Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1867/17.9T8PRD-L.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOSÉ EUSÉBIO ALMEIDA
Descritores: PROCESSO DE PROMOÇÃO E PROTEÇÃO
MEIO DE PROVA
GRAVAÇÃO
ACTO ILEGAL
Nº do Documento: RP202306261867/17.8T8PRD-L,P1
Data do Acordão: 06/26/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: RECURSO IMPROCEDENTE; DECISÃO CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A gravação de conversas entre pai e filha menor, feitas por esta sem o consentimento daquele, constitui um ato ilegal e, em abstrato, criminoso.
II - Essa gravação só excecionalmente deve ser admitida como prova e quando não seja de todo possível produzir outros meios de prova a respeito, designadamente da jovem, o que afasta a conclusão no sentido da ocorrência de um “estado de necessidade probatório”.
III - O deferimento da junção de uma gravação, correspondente à prática de um ato ilegal (e, em abstrato, criminoso) feita pela filha dos progenitores em conflito, está longe de representar, pelo menos num juízo prognóstico, o dever de cautela e a salvaguarda do interesse no seu crescimento responsável, o que também deve ser ponderado.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 1867/17.9T8PRD-L.P1

Recorrente – AA

Relator: José Eusébio Almeida; Adjuntos: Carlos Gil e Mendes Coelho.

Acordam na 3.ª Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto:

I – Relatório
AA, progenitora da BB (e ora recorrente), a 16.01.2023, formulou nos autos de promoção e proteção (apenso C) o seguinte requerimento:
“1. Por diversas vezes, a menor BB tentou por palavras suas de que era vítima de violência doméstica, de agressividade psicológica e física por parte do seu progenitor.
2. No entanto, NINGUÉM ACREDITOU NELA!
3. Até mesmo o DIAP de Amarante, que arquivou o processo alegando que o depoimento da ofendida não era credível.
4. Pois bem, a jovem decidiu gravar, apenas TRÊS dias, dos convívios com o pai, - conforme estabelecido pela medida provisória de apoio juntos dos pais a executar juntos de ambos.
5. E bastam tão só estas conversas de três dias – dias 10, 18 e 21 de dezembro de 2022 – e as ouvir atentamente para se chegar à conclusão de que a BB é vítima de violência doméstica.
6. Note-se que, como resulta da lei, no dia 12 de janeiro de 2023, a representante da Ofendida requereu a Abertura de Instrução do Processo-Crime n.º 114/22.6GBAMT, juntando as ditas gravações que seguem em anexo, como Doc.1, Doc. 2 e Doc. 3 Doc.
7. No entanto, dado o CARÁTER URGENTE, requer-se a V.Exa. seja, de imediato, decretada a suspensão da medida provisória, determinada em 07 de outubro de 2022, ou seja, na próxima, quarta-feira.
8. E, só se procede à notificação da defensora oficiosa da aqui menor, BB, como claro está, por se tratar de uma denúncia ao progenitor, o que certamente o Tribunal tomará, atempadamente, as devidas medidas necessárias e legais relativamente ao mesmo”.

Depois de determinado que fosse cumprido o contraditório (que havia sido expressamente incumprido, conforme se anunciava no ponto 8 do requerimento antes transcrito), o progenitor da BB, a 9.02.2013, veio responder: “(...)
4.- Desta forma, o Progenitor entende que não há qualquer fundamento para o requerido pela Progenitora.
5.- Quanto à alegada prova junta, não pode a mesma ser mais ilegal!
6.- O aqui Progenitor não consentiu nem autorizou a captação, gravação e produção da sua voz, pelo que tal registo de áudio é uma prova absolutamente admissível, ou se quisermos ser rigorosos é uma prova relativamente inadmissível pois coloca em causa os direitos a que se referem o art. 417.º, n.º 3 al. b) do CPC, referidos na segunda parte do art. 38.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa, designadamente aqueles que consubstanciam uma intromissão da vida privada ou familiar, no domicilio, na correspondência ou nas telecomunicações.
7.- Assim, a recolha das referidas gravações colide com o direito fundamental do Progenitor à vida privada e a sua recolha áudio não foi consentida previamente, pelo que não pode ser considerada.
8.- E, ainda que assim não se entendesse, o que aqui não se consente, sempre a mesma não manifesta se não um ensaio orquestrado para tentar demonstrar uma realidade que a Progenitora a todo o custo quer ficcionar, e que aqui não se admite nem consente – que o Progenitor é violento com a menor.
9.- Veja-se quem junta as gravações é a Progenitora e não a menor BB que tem Ilustre Patrona mandata nos autos – o que aqui se evidencia mais uma vez a tentativa constante da Progenitora afastar a BB do pai, apoiando e manifestando nos autos essa constante atitude de afastamento entre pai e filha.
10.- Pelo que do exposto, e caso tais documentação áudio seja considera sempre se requererá a produção de prova testemunhal e documental bastante e que se protesta juntar e arrolar, para provar do contrário.
11.- Do exposto se requer que se dê sem qualquer efeito e se indefira tal requerimento por ausência de qualquer fundamento factual ou legal.”

A 13.02.2023 o Ministério Público pronunciou-se e promoveu: “Concordando-se na íntegra pelo alegado pelo progenitor, constatamos, desde logo, inexistirem quaisquer fundamentos para coartar as visitas ao progenitor, pelo que se deve indeferir a requerida suspensão. Com efeito, as gravações juntas para além de serem manifestamente ilegais, apenas comprovam que urge aplicar medida de promoção e proteção distinta da medida cautelar aplicada de apoio junto da mãe, uma vez que, basta a sua audição para apurar que se tratou de uma tentativa gorada de desestabilização do progenitor, devidamente orquestrada pela menor, certamente, instruída por um adulto. O comportamento adotado pela jovem nessa gravação é inadmissível. Na verdade, entendemos que a situação descrita se enquadra nas situações de perigo previstas na LPCJP no seu artigo 3.º, n.º 2, alíneas b), c) e e), revelando-se a medida cautelar aplicada como desajustada face aos seus comportamentos. Desde modo, urge aplicar medida cautelar distinta, de apoio junto dos pais, no caso junto do pai, nos termos já aduzidos na ata de 07.10.2022, para o qual se remete e se dá por reproduzido e que tudo leva a crer ter merecido acolhimento do Tribunal da Relação do Porto, nos termos combinados dos artigos 37.º, 35.º, n.º 1, f), e 49.º, da Lei n.º 147/99, de 01/09 (...)”.

