Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
18281/21.0T8PRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ARTUR DIONÍSIO OLIVEIRA
Descritores: EXECUÇÃO PARA ENTREGA DE COISA CERTA
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO
CASA DE MORADA DE FAMÍLIA
COVID-19
Nº do Documento: RP2022102518381/21.0T8PRT.P1
Data do Acordão: 10/25/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: DECISÃO ANULADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Legislação Nacional: LEI N.º 1-A/2020 DE 19/03
Sumário: I – As medidas excepcionais e temporárias consagradas nas alíneas b) e c), do n.º 7, do artigo 6.º-E, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, não se confundem nem se sobrepõem, sendo distinto o modo como operam e o seu âmbito de aplicação.
II – Enquanto a suspensão prevista na al. b) do n.º 7 opera ope legis, isto é, automaticamente, por força da lei, a suspensão prevista na al. c) do mesmo n.º 7, assim como a suspensão prevista no n.º 8, operam ope judicis, ou seja, depois de confirmada por decisão judicial a verificação dos respectivos requisitos legais.
III – A suspensão prevista na alínea c) do n.º 7 aplica-se aos actos de execução de entrega de imóveis arrendados, no âmbito das ações de despejo, dos procedimentos especiais de despejo e dos processos para entrega de coisa imóvel arrendada, independentemente de se tratar da casa de morada de família ou não.
IV – A suspensão prevista na al. b) do n.º 7 e a suspensão prevista no n.º 8 dizem respeito a imóveis pertencentes ao executado ou ao insolvente, apreendidos nos respectivos processos de execução ou de insolvência, tendo em vista a sua venda e a subsequente satisfação dos créditos do exequente ou dos credores do insolvente; mas enquanto a al. b) se aplica apenas quando está em questão a casa de morada do executado ou do insolvente e abrange tão somente os actos relacionados com a entrega judicial dessa casa, o n.º 8 aplica-se a quaisquer imóveis e abrange também os actos relacionados com a venda.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 18381/21.0T8PRT.P1

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I. Relatório
1. AA, residente na Avenida ..., ..., ... Matosinhos, e BB, residente na Avenida ..., ... ..., intentaram contra CC, residente na Rua ..., ... Porto, execução para entrega de coisa certa, baseada em sentença judicial que condenou a ora executada, para além do mais, a despejar o imóvel locado, sito na referida Rua ..., ..., Porto.
2. Em 14.12.2021 o tribunal proferiu o seguinte despacho:
«Requerimento da executada, ao qual responderam os exequentes em 16/11/2021.
Tendo a executada suscitado incidente de suspensão/diferimento da desocupação, foi já sustada pelo Sr. AE execução para entrega do locado, nos termos do disposto no art.º 863.º, n.ºs 3 e 4, do CPC.
Todavia, a presente execução para entrega de coisa certa/locado deve ser suspensa em virtude da pandemia da doença Covid-19 e ao abrigo da Lei n.º 1-A/2020, de 19/03.
Com efeito, estando em causa a habitação/casa de morada de família da executada, impõe-se a suspensão da entrega judicial de tal habitação/locado/casa de morada de família, situação que ainda se mantém, sem prejuízo da sua entrega voluntária pelo executado, e face ao disposto no art.º 6.º-E, n.º 7, als. b) e c), da Lei n.º 1-A/2020, de 19/03, na versão da Lei n.º 13-B/2021, de 05/04, que se aplica neste caso.
Por outro lado, conforme consta da sentença dada à execução, as rendas mensais do locado continuam a ser devidas pela executada, podendo ser exigidas pelos exequentes.
Por sua vez, tendo a presente execução para entrega de coisa certa/locado de ficar suspensa em virtude da pandemia da doença Covid-19 e ao abrigo da referida Lei n.º 1-A/2020, de 19/03, cremos que tal situação leva à extinção do objeto e da causa de pedir do incidente de suspensão/diferimento da desocupação do imóvel/locado, deixando este de se justificar e de ser necessário, pelo que se tornou também inútil/impossível a continuação de tal incidente de diferimento da desocupação do imóvel (art.º 277.º, al. e), do CPC).
