Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
313/21.8T9MCN.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: PEDRO VAZ PATO
Descritores: CRIME DE ABUSO DE CONFIANÇA CONTRA A SEGURANÇA SOCIAL
CONDIÇÃO OBJECTIVA DE PUNIBILIDADE
PRINCÍPIO ACUSATÓRIO
CASO JULGADO FORMAL
Nº do Documento: RP20230607313/21.8T9MCN.P1
Data do Acordão: 06/07/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFERÊNCIA
Decisão: NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO INTERPOSTO PELO MINISTÉRIO PÚBLICO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – O princípio acusatório exige que da acusação constem os factos que consubstanciam os elementos objetivos e subjetivos que constituem o crime em causa, tal como exige que dela constem os factos que consubstanciam uma condição objetiva de punibilidade como a que está em apreço no caso vertente; a jurisprudência fixada pelo acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 1/2015 não tem aplicação direta neste caso, mas a razão que lhe subjaz, ligada às exigências desse princípio acusatório, tem.
II - Pelas razões que subjazem à jurisprudência fixada no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 1/2015 (razões que não se restringem à falta de menção dos factos que consubstanciam os elementos subjetivos que constituem o crime, a que diretamente se aplica tal jurisprudência, mas se estendem também, por identidade de razão, aos factos que consubstanciam os elementos objetivos que constituem o crime, assim como aos factos que consubstanciam uma condição objetiva de punibilidade como a que está em causa no caso vertente), não poderá o recurso à alteração de qualificação jurídica, ou à alteração não substancial de factos, prevista no artigo 358.º do Código de Processo Penal suprir essa falta; não estamos perante uma simples alteração de qualificação jurídica, pois está em causa a possibilidade de considerar um facto que não consta da acusação; e também não estamos perante uma alteração não substancial de factos: a eventual prova desse facto e sua consideração para o efeito de condenação faria com que à descrição de factos que consta da acusação, os quais, por si só, não constituem um crime punível, acrescesse um facto que, por si só, torna punível o crime em causa.
III – Só produz efeito de caso julgado formal a decisão que conheça especificamente de determinada questão, não uma decisão genérica sobre a verificação de pressupostos processuais e inexistência de nulidade e irregularidades como poderá ser a que é normalmente proferida nesses termos ao abrigo do disposto no artigo 311.º do Código de Processo Penal.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 313/21.8T9MCN.P1

Acordam os juízes, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto

I –O Ministério Público veio interpor recurso da douta sentença do Juízo Local Criminal de Marco de Canavezes do Tribunal Judicial da Comarca de Porto Este que absolveu “A... Lda.” do crime de abuso de confiança contra a Segurança Social agravado, p. e p. pelos artigos 6.º, 7.º 105.º, n.ºs 1 e 5, e 107.º, n.º 1, da Lei n.º 15/2001, de 5 de junho (R.G.I.T.), por que vinha acusada.