Por requerimento de 16.02.2023, a progenitora veio alegar e requerer:
“1. O Processo de promoção e proteção da menor BB foi aberto em 24 de setembro de 2019.
2. Em 15 de março de 2020 foi aplicada a medida de apoio junto dos pais, a executar na pessoa da progenitora, acautelando os períodos de convivência com o progenitor (almoço às quartas-feiras) com acompanhamento regular da segurança social.
3. Em 27 de outubro de 2021, foi alterada a medida para apoio junto dos pais, a executar junto de ambos, com a duração de seis meses com fixação de regime de convívio do progenitor com a menor aos fins de semana alternados, de quinta a segunda-feira e para evitar mais desentendimentos a entrega e recolha da menor seriam realizadas na escola, sem intervenção da progenitora.
4. Em 12 de janeiro de 2022, foi aplicada a medida de apoio junto dos pais, a ser executada junto do pai e da mãe, nas semanas em que estiver com cada um dos progenitores, alternada e semanalmente, pelo prazo de seis meses.
5. Em 03 de agosto de 2022, foi aplicada a medida de apoio junto dos pais, ficando a menor a residir com a progenitora e convivendo com o progenitor, com o apoio dos tios paternos.
6. Em 07 de outubro de 2022, foi decretada a medida provisória de apoio junto dos pais a executar junto de ambos, nos mesmos termos em que foi já determinado em 03 de agosto de 2022, mantendo-se até à presente data.
7. Sucede que, o art. 60.º n.º 2 do LPCJP consigna que cada uma das medidas referidas no art. 35.º n.º 1 al. a), b), c) e d) não podem ter duração superior a um ano, podendo, todavia, ser prorrogadas até 18 meses.
8. O processo especial de proteção e promoção da menor iniciou-se a 24 de setembro de 2019, datando a medida aplicada – apoio junto dos pais [al.a) do n.º 1 do art. 35.º da LPCPJ] – de 15 de março de 2020, pelo período de doze meses, com novos figurinos por diversos períodos de seis meses, vigorando até à presente data.
9. Atento ao lapso de tempo das medidas de proteção e promoção aplicada, cumpre concluir que extravasou largamente o prazo máximo 18 (dezoito) meses, previstos por lei – considerando as suas prorrogações, nos termos do art. 63.º n.º 1 al. a) da LPCJP.
10. Pelo que, a revisão da medida há muito que se encontra caducada, por via do decurso do tempo a que a lei associa o efeito extintivo.
Neste sentido, requer-se a V. Exa. declare cessada, por caducidade, a medida de proteção e promoção da menor, BB decretada, devendo prosseguir de imediato e com máxima urgência, o debate judicial.
A/ DA JUNÇÃO DA PROVA:
11. A progenitora vem requerer, nos termos do art. 423.º n.º 2 do CPC ex vi 126.º do LPCJP, a junção dos áudios que foram juntos com o requerimento n.º 44400091 e 44405271, às alegações por si apresentadas em 17 de outubro de 2022, com referência 43587748.
12. A progenitora não ofereceu tal prova aquando das suas alegações, pois que teve apenas conhecimento das mesmas posteriormente, mais concretamente em dezembro de 2022.
13. Importa realçar que as ditas provas devem ser admitidas enquanto meio de prova, não obstante, de forma abstrata tratar-se de prova ilícita e proibida, pois foram obtidas, mediante abusiva intromissão na vida privada do progenitor, mas a verdade é que os factos expostos nas ditas gravações são demasiado graves, podendo a atuação do progenitor colocar em risco e perigo a BB.
14. Devendo este douto tribunal, face á especial vulnerabilidade da menor, atenta a sua jovem idade, considerar ocorrer a restrição da reserva sobre a intimidade da vida privada, nos termos doa art. 80.º do Código Civil (CC) e que tal restrição não se mostre desproporcional ao direito que se pretende alcançar, qual seja o superior interesse da criança estabelecido no art. 3.º n.º 2 da CONVENÇÃO DO DIREITOS DA CRIANÇA.
15 .Assim sendo, não obstante a ilicitude na obtenção dos meios de prova pela menor, por contenderem com a intimidade da vida privada do aqui Requerido, já que as gravações áudio foram realizadas pela BB á sua revelia, sem o consentimento ou conhecimento do mesmo, o Tribunal deverá, ponderando as circunstâncias concretas do caso, nomeadamente os interesses em conflito, entender prevalecer o superior interesse da criança, admitindo tais gravações.1
16. E não se diga que, ao abrigo da cooperação para a descoberta da verdade, seja legítimo ao Requerido a recusa, nos termos do art. 417.º n.º 3 al. b) do CPC, por alegada intromissão na vida privada ou familiar no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações e utilização abusiva de informações relativas às pessoas e famílias, conforme supra devidamente fundamentado [art. 26, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa (CRP)].
Neste sentido, requer-se a V. Exa. que admita os áudios como meio de prova e a sua junção às alegações e demais prova apresentada pela progenitora em 17 de outubro de 2022, com referência 43587748”.

A 27.02.2023, o Ministério Público pronunciou-se e promoveu: “Promovo que seja indeferida a cessação da medida de promoção e proteção da BB, dado que, resulta claramente dos autos que a jovem se encontra em perigo face às condutas adotadas pela mesma e situações descritas incluindo para Ilustre Mandatária da progenitora que se enquadra nas situações de perigo previstas na LPCJP no seu artigo 3.º, n.º 2, alíneas b), c) e e), da LPCJP. No que respeita à admissão como prova das gravações efetuadas pela menor, atendendo a que as mesmas foram obtidas de modo ilícito, não devem ser admitidas como provados por violarem direitos fundamentais e de personalidade, por não terem sido autorizadas pelo progenitor. Nesse sentido veja-se o Acórdão da Relação de Lisboa de 02.02.2021, in dgsi. Na verdade, apenas a conduta da menor ao efetuar as gravações deverá ser valorizada. (...)”.