Pelo exposto, por ora, quanto à entrega do locado, os autos não podem prosseguir, mantendo-se a suspensão dos atos de execução a realizar para concretização da entrega da casa de morada de família/locado, nos termos e para os efeitos previstos no citado art.º 6.º-E, n.º 7, als. b) e c), da Lei n.º 1-A/2020, de 19/03, na versão da referida Lei n.º 13-B/2021, de 05/04.
Atenta a decisão que antecede, julgo extinto e improcedente o incidente de suspensão/diferimento da desocupação do imóvel/locado.
Notifique.
Comunique ao Sr. AE, devendo ter-se ainda em conta futuramente o disposto no art.º 861.º, n.º 6, do CPC, tomando o Sr. AE todas as cautelas aí prescritas e devendo respeitar todo o regime previsto no art.º 6.º-E, n.º 7, als. b) e c), da Lei n.º 1-A/2020, de 19/03, na versão da Lei n.º 13-B/2021, de 05/04, em conformidade com o apurado neste caso concreto.
Perante as dificuldades alegadas pela executada, incluindo de realojamento, adverte-se desde já a mesma para de imediato diligenciar e ter uma atuação proactiva junto das competentes entidades municipais e sociais para, com o seu apoio, melhor resolver o seu invocado problema de habitação/realojamento.
Notifique.
DN.»
3. Por requerimento de 17.02.2022, os exequentes requereram o levantamento da suspensão do processo executivo e o prosseguimento dos ulteriores termos processuais, alegando o seguinte:
- De acordo com a informação prestada pela “D...”, em 24.11.2021 foi oferecida ao agregado familiar da executada uma habitação T4, adequada à sua composição, requalificada e com obras de beneficiação, situada na freguesia ..., o que aquele agregado recusou, por se situar muito distante da área da sua actual residência, mais solicitando se aguarde por nova oportunidade de alojamento na freguesia ...;
- De acordo com a mesma informação, não há previsão de disponibilidade de habitação da tipologia 4;
- Esta factualidade altera totalmente a situação que levou ao decretamento da suspensão da instância, na sequência de requerimento apresentado pela executada em 12.11.2021, fundamentado, entre outras coisas, na seguinte alegação: «Acontece que a atribuição de habitações sociais na região do Grande Porto é, infelizmente, nos tempos que correm, muito concorrida, e tem, por via disso, longas filas de espera, podendo demorar largos meses ou vários anos, até, para que seja possível a atribuição de uma habitação social para a executada e para o seu agregado familiar»;
- A manutenção da suspensão da instância executiva configura, face a esta factualidade, um abuso de direito, nos termos do artigo 334.º do CC.
4. A executada pugnou pela manutenção da suspensão alegando, em síntese, o seguinte:
- A executada é viúva, tem 82 anos de idade e padece de diversas doenças graves, tendo recentemente sofrido um acidente vascular cerebral sequelar;
- Três dos filhos da executada que consigo habitam, todos com mais de 50 anos de idade, padecem, também eles, de doenças gravíssimas, que lhes conferem a todos incapacidades superiores a 60%, facto que piora ainda mais o estado de saúde da executada devido às preocupações acrescidas;
- Todo este agregado familiar da executada vive há mais de 50 anos na habitação em causa;
- Todos os seus membros se encontram inscritos na Unidade de Saúde Familiar ... e ali têm atribuído o seu Médico de Família, que consultam há mais de 30 anos e que, por isso, é perfeitamente conhecedor dos diferentes problemas de saúde de todos os elementos que compõe este agregado familiar e no qual que estes depositam toda a confiança;
- Um dos filhos da executada, DD, padece, entre outras doenças, de esquizofrenia e carece de acompanhamento próximo e periódico do Hospital ... (Dra. EE), sito na União de Freguesias ..., ... e ..., no Porto, na região ocidental da cidade do Porto e contíguo à freguesia ...;
- A filha da executada, FF, padece de doenças graves do foro psiquiátrico e também carece de acompanhamento próximo e periódico do mesmo Hospital ... (Dra. GG);
- Foram estes os principais motivos que levaram a executada a recusar a proposta da D... para uma habitação na freguesia ..., na zona oriental da cidade do Porto, que obrigaria o agregado familiar a perder todos os elos de ligação a estas unidades e respetivos profissionais de saúde;
- Na zona ocidental da cidade do Porto existem 21 bairros sociais, o que permite à executada acalentar fundadas esperanças de que possa vir a ser atribuída ao seu agregado familiar, em pouco tempo, uma casa nesta região ocidental da cidade do Porto;
- Não ocorre, portanto, qualquer abuso de direito por parte da executada.