São as seguintes as conclusões da motivação do recurso:
1 Numa parte da sentença, proferida em 09-11-2022, lê-se que: “De facto, nada vem alegado na acusação quanto ao preenchimento da condição objectiva de punibilidade prevista no artigo 105.º, n.º 4, b), do RGIT, relativamente à sociedade arguida “A..., Lda.”.…
2 Perante a ausência de alegação na acusação quanto ao cumprimento da mencionada condição objetiva de punibilidade, temos que concluir, sem necessidade de maiores considerações,
que a acusação terá de improceder relativamente à sociedade arguida “A..., Lda.”.
3 Para tanto, citou jurisprudência, com a qual concordamos.
4 E, assim sendo, absolveu a sociedade arguida, quer do crime, quer da perda da vantagem criminal, condenando apenas o gerente AA.
5 Salvo o devido respeito, discordamos desta parte da sentença absolutória em relação à sociedade/arguida, por 10 razões.
6 Em primeiro lugar, a empresa/arguida foi notificada na pessoa do seu gerente. Isto existiu, na realidade. Aconteceu.
7 Em segundo lugar, a notificação da arguida/empresa para pagar (condição objetiva de punibilidade, prevista no artigo 105º, nº 4, al. b) do RGIT) está documentada no processo.
8 Em terceiro lugar, notificação em causa está alegada, de forma expressa, na acusação.
9 Em quarto lugar, a parte da sentença em crise violou o caso julgado formal.
10 Com efeito, num primeiro momento, no despacho de recebimento da acusação, em 03-06-2022, o M. Juiz decidiu, de uma forma expressa, que:
11- “A acusação do Ministério Público contém todos os elementos legalmente exigíveis (artigo 283.º, n.º 3, do Código de Processo Penal) e não se vislumbra, por outro lado, a presença de
qualquer causa de isenção de responsabilidade ou de extinção do procedimento criminal.
12- Pelo exposto, recebo a acusação pública deduzida pelo Ministério Público contra os arguidos “B..., Lda.” e BB, identificados nos autos,
pelos factos e disposições legais dela constantes, que aqui se dão por integralmente reproduzidos.”
13 Depois, num segundo momento, na parte da sentença ora recorrida, absolve-se a empresa arguida, porque falta, na acusação, a alegação da notificação da arguida/empresa para pagar.
14- Ora, a parte da sentença recorrida está em total contradição com o despacho de recebimento da acusação.
15- A parte da sentença recorrida está em total contradição com o despacho anterior de recebimento da acusação (que decidiu que a acusação – vide a este propósito Paulo Pinto de Albuquerque, in “Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem”, 3ª Ed. Atualizada, pág. 997, nota 1 –continha todos os fatos necessários para o crime), devendo prevalecer o primeiro.
16- É o que resulta da norma de processo civil aplicável subsidiariamente ao processo penal (vide antigo artigo 675º, nº 1 e 2 e atual 625º, nº 1 e 2 do CPC, ex vi artigo 4º do CPP).
17- Assim sendo, a sentença recorrida é nula, nesta parte, porque viola o caso julgado formal.
18- Em quinto lugar, não está em causa nenhuma nulidade insanável, esta nulidade estava dependente de arguição, pelo que o M. Juiz não podia conhecer dela, ex officio e absolver a arguida/empresa (artigos 118º e ss. do CPP).
19- Vide acórdão do tribunal da Relação de Évora, de 10-12-2009, in www.dgsi.pt e, ainda, os acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa, de 11-12-2008 e do Tribunal da Relação de Guimarães, de 18-02-2008, ambos in www.dgsi.pt e no site da PGDL, em anotação ao artigo 283º do CPP.
20- Vide, também, Paulo Pinto de Albuquerque, in “Comentário do Código do Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem”, pág. 744-5, notas 12 e 13.
21- E, ainda, Magistrados do Ministério Público do Distrito Judicial do Porto, in “Código do Processo Penal – Comentários e Notas Práticas”, pág. 716, nota 7 que diz que: “a nulidade de acusação é sanável…”