A 1.03.2023 foi proferido o despacho objeto do presente recurso:
“Requerimento apresentado pela progenitora (ref. 44754267) em que requer a imediata cessação da medida aplicada à menor BB (apoio junto dos pais), por caducidade, com prosseguimento dos autos, com realização de imediato, e com máxima urgência, o debate judicial, e em que requer a admissão de novos meios de prova (gravações áudio):
No que diz respeito à caducidade da medida aplicada à menor BB, atendendo à natureza e finalidades da intervenção no âmbito das medidas de promoção e proteção, bem como aos seus princípios orientadores, temos vindo e entender, na sequência da lição de Paulo Guerra (in Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo Anotada, 2.ª ed., Coimbra: Almedina, 2016, p. 124), que a hipótese de, pura e simplesmente, declarar cessada a medida e pôr termo aos autos, iniciando de seguida um novo processo judicial, em que se percorrerão as fases para ele previstas, culminando na decisão, já esperada, de aplicação de medida igual à primeira decretada, por continuar a justificar-se a intervenção nesses precisos moldes, não se justifica, podendo mesmo configurar uma afronta ao princípio da subsidiariedade. No caso dos autos, como bem refere a DMMP na promoção que antecede, resulta claramente dos autos que a jovem BB se encontra em perigo face às condutas adotadas pela mesma, que se enquadram nas situações de perigo previstas na LPCJP no seu artigo 3.º, n.º 2, alíneas b), c) e e), da LPCJP. (...)
Quanto à admissão como prova das gravações efetuadas pela menor, atendendo à promoção da DMMP que antecede, com a qual concordamos, verificando-se que as mesmas foram obtidas de modo ilícito, não devem ser admitidas como meio de prova por violarem direitos fundamentais e de personalidade, por não terem sido autorizadas pelo progenitor. No mesmo sentido veja-se o Acórdão da Relação de Lisboa de 02.02.2021, in dgsi. Termos em que indefiro a admissão de tal meio de prova. (...)”.