5. Em 22.04.2022 foi proferido o seguinte despacho:
«Requerimento dos exequentes de 17.02.2022.
Foi aqui já decretada pelo despacho de 14.12.2021 a suspensão da entrega judicial da habitação/casa de morada de família, situação que ainda se mantém, sem prejuízo da sua entrega voluntária pela executada, e face ao disposto no art.º 6.º-E, n.º 7, al. b) e c), da Lei n.º 1-A/2020, de 19/03, na versão da Lei n.º 13-B/2021, de 05/04, que se aplica neste caso, pelo que, por ora, os autos não podem prosseguir como solicitado pelos exequentes, mantendo-se a suspensão da entrega.
Por outro lado, conforme consta da sentença de despejo dada à execução, as rendas mensais do locado continuam a ser devidas pela executada, podendo ser exigidas pelos exequentes.
Por sua vez, cremos que a informação prestada pela D... não vem alterar a situação, pois ainda não foi concretizada a atribuição de uma habitação social à executada, questão que depende da atuação voluntária dos interessados, não podendo ser aqui imposta, estando aqui em causa a entrega coerciva do locado, estando a posição da arrendatária tutelada na referida Lei n.º 1-A/2020, que impõe a suspensão da entrega, inexistindo qualquer relevante abuso de direito, por falta dos pressupostos legais e tal como invocado pela executada.
Pelo exposto, indefere-se o requerido pelos exequentes.
Notifique e comunique ao Sr. AE, devendo ter-se ainda em conta futuramente o disposto no art.º 861.º, n.º 6, do CPC, tomando o Sr. AE todas as cautelas aí prescritas e devendo respeitar todo o regime previsto no art.º 6.º-E, n.º 7, als. b) e c), da Lei n.º 1-A/2020, de 19/03, na versão da Lei n.º 13-B/2021, de 05/04, em conformidade com o apurado neste caso concreto.
DN.»
*
6. Inconformados, os exequentes apelaram deste despacho, formulando as seguintes conclusões:
«A - Quer do requerimento inicialmente apresentado pela executada, quer do douto despacho que deferiu a suspensão da execução, e que os ora recorrentes então aceitaram, decorre de modo inequívoco, que o fundamento para esta suspensão e para a conclusão de que ela se justificava porque, se tal não acontecesse, a executada poderia ser colocada em situação de fragilidade por falta de habitação própria – art.º 6.º-E n.º 7 al. c) da Lei 1-A/2020 de 19 de Março – foi que esta não teria hipótese de obter habitação alternativa condigna, na situação de pandemia em que nos encontrávamos.
B - Embora a recorrida, nesse mesmo requerimento também tenha invocado doença sua e dos seus filhos, nada permite afirmar que, por este motivo, a sua deslocação para outra habitação a poderia colocar em situação de fragilidade, pois, se assim fosse, não teria sentido a advertência feita no douto despacho que deferiu a suspensão, de que a recorrida deveria diligenciar e ter uma actuação proactiva para resolver o seu problema de habitação/realojamento.
C - Existindo uma execução de despejo, e sendo a mesma suspensa porque a sua concretização poderia colocar a executada em situação de fragilidade, recusar uma habitação social que foi proposta, no local e com as características que a executada, na pendência da execução comprovadamente solicitou e pretender manter essa suspensão, é exercício abusivo do direito.
D - Com o seu requerimento de suspensão da instância a recorrida criou a convicção nos recorrentes (e também, assim creem estes, em qualquer terceiro de boa fé que se encontrasse na mesma situação), que se lhe fosse atribuída uma habitação social no Grande Porto, ou até só no município ..., imediatamente deixaria o arrendado.
