Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
764/12.9TXPRT-U.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: PEDRO M. MENEZES
Descritores: LICENÇA DE SAÍDA JURISDICIONAL
DEVER DE FUNDAMENTAÇÃO
IRREGULARIDADE
Nº do Documento: RP20230621764/12.9TXPRT-U.P1
Data do Acordão: 06/21/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFERÊNCIA
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO AO RECURSO INTERPOSTO PELO MINISTÉRIO PÚBLICO
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CRIMINAL
Área Temática: .
Sumário: I - Ainda que, de plano, não seja de excluir que um Tribunal se possa desincumbir do seu dever de fundamentação mediante o preenchimento de quadrículas constantes de um formulário pré-elaborado, tal forma de proceder estará, em princípio, vedada naqueles casos em que daí resulte uma completa ausência da indispensável ponderação das circunstâncias do caso concreto e a efetiva tomada de posição do Tribunal a propósito da solução a dar à questão decidenda.
II - Para tanto também não basta a mera invocação, porventura com reprodução, do texto da legislação aplicável, ou o uso de fórmulas de caráter genérico e/ou estereotipado.
III - Exigindo a concessão de uma licença de saída jurisdicional a «fundada expectativa de que o recluso se comportará de modo socialmente responsável, sem cometer crimes» e «de que o recluso não se subtrairá à execução da pena ou medida privativa da liberdade», bem como o verificar-se «compatibilidade da saída com a defesa da ordem e da paz social», torna-se necessário que o Tribunal de Execução das Penas, ao tomar uma tal decisão, explique, por referência a factos concretos por si investigados e apurados, como chegou a tais conclusões, sob pena de inobservância do dever de fundamentação que sobre si recai.
IV - A violação deste dever de fundamentação constitui mera irregularidade, sujeita, em princípio, ao regime fixado no artigo 123.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, devendo considerar-se sanada se não for arguida nos moldes aí previstos.
V - Ainda assim, se por virtude da falta de fundamentação bastante da decisão impugnada não puderem ser decididas as questões suscitadas no recurso, pode o Tribunal Superior, de acordo com o preceituado no artigo 123.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, conhecer de ofício da existência da aludida irregularidade e ordenar a respetiva sanação por parte do Tribunal que proferiu o ato decisório em apreço.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º: 764/12.9TXPRT-U.P1
Origem: Tribunal de Execução das Penas do Porto (Juiz 2)
Recorrente: Ministério Público
Referência do documento: 17048772


I
1. O Ministério Público impugna, no presente recurso, decisão proferida no Tribunal de Execução das Penas do Porto (Juiz 2), que concedeu ao recluso a que respeitam os autos uma licença de saída jurisdicional, de três dias, pugnando pela sua respetiva revogação.
2. O recluso em apreço expia atualmente duas penas únicas, uma de 16 anos de prisão e outra 2 anos e 4 meses de prisão, à ordem do processo n.º 390/12.2TAESP (que englobou as penas dos processos n.ºs 2115/11.0JAPRT e 665/08.5GCOVR), pela prática de dois crimes de abuso sexual de crianças agravado e um de abuso sexual de menor dependente, e de um crime de furto qualificado, condenações que resultam, em síntese, dos seguintes factos:
- O recluso é pai de uma menina nascida a .../.../1996, de seu nome AA, e desde data não concretamente apurada, mas seguramente desde que a menor frequentava o 4.º ano de escolaridade, com 10 anos de idade, até 21/11/2011, manteve com ela relações sexuais de cópula completa, sempre sem usar preservativo, no interior da residência da família e no seu veículo automóvel, prática que se foi intensificando até uma base quase diária; a partir de outubro de 2011, passou a manter relações sexuais anais com a filha, utilizando para o efeito lubrificantes, e fazia-lhe ainda sexo oral;
- Para além disso, durante cerca de dois anos, à razão de pelo menos três vezes por semana, aproveitando momentos em que se encontrava sozinho com o filho nascido a .../.../1995, de nome BB, aproximadamente entre os 12 e os 14 anos deste, o recluso despia-se e introduzia o seu pénis no ânus do filho, mostrando-se sempre indiferente aos pedidos do filho para não praticar tais atos, bem sabendo que lhe causava dor e sofrimento);
- Com o intuito de obterem dinheiro para si, o recluso e um comparsa decidiram, de acordo e com um plano previamente traçado, em comunhão de esforços e intentos, assaltar as instalações de uma empresa, pretendendo retirar o cobre aí existente e de que se conseguissem apoderar para vender a sucatas, o que efetivamente fizeram, depois de para o efeito terem galgado um muro lateral, de altura não apurada, que veda toda a área, daí retirando posteriormente três bobines de cobre com peso total aproximado de 300 kg, de valor não apurado mas superior a €96 (noventa e seis euros), que levaram consigo, fazendo-as suas.