II – Do Recurso
Do decidido, concretamente quanto à não admissão da prova (gravações) veio a progenitora apelar. Pretende que o despacho declarado nulo por falta de fundamentação e que o recurso seja julgado procedente, revogando-se a decisão recorrida e admitindo-se como meio de prova os áudios (gravações), a juntar às alegações apresentadas pela apelante. Conclui:
I - A Progenitora, no dia 16 de fevereiro de 2023, mediante referência n.º 44754267, apresentou requerimento, na qual entre o mais, peticionou a admissão como meio de prova e sua junção os áudios (gravação) às alegações apresentadas em 17 de outubro de 2022, com referência 43587748.
II - Em 27 de fevereiro de 2023, a Digníssima Magistrada do Ministério Público, tão-só promoveu que “No que respeita à admissão como prova das gravações efetuadas pela menor, atendendo que as mesmas foram obtidas de modo ilícito, não devem ser admitidas como provados por violarem direitos fundamentais e de personalidade, por não terem sido autorizadas pelo progenitor. Nesse sentido veja-se o acórdão da Relação de Lisboa de 02.02.2021, in www.dgsi.pt. Na verdade, a penas a conduta da menor ao efetuar as gravações deverá ser valorizada”.
III - Por seu turno, veio o tribunal decidir não admitir as gravações como meio de prova, fundamentando a sua decisão na douta “promoção da DMMP que antecede”.
IV - Salvo melhor opinião, o despacho in crise padece de uma nulidade, porquanto carece de fundamentação.
V - Pois, o despacho de indeferimento baseou-se unicamente na promoção da DMMP, sendo que aquele, por seu turno carece de fundamentação.
VI - Com efeito, a referida promoção alega, em suma, que, as gravações foram obtidas ilicitamente; Não devendo ser admitidas por violarem os direitos fundamentais e de personalidade; Por não terem sido autorizadas pelo progenitor. Acorando-se num alegado Acórdão da Relação de Lisboa de 02.02.2021, in www.dgsi.pt.
VII - A nosso ver, inexiste aqui qualquer fundamentação, porquanto não permite descortinar as razões de decidir.
VIII - De facto, a decisão fundamentada per remissionem não enuncia quais as razões que justificam cabalmente a não admissão das gravações como meio de prova, violando o art. 154, n.º 1 e 2 do CPC, e sendo, por conseguinte, nulo nos termos do art. 615 n.º 1 al. b) do mesmo diploma legal.
IX - Mais, dispõe o art. 205, n.º 1 da CRP, que “as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei”. O que não é o caso, pois que não se destina a prover ao andamento regular do processo, sem interferir no conflito de interesse entre as partes.
X - Está por isso o tribunal vinculado á sua fundamentação, nos termos das normas citadas.
XI - Na verdade, inexiste proscrição legal da fundamentação por remissão, com a exceção do art. 154 n.º 2 1.ª parte do CPC, inaplicável ao caso.
XII - O Tribunal Constitucional julgou já bastante às exigências constitucionais tal tipo de fundamentação. Veja-se a este respeito, o Acórdão 147/2000, de 21 de março de 2000 (Relator: Artur Maurício). Nele se lendo: “O qual a fundamentação visa - disse-se já também – é assegurar a ponderação do juízo decisório e permitir ás partes (...) o perfeito conhecimento das razões de facto e de direito por que foi tomada uma decisão e não outra, em ordem a facultar-lhes a opção reativa (impugnatória ou não) adequada à defesa dos seus direitos”.
XIII - Ora, a fundamentação por remissão não é fundamentação que se recomende (promoção da DMMP) pois esta inviabiliza a percetibilidade das razões de decidir.
XIV - PELO QUE É NULA A DECISÃO ORA RECORRIDA POR FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO.
ACRESCE QUE,
XV - A progenitora requereu, nos termos do art. 423, n.º 2 do CPC, ex vi 126 do LPCJP, a junção dos áudios que foram juntos com o requerimento n.º 44400091 e 44405271, às alegações por si apresentadas em 17 de outubro de 2022, com referência 43587748.
XVI. Fundamentando, para o efeito, o seguinte: “(...) as ditas provas devem ser admitidas enquanto meio de prova, não obstante, de forma abstrata tratar-se de prova ilícita e proibida, pois foram obtidas, mediante abusiva intromissão na vida privada do progenitor, mas a verdade é que os factos expostos nas ditas gravações são demasiado graves, podendo a atuação do progenitor colocar em risco e perigo a BB. Devendo este douto tribunal, face à especial vulnerabilidade da menor, atenta a sua jovem idade, considerar ocorrer a restrição da reserva sobre a intimidade da vida privada, nos termos doa art. 80 do Código Civil (CC) e que tal restrição não se mostre desproporcional ao direito que se pretende alcançar, qual seja o superior interesse da criança estabelecido no art. 3.º n.º 2 da CONVENÇÃO DO DIREITOS DA CRIANÇA. Assim sendo, não obstante a ilicitude na obtenção dos meios de prova pela menor, por contenderem com a intimidade da vida privada do aqui Requerido, já que as gravações áudio foram realizadas pela BB à sua revelia, sem o consentimento ou conhecimento do mesmo, o Tribunal deverá, ponderando as circunstâncias concretas do caso, nomeadamente os interesses em conflito, entender prevalecer o superior interesse da criança, admitindo tais gravações. E não se diga que, ao abrigo da cooperação para a descoberta da verdade, seja legítimo ao Requerido a recusa, nos termos do art. 417 n.º 3 al. b) do CPC, por alegada intromissão na vida privada ou familiar no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações e utilização abusiva de informações relativas ás pessoas e famílias, conforme supra devidamente fundamentado [art. 26, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa (CRP)]”.
XVII - Contudo, o tribunal indeferiu a admissão de tal meio de prova.
XVIII - Inconformada com tal decisão, vem a progenitora recorrer de tal decisão, por não concordar com a mesma em virtude de violar o SUPERIOR INTERESSE DAS CRIANÇAS, estabelecido no art. 3.º n.º 2 da Convenção dos Direitos da Criança e art. 4.º da LPCJP.
XIX - Aliás, foram diversas as vezes que a menor afirmou que TINHA MEDO DO PAI e que não queria ficar sozinha com o mesmo.
XX - Mas nunca acreditaram nela, afirmando inclusive que esta era manipulada pela mãe!
XXI - Perante a passividade de todos intervenientes processuais (CPCJ, CAFAP, EMAT, MP) e cansada de ninguém acreditar nela, a menor por sua iniciativa própria, nos dias 10, 18 e 21 de dezembro de 2022, gravou as conversas entre si e seu pai.
XXII - Tal gravação teve por objetivo denunciar o verdadeiro perfil do progenitor quanto ao seu descontrolo e agressividade, contrariamente áquilo que aparenta em público, colocando a jovem BB em perigo.
XXIII - Sendo essas as gravações, - as quais demonstram claramente as agressões verbais, psicológicas e agressões físicas contra a menor pelo progenitor -, que se pretendem ver admitidas como meio de prova, no âmbito dos presentes autos, no debate judicial.
XXIV - E que o tribunal veio entender, brevitatis causa, que as gravações foram obtidas ilicitamente; Não devendo ser admitidas por violarem os direitos fundamentais e de personalidade; Por não terem sido autorizadas pelo progenitor.
XXV - Ora, a matéria da prova no âmbito do direito processual civil converge para uma “livre admissibilidade dos meios de prova”, contrariando a orientação restritiva que antes vigorava.
XXVI - No âmbito do direito processual civil, vigora uma apreciação ampla dos meios de prova carreados para o processo, em conformidade, aliás, com o disposto no artigo 413, n.º 1, do Código de Processo Civil, e entendendo-se que a norma contida no artigo 32, n.º 8 da Constituição da República Portuguesa não tem aplicação nesta sede - desde logo, por se tratar de uma norma excecional e que, como tal, não comporta interpretação analógica -, sempre teríamos de concluir que as sanções apontadas no âmbito do direito penal para a exclusão de utilização dos meios de prova, face à ilicitude na sua obtenção, não podem ser aplicados diretamente às situações que regulam o direito processual civil [Neste sentido, Salazar Casanova, citado por Carlos Castelo Branco, A Prova Ilícita – Verdade ou Lealdade?, Almedina, 2018, págs. 214/ss].
XXVII - Afirma SALAZAR CASANOVA que “A lei processual civil – muito embora estabeleça diversas regras limitativas da produção de prova ou de certos meios de prova (...) é omissa quanto à questão da inadmissibilidade da prova ilícita, contrariamente ao que sucede no processo penal (...). Apenas há uma singela referência no artigo 417.º do CPC (...), preceito onde se prevê um dever genérico de cooperação probatória, sanções para a recusa de cooperação e três causas de legítima recusa de cooperação. É duvidoso que esta norma – em particular o n.º 3 do referido preceito legal – tenha alguma influência sobre a temática da prova ilícita” – ob. cit. pág. 218/219.
XXVIII - Este mesmo autor estabelece um regime de provas que cataloga como: provas ilícitas absolutas e provas ilícitas relativas. Em relação às primeiras, e independentemente do consentimento do lesado, por se reportarem a prova que decorre da violação de direitos absolutos, ou seja, obtida “mediante tortura, coação, ofensa da integridade física ou moral das pessoas”, deve ser considerada como inexistente, podendo o Tribunal conhecer desse vício a todo o tempo.
XXIX - Em relação às segundas, as provas relativamente ilícitas, a que se reporta o artigo 417, n.º 3, alíneas b) e c), do Código de Processo Civil Revisto [as que envolvem a intromissão na vida privada ou familiar, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações e as que determinam violação do sigilo profissional ou de funcionários públicos ou de segredo do Estado, caso tais segredos não sejam “quebrados” nos termos da lei], defende que “o consentimento do lesado já é relevante em termos de retirar ilicitude ao ato lesivo” – ob. cit., pág. 231/232.
XXX - Incidindo agora a nossa atenção para aquelas a que se reporta a alínea b), do n.º 3 do artigo 417 do Código de Processo Civil, temos que esse “consentimento” do lesado é relevante, apenas se colocando a questão de recurso ao princípio da proporcionalidade nos casos em que esse consentimento não é prestado, no momento processual próprio, no caso, com a apresentação da prova e/ou com o posterior exercício do contraditório.
XXXI - Neste contexto, sempre teríamos de concluir que o simples facto daquele comportamento da BB poder estar tipificado como crime, não permite concluir pela sua ilicitude e pela culpabilidade, uma vez que pode haver causas justificativas que permitam aquela gravação, como neste caso tudo aponta para existir como infra iremos referir, dado que a mesma não teve outra possibilidade de provar o que foi alegando ao longo deste processo, sem ser através da audição daquela gravação. ISTO PORQUE
XXXII - Face à especial vulnerabilidade da jovem, atenta à sua idade, a restrição da reserva sobre a intimidade da vida privada, nos termos do art. 80 do CC, não se mostra
desproporcional ao direito que se pretende alcançar, ou seja, o SUPERIOR INTERESSE DAS CRIANÇAS, estabelecido no art. 3.º n.º 2 da Convenção dos Direitos da Criança.
XXXIII - Não obstante a ilicitude na obtenção dos meios de prova, por contender com a intimidade da vida privada do aqui progenitor, já que as gravações áudio foram realizadas pela aqui jovem á revelia do pai, sem o seu consentimento ou conhecimento, o tribunal ponderando as circunstâncias concretas do caso, nomeadamente os interesses em conflito, por entender prevalecer o SUPERIOR INTERESSE DA CRIANÇA, deve admitir tais gravações.
XXXIV - Esta prova, salvo melhor opinião, merece grande relevância para descoberta da verdade, pois que permite ao tribunal percecionar em que condições assenta a relação paterno filial.
XXXV - Com efeito, das gravações são percetíveis os impropérios e as ameaças proferidas pelo pai. O desprezo e desrespeito quer pela filha, como pela progenitora e sua família.
XXXVI - Mais, o progenitor faz uso de chantagem emocional, manipulação emocional – o chamado jogo psicológico de culpabilização.
XXXVII - Além disso revela as suas frustrações de forma violenta, agredindo a jovem BB fisicamente, ouvindo-se inclusive gemidos por parte desta.
XXXVIII - Faz-se notar que, o progenitor, em momento oportuno, nomeadamente aquando da realização do debate judicial, poderá exercer plenamente o seu direito ao contraditório quanto às aludidas gravações. Podendo aí, ter possibilidade de se pronunciar sobre o respetivo conteúdo e as circunstâncias espaciotemporais em que as conversas foram registadas sem o seu conhecimento.