E - Quando essa habitação lhe foi proposta, tal como ela havia requerido, no município ... (...), a recorrida, agindo de boa fé, não a poderia ter recusado, pelo que pretender que, mesmo assim, se mantenha a suspensão da execução, integra uma situação de “venire contra factum proprium”, pois criou nos recorrentes a convicção de que, sendo-lhe atribuída uma habitação social, deixaria o arrendado e não mais exerceria o seu direito à suspensão da instância executiva.
F – A recorrida age também em violação do fim social para que o direito foi criado (protecção de arrendatários que, no período de pandemia, em caso de despejo, ficassem em situação de fragilidade por falta de habitação); esta situação existia à data em que foi decretada a suspensão mas deixaria de existir se a recorrida tivesse aceite, como devia, a habitação que lhe foi proposta e que recusou.
G - Obviamente que a recorrida só teve este comportamento porque se sentia protegida pelo despacho inicial que tinha deferido a suspensão da instância executiva; se esta tivesse seguido os seus termos processuais com normalidade, é claro que tinha aceite a nova habitação proposta, porque a alternativa era ficar sem casa onde morar.
H - Este comportamento não pode passar em claro, devendo este Tribunal censurá-lo, considerando ilegítimo o exercício do direito, tal como o mesmo foi feito pela recorrida, e determinar que o processo siga os seus ulteriores termos processuais.
I – O douto despacho recorrido fez errada interpretação do disposto no art.º 6.º-E, n.º 7 alíneas b) e c) da Lei 1-A/2020 de 19/03 e do art.º 236.º, violando o art.º 9.º do Código Civil e fez errada aplicação do estipulado no artigo 334.º também do Código Civil».
Concluiu pedindo se dê provimento à presente apelação, revogando-se o despacho recorrido e substituindo-o por decisão que, levantando a suspensão da instância executiva, determine que o processo siga os seus ulteriores termos processuais.
A executada não respondeu à alegação dos recorrentes.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
*
II. Objecto do Recurso
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, como decorre do disposto nos artigos 635.º, n.º 4, e 639.º do Código de Processo Civil (CPC), não podendo o Tribunal conhecer de quaisquer outras questões, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o seu conhecimento oficioso (cfr. artigo 608.º, n.º 2, do CPC).
A única questão a decidir, tendo em conta o teor das conclusões formuladas pelos recorrentes, consiste em saber se deve ser levantada a suspensão dos actos de execução do despejo.
*
III. Fundamentação
1. A factualidade a considerar na apreciação do presente recurso corresponde às ocorrências descritas nos pontos 1 a 5 do relatório deste aresto.
2. A decisão recorrida manteve a suspensão da entrega judicial da habitação/casa de morada de família que já havia sido decretada por despacho de 14.12.2021, fundamentando-se ambas as decisões no disposto no artigo 6.º-E, n.º 7, alíneas b) e c), da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, na redacção da Lei n.º 13-B/2021, de 05 de Abril, aplicável ao caso.
Do teor do referido despacho de 14.12.2021, bem como das circunstâncias em que foi proferido, infere-se sem dificuldade que o tribunal a quo considerou que a suspensão prevista nas normas que invocou opera automaticamente. Basta, para tanto, atentar no seguinte: a executada não solicitou ao tribunal a suspensão da entrega do locado ao abrigo daquela legislação excepcional, tendo antes deduzido o incidente de suspensão da execução e diferimento da desocupação do local arrendado para habitação, previsto e regulado nos artigos 863.º e seguintes do CPC; o tribunal optou por determinar oficiosamente a suspensão da entrega do locado, sem analisar a argumentação da executada ou a contra-argumentação dos exequentes e sem analisar ou produzir qualquer prova, fundamentando-se exclusivamente nas normas das alíneas b) e c), do n.º 7, da referida Lei n.º 1-A/2020 e na circunstância de estar em causa a habitação/casa de morada de família da executada, tendo julgado «extinto e improcedente o incidente de suspensão/diferimento da desocupação do imóvel/locado».
E nada permite afirmar, como fazem os ora recorrentes, que o tribunal recorrido tenha ordenado a suspensão da entrega do imóvel «porque, se tal não acontecesse, a executada poderia ser colocada em situação de fragilidade por falta de habitação própria», ainda que os recorrentes tenham acreditado nessa possibilidade e, por essa razão, se tenham conformado com a suspensão decretada.