3. Este é, na parte aqui relevante, o texto da decisão recorrida [cujo formato, pelo seu caráter sui generis, se procurou reproduzir tão fielmente quanto possível]:
Para além dos elementos já constantes dos autos, relativos à situação juridico-penal, prisional e disciplinar do recluso, que aqui se dão por reproduzidos (dos quais emerge mostrar-se cumprido o quarto/sexto da pena ou da soma das penas, com o mínimo de seis meses, a inexistência de outro processo pendente em que esteja determinada a prisão preventiva, bem como a inexistência de evasão, ausência ilegítima ou revogação da liberdade condicional nos doze meses que antecederam o pedido em presença), obtidos através do cumprimento, pela secretaria do estabelecimento prisional, do previsto no artigo 189.º, n.º 3, alíneas a) e b), do CEP, com interesse para a decisão a proferir, apuraram-se, em resultado da análise e discussão ocorridas no decurso da reunião do Conselho Técnico, as circunstâncias que a seguir se enumeram.
1 - O recluso encontra-se presentemente em regime comum aberto e mostra-se detido em estabelecimento prisional pela 1 [texto manuscrito].ª vez, não tendo tendo em anterior privação da liberdade beneficiado de liberdade condicional (regime que não foi foi objecto de revogação).
2 - No decurso da presente reclusão, não beneficiou já beneficiou de licença de saída (neste último caso, com avaliação positiva negativa).
3 - O seu comportamento, no âmbito do estabelecimento prisional, tem-se revelado estável ou regular instável ou irregular.
4 - Nos últimos seis meses, não foi foi alvo da aplicação de medida(s) de natureza disciplinar.
5 - No que se refere a comportamentos aditivos, denota afastamento manutenção do consumo de estupefacientes.
6 - O recluso desenvolve/participa não desenvolve/não participa, de forma empenhada, actividade laboral, de formação profissional ou escolar/em programa específico de aquisição ou reforço de competências pessoais e sociais.
7 - O recluso revela não revela adequadas interiorização dos fundamentos da condenação e consciência crítica em relação aos factos ilícitos por si praticados.
8 - Em meio livre, não dispõe dispõe de apoio familiar/social, revelando-se o mesmo, neste último caso, consistente inconsistente.
9 - No meio social em que o recluso está inserido não existe existe rejeição/resistência à sua presença.
Tendo em conta todo o descrito circunstancialismo, considerados os pareceres emitidos e ponderado o disposto nos artigos 76.º, n.º 1 e n.º 2, 77.º, n.º 6, 78.º e 79.º, todos do CEP, decido:
Não conceder a requerida licença de saída jurisdicional por, dadas as evidenciadas circunstâncias do caso,
não se verificar fundada expectativa de que o recluso não se subtrairá à execução da pena;
não se verificar fundada expectativa de que o recluso se comportará de modo socialmente responsável, sem cometer crimes, dados os conhecidos antecedentes da sua vida;
a sua saída, nesta fase da execução da pena, não se mostrar compatível com a defesa da ordem e da paz social, nomeadamente em função das fortes necessidades de prevenção geral que concorrem no caso;
a sua situação jurídico-penal não se mostrar ainda totalmente definida, em função da existência de processo(s) pendente(s) de decisão final;
carecer de inverter/consolidar o seu percurso pessoal/prisional, atenta a sua apurada evolução no decurso da execução da pena;
a sua problemática aditiva não se mostrar ultrapassada ou controlada;
não dispor de apoio familiar estruturante;
a medida em causa não se mostrar adequada nem útil no presente caso, em função da imposta pena acessória de expulsão do território nacional;
Em função do indeferimento agora decidido, nos termos do preceituado no artigo 84.º, do CEP, o recluso não poderá apresentar novo pedido de concessão de licença de saída jurisdicional antes de decorridos quatro meses sobre a presente data, não devendo a secretaria do estabelecimento prisional receber novo requerimento sem que tenha decorrido o mencionado prazo.