22- Nem a defesa, nem ninguém levantou questões ou dúvidas sobre a validade e eficácia da parte da acusação contra a arguida/empresa, menos o M. Juiz que, após diversas diligências desnecessárias e inúteis, operou uma decisão final surpresa, nesta parte, a favor da arguida/empresa, que absolveu, erradamente.
23- Em sexto lugar, mesmo que o M. Juiz entendesse assim (coisa com a qual não se concorda!!!), não havendo falta de dolo na acusação (pelo que não é aplicável o AUJ Nº 1/2015), deveria ter procedido a uma alteração da qualificação jurídica, não tendo sido observado, pois, o disposto no artigo 358º do CPP.
24- Em sétimo lugar, o mesmo M. Juiz, ao longo destes últimos 2/3 anos, decidiu de forma totalmente diferente a este caso, em situações semelhantes (mas de forma congruente, com as nossas acusações), mudando, agora, recente e subitamente, de opinião, entrando em frontal e total contradição com as suas decisões anteriores e muito recentes.
25- Vide, entre outros e por todos, os processos nºs - 311/21.1T9MCN (com sentença de 21-03-2022), - 138/20.8T9MCN (com sentença proferida 06-12-2021), - 65/20.9T9PRD (com sentença proferida 29-09-2021) e - 495/21.9IDPRT (com sentença proferida 03-05-2022), Todos consultáveis, no Citius.
26- Em oitavo lugar, feita uma pesquisa no Citius, desde 01-01-2018 até à presente data, o signatário fez 57 acusações semelhantes a esta, em toda a comarca do Porto Este (porque, nos anos de 2020 e 2021, esteve com a titularidade/responsabilidade de todos os inquéritos desta comarca do Porto Este, relativos a este tipo crime de abuso de confiança contra a segurança social.
27- Todos os outros 55 casos idênticos a este, foram julgados e decididos, nos 8 municípios desta comarca do Porto Este, por diversos juízes (mais de uma dezena!), sem que nenhum deles
tivesse levantado este problema e decidido desta forma (absolvição da empresa), da qual se recorre.
28- Todos eles (os 55 casos), consultáveis no Citius, vide a título exemplo, processos nºs: 311/21.1T9MCN (com sentença de 21-03-2022), 138/20.8T9MCN (com sentença proferida 06-12-2021), 65/20.9T9PRD (com sentença proferida 29-09-2021), 495/21.9IDPRT (com sentença proferida 03-05-2022), deste município/núcleo (juízo local criminal de Marco de Canaveses), - 273/20.2T9MCN (juízo local criminal de Lousada), - 12/20.8T9MCN, 13/20.6T9MCN, 213/20.9T9MCN e 215/20.5T9PRD (juízo local criminal de Penafiel), - 14/20.4T9MCN, 60/20.8T9MCN e 71/20.3T9MCN (juízo local criminal de Paredes), - 46/20.2T9AMT e 74/20.8T9PRD (juízo local criminal de Amarante) e - 31/20.4T9MCN, 5/20.5T9PRD, 57/20.8T9PRD, 61/20.6T9MCN e 171/20.0T9MCN (juízo local criminal de Felgueiras).
29- Em nono lugar: tendo, consequentemente, a sentença, nesta parte recorrida, violado as normas dos artigos 110º do CP, 577º, 580º, 581º, 582º, 619º, 620º e 625º do CPC, ex vi artigo 4º do CPP, 118º a 121º, e 311º a 313º e 358º do CPP, 6.º, 7.º, 105.º, n.º 1 e 5, e 107.º, n.º 1, estes da Lei n.º 15/2001 de 5 de junho (RGIT), o que se peticiona que se reconheça.
30- Em décimo e último lugar: devendo, pois, o presente recurso ser julgado procedente e, por via disso, determinar-se em conformidade com as conclusões que antecedem, designadamente revogar-se a parte da sentença recorrida que absolveu a sociedade arguida e ser proferido douto acórdão, julgando a mesma responsável criminalmente e condenando-a pela prática de um na pena que o tribunal considerar justa e adequada, pela prática de um crime de abuso de confiança contra a segurança social, previsto e punido nas normas dos artigos 6.º, 7.º, 105.º, n.º 1 e 5 e 107.º, n.º 1, todos da Lei n.º 15/2001 de 5 de Junho (RGIT) e ainda na declaração de perda a favor do Estado da vantagem criminal até ao valor da dívida (artigo 110º do CP).»