O progenitor respondeu ao recurso, concluindo:
i. Carece de razão a recorrente, porquanto, a decisão no que a matéria de facto e de direito diz respeito, dever ser mantida in totum por não ser suscetível de reparo ou censura alguma.
ii. Pois, o tribunal não esta vinculado a analisar e apreciar todos os argumentos, todos os raciocínios, todas as considerações, todas as razões jurídicas produzidas pelas partes, desde que não deixe de apreciar os problemas e necessários à decisão da causa. Cfr. Ac. do STJ de 26.09.95, CJ, 95, 3:22 e da RE de 24.11.94, BMJ n.º 441:420.
iii. Devendo considerar-se por não verificada qualquer nulidade da decisão recorrida.
iv. E, sem prescindir, sempre julgar-se a não admissão da prova áudio recolhida pela recorrente pela mesma consubstanciar uma prova ilegal e ilícita.

Igualmente respondeu o Ministério Público, sustentando, em síntese:
- A conduta da menor de proceder às gravações áudio de conversas entre ela e o pai, sem que este saiba mais não é do que a prova de que a progenitora influencia negativamente a filha, uma vez que, a mesma claramente foi instruída a proceder às gravações.
- Basta ouvir essas gravações para claramente concluir o agravamento do estado de saúde mental da jovem em que recusa obedecer o pai, o afronta e provoca para obter uma reação da sua parte para a prova que pretendia obter.
- Essas gravações não contêm a prática de qualquer crime por parte do progenitor, mas apenas situações de conflito originados pelo comportamento da jovem de constante recusa às indicações e pedidos do pai.
- Não podemos olvidar que já foi apresentada queixa criminal pela progenitora contra o progenitor (o pai teria agredido a filha numa altura em que a jovem estaria consigo), sendo que, ao que resulta do despacho junto aos autos em 01-04-2022, se tratará de uma queixa, ao que tudo leva a crer neste momento, infundada, tendo o DIAP proferido um despacho, profundamente fundamentado, de indeferimento do pedido de constituição do progenitor como arguido, por ausência de indícios mínimos para tal efeito.
- Relativamente às provas relativamente ilícitas – em que está em questão a violação de direitos fundamentais, como o direito à intimidade da vida privada ou familiar, o direito à inviolabilidade do domicílio, ao segredo de correspondência ou das telecomunicações, o direito à imagem, à palavra, etc., e a que se referem as alíneas b) e c) do n.º 3, do art. 417, do CPC - o consentimento do titular do respetivo direito é relevante em termos de retirar ilicitude ao ato lesivo. O valor da prova apresentada pelo particular vai depender da sua licitude perante a legislação penal. A obtenção desta prova tem que ser lícita: não pode ser produto de atividade criminosa.
- Face à colisão de direitos fundamentais, impõe-se proceder a uma ponderação concreta dos interesses em jogo (cfr. artigo 335, do CC), ponderando se o meio de prova ilicitamente obtido é, não obstante, relevante, imprescindível, justificado, adequado e proporcionado para prova dos factos em presença, que, em concreto, sobrelevam sobre outros direitos fundamentais em presença, justificando a sua compressão em detrimento de tal direito à prova, ou se, tal compressão, não se mostra justificada. In casu, terá de ser respondido negativamente.
- Entende-se ter andado bem a decisão recorrida em não admitir como prova as gravações áudio obtidas pela menor, pelo que, não se deve atender ao propugnado pela progenitora, ora apelante, no sentido de revogar o despacho recorrido.

O recurso foi admitido nos termos legais e, atenta a natureza dos autos, foram dispensados os Vistos, nada obstando ao conhecimento do mérito do recurso, cujo objeto, atentas as conclusões da apelante, consiste em saber se a decisão apelada padece de nulidade por falta de fundamentação e se deve ser revogada, admitindo-se como prova as gravações que se pretendem juntar aos autos.