Conceder ao recluso, em função do período de tempo de prisão já cumprido, do positivo trajecto pessoal/prisional evidenciado, da existência de condições compatíveis em meio livre e do seu consentimento, emergindo este último do pedido por si formulado, a requerida licença de saída jurisdicional, por 3 [texto manuscrito] dias, a partir de __/__/2023, com o horário de saída e regresso a este estabelecimento prisional constante do mandado a emitir, mediante a imposição das seguintes condições, cujo incumprimento poderá dar origem a revogação:
A. Regressar a este estabelecimento prisional até ao termo do prazo determinado (dia e hora fixados);
B. Residir, durante o período da licença, na morada por si mencionada no requerimento ou naquela que for indicada pela DGRS, a constar do mandado a emitir;
C. Não consumir substâncias estupefacientes, nem efectuar consumos excessivos de bebidas alcoólicas;
D. Não frequentar zonas ou locais conotados com actividades delituosas, nem acompanhar pessoas conotadas com a prática de tais actividades;
E. Manter conduta social regular, com observância dos padrões normativos vigentes;
F. Com proibição de contactar as vítimas. [texto manuscrito].
G................................................................................................

Em conformidade com o agora decidido, proceda-se de acordo com o preceituado nas disposições conjugadas dos artigos 77.º, n.º 2, 192.º, n.º 4, e 193.º, todos do CEP.
[...]».


4. Da ata da reunião do Conselho Técnico no decurso do qual foi «proferida» a decisão antecedente, consta, ademais (de novo, procurou manter-se o formato original do texto):
«[...]
Aberta a sessão, foi analisada e discutida a situação do recluso, após o que o Conselho Técnico emitiu parecer Favorável Desfavorável à concessão da requerida licença de saída jurisdicional, apurado, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 142.º, n.º 2, alínea a), 143.º, n.º 3, e 191.º, n.º 1, todos da Lei n.º 115/2009, de 12 de Outubro (CEP), com os seguintes votos:
Responsável da Equipa dos Serviços de Reinserção Social:
Favorável Desfavorável
Responsável Para a Área do Tratamento Penitenciário:
Favorável Desfavorável
Chefia do Serviço de Vigilância e Segurança:
Favorável Desfavorável
Direcção do Estabelecimento Prisional:
Favorável Desfavorável (voto de qualidade)
Mais foi considerado pelos membros do Conselho Técnico, no âmbito do previsto no artigo 191.º, n.º 1, parte final, do CEP, que, no caso de ser concedida, a licença de saída jurisdicional deverá ser sujeita às condições de o recluso residir na morada fixada, não consumir substâncias estupefacientes, não efectuar consumos excessivos de bebidas alcoólicas, não frequentar zonas ou locais conotados com actividades delituosas nem acompanhar pessoas conotadas com a prática de tais actividades, e manter conduta social regular, com observância dos padrões normativos vigentes.
O Ministério Público não se encontrava representado foi representado pelo Digno Magistrado, Dr. António José Coelho Rodrigues, que, de acordo com o previsto no artigo 192.º, n.º 1, do CEP, emitiu parecer Favorável Desfavorável à concessão da medida em questão nestes autos e, depois de conhecer o teor da decisão abaixo proferida, declarou não declarou prescindir do prazo legalmente previsto para a interposição de recurso da mesma.
