, nada disso está provado nos autos.
Com efeito, o que vem provado nos autos (cfr. ponto 9. da fundamentação factual) é que foi participado à Polícia de Segurança Pública, por queixa apresentada em 30 de julho de 2003, o furto da viatura de marca Ford, modelo ..., com a matrícula ..-..-GX.
Todavia, da referida participação não se retira que o veículo em causa foi, efetivamente, furtado e que, portanto, estava a apelada impossibilitada de o restituir, razão pela qual o que se afirma na decisão recorrida a esse respeito não tem respaldo no quadro factual que nos autos se mostra assente, sendo que só esse é que releva para interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes (cfr. artigo 607.º, nº 3 do CPivil).
Refere-se também na decisão recorrida que a apelante nada concretiza quanto à data em que alega ter perdido o interesse na restituição do veículo, e que essa extravasa o período de vigência do aluguer-a data prevista para o final do contrato correspondia a 28.06.2001 (60 meses-20/06/1996 a 28/06/2001).
Mas, salvo o devido, respeito também aqui se não acompanha esta asserção.
Com efeito, por força da resolução contrato os apelados estavam compelidos a entregar a viatura, não o fazendo, mesmo que nesse ínterim o período de vigência do contrato já tivesse terminado, a mora na restituição manteve-se, ou seja, o termino do contrato não punha termo à referida mora, sendo que, desde a data da resolução e pedido de restituição da viatura até ao final do contrato, ainda decorrem quase dois anos sem que aquela restituição tivesse ocorrido, ou seja, só a entrega da viatura fazia cessar a mora.
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Aqui chegados importa dizer que, aquando da declaração resolutiva do contrato ocorrida em 01/08/1999, os requeridos foram interpelados para a restituição imediata da viatura.
Ora, a resolução é, na maior parte dos casos[3], extrajudicial, não necessitando do concurso do tribunal para operar os seus efeitos, pois que, pode fazer-se mediante declaração de uma parte à outra[4] –(cfr. artigo 436.º, nº 1 do C.Civil).
Como refere Brandão Proença[5] “o artigo 436.º, nº 1 do CCivil ao permitir que a resolução (convencional ou legal) se possa exercer mediante declaração à outra parte adota o sistema “declarativo” e afasta a necessidade (como princípio geral) de uma intervenção constitutiva condenatória do tribunal, exigida, em princípio, pelos sistemas resolutivos francês, espanhol e italiano”.
Daqui resulta que, não tendo a viatura em questão sido entregue à apelante e tendo ela perdido o interesse nessa restituição em 25/10/2006, facto que comunicou aos apelados, para efeitos do cálculo da indemnização a que se refere a mencionada cláusula 17ª o período a considerar, como tendo existindo mora, será o que decorreu entre as citadas datas, o que significa que a apelante tem um crédito sobre os requeridos no valor de 66.608,54€ [(383,69€ x 2) x 86,8 meses].[6]
Poder-se-á questionar se a referida cláusula, não é desproporcionada aos danos a ressarcir.
É incontroverso que a citada cláusula se encontra inserida nas condições gerais do sobredito contrato, bem como introverso é, pela leitura dessas condições, que estamos perante um contrato padronizado, pelo menos no que concerne às mesmas, resultando de uma pré-formulação unilateral da predisponente, aqui apelante, estando pois, sujeita ao regime das Cláusulas Contratuais Gerais (LCCG) (D. Lei 445/86 de 25/10).
Como decorre dos conjugados artigos 12.º e 19.º al. c) da LCCG são proibidas, e como tal nulas, as cláusulas contratuais gerais que “consagrem cláusulas penais desproporcionadas aos danos a ressarcir.
Já supra concluímos também, estarmos na presença de uma cláusula penal (com uma função mista de natureza indemnizatória e compulsória).
Estando perante um conceito indeterminado, coloca-se a questão de saber em que termos deve ser aferido esse conceito de desproporcionalidade das cláusulas penais?
Vem hoje, entre nós, constituindo entendimento claramente prevalecente (quer na doutrina, quer na jurisprudência) que esse critério deve ser aferido e encontrado com base num juízo objetivo e abstrato, e não casuístico, ou seja, independentemente das circunstâncias do caso concreto, tomando em conta o quadro negocial padronizado, e específico do setor de atividade em que ocorreu o contrato no qual a cláusula penal foi estipulada, reportando esse juízo ao momento em que a cláusula penal foi estabelecida, e, nessa medida, devendo considerar-se para o efeito a desproporção entre a pena estipulada e os danos então previsíveis e não os danos concretos/efetivos, não bastando ainda que o valor dessa desproporção seja superior, antes se exigindo que ela seja sensível, isto é, claramente superior.