A aludida interpretação das normas que fundamentaram a suspensão da entrega da casa de morada da executada e da sua família manteve-se inalterada no despacho recorrido, no qual, perante a invocação do abuso de direito, o tribunal a quo apenas acrescentou que a informação prestada pela “D...”, segundo a qual a executada recusou a atribuição de uma habitação na freguesia ..., «não vem alterar a situação, pois ainda não foi concretizada a atribuição de uma habitação social à executada, questão que depende da atuação voluntária dos interessados, não podendo ser aqui imposta, estando aqui em causa a entrega coerciva do locado, estando a posição da arrendatária tutelada na referida Lei n.º 1-A/2020, que impõe a suspensão da entrega, inexistindo qualquer relevante abuso de direito, por falta dos pressupostos legais e tal como invocado pela executada». Deste modo, o tribunal recorrido afastou liminarmente a aplicação do instituto do abuso de direito, mas sem nunca apreciar se a suspensão da entrega do locado encontrava justificação nalguma circunstância concreta, nomeadamente se a efectivação dessa entrega era susceptível de colocar a executada ou o seu agregado familiar numa situação de fragilidade por falta de habitação própria ou por outra razão social imperiosa.
Não cremos, todavia, que o tribunal recorrido tenha interpretado e aplicado correctamente estas normas.
Desde logo porque as invocou e aplicou simultânea e indiscriminadamente, em conjunto, sem fazer qualquer distinção entre as previsões de cada uma das alíneas que convocou, como se ambas regulassem a mesma situação. Ora, apesar da sua redacção não primar pela clareza – o que poderá encontrar alguma justificação na urgência e nas demais contingências associadas ao contexto pandémico em que esta legislação foi produzida –, afigura-se claro que estas duas normas não se confundem e, a nosso ver, nem sequer se sobrepõem, sendo certo que a jurisprudência vem fazendo um esforço de delimitação do âmbito de aplicação de cada uma delas, à luz do disposto no artigo 9.º do Código Civil (CC), tendo designadamente em conta o preceito do n.º 3 desse artigo, nos termos do qual «o intérprete presumirá que o legislador (…) soube exprimir o seu pensamento em termos adequados».
Para além de terem âmbitos de aplicação distintos – assunto que analisaremos infra com mais detalhe – as duas normas invocadas na decisão recorrida operam de formas distintas, como desde logo denuncia a letra da lei.
Dispõem assim as alíneas b) e c) do n.º 7, do referido artigo 6.º-E:
«Ficam suspensos no decurso do período de vigência do regime excecional e transitório previsto no presente artigo:
(…)
b) Os atos a realizar em sede de processo executivo ou de insolvência relacionados com a concretização de diligências de entrega judicial da casa de morada de família;
c) Os atos de execução da entrega do local arrendado, no âmbito das ações de despejo, dos procedimentos especiais de despejo e dos processos para entrega de coisa imóvel arrendada, quando o arrendatário, por força da decisão judicial final a proferir, possa ser colocado em situação de fragilidade por falta de habitação própria ou por outra razão social imperiosa».
Por sua vez, preceitua assim o n.º 8 do mesmo artigo:
«8 - Nos casos em que os atos a realizar em sede de processo executivo ou de insolvência referentes a vendas e entregas judiciais de imóveis sejam suscetíveis de causar prejuízo à subsistência do executado ou do declarado insolvente, este pode requerer a suspensão da sua prática, desde que essa suspensão não cause prejuízo grave à subsistência do exequente ou dos credores do insolvente, ou um prejuízo irreparável, devendo o tribunal decidir o incidente no prazo de 10 dias, ouvida a parte contrária».
A mera leitura destas normas revela que a suspensão prevista na al. b), do n.º 7, opera ope legis, ou seja, automaticamente, por força da lei, sempre que esteja em causa a concretização de diligências de entrega judicial da casa de morada de família no âmbito de processos executivos ou de insolvência, ao passo que a suspensão prevista na al. c), do mesmo n.º 7, assim como a suspensão prevista no n.º 8, operam ope judicis, ou seja, depois de confirmada por decisão judicial a verificação dos respectivos requisitos legais.