Seguidamente, a Meritíssima Juiz de Direito entendeu não ser necessário proceder à audição do recluso, prevista no artigo 191.º, n.º 2, do CEP, por considerar bastantes, com vista à prolação de decisão todos os elementos já obtidos.»


5. O recorrente verbera à decisão supra transcrita (reproduzem-se as «conclusões» com que termina o seu arrazoado):
«1-Foi decidido conceder ao recluso uma licença de saída jurisdicional.
2-No entanto, não se mostram reunidos os pressupostos para tal concessão.
3-O recluso cumpre pena pela prática de 2 crimes de abuso sexual de crianças agravado, 1 de abuso sexual de menor dependente e 1 de furto qualificado.
4-Mas, apesar do prolongado período de reclusão apenas assume a prática dos crimes numa perspectiva desresponsabilizante;
5-Sem que tenha integrado programa terapêutico adequado à natureza dos crimes em causa;
6-A concessão da licença de saída não se coaduna por isso com os objectivos do tratamento penitenciário;
7-Nem cumpre as exigências do art. 78º nº 1 al. b) e nº 2 al. d) C.E.P.;
8-Pelo que a decisão proferida deve ser revogada, não devendo ao recluso ser concedida a requerida licença de saída,»


6. O recorrido não apresentou resposta.
7. O Ministério Público junto deste Tribunal manifestou concordância com as alegações apresentadas pelo Digno recorrente, pugnando pela procedência do presente recurso.
8. Cumpridos os legais trâmites importa decidir.
II
9. O presente recurso merece provimento, embora por motivos distintos dos invocados pelo recorrente.
10. 1. A decisão recorrida não se mostra fáctica e juridicamente fundamentada, o que implica a sua invalidade.
11. a) Dispõe o artigo 146.º, n.º 1, do Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade – em observância, aliás, da exigência de fundamentação prevista no artigo 205.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, e em termos similares aos consagrados no artigo 97.º, n.º 5, do Código de Processo Penal – que «[o]s atos decisórios do juiz de execução das penas são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão».
12. Esta exigência de fundamentação das decisões judiciais cumpre, como é sabido, várias funções. Ela destina-se, desde logo, a comunicar aos demais sujeitos e intervenientes processuais as razões (de facto e de direito) pelas quais o Tribunal decidiu como decidiu, de modo a que possam ajustar correspondentemente a sua futura intervenção no processo, mas também a permitir aos Tribunais Superiores, em caso de recurso, verificar se a decisão tomada é fundada, tanto do ponto de vista fáctico como jurídico, nessa medida obrigando também o Tribunal que a profere a um exercício de autocontrolo sobre o teor e sentido da mesma; para além disso, a fundamentação da decisão pode ainda ser relevante para a ulterior atividade de outros Tribunais ou autoridades que a ela possam ter de se referir, designadamente no âmbito de um processo de revisão, ou no contexto do processo de execução do julgado (assim, Kirsten Graalmann-Scheerer, em Löwe/Rosenberg, Die Strafprozeßordnung und das Gerichtsverfassungsgesetz, 27. Aufl., § 34, n. m. 1, pág. 920, que fala, a este propósito, das funções de «definição», «controlo» e «informação», respetivamente).
13. As exigências de fundamentação das diferentes decisões judiciais determinam-se, pois, tendo em consideração as funções indicadas e, bem assim, o objeto da própria decisão em causa, e se, desta perspetiva, nada impede, de plano, que um Tribunal se possa desincumbir do seu dever de fundamentação mediante o preenchimento de quadrículas constantes de um formulário pré-elaborado (como se optou por fazer no caso da decisão recorrida), já dificilmente se pode admitir tal procedimento quando dessa forma resulte uma completa ausência de ponderação das circunstâncias do caso concreto e uma efetiva tomada de posição do Tribunal a propósito da solução a dar à questão decidenda, sendo que para tanto não basta a mera invocação, porventura com reprodução, do texto da legislação aplicável, ou o uso de fórmulas de caráter genérico e/ou estereotipado (sobre o exposto, vd. K. Graalmann-Scheerer, cit., n. m. 10, pág. 924).