Como refere Pinto Monteiro[7] “(…) A este respeito, a jurisprudência revela que se tem decidido, e bem, que é um juízo objetivo e abstrato que se deve fazer, pois é em face do “quadro negocial padronizado” que há que decidir. Não há aqui que ter em conta as circunstâncias concretas, antes os interesses típicos do círculo de contraentes que habitualmente participam na espécie de negócio em causa, naquele especial sector de atividade negocial”. Voltando mais à frente[8] o insigne Mestre a reafirmar: “(…) É que como, temos dito, o juízo sobre a desproporção deve fazer-se em abstrato e, por isso, reportar-se ao momento em que a cláusula penal é estabelecida, devendo considerar-se, para esse efeito, a desproporção entre a pena estipulada e os danos previsíveis. (…).
No mesmo sentido Ana Filipa Morais Antunes[9], quando escreve: “(…) A proibição de utilização destas cláusulas nos contratos singulares pressupõe um juízo valorativo suplementar, a realizar em face do tipo de contrato, do quadro negocial típico abstrato ou do ramo ou sector der atividade negocial. A referência “ao quadro negocial padronizado” não é uma remissão, pois, para uma análise de tipo casuístico, para as circunstâncias individuais de cada contrato singular. Pelo contrário, nesta valoração–a realizar pelo julgador–vai implicado um juízo abstrato, em que se justifica ponderar, para além do tipo negocial, a natureza do bem a prestar, a situação do mercado no sector em que o negócio se integra, o ramo económico, a natureza de consumidor ou de empresário e, nas relações mercantis, o estádio de produção ou comercialização e a dimensão empresarial. (…) Nesta medida, não está em causa um modelo de decisão assente em critérios de justiça individual e do caso concreto, como sucede na decisão segundo a equidade, por essa razão mais permeável à insegurança jurídica”.
Ora, tendo presente o que se deixou exposto, e considerando:
- O teor da cláusula e sua natureza (com um misto de função indemnizatória e compulsória);
- O tipo de contrato em que se mostra inserida (contrato de aluguer de veículo automóvel de longa duração);
- O ramo de atividade de locação financeira e de aluguer de veículos a que se dedica a apelante entidade locadora e predisponente;
- O tipo de bem locado e o seu valor no mercado (trata-se de um veículo automóvel, marca de marca FORD, modelo ... ...);
- Que a locadora o adquiriu previamente no mercado (pagando por ele, naturalmente, e como decorre das regras da experiência comum desse tipo de ramo de negócio, à entidade vendedora o respetivo preço de novo) para depois ceder o seu aluguer/uso (por um período longa duração, ou seja, de 60 meses) aos apelados;
- Que a referida cláusula penal apenas foi consagrada para o caso de o contrato cessar (por qualquer dos meios/fundamentos contratualmente previstos, entre os quais se incluía a resolução do mesmo, por incumprimento, tal como veio a suceder na situação em apreço), e o locador não devolver logo (atempadamente) o dito veículo alugado;
- Que quanto mais tempo passasse sobre essa mora na devolução do veículo, maior seriam os prejuízos sofridos pela locadora, pelo facto de não só ficar impedida de o poder vir ainda a reutilizar, e dele extrair nova utilidade económica, como também, e nessa medida, pela desvalorização que, com o decurso do tempo, o veículo padeceria, havendo, assim, todo interesse/conveniência para a apelante evitar que isso sucedesse e
- Que os locatários apelados poderiam a qualquer momento impedir que a penalização consagrada na referida cláusula funcionasse ou se agravasse, bastando para tal devolver o veículo à locadora, o que estava plenamente nas suas “mãos” o que, diga-se, não sucedeu;[10]
Pelo que, tudo sopesado, somos levados a concluir que a cláusula penal consagrada na sobredita cláusula 17ª, inserta nas condições gerais do contrato, não se mostra (abstratamente) desproporcionada (e pelo menos de forma bastante sensível) no que concerne aos danos a ressarcir (resultantes da mora na entrega do veículo automóvel alugado), tanto mais que, no caso, se desconhecem os danos a ressarcir e a apelante perdeu interesse na entrega da viatura.
E daí que tal cláusula não seja proibida e como tal nula.
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Também não se nos antolha a via da redução da referida cláusula primeiro por que entendemos que a mesma não pode ser feita oficiosamente pelo tribunal e segundo, como já supra se referiu, ela não se revela desproporcionada (excessiva).
Como refere Calvão da Silva[11] “a nossa legislação não resolve a questão de saber se o tribunal tem o poder de reduzir oficiosamente cláusula penal manifestamente excessiva (...)” “Porém...julgamos melhor solução dizer que o juiz não pode reduzir a pena convencionada oficiosamente, sob pena de estar a julgar ultra petitum e ainda (...) que nos negócios usurários, em geral, se prescreve o regime da anulabilidade e não o da nulidade (artº 282.º) não se justificando a redução ex officio, em face do regime legal da anulabilidade, invocável apenas pelas pessoas em cujo interesse a lei a estabelece (artº 287.º)”.