III – Fundamentação
III.I – Fundamentação de facto
O relatório antecedente e a factualidade que do mesmo resulta mostra-se bastante ao conhecimento do recurso. Sem embargo, mas para melhor clareza da apelação e do seu objeto, sintetizamos a pretensão indeferida e o despacho que a indeferiu:
- A recorrente, a 16.02.2023, veio requerer, “nos termos do art. 423.º n.º 2 do CPC ex vi 126.º do LPCJP, a junção dos áudios que foram juntos com o requerimento n.º 44400091 e 44405271, às alegações por si apresentadas em 17 de outubro de 2022, com referência 43587748”, aduzindo: - não ofereceu tal prova aquando das suas alegações, pois que teve apenas conhecimento das mesmas posteriormente, mais concretamente em dezembro de 2022; - as ditas provas devem ser admitidas enquanto meio de prova, não obstante, de forma abstrata tratar-se de prova ilícita e proibida, pois foram obtidas, mediante abusiva intromissão na vida privada do progenitor, mas a verdade é que os factos expostos nas ditas gravações são demasiado graves, podendo a atuação do progenitor colocar em risco e perigo a BB; devendo este tribunal, face à especial vulnerabilidade da menor, atenta a sua jovem idade, considerar ocorrer a restrição da reserva sobre a intimidade da vida privada, nos termos doa art. 80.º do Código Civil (CC) e que tal restrição não se mostre desproporcional ao direito que se pretende alcançar, qual seja o superior interesse da criança estabelecido no art. 3.º n.º 2 da Convenção dos Direitos da Criança; - assim, não obstante a ilicitude na obtenção dos meios de prova pela menor, ponderando as circunstâncias concretas do caso, nomeadamente os interesses em conflito, entender prevalecer o superior interesse da criança, admitindo tais gravações; - e não se diga que, ao abrigo da cooperação para a descoberta da verdade, seja legítimo ao requerido a recusa, nos termos do art. 417.º n.º 3 al. b) do CPC, por alegada intromissão na vida privada ou familiar no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações e utilização abusiva de informações relativas às pessoas e famílias, conforme supra devidamente fundamentado [art. 26, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa (CRP)]. Neste sentido, requer-se a V. Exa. que admita os áudios como meio de prova e a sua junção às alegações e demais prova apresentada pela progenitora em 17 de outubro de 2022, com referência 43587748”.
- O despacho que apreciou a pretensão da recorrente e que é objeto do presente recurso é, no que releva, do seguinte teor: “Quanto à admissão como prova das gravações efetuadas pela menor, atendendo à promoção da DMMP que antecede, com a qual concordamos, verificando-se que as mesmas foram obtidas de modo ilícito, não devem ser admitidas como meio de prova por violarem direitos fundamentais e de personalidade, por não terem sido autorizadas pelo progenitor. No mesmo sentido veja-se o Acórdão da Relação de Lisboa de 02.02.2021, in dgsi. Termos em que indefiro a admissão de tal meio de prova”.

III.II – Fundamentação de Direito
Da nulidade
Entende a apelante que o despacho recorrido padece de nulidade por falta de fundamentação. Nas suas conclusões, e a esse propósito, refere, em síntese, que o tribunal recorrido decidiu “não admitir as gravações como meio de prova, fundamentando a sua decisão na douta “promoção da DMMP que antecede”, assim se baseando unicamente “na promoção da DMMP, sendo que aquele, por seu turno carece de fundamentação”. Diz também que, na promoção “inexiste qualquer fundamentação, porquanto não permite descortinar as razões de decidir” e a decisão “per remissionem não enuncia quais as razões que justificam cabalmente a não admissão das gravações como meio de prova, violando o art. 154, n.º 1 e 2 do CPC, e sendo, por conseguinte, nulo nos termos do art. 615 n.º 1 al. b) do mesmo diploma legal”, uma vez que “a fundamentação por remissão não é fundamentação que se recomende (promoção da DMMP) pois esta inviabiliza a percetibilidade das razões de decidir”.

Dispõe o artigo 615, n.º 1, alínea b) do Código de Processo Civil (CPC), normativo aplicável aos despachos, ainda que com as necessárias adaptações (artigo 613, n.º 3 do CPC) que a sentença é nula quando “não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão” e o entendimento jurisprudencial e doutrinário, claramente maioritário, do citado preceito é no sentido de que só a absoluta falta de fundamentação, de facto ou de direito, constitui a aludida nulidade[1].

Ainda que não acompanhemos uma visão tão radical, impondo a absoluta omissão de fundamentação do ato recorrido, despacho ou sentença, uma vez que entendemos ser necessária a fundamentação mínima que permita a perceção das razões decisórias[2], não acompanhamos o entendimento da recorrente no sentido de estarmos perante um despacho nulo. Em primeiro lugar, porque estamos perante um despacho, concretamente de admissão ou não de um meio de prova, não sendo exigível a mesma amplitude fundamentadora que se exigirá a uma sentença. Por outro lado, o despacho sob censura não é a mera remissão para a promoção do Ministério Público, ainda que o conteúdo relevante daquele e desta sejam semelhantes. Finalmente, e no que temos por mais relevante, a recorrente percecionou claramente as razões do despacho, como resulta evidente da sua conclusão “XXIV” quando se refere aos motivos de indeferimento, e citamos “E que o tribunal veio entender, brevitatis causa, que as gravações foram obtidas ilicitamente; Não devendo ser admitidas por violarem os direitos fundamentais e de personalidade; Por não terem sido autorizadas pelo progenitor”.

Pelo exposto, entendemos que o despacho recorrido não padece da nulidade que lhe vem imputada.

Do mérito do despacho
Depois de ter invocado as gravações feitas pela filha para fundamentar a suspensão imediata da medida provisória fixada nos autos, veio a recorrente – no requerimento objeto do despacho recorrido – pretender a sua junção às alegações anteriormente feitas, no âmbito destes mesmos autos, como (nova) prova, justificando a sua pretensão, por um lado, porque não as pôde apresentar anteriormente (não existiam) e, por outro lado, porque as mesmas se revelam relevantes à causa, concretamente ao interesse da filha, não obstante – admite – a ilegalidade da sua obtenção.

Uma primeira nota convém ser feita. Os documentos não são factos, mas “meio de prova de factos”, razão pela qual “se justifica que a sua apresentação coincida com a alegação dos factos que a parte se propõe demonstrar”[3]. Ora, em rigor, a recorrente não concretiza quais os factos – necessariamente alegados nas suas alegações – relativamente aos quais os documentos (as gravações) são meio de prova, o que, aliás, se compreende, na medida em que o meio de prova pretendido juntar é posterior às alegações, ou seja, aos factos invocados e outros, eventualmente supervenientes não são concretizados.

Mas, efetivamente, há que reconhecê-lo, não foi essa a razão do indeferimento da pretensão da recorrente. O despacho recorrido indeferiu a junção da prova em razão de as gravações terem sido “obtidas de modo ilícito” e por “violarem direitos fundamentais e de personalidade, por não terem sido autorizadas pelo progenitor” e acrescenta, em sentido de tal entendimento, o decidido no “Acórdão da Relação de Lisboa de 02.02.2021”.

Se bem vemos, a recorrente discorda de tal entendimento, mesmo admitindo a ilicitude das gravações, em razão da necessidade de prevalência do interesse da filha (superior interesse da jovem) no cotejo com o direito que a proibição visa proteger, concretamente o direito do pai da jovem, que “foi gravado” sem o ter permitido.