14. b) No caso dos autos, e como se retira do respetivo teor, a decisão recorrida não cumpre as exigências de fundamentação assinaladas.
15. A concessão de uma licença de saída jurisdicional não depende exclusivamente da verificação da ocorrência de requisitos de natureza formal, exigindo ainda que o Juiz competente formule juízos de índole valorativa e de prognose que não podem reduzir-se à mera afirmação de que tal concessão se justifica «em função do período de tempo de prisão já cumprido, do positivo trajecto pessoal/prisional evidenciado, da existência de condições compatíveis em meio livre e do seu [do recluso] consentimento».
16. Com efeito, conforme decorre do preceituado nos artigos 78.º e 79.º do Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade, a concessão de uma licença de saída jurisdicional depende da verificação de vários requisitos, uns, gerais, comuns a todas as espécies de licenças de saída (existir «[f]undada expectativa de que o recluso se comportará de modo socialmente responsável, sem cometer crimes» e «de que o recluso não se subtrairá à execução da pena ou medida privativa da liberdade», e o verificar-se «[c]ompatibilidade da saída com a defesa da ordem e da paz social»: citado artigo 78.º, n.º 1, alíneas a), c), e b), respetivamente), e outros específicos de tal espécie de licenças (verificar-se cumulativamente o «cumprimento de um quarto da pena, tratando-se de pena superior a cinco anos», «[a] execução da pena em regime comum ou aberto», não existir «outro processo pendente em que esteja determinada prisão preventiva» e não ter ocorrido «evasão, ausência ilegítima ou revogação da liberdade condicional nos 12 meses que antecederem o pedido» (citado artigo 79.º, n.º 2, alíneas a) a d), respetivamente).
17. Como daqui decorre também, requisitos há, pois, que são objetivos (pensamos concretamente nos requisitos estabelecidos no artigo 79.º, n.º 2, do Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade), e que, portanto, ou se verificam, ou não verificam, no momento em que o Tribunal de Execução das Penas é chamado a apreciar o pedido de concessão de uma licença de saída.
18. Relativamente à verificação destes requisitos de índole objetiva, o preenchimento de quadrículas num formulário pré-criado poderá revelar-se perfeitamente suficiente para cumprir a exigência de fundamentação que recai sobre o julgador (ainda quando o Tribunal recorrido tenha optado por amalgamar a referência a vários desses requisitos num texto inicial, e dispersar outros por parágrafos autónomos do que aparenta ser a factualidade que considerou assente como base da sua decisão, sem que se perceba o critério seguido para realizar tal separação).
19. Da verificação de tais requisitos, no entanto, não decorre obrigatoriamente a concessão da licença de saída; estando eles reunidos, exige-se que o Tribunal proceda então a uma ponderação concreta, «[t]endo em conta as finalidades das licenças de saída», de vários fatores (sc. «[a] evolução da execução da pena ou medida privativa da liberdade», «[a]s necessidades de protecção da vítima», «[o] ambiente social ou familiar em que o recluso se vai integrar», «[a]s circunstâncias do caso» e «[o]s antecedentes conhecidos da vida do recluso»: citado artigo 78.º, n.º 2, alíneas a) a e), respetivamente, do Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade), de modo a aferir se, no caso, se verificam ou não os requisitos substanciais previstos no artigo 78.º, n.º 1, do corpo de normas citado.
20. Da decisão recorrida, no entanto, não consta qualquer esforço de análise dirigida a demonstrar por que se considerou existir «[f]undada expectativa de que o recluso se comportará de modo socialmente responsável, sem cometer crimes» e de que ele «não se subtrairá à execução da pena ou medida privativa da liberdade», e, bem assim, por que se verifica «[c]ompatibilidade da saída com a defesa da ordem e da paz social», precisamente o requisito que o Digno recorrente aqui vem considerar não ocorrer no caso concreto.