Tem sido este o entendido maioritário – senão mesmo uniforme – da jurisprudência dos nossos tribunais superiores. Neste sentido, a respeito daquela al. c), afirma-se no acórdão do TRL de 17.06.2021 (proc. n.º 1055/20.7YLPRT.L1-6, disponível em www.dgsi.pt, onde se pode encontrar a demais jurisprudência citada sem indicação da respectiva origem) que, «para além da letra da lei, também o elemento racional da interpretação (também presente no n.º 1, do art.º 9.º, do CC ), maxime a ratio legis da lei [o seu fundamento racional objectivo] e a occasio legis (a circunstância histórica que levou à sua implementação), estão longe de amparar na plenitude o despacho recorrido, e isto se atentarmos que as leis Covid de suspensão dos prazos processuais surgem no âmbito das medidas de contenção tomadas no essencial pela necessidade de controlo da pandemia Covid 19 e perante o entendimento (científico) de que para o referido efeito importa sobremaneira preservar/manter as pessoas nas respectivas habitações [daí visar apenas as situação de fragilidade por falta de habitação própria ou por outra razão social imperiosa], impondo-se o isolamento social como resposta à situação epidemiológica. Ora, o despacho recorrido, ao não diferenciar o arrendatário desprovido de alternativa ao locado do não carecido, convenhamos que casa muito mal com uma legislação que surge norteada pela preocupação do legislador em fazer face ao um momento extraordinário de pandemia (…). O entendimento acabado de explanar, de resto, é aquele tem vindo a merecer a adesão praticamente unânime da nossa jurisprudência».
Neste mesmo acórdão dá-se ainda nota de ser este, também, o entendimento sufragado na doutrina, citando Higina Castelo (O arrendamento urbano nas leis temporárias de 2020, RMP, Número Especial COVID-19 / 2020, págs. 336/337), Oliveira Martins ((De novo a) Lei n.º 1-A/2020 – uma terceira leitura (talvez final?), JULGAR Online, maio de 2020, p. 20, acessível em file:///C:/Data/mj01343/Documents/Downloads/20200529-JULGAR-De-novo-a-Lei-1-A2020-uma-terceira-leitura-talvez-final-Jos%C3%A9-Joaquim-Martins-v2.pdf) e Menezes de Leitão (Os prazos em tempos de pandemia COVID-19, em Estado de Emergência – COVID-19 Implicações na Justiça, CEJ, 2.ª ed., p. 71, disponível em http:// www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/outros/eb_Covid19.pdf).
No mesmo sentido, a respeito da alínea b), no seu confronto com o n.º 8, vide o TRC de 24.04.2022 (proc. n.º 642/20.8T8GRD.C1).
Decorre do exposto que a decisão recorrida apenas poderia ter sido proferida nos moldes em que o foi se a norma aplicável ao caso for a da al. b), do n.º 7, do artigo 6.º-E, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março. Sendo aplicável a norma da alínea c) do mesmo artigo (ou a norma do n.º 8), o tribunal só poderia apreciar a questão da suspensão depois de a mesma ter sido suscitada pela parte que nela tem interesse, com indicação dos factos que a fundamentam, dando oportunidade à parte contrária de exercer o contraditório e produzindo a prova julgada pertinente para fundamentar a decisão.
Nestes termos, importa delimitar o âmbito de aplicação de cada uma das normas em confronto.
Alguma jurisprudência descreve o âmbito de aplicação destas normas afirmando que as mesmas prevêem três níveis diferentes de protecção das pessoas visadas com diligências de entrega de imóveis: a) se o imóvel em causa constituir casa de morada de família ficam automaticamente suspensas todas as diligências de entrega judicial da mesma; b) se o imóvel a entregar, não sendo casa de morada de família, for um imóvel arrendado apenas se suspendem estas mesmas diligências caso “o arrendatário, por força da decisão final a proferir, possa ser colocado em situação de fragilidade por falta de habitação própria ou por outra razão social imperiosa”; c) se o imóvel em causa não constituir casa de morada de família nem for arrendado somente se suspende a prática de tais diligências caso estas “sejam susceptíveis de causar prejuízo à subsistência do executado ou do declarado insolvente (…) desde que essa suspensão não cause prejuízo grave à subsistência do exequente ou um prejuízo irreparável. Neste sentido se pronunciaram os acórdãos deste TRP de 27.04.2021 (proc. n.º 1212/20.6T8LOU-B.P1) e de 20.09.2021 (proc. n.º 2524/17.1T8LOU.P2).