A arguida não apresentou resposta a essa motivação.

O Ministério Público junto desta instância emitiu douto parecer, alegando o seguinte:
«(…)
Atento o teor da decisão recorrida e considerando a motivação e conclusões do recurso do MP, com todo o respeito devido à posição do magistrado subscritor, sou de parecer que o mesmo não merece provimento, salvo na hipótese remota que infra se suscitará acerca da nulidade da sentença por omissão de pronúncia, nos termos do artigo 379º, n.º 1, al. c), do CPP, de harmonia com as seguintes breves considerações:
É verdade que o juiz a quo pode ter incorrido num rigor interpretativo exagerado e desfasado do texto da acusação pública deduzida pelo MP no dia 17 de março de 2022 (referência 88257854), quando apreciado na sua globalidade, quanto à descrição da condição objetiva de punibilidade relativa à sociedade arguida, tal como prevista no artigo 105º, n.º 4, al. b), do RGIT, considerando que o seu texto se refere exclusivamente ao arguido, enquanto pessoa singular e gerente de facto da sociedade.
Com efeito, o que os autos demonstram é que o arguido, ele na sua pessoa e enquanto representante legal da sociedade arguida, foi expressamente notificado por elementos do Posto da GNR ..., na qual essa diligência foi deferida/pedida pelo MP, para efetuar o pagamento do montante em dívida à Segurança Social no prazo de 30 dias, no dia 14 de fevereiro de 2022, conforme atestam os pertinentes termos e demais documentos elaborados por aquele OPC, com a referência 87769656, remetidos ao processo por ofício de 28 de fevereiro de 2022, com o n.º 00247/22[1].
E também é verdade que o texto da acusação, no seu todo, interpretado segundo um declaratário colocado em posição idêntica à dos arguidos e do juiz, recorrendo ao elemento sistemático de interpretação, conjugado com o elemento gramatical, possibilitaria ao tribunal afirmar a verificação e preenchimento daquela condição relativamente a ambos os arguidos, pessoa singular e coletiva, em nome e em representação de quem aquele sempre atuou, tendo mesmo integrado no património societário as quantias retidas e não entregues à Segurança Social.
Todavia, no caso dos autos, para além da questão da legalidade e validade daquela representação para efeitos da notificação para pagamento das quantias em dívida à Segurança Social, nos termos impostos pela referida condição objetiva de punibilidade, em face do texto do artigo 57º do CPP, introduzido pela Lei n.º 94/2021, de 21.12, à data em vigor, uma vez que essa redação só foi revogada e repristinada a anterior, em momento posterior à questionada notificação, pela Lei n.º 13/2022, de 01.08, a verdade é que a sentença, como se explana e fundamenta na parte correspondente à absolvição da sociedade arguida, é, em termos de facto, completamente omissa relativamente à verificação de tal condição objetiva de punibilidade, pelo que todas as considerações de direito que se pudessem fazer em redor da opção do juiz serão irrelevantes, por inócuas, quanto à modificabilidade da decisão recorrida no segmento impugnado.
Efetivamente, para além de não se acompanhar a argumentação do magistrado recorrente no que à violação do caso julgado formal respeita, ainda que se admitisse a tese por ele sufragada quanto à vinculação do juiz do julgamento ao sentido da decisão saneadora proferida nos termos do artigo 311º do CPP, no caso em apreço não se verifica a identidade requerida pelo caso julgado, uma vez que a sentença não decretou a nulidade da acusação, em sentido contrário com o daquele prévio despacho, antes se limitando a absolver a sociedade arguida por não constar da acusação a sua verificação ou não, razão pela qual se absteve de considerar essa matéria provada ou não provada, nos termos que explicita ao longo da fundamentação dessa parte da decisão.
Se assim é, não ocorrendo a violação do caso julgado, tão pouco podendo dizer-se que a decisão se configura, nessa parte, como uma verdadeira decisão surpresa, para o que não é legítimo convocar posições próprias ou alheias anteriores de diferente sentido, pois o direito não é em regra claro, como devia ser, e deve ser aplicado em função dos factos relativos a cada caso concreto, se bem vemos as coisas, o recurso da matéria de direito impunha que, antes dela, se impugnasse também a matéria de facto provada e não provada, pois se esta se mantiver inalterada, impossível se torna qualquer modificação de direito quanto à absolvição da arguida sociedade.
Salvo se, como acima aventado, se considerar que a referida abstenção de pronúncia na fundamentação de facto da sentença sobre a verificação ou não da condição objetiva de punibilidade relativamente à sociedade arguida consubstancia uma verdadeira omissão de pronúncia sobre questão que o tribunal tinha de apreciar, fazendo-a incorrer em vício gerador da respetiva nulidade, nos termos do artigo 379º, n.º 1, al. c), do CPP, nulidade que, sendo do conhecimento e declaração oficiosa pelo tribunal de recurso2, implicaria a sua revogação parcial e reenvio à primeira instância para pronúncia sobre tal questão na fundamentação de facto.»

Colhidos os vistos legais, foram os autos à conferência, cumprindo agora decidir

II – A questão que importa decidir é. de acordo com as conclusões da motivação do recurso, a de saber se a arguida “A..., Ldª” deverá, ou não, ser absolvida do crime de abuso de confiança fiscal contra a Segurança Social agravado, por que vinha acusada, por não constar da acusação a referência à notificação dessa sociedade que é condição objetiva de punibilidade nos termos do artigo 105.º, n.º 4, b), do R.G.I.T..