Antes de prosseguirmos, importa acrescentar outra nota: A pretensão de junção das gravações foi formulada pela progenitora, numa situação de manifesto conflito com o progenitor, e não através da defensora que nos autos foi nomeada à jovem.

O acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa citado na promoção e no despacho recorrido [Acórdão de 2.02.2021, Processo n.º 4348/19.2T8ALM-A.L1-7, Relator Desembargador Carlos Oliveira, dgsi] tem o seguinte sumário: “1. O direito a um processo equitativo (Art. 20.º n.º 4 da Constituição da República Portuguesa) implica a inadmissibilidade de meios de prova ilícitos, sendo nulas todas as provas obtidas mediante abusiva intromissão na vida privada ou nas telecomunicações (Art. 32.º n.º 8 da Constituição) e que constituam uma violação aos direitos à palavra e à reserva da vida privada, consagrados no Art. 26.º n.º 1 da nossa Lei Fundamental. 2. Todos os meios de prova que violem esses direitos fundamentais e de personalidade, são materialmente proibidos, seja em processo penal, seja em processo civil, impondo-se a aplicação neste último das correspondentes normas estabelecidas naquele sobre proibição de prova. 3. O nosso sistema legal de proibição de prova ilícita dá clara prevalência aos direitos pessoais quando estes são violados através de métodos de prova proibidos. 4. O meio de prova consistente na gravação de conversação telefónica privada, sem consentimento duma das partes nela interveniente, preenche, em abstrato, o crime de “gravações e fotografias ilícitas”, previsto no Art. 199.º n.º 1 al. a) do Código Penal, que pune com pena de prisão quem, sem consentimento, gravar palavras proferidas por outra pessoa e não destinadas ao público, mesmo que essas palavras lhe sejam dirigidas, não podendo ser usado como meio de prova no processo (Art. 167.º n.º 1 do C.P.P), sendo, portanto, prova nula, nos termos do Art. 126.º n.º 2 do C.P.P. 5. A busca da verdade no âmbito dum processo judicial não é um valor absoluto, não sendo admissível que se possa procurar a verdade usando de quaisquer meios, mas tão-só de meios justos, ou seja, através de meios legalmente admissíveis. 6. A proibição de prova assume também um efeito dissuasor, pretendendo-se com tal proibição evitar sacrifícios de direitos das pessoas por parte das autoridades judiciárias, dos órgãos de polícia criminal ou dos particulares, privando logo à partida de qualquer eficácia as provas proibidas ou produzidas ilegalmente”.

Também do Tribunal da Relação de Lisboa, proferido a 15 de abril do mesmo ano [Relator, Desembargador Carlos Castelo Branco[4], Processo n.º 705/18.0T8CSC-A.L1-2, dgsi] pode ler-se no respetivo sumário: “IV) A demonstração da realidade dos factos – artigo 341.º do CC – pretendida com a prova, não visa alcançar uma certeza absoluta de tal realidade, mas sim, um grau de convicção suficiente para as exigências da vida e o direito à prova não é ilimitado ou absoluto. V) A licitude da prova constitui um limite intrínseco do direito à prova, que se deduz da tutela constitucional de diversos direitos fundamentais – embora, em si mesmo, não diretamente do artigo 32.º, n.º 8, da CRP, preceito previsto em sede de garantias do processo criminal – e se concretiza naqueles pressupostos ou condições que, por natureza, devem ser observados por qualquer prova. VI) Assim, constituirá prova ilícita toda aquela que seja obtida ou produzida, mediante a violação de normas de direito material, que tutelam direitos fundamentais dos cidadãos, ou aquela cuja formação ou produção em si mesma consubstancie um ilícito. VII) A lei processual civil – muito embora estabeleça diversas regras limitativas da produção de prova ou de certos meios de prova, por exemplo, nos arts. 433.º e 607.º n.º 2 do CPC ou nos arts. 364.º, n.º 1, 393.º e 394.º do CC - é omissa quanto à questão da inadmissibilidade da prova ilícita, contrariamente ao que sucede no processo penal (cfr. art. 125º do CPP). VIII) Relativamente às provas relativamente ilícitas – em que está em questão a violação de direitos fundamentais, como o direito à intimidade da vida privada ou familiar, o direito à inviolabilidade do domicílio, ao segredo de correspondência ou das telecomunicações, o direito à imagem, à palavra, etc., e a que se referem as alíneas b) e c) do n.º 3 do art. 417.º do CPC - o consentimento do titular do respetivo direito é relevante em termos de retirar ilicitude ao ato lesivo. IX) Face à colisão de direitos fundamentais, impõe-se proceder a uma ponderação concreta dos interesses em jogo (cfr. artigo 335.º do CC), ponderando se o meio de prova ilicitamente obtido é, não obstante, relevante, imprescindível, justificado, adequado e proporcionado para prova dos factos em presença, que, em concreto, sobrelevam sobre outros direitos fundamentais em presença, justificando a sua compressão em detrimento de tal direito à prova, ou se, tal compressão, não se mostra justificada”.

O problema da prova ilícita em processo civil não tem resolução consensual, sendo discutida, desde logo, a aplicação direta[5] do disposto no artigo 32.º, n.º 8[6] da Constituição da República Portuguesa[7].

Sem embargo, parece adequado distinguir entre provas absolutamente ilícitas (“as que sejam obtidas mediante tortura, coação, ofensa da integridade física ou moral das pessoas”), as quais são “absolutamente vedadas ou proibidas”[8] e as provas relativamente ilícitas, “aquelas cuja obtenção é suscetível de fazer colidir o direito à prova com outros direitos fundamentais, designadamente os enumerados no art. 26.º, n.º 1 e 34.º da CRP e na al. b) do n.º 3 deste artigo 417.º”[9].

No caso presente, estamos perante uma prova relativamente ilícita e a admissão da prova, porque obtida ilicitamente e sem o consentimento do visado na gravação, só pode justificar-se se estivéssemos perante uma causa de exclusão da ilicitude, se estivermos perante “um estado de necessidade probatório”[10].