Esta jurisprudência tem o mérito de alertar para a circunstância de o legislador ter estruturado estas concretas medidas excepcionais e temporárias de resposta à situação epidemiológica provocada pelo coronavírus SARS-Cov-2 (cfr. artigo 1.º, al. b), da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março), relativas a imóveis objecto de processos judiciais, em torno de duas distinções fundamentais:
- Se são imóveis destinados a habitação própria ou a outro fim;
- Se são imóveis próprios ou arrendados.
Não suscita dúvidas que a al. b) apenas se aplica à entrega judicial de imóveis que constituam a casa de morada de família do obrigado a essa entrega.
E é absolutamente inequívoco que a al. c) apenas se aplica a imóveis arrendados, ou melhor, apenas se aplica à entrega de imóveis pelos respectivos arrendatários.
Não cremos, porém, que o legislador tenha querido concentrar todas as medidas de protecção respeitantes à casa de morada de família na alínea b), abstraindo da sua titularidade, ou seja, independentemente de ser um bem próprio ou arrendado, reservando a medida da alínea c) (e do n.º 8) para os imóveis que não constituem a casa de morada do visado pela medida judicial. Na verdade, a exigência consagrada nesta al. c), de que o arrendatário possa ser colocado em situação de fragilidade por falta de habitação própria (ou por outra razão social imperiosa), só se compreende se a entrega respeitar à casa de morada do arrendatário.
Temos, assim, como certo que a alínea c) se aplica aos actos de execução de entrega de imóveis arrendados, no âmbito das ações de despejo, dos procedimentos especiais de despejo e dos processos para entrega de coisa imóvel arrendada, independentemente de se tratar da casa de morada de família ou não.
Deste modo, tendo ainda em conta o propósito do conjunto de medidas excepcionais e temporárias consagradas na Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, bem como a letra e a própria sistematização da al. b) do n.º 7 e do n.º 8, ambos do artigo 6.º-E, mais facilmente constatamos que estes dois preceitos dizem respeito a imóveis pertencentes ao executado ou ao insolvente, apreendidos nos respectivos processos de execução ou de insolvência, tendo em vista a sua venda e a subsequente satisfação dos créditos do exequente ou dos credores do insolvente. Mas enquanto a al. b) se aplica apenas quando está em causa a casa de morada do executado ou do insolvente, o n.º 8 aplica-se a quaisquer imóveis.
Neste sentido se pronunciou o acórdão proferido por este mesmo Tribunal e secção cível, datado de 27.04.2021 (proc. n.º 514/20.6T8VNG.P1), no qual se começa por afirmar que «esta lei excecional acolheu medidas (…) excecionais que visam proteger os interesses específicos relacionados com a “casa de morada de família.” Isto porque o legislador pretendeu evitar durante o regime excecional, que as famílias fiquem sem habitação (própria ou arrendada), para evitar a exponenciação de prolemas familiares e sociais e da especial vulnerabilidade de pessoas sem casa quanto aos perigos de contágio e disseminação do vírus. Com esse propósito o legislador criou um regime específico, também ele excecional, tendo em vista proteger a “casa de morada de família”, seja pertencente ao executado ou insolvente, seja de imóvel arrendado». Mais adiante acrescenta-se o seguinte: «O regime consiste no seguinte: A entrega de imóvel pertencente ao executado ou insolvente, e que constitua casa de morada de família, que haja sido vendido numa execução ou num processo de insolvência, é um ato que não pode praticar-se, sempre, isto é, seja qual for a situação concreta, enquanto durar o regime excecional de suspensão (ato abstrata e aprioristicamente proibido, que impõe a suspensão do ato de entrega da casa de morada de família), enquanto a entrega judicial de imóvel arrendado para habitação obedece a uma ponderação casuística, e não apenas abstrata, que não impõe, em regra, a suspensão do ato de entrega do locado), que ocorre incidentalmente no processo ou procedimento. A lei estabeleceu um regime excecional quando está em causa a entrega judicial de imóvel arrendado para habitação sujeitando a suspensão da diligência a uma ponderação casuística, e não apenas abstrata».