III - Da fundamentação da douta sentença recorrida consta o seguinte:

«(…)
De facto, nada vem alegado na acusação quanto ao preenchimento da condição objectiva de punibilidade prevista no artigo 105.º, n.º 4, b), do RGIT, relativamente à sociedade arguida “A..., Lda.”. Daí que tal matéria não tenha sido vertida para os factos provados.
Ora, conforme decidido pelo Tribunal da Relação de Évora, em Acórdão de 24.09.2013, cujo excerto encontra-se na Jurisprudência associada ao artigo 105.º do RGIT, sob o n.º 22, disponível na página www.pgdl.pt:
«1. Não contendo a acusação todos os elementos que permitam a condenação do arguido, incluindo a condição objectiva de punibilidade prevista na alínea b) do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT, na redacção introduzida pela Lei n.º 53 -A/2006 (Acórdão de fixação de jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça n.º 6/2008), a acusação é manifestamente improcedente e, assim, adequado o uso do artigo 311º, nº 1, al. a) e 3, al. d) do Código de Processo Penal e sua consequente rejeição.
2. Cabe ao poder executivo, isto é, á administração, qualquer que ela seja, proceder a tal notificação antes de o processo ser enviado para tribunal. Assim, verificada a necessidade de se proceder á notificação a que se refere a alínea b) do n.º 4 do artigo 105º do RGIT, e ordenada a dita notificação, o processo deverá esperar o decurso de tal prazo de 30 dias.
3. Só depois disso se deverá passar á fase posterior, ou seja, deduzir acusação. E isto porque se, como afirma Jescheck, «as condições objectivas de punibilidade comungam de todas as garantias do Estado de Direito, estabelecidas para os elementos do tipo», a sua existência, a sua verificação, tem que constar da acusação.» - relevo acrescentado.
Acresce que a alegação da notificação do arguido não equivale à alegação da notificação da sociedade arguida na pessoa do arguido, desde logo porque tais notificações são distintas e devem ser feitas de forma autónoma. Ou seja, o arguido que seja sócio gerente de uma sociedade que também é acusada, deve ser notificado não só em termos individuais, mas igualmente na qualidade de legal representante da sociedade arguida. A este propósito, leia-se o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 26.02.2014, processo n.º 6319/11.8IDPRT.P1, e o Acórdão da Relação de Coimbra, de 11.10.2017, processo n.º 2500/15.9T9CBR.C1, ambos disponíveis em www.dgsi.pt, onde se pode ler:
«(…) a notificação prevista na alínea b) do nº 4 do art. 105º do RGIT deve ser feita ao ente colectivo, à sociedade, na pessoa dos seus gerentes ou administradores, nesta mesma qualidade, e também, aos gerentes e administradores, agora na qualidade de pessoas singulares e portanto, fora daquela veste estatutária ou seja, a notificação referida deve ser feita a todos os sujeitos processuais que tenham a qualidade de arguido.» - relevo acrescentado.
Cumpre ainda referir que a ausência na acusação da falta do facto relativo ao cumprimento, quanto à sociedade arguida, da realização da notificação nos termos e para os efeitos do artigo 105.º, n.º 4, alínea b), do RGIT, não pode ser debelada com recurso a uma alteração substancial ou não substancial dos factos – neste sentido, leia-se, o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 23.10.2017, processo n.º 1418/07.3TAVCT.G1, disponível em www.dgsi.pt, onde está sumariado:
«I) Não constando da sentença e anteriormente da acusação deduzida logo após a entrada em vigor do Ac. de Uniformização de Jurisprudência nº 6//2, publicado na 1ª Série do DR de 15/5/2008, a condição objetiva de punibilidade (notificação do arguido para pagamento de dívida fiscal, no prazo de 30 dias), impõe-se concluir pela absolvição do recorrente da prática do crime de abuso de confiança dos artºs 107º e 105º, do RGIT, de que vinha acusado.
II) Com efeito e neste caso, não seria possível debelar a falta, pelo recurso aos mecanismos da alteração substancial ou não substancial de factos (arts.º 359º e 358º C.P.P.).»
Podendo ler-se no corpo do texto:
«Com efeito, os arts.º 358º e 359º C.P.P. pressupõem que, antes da alteração, se esteja ainda na presença de um crime. É que a alteração não substancial de factos pressupõe uma alteração ou concretização de factos, mas num tipo de crime já existente e que persiste. A alteração substancial de factos, prevista no art.º 1º/f, C.P.P., pressupõe que um novo facto altere o tipo de crime imputado ou a agravação dos limites máximos da sanção aplicável.