A. Pinto Monteiro defende a mesma posição.[12]
Refere este professor que se trata de uma norma de proteção do devedor e que, por isso, se lhe for exigida a pena pelo credor e não solicitar a sua redução, nem reclamar ou reagir contra a sua manifesta excessividade, isso significará que ele não acha abusiva a atitude do credor, “pese embora o eventual montante da mesma, circunstância esta que não obsta, de per si, para legitimar a intervenção do juiz”.
Na verdade, mal se compreenderia que, permitindo a lei que as partes fixem livremente o montante da indemnização exigível, ao abrigo do princípio da liberdade contratual (artigo 405.º do CC), viesse o juiz oficiosamente a reduzir a cláusula penal.
Destina-se aquele preceito legal a evitar abusos de credores menos escrupulosos e porventura aproveitando-se de um “estado de necessidade” do devedor ao estabelecerem a cláusula penal no momento da celebração do contrato.
Com efeito, casos existem em que o devedor não está em condições de discutir todas as cláusulas do contrato, designadamente a cláusula penal. Mas, se e quando lhe for exigida a pena, poderá estar em melhores condições para pedir a redução, se for caso disso, e se verificarem os respectivos pressupostos.
São razões semelhantes às que permitem a anulação dos negócios usurários nos termos do artigo 282º do CC (é usurário o negócio em que alguém consciente ou inconscientemente tira partido da situação de necessidade, inexperiência, dependência psíquica ou fraqueza de carácter de outrem, para obter para si ou para terceiro, benefício excessivo ou injustificado). Da mesma forma se exige, pois, que o conteúdo do negócio seja manifestamente excessivo ou injusto. Também nestes casos o negócio só pode ser anulado a pedido do interessado (artºs. 286º e 287º).
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Diante do exposto não pode a decisão recorrida, neste segmento, subsistir, havendo, pois, que ser revogada.
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Procedem desta forma, em parte, as conclusões formuladas pela recorrente e, com elas, o respetivo recurso.
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IV - DECISÃO
Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação interposta parcialmente procedente por provada e, consequentemente, revogando-se a decisão recorrida liquida-se em 66.608,54€ (sessenta e seis mil seiscentos e oito euros e cinquenta e quatro cêntimos) a quantia que os Réus estão obrigados a pagar à Autora acrescida de juros calculados à taxa legal em vigor, acrescido de quatro pontos percentuais de acordo com a cláusula 6ª do contrato, desde a data de resolução até efetivo e integral pagamento.
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Custas por apelante e apelada na proporção do decaimento (artigo 527.º nº 1 do C.P.Civil).
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Porto, 26/6/2023
Manuel Domingos Fernandes
Eusébio Almeida
Eugénia Cunha
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[1] Nestes casos a Relação, limita-se a aplicar as regras vinculativas extraídas do direito probatório, deve integrar na decisão o facto que considere provado ou retirar dela o facto que ilegitimamente foi considerado provado, pois que, nos termos do artigo 663.º, nº 2 do diploma citado, aplicam-se ao acórdão da Relação as regras prescritas para a elaboração da sentença, entre as quais se insere o artigo 607.º, nº 3 do mesmo diploma legal, norma segunda a qual o juiz, na fundamentação, toma em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência.
[2] In Manual de Direito Bancário, pág. 560.
[3] Exceção a esta regra é, v. g., a resolução do contrato de arrendamento urbano com fundamento no nº 2 do artigo 1083.º do C.C.–artigo 1084.º, nº 2 do C.Civil.
[4] Mesmo quando o litígio respeite à existência de fundamento para a resolução, a decisão que a confirme não assume carácter constitutivo, reconhecendo apenas o direito da parte à resolução do negócio.
[5] In “A resolução Do contrato no Direito Civil Seu Enquadramento e Regime”, Coimbra Editora, pág. 149/150.
[6] As rendas do contrato eram no valor de 383,69 € e calculadas em dobro e, entre a data de resolução do contrato (01.08.1999) e o envio da carta de perda de interesse no veículo (25.10.2006), decorreram 86,8 meses.
[7] In “O duplo controlo de penas manifestamente excessivas em contratos de adesão, RLJ, Ano 146º, págs. 308/310”.
[8] Obra citada pag. 313.
[9] In Comentário à Lei das Cláusulas Contratuais Gerais, 2013, págs. 294/295.
[10] Mesmo que o veículo tivesse sido objeto de furto em 2003 (o que não está provado como se assinalou) desde a data da resolução com o consequente pedido de entrega da viatura já havia passados 4 anos.
[11] In Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória, pag. 275.
[12] In Cláusula Penal e Indemnização, págs. 736 e 737.