Como se sumaria no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 13.09.2022[11] – apreciando um caso em que estava em causa uma gravação (CD) feita em local público - “No âmbito de incidente de incumprimento das responsabilidades parentais, onde se discute o incumprimento, pelo requerido/pai, do regime de visitas, alegando a requerente/mãe que este impediu as visitas estabelecidas em relação ao filho, agora prestes a atingir a maioridade, a junção aos autos, com finalidade probatória, pela requerente de um “CD” – contendo imagens, em gravação vídeo, que recolheu quando o requerido e o menor saiam da escola por este frequentada – constitui prova ilícita, que não deve ser admitida, por faltar o consentimento dos visados, estando em causa o seu direito à imagem, não se mostrando que não seja possível produzir outros meios de prova a respeito, designadamente a audição do filho, o que afasta a conclusão no sentido da ocorrência de um “estado de necessidade probatório”.

No caso presente, e ressalvando sempre melhor entendimento, aquele estado de necessidade probatório não ocorre, quando é certo que a jovem pode (deve) ser ouvida antes da aplicação de qualquer medida e quando, em rigor, sequer se sabe com precisão que concretos factos probandos (e alegados) são objeto da prova pretendida juntar aos autos. Acresce que o deferimento da junção de uma gravação, correspondente à prática de um ato ilegal (e, em abstrato, criminoso) feita pela filha dos progenitores em conflito, está longe de representar, pelo menos num juízo prognóstico, o dever de cautela e a salvaguarda do interesse no seu crescimento responsável, o que também deve ser ponderado.

Por tudo, entendemos que a decisão recorrida é de confirmar, improcedendo o recurso.

As custas do recurso são a cargo da apelante, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia.

IV – Dispositivo
Pelo exposto, acorda-se na 3.ª Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto em julgar improcedente o recurso e, em consequência, confirma-se a decisão recorrida.

Custa pela apelante.

Porto, 26.06.2023
José Eusébio Almeida
Carlos Gil
Mendes Coelho
_____________
[1] Nesse sentido, José lebre de Freitas/Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Volume 2.º, 4.ª Edição, Reimpressão, Almedina, 2021, págs. 735/736; Paulo Ramos de Faria/Ana Luísa Loureiro, Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, Volume I, 2.ª Edição, Almedina, 2014, pág. 603 e António Santos Abrantes Geraldes/Paulo Pimenta/Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, 3.ª Edição, Almedina, 2022, pág. 793, anotação 10.
[2] A este propósito, citamos o sumariado no acórdão deste Tribunal da Relação do Porto de 8.02.2021 (Relator, Desembargador Carlos Gil, aqui 1.º Adjunto, dgsi) I - Tradicionalmente, invocando-se os ensinamentos do Professor Alberto Reis, é recorrente a afirmação de que a nulidade do ato decisório por falta de fundamentação de facto ou de direito apenas se verifica quando ocorre falta absoluta de especificação dos fundamentos de facto ou dos fundamentos de direito. II - No entanto, no atual quadro constitucional (artigo 205º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa), em que é imposto um dever geral de fundamentação das decisões judiciais, ainda que a densificar em concretas previsões legislativas, de forma a que os seus destinatários as possam apreciar e analisar criticamente, designadamente mediante a interposição de recurso, nos casos em que tal for admissível, parece que também a fundamentação de facto ou de direito insuficiente, em termos tais que não permitam ao destinatário da decisão judicial a perceção das razões de facto e de direito da decisão judicial, deve ser equiparada à falta absoluta de especificação dos fundamentos de facto e de direito e, consequentemente, determinar a nulidade do ato decisório”.
[3] António Santos Abrantes Geraldes/Paulo Pimenta/Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil... cit. pág. 540, anotação 1.
[4] Desembargador citado pelo recorrente enquanto autor do livro A Prova Ilícita – Verdade ou Lealdade?, Almedina/CJ, 2018.
[5] Em sentido afirmativo, Isabel Alexandre, Provas Ilícitas em Processo Civil, Almedina, 1998, pág. 235.
[6] “São nulas todas as provas obtidas mediante tortura, coação, ofensa da integridade física ou moral da pessoa, abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações”.
[7] Comentando o preceito, referem J.J. Gomes Canotilho/Vital Moreira, CRP – Constituição da República Portuguesa Anotada, Volume I, 4.ª Edição Revista, Coimbra Editora, 2007, pág. 524: “Os interesses do processo criminal encontram limites na dignidade da pessoa humana (art. 1.º) e nos princípios fundamentais do estado de direito democrático (art. 2.º), não podendo, portanto, valer-se de atos que ofendam direitos fundamentais básicos”.
[8] Carlos castelo Branco, A Prova Ilícita – Verdade ou Lealdade?, Almedina/CJ, 2018, pág. 228. A autor, no entanto, entende (págs. 228 e 230) que a proibição (absoluta) das provas absolutamente ilícitas não decorre do disposto no artigo 32 da Constituição, “mas de outras normas constitucionais (como as dos arts. 1.º, 2.º, 16.º, 18.º e principalmente da dicotomia estabelecida na Constituição entre os arts. 24.º e 25.º, por um lado, com os artigos 26.º e 34.º da Constituição, por outro)”.
[9] António Santos Abrantes Geraldes/Paulo Pimenta/Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil ..., pág. 533, anotação 11.
[10] A expressão é de Miguel Teixeira de Sousa (“A prova ilícita em processo civil: em busca das linhas orientadoras”, in. Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Ano LXI, 2020, número 2, Lisboa, 2021, págs. 15 e ss., a pág. 48). Refere o autor (págs. 47/48): “Uma prova que, por resultar de uma intromissão abusiva no direito à privacidade, é ilícita, pode ser justificada se se verificar uma causa de exclusão da sua ilicitude, dado que não há nenhum motivo para não aplicar á ilicitude probatória causas de exclusão dessa ilicitude. No âmbito da prova ilícita valem, como é claro, as normais causas de exclusão da ilicitude (como, por exemplo, nas estritas condições em que possa operar, o consentimento do ofendido). Todavia, são pensáveis, como causas específicas de exclusão da ilicitude da prova, as seguintes: - A exclusividade da prova do facto probando através da prova ilícita; - A dificuldade objetiva da prova, isto é, a dificuldade de o facto probando ser provado sem a utilização da prova ilícita; - A dificuldade subjetiva da prova, ou seja, a dificuldade de a parte onerada produzir a prova do facto probando por outro meio que não seja a prova ilícita”.
[11] Relatora, Desembargadora Catarina Gonçalves, Processo n.º 84/12.9TBVZL-U.C1, dgsi.