Ora, o que sucede é que, neste momento e sem a mencionada condição objetiva de punibilidade, os factos constantes da acusação não constituiriam crime. E, os mecanismos processuais ínsitos aos arts.º 358º e 359º C.P.P. não são uma forma de criminalizar condutas, mas de alterar o tipo ou crime em sentido fáctico, já indiciado. O que não sucede, no caso dos autos.
Ou seja: à factualidade constante dos autos não pode acrescentar-se-lhe a citada condição objetiva de punibilidade, nem através das comunicações a que aludem os arts.º 358º e 359º C.P.P.
Isto, não obstante parecer a mesma preenchida, como já se descreveu supra.
(…)
De qualquer forma, a acusação deve conter os factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança (art.º 283º/3 C.P.P.); porém, isso não sucede no caso dos autos, por ausente da narrativa a citada condição objetiva de punibilidade, aplicável via confronto de regimes para aplicação do mais favorável, como se determinou no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 6/2 008. Estamos assim, perante irregularidade, que afeta o valor do próprio ato – no caso, a acusação.
Mas que, como se disse se não subsume a nulidade da acusação, sendo que mesmo na afirmativa estaria sanada pelo decurso do prazo (arts.º 283º/3, 120º e 121º C.P.P.).
Pelo que e porque a citada irregularidade não pode, pelo que se disse, ser ultrapassada pelo disposto nos arts.º 358º e 359º C.P.P., deve a mesma levar à improcedência da acusação e assim, à absolvição do arguido – cfr. o citado Acórdão da Rel. de Lisboa, de 1 /10/2008.» - relevo acrescentado.
Neste sentido ainda o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 20.09.2017, processo n.º 417/15.6IDPRT.C1, o Acórdão da Relação de Évora, de 24.09.2013, processo n.º 53/11.6TASRP.E1, de 05.07.2016, processo n.º 186/13.4TATMR.E1, de 10.12.2013, processo n.º 67/11.6TASRP.E1, de 16.12.2021, processo n.º 31/18.4T9CTX.E1, disponíveis em www.dgsi.pt.
No Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 25.10.2016, processo n.º 650/12.2IDFAR.E1, relator Gomes de Sousa, disponível em www.dgsi.pt, pode ler-se:
«É certo que a Digna magistrada recorrente defende a ideia contrária aos acórdãos desta Relação de Évora de 24-09-2013 e 05-07-2016 (nosso relato) e de 10-12-2013 (Sénio Alves). E defende diversa posição com argumentos já ponderados e, sempre, em sede substantiva a que pretende atribuir um significado processual de “insignificância” à falha factual, como se coubesse, naturalmente, ao tribunal suprir os vícios e insuficiências da administração fiscal, das acusações deduzidas, como se o nosso Código de Processo Penal consagrasse um processo inquisitório - É claro que estas reminiscências inquisitórias, muito presentes ainda na nossa praxis judicial, chegaram ao ponto extremo de exigir que os tribunais se substituíssem à administração fiscal – e ao Ministério Público – na notificação dos arguidos para a verificação da dita condição, o que apenas revela um profundo distanciamento daquilo que é a essência do processo acusatório. (…) a essência da nossa posição assenta na óbvia necessidade de confrontar o arguido com a verificação de condições objectivas de punibilidade essenciais à sua punição no momento em que é deduzida a acusação.
E só espantaria que, dispondo os autos dos elementos necessários para incluir tal ou tais condições no teor da acusação, se fizesse gala de os não fazer constar por serem elementos de nenhum relevo na punibilidade da conduta, ou cientes de que um tribunal judicial pode fazer as vezes de Ministério Público na correcção e suprimento das suas acusações, como se o acusatório que enforma o nosso C.P.P., por comando constitucional, pudesse ser afastado de vez em quando para avivar as reminiscências inquisitórias do C.P.P. de 1929.
Ou, numa diversa formulação mais terra a terra, o regime dos ditos preceitos processuais serve para suprir as deficiências das acusações? Porque, é bom ter presente, o regime dúplice da alteração factual contido naqueles preceitos supõe o surgimento de “factos novos” em audiência de julgamento que não constam da acusação por serem desconhecidos – e naturalmente desconhecidos - quando esta foi deduzida.
É, assim, uma corruptela aproveitar tal regime de “factos novos” que surgem em audiência para permitir a descuido ou lapso acusatório quanto a factos conhecidos quando se deduziu acusação, sempre acobertada pela possibilidade de ir cobrindo omissões, fazendo tabula rasa dos princípios do acusatório e do contraditório.»
Considerando o acima transcrito, com o que se concorda, e em linha com o que já foi referido, perante a ausência de alegação na acusação quanto ao cumprimento da mencionada condição objetiva de punibilidade, temos que concluir, sem necessidade de maiores considerações, que a acusação terá de improceder relativamente à sociedade arguida “A..., Lda.”.
(…)»