21. Mas sendo assim as coisas, e em rigor, esta Relação só pode presumir que, ao menos implicitamente, o Tribunal recorrido terá considerado que os aludidos requisitos se verificam no caso concreto, uma vez que a licença de saída impetrada foi concedida, desconhecendo-se, no entanto, as razões que sustentam tal apodítica conclusão, e, portanto, se ela se mostra ou não efetivamente fundada, sendo também que tal não pode deduzir-se, de forma inequívoca, das «circunstâncias» cujas quadrículas se mostram assinaladas, face ao teor genérico e estereotipada do arremedo de fundamentação constante da decisão recorrida.
22. Assim, e em primeiro lugar, sabendo-se que não foi unânime o entendimento, no seio do Conselho Técnico, de que se justificava a concessão, ao condenado a que respeitam os autos, da licença de saída que requereu, como decorre do trecho da ata da reunião do dito conselho, atrás transcrito, seria de esperar que o Tribunal recorrido recolhesse o essencial das razões que levaram dois dos membros desse Conselho a oporem-se a tal concessão, e explicasse, ainda que sinteticamente, os motivos pelos quais considerou tais argumentos improcedentes (ou até por que os considerou irrelevantes, se foi o caso), demonstrando, destarte, ter procedido a uma análise individualizada e cuidada do caso sujeito a decisão. Uma tal análise, porém, em lado algum da decisão recorrida consta.
23. Em segundo lugar, também relativamente aos factos que lhe servem de arrimo, não é a decisão recorrida clara, pois que só se consideraram assentes factos de contornos genéricos e cujo sentido não é propriamente unívoco.
24. Debalde se procurará, na decisão recorrida, uma caracterização do que é o «comportamento (…) estável ou regular» que aí se atribui ao condenado nos autos, em que consiste o «apoio familiar/social (…) consistente» de que se diz gozar ele, ou o seu afirmado «afastamento (…) do consumo de estupefacientes» (e, designadamente, se é o mesmo conjuntural, e atribuível à mera situação de reclusão, ou a um compromisso, mais ou menos sério, do recluso, com um processo sustentado de desintoxicação e libertação da eventual dependência de produtos estupefacientes que apresente, se e na medida em que tenha isso ainda relação com os delitos praticados), tudo, naturalmente, na perspetiva das finalidades visadas com as licenças de saída jurisdicionais (todos os sublinhados anteriores são nossos).
25. Do mesmo modo, não se percebe exatamente o que pode significar afirmar-se que «[o] recluso desenvolve/participa (…), de forma empenhada, actividade laboral, de formação profissional ou escolar/em programa específico de aquisição ou reforço de competências pessoais e sociais»: afinal, a que atividades laborais, «de formação profissional ou escolar», ou a que «programa específico de aquisição ou reforço de competências pessoais e sociais» se pretende aludir, e em que medida é que daí resultam elementos relevantes para a análise, que ao Tribunal recorrido se impunha, do preenchimento dos requisitos substantivos de que depende a concessão da licença de saída jurisdicional que lhe foi peticionada? Esta questão não encontra, na decisão recorrida, resposta.
26. Também a simples referência a que «[n]o meio social em que o recluso está inserido não existe (…) rejeição/resistência à sua presença», sem que se explique a que «meio social» se pretendeu aludir (tanto mais que ao proibir-se ao recluso – tanto quanto é dado ver, corretamente – o contacto com as suas vítimas, fica a dúvida de se é esse o meio social a que ele poderá regressar durante a saída que lhe foi concedida) e como se chegou a tal conclusão, impede (designadamente) esta Relação de compreender o alcance de tal factualidade, considerando o objeto da decisão que ao Tribunal recorrido cabia proferir.
27. Por último, o Tribunal a quo optou por não se pronunciar sobre se «[o] recluso revela [ou] não revela adequadas interiorização dos fundamentos da condenação e consciência crítica em relação aos factos ilícitos por si praticados», circunstância que não pode deixar de ter-se por decisiva (ou, pelo menos, particularmente relevante) para apurar de uma forma cabal da evolução do processo de ressocialização do mesmo recluso e, eventualmente, antecipar as possíveis repercussões de um seu regresso, ainda que limitado, à liberdade, no âmbito de uma licença de saída (que é, no essencial, o argumento que aqui faz valer o Digno recorrente, mas que não podemos apreciar por desconhecer a resposta do Tribunal recorrido a tal questão).