No mesmo sentido se pronunciou o ac. do TRG de 10.03.2022 (proc. n.º 2822/19.0T8VCT-A.G1), nos seguintes termos: «A leitura destas duas alíneas permite-nos, desde logo, concluir que, no que se refere à "casa de morada de família", a alínea c) constitui uma exceção à regra estabelecida na alínea b). Assim, em princípio, "no decurso da situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19", "ficam suspensos no decurso do período de vigência (…) [deste] regime excecional (…) os atos a realizar em sede de processo executivo (…) relacionados com a concretização de diligências de entrega judicial da casa de morada de família". Contudo, no caso de "execução da entrega do local arrendado, no âmbito das ações de despejo", os atos a realizar só ficam suspensos quando "o arrendatário (…) possa ser colocado em situação de fragilidade por falta de habitação própria ou por outra razão social imperiosa". Portanto, deve entender-se que, "no âmbito das ações de despejo", para beneficiar da suspensão da execução do despejo, mesmo que se trate da "casa de morada de família", cabe ao arrendatário o ónus de a requerer e de alegar e provar factos concretos e objetivos de onde resulte que, a concretizar-se a entrega do arrendado, ele ficará numa "situação de fragilidade por falta de habitação própria" ou que há uma "outra razão social imperiosa" que também justifica que, momentaneamente, não se realize tal entrega; a suspensão da entrega do local arrendado não opera automaticamente».
Voltando ao caso concreto, não restam dúvidas de que estamos perante uma execução para entrega de coisa imóvel arrendada, baseada numa sentença proferida no âmbito de uma acção de despejo, pelo que a situação em apreço se rege pelo disposto na alínea c), do n.º 7, do artigo 6.º-E, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, na redacção ainda actualmente vigente. Consequentemente, a suspensão dos actos de execução da entrega do imóvel apenas podia ter sido determinada depois a executada ter requerido essa suspensão, com fundamento na circunstância de essa entrega a poder colocar em situação de fragilidade por falta de habitação própria ou por outra razão social imperiosa e depois de o tribunal verificar o preenchimento deste circunstancialismo.
Já vimos que a executada começou por suscitar o incidente do diferimento da desocupação do local arrendado para habitação, ao abrigo do disposto nos artigos 863.º e seguintes do CPC. Mas, depois de o tribunal ter optado por suspender os actos de execução da entrega do imóvel ao abrigo do artigo 6.º-E, n.º 7, alíneas b) e c), da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, e de os exequentes terem vindo requerer a cessação dessa suspensão, a executada pronunciou-se pela sua manutenção, aduzindo os argumentos que, no seu entender, a justificam.
Não se questiona que, deste modo, a executada deu o necessário impulso processual. Mas porque a pretendida suspensão não opera automaticamente, nos termos anteriormente expostos, é necessário que o tribunal recorrido, depois de assegurar o contraditório relativamente aos argumentos esgrimidos pela executada e de produzir e/ou analisar a prova que se revelar pertinente, aprecie os factos e verifique se estão preenchidos os pressupostos legais da suspensão.
Impõe-se, nestes termos, anular a decisão recorrida e determinar que o tribunal a quo retome a tramitação do incidente, à luz do disposto no citado artigo 6.º-E, n.º 7, al. c), da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março.
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III. Decisão
Pelo exposto, anula-se a decisão recorrida e determina-se que o tribunal a quo, depois de assegurar o contraditório e de produzir a prova que considere pertinente, aprecie a verificação dos requisitos consagrados no artigo 6.º-E, n.º 7, al. c), da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, e profira nova decisão em conformidade com essa apreciação.
Custas pela recorrida.
Registe e notifique.
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Sumário (artigo 663.º, n.º 7, do CPC):
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Porto, 25 de Outubro de 2022
Artur Dionísio Oliveira
Maria Eiró
João Proença