IV – Cumpre decidir.
Vem o recorrente (Ministério Público) alegar que a arguida “A..., Ldª” não deverá ser absolvida do crime de abuso de confiança fiscal contra a Segurança Social agravado, por que vinha acusada, por não constar da acusação a condição objetiva de punibilidade a que se reporta o artigo 105.º, n.º 4, b), do R.G.I.T.. Alega que tal notificação efetivamente ocorreu e que a ela se faz referência na acusação. Alega que, mesmo que assim não se entenda, estamos perante a violação do caso julgado formal (de onde decorre a nulidade da sentença), pois a acusação havia sido anteriormente recebida sem que tal questão tenha sido suscitada. Alega que a falta de referência a tal notificação (notificação que constitui condição objetiva de punibilidade) não configura (como não configuram as nulidades da acusação em geral) nulidade insanável, pelo que, neste caso, já estaria sanada. Alega que essa falta poderia ser suprida por uma alteração de qualificação jurídica, nos termos do artigo 358.º do Código de Processo Penal, pois não se aplica a este caso a jurisprudência fixada pelo acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 1/2015 (segundo a qual, a falta de descrição dos elementos subjetivos do crime não pode ser integrada por recurso ao mecanismo previsto no artigo 358.º do Código de Processo Penal)), uma vez que não se verifica a falta de menção de factos que consubstanciam o dolo. Alega, por último, que em várias situações em tudo semelhantes à que está em apreço (nos processos que indica), o Mº Juiz que proferiu a sentença recorrida, assim como outros Mºs Juízes do Tribunal da Comarca de Porto Este decidiram em sentido contrário ao dessa sentença.
Vejamos.
Há que afirmar, desde já, que não será, obviamente, a circunstância de nalgum, ou em vários processos se ter decidido (pelo mesmo, ou por outros juízes) em sentido contrário ao da sentença recorrida que poderá justificar o provimento do recurso, ou sequer que para tal provimento contribuirá, entre outras razões, essa circunstância.
Não está em causa saber se a notificação em causa efetivamente ocorreu, ou não. Está em causa saber se a ela se faz referência na acusação. E, na verdade, essa referência não consta da acusação. Da acusação consta apenas a notificação do arguido AA
Essa referência na acusação a um facto que consubstancia uma condição objetiva de punibilidade é uma exigência do princípio acusatório, tal como é a referência na acusação aos factos que consubstanciam o dolo, se estivermos perante um crime doloso. Esse princípio exige que da acusação constem os factos que consubstanciam os elementos objetivos e subjetivos que constituem o crime em causa, tal como exige que dela constem os factos que consubstanciam uma condição objetiva de punibilidade como a que está em apreço no caso vertente. A jurisprudência fixada pelo acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 1/2015 não tem aplicação direta neste caso, mas a razão que lhe subjaz, ligada às exigências do princípio acusatório, tem.
Por isso mesmo, pelas razões que subjazem à jurisprudência fixada no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 1/2015 (razões que não se restringem à falta de menção dos factos que consubstanciam os elementos subjetivos que constituem o crime, a que diretamente se aplica tal jurisprudência, mas se estendem também, por identidade de razão, aos factos que consubstanciam os elementos objetivos que constituem o crime, assim como aos factos que consubstanciam uma condição objetiva de punibilidade como a que está em causa no caso vertente), não poderá o recurso à alteração de qualificação jurídica, ou à alteração não substancial de factos, prevista no artigo 358.º do Código de Processo Penal suprir essa falta. Não estamos perante uma simples alteração de qualificação jurídica, pois está em causa a possibilidade de considerar um facto que não consta da acusação. E também não estamos perante uma alteração não substancial de factos: a eventual prova desse facto e sua consideração para o efeito de condenação faria com que à descrição de factos que consta da acusação, os quais, por si só, não constituem um crime punível, acrescesse um facto que, por si só, torna punível o crime em causa.
Também por exigência do princípio acusatório, e por maioria de razão, é de excluir a possibilidade de sanação de uma eventual nulidade da acusação em causa. É óbvio que não poderá ser sanada uma pretensa nulidade da acusação por desta constarem factos que, por si só, não constituem um crime, ou não constituem um crime punível. Se assim fosse, também não teria sentido a jurisprudência fixada no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 1/2015.
Quanto à alegação de que estaríamos perante a violação do caso julgado por a acusação ter sido anteriormente recebida (sendo que não o deveria ter sido, nos termos do artigo 311.º do Código de Processo Penal, por os factos dela constantes não constituírem um crime punível), há que evocar a jurisprudência que uniformemente vem afirmando que só produz efeito de caso julgado formal a decisão que conheça especificamente de determinada questão, não uma decisão genérica sobre a verificação de pressupostos processuais e inexistência de nulidade e irregularidades como poderá ser a que é normalmente proferida nesses termos ao abrigo do disposto no artigo 311.º do Código de Processo Penal. Se assim fosse, também não teria sentido a jurisprudência fixada no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 1/2015.
Deverá, assim, ser negado provimento ao recurso.
Sobre esta mesma questão, e respondendo neste mesmo sentido aos mesmos argumentos, pode ver-se o recente acórdão desta Relação de 3 de maio de 2023, proc. n.º 209/21.3T9MCN.P1, relatado por Paulo Costa, o qual remete para o acórdão da Relação de Coimbra de 20 de setembro de 2017, proc. n.º 417/15.6IDPRT.C1, relatado por Alice Santos (ambos acessíveis em www.dgsi.pt).