28. c) Face às indicadas insuficiências de fundamentação da decisão recorrida, não só não se conhecem, com o detalhe imprescindível, os factos que foram considerados assentes (e, pelo menos em relação à factualidade mencionada nos parágrafos antecedentes, as razões por que o foram), ou como foram valorados na subsunção jurídica (aparentemente) realizada, nem esta é apresentada de uma forma que a torne apreensível e compreensível a este Tribunal.
29. Daqui resulta que esta Relação não se encontra em condições de responder, de forma devidamente fundamentada, ao recurso que perante si foi interposto: a decisão recorrida concluiu (implicitamente), como se disse, que a saída do recluso a que respeitam os autos do Estabelecimento Prisional onde expia as penas em que foi condenado se mostra, i. a., compatível «com a defesa da ordem e da paz social», mas não se percebe como chegou a tal conclusão; por seu turno, o Digno recorrente entende que tal conclusão se mostra errónea, mas o certo é que sem se saber dos fundamentos em que o Tribunal recorrido se arrimou, não é possível decidir se ocorreu ou não, de facto, o erro de análise e qualificação denunciado no recurso sob apreciação.
30. Não assegurando, a fundamentação da decisão recorrida, a «função de controlo» que lhe cabe garantir, não pode deixar de concluir-se que ocorre, no caso, a irregularidade prevista no n.º 1 do artigo 123.º do Código de Processo Penal (aplicável ex vi do artigo 154.º do Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade; vd., ainda, o preceituado no artigo 118.º, n.ºs 1 e 2, do primeiro dos corpos de normas citados).
31. Esta irregularidade, tanto quanto resulta dos autos, não foi arguida pelo recorrente junto do Tribunal recorrido, e em circunstâncias normais, teria de considerar-se sanada.
32. No entanto, dada a magnitude das deficiências de fundamentação aqui em causa, que tolham integralmente o exercício, por parte desta Relação, dos seus poderes de controlo sobre a decisão recorrida, não pode deixar de reconhecer-se que a irregularidade praticada pelo Tribunal a quo afeta indubitavelmente o valor do ato praticado, e, como tal, pode e deve ser excecionalmente conhecida, ex officio, por este Tribunal, em sede de recurso (artigo 123.º, n.º 2, do Código de Processo Penal).
33. Desta forma, e contrariamente ao que defende alguma jurisprudência (assim, vd. o acórdão desta mesma Relação de 28/10/2020, tirado no processo n.º 5460/18.0T9PRT.P1, disponível em www.dgsi.pt), não se transforma uma mera irregularidade numa nulidade insanável, mas apenas se exercita a faculdade prevista na norma legal citada, nas condições aí também fixadas («no momento em que da mesma se tomar conhecimento, quando ela puder afetar o valor do ato praticado»: ou seja, quando o Tribunal Superior, chamado a rever o decidido, constata estar impedido de exercer adequadamente os seus poderes de controlo por ausência dos elementos minimamente necessários para tanto).
34. Do que até aqui se escreveu resulta, pois, a necessidade de invalidar a decisão recorrida, com a consequente descida dos autos à 1.ª instância para prolação de nova decisão, devidamente fundamentada.
35. 2. No caso, não há lugar à fixação de quaisquer custas (artigo 522.º, n.º 1, do Código de Processo Penal).
III
36. Pelo exposto, acordam os da 1.ª Secção (Criminal) do Tribunal da Relação do Porto em, julgando procedente, embora por distintos motivos aos invocados pelo recorrente, o presente recurso, declarar inválida a decisão recorrida e determinar a descida dos autos à 1.ª instância para ulterior tramitação não incompatível com o ora decidido (cf., em especial, parágrafo 34, supra).

37. Sem custas (artigo 522.º, n.º 1, do Código de Processo Penal).

Porto, 21 de junho de 2023.
Pedro M. Menezes
Lígia Figueiredo
Paulo Costa
(acórdão assinado digitalmente).