Não há lugar a custas (artigo 522., n.º 1, do Código de Processo Penal).

V – Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público, mantendo a douta sentença recorrida.

Notifique.

Declaração de voto comum da I Adjunta e do II Adjunto:

Apesar da notificação do Arguido em 23-9-2021 pela SSP e 14-4-2022 pela GNR e da Arguida em 14-2-2022 pela GNR nos termos e para os efeitos do art 105-4-b do RGIT por que se encontra verificada a condição objectiva de prosseguibilidade deste processo tributário criminal penal prevista na parte final daquela disposição legal e que não carece de expressa alegação a se por se tratar de questão atinente ao "avanço" daquele procedimento,

Vota-se a decisão por não ser possível julgar-se ad quem provado desde logo no § 5 que «Até à presente data e apesar de notificados o Arguido em 23.09.2021 e 14-4-2022 e a Arguida em 14-2-2022, nos termos e para os efeitos do art. 105º, nº 4, al b) do RGIT, o arguido AA não fez a Arguida A... Lda regularizar a situação com a previdência e nada pagou à Segurança Social Portuguesa, encontrando-se a Segurança Social patrimonialmente lesada no correspetivo montante», por forma a se poder julgar ad quem verificada a condição objectiva de punibilidade da I parte do art 105-4-b do RGIT, porque:

O MP acusou, ao ora importa, apenas que «Até à presente data e apesar de notificado pela Segurança Social em 14 FEV 2022, nos termos e para os efeitos do art. 105º, nº 4, al b) do RGIT, o arguido não regularizou a situação com a previdência e nada pagou à Segurança Social Portuguesa e recusa-se a satisfazer as suas obrigações contributivas em dívidas, encontrando-se a Segurança Social patrimonialmente lesada no correspetivo montante»;

Assim, ou se entendia em função da data que adiante se disse mal «o arguido» em vez de se dizer «a Arguida», ou se corrigia a data para 23-9-2021 / 14-4-2022 congruentemente com «o arguido» como bem foi a opção do Tribunal a quo pela singela mas decisiva razão que a «figura central» do sobredito § da Acusação é o Arguido AA e não a Arguida A..., Lda;

A/final, como o MP do Inquérito nunca alegou a sobredita condição objectiva de punibilidade relativamente à Arguida, não pode este TRP julgá-la provada apesar de documentada sob pena de "arvorar" a acusada «conduta atípica» numa «conduta típica» mediante a introdução no § 5 do rol de factos provados dos factos indispensáveis à verificação daquela condição, o que perpassaria pela utilização do instituto processual penal da «alteração substancial dos factos» do art 359 do CPP quando na instância recursiva só é possível efectuar-se «alteração não substancial dos factos» ut art 424-3 do CPP.

Porto, 7 de junho de 2023
(processado em computador e revisto pelo signatário)
Pedro Vaz Pato
Eduarda Lobo
Castela Rio
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[1] Embora num desses termos, por manifesto lapso, se tenha aposto a data de 14 de abril de 2022, o que, em face da data do ofício se revela física e temporalmente impossível.