Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
56443/21.1YIPRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JUDITE PIRES
Descritores: CONTRATO DE SEGURO DE CRÉDITO
RISCO DE CRÉDITO
SEGURO DE CRÉDITOS
SEGURO FACULTATIVO
Nº do Documento: RP2023061556443/21.1YIPRT.P1
Data do Acordão: 06/15/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 3. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Contrato de seguro é aquele pelo qual alguém se obriga, mediante o pagamento de determinado prémio, a indemnizar o respectivo tomador ou um terceiro pelos prejuízos decorrentes da verificação de certo dano ou risco.
II - Constitui um contrato oneroso, tipicamente aleatório, de prestações recíprocas e de execução continuada.
III - O seguro de danos pode respeitar a coisas, bens imateriais, créditos e quaisquer outros direitos patrimoniais.
IV - No seguro de crédito o risco seguro é o risco de crédito, ou seja, o risco da não satisfação do crédito do segurado e tomador do seguro sobre um seu cliente.
V - Ao contrário do que sucede em relação ao seguro obrigatório de responsabilidade civil, em que a liberdade contratual sofre apertadas restrições, não só pelo facto de ser imposta às partes o dever da sua celebração, mas ainda por esta se ter de reger por certos parâmetros legalmente definidos e impostos aos contratantes, no domínio do seguro facultativo impera o princípio da autonomia privada.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 56443/21.1YIPRT.P1
Tribunal Judicial da Comarca de Porto Este
Juízo Local Cível de Felgueiras – Juiz 1




Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I. RELATÓRIO.
A..., S.A., pessoa colectiva n.º ..., com sede na Rua ..., ... Porto, instaurou providência de injunção contra B..., Lda., contribuinte fiscal n.º ..., com sede na Rua ..., ... ..., pedindo a condenação desta no pagamento da quantia de 10.735,7 euros, acrescida de juros de mora vencidos, no valor de 669,92 euros, e vincendos e, bem assim, 40 euros, a título de outras quantias, e o valor de 153 euros, a título de taxa de justiça.
Para fundamentar a sua pretensão, alegou que, no exercício da sua actividade seguradora, celebrou com a R. um contrato de seguro de crédito titulado pela apólice n.º ...15 e que, ao abrigo de tal acordo, a R. assumiu a obrigação de proceder ao pagamento dos respectivos prémios de seguro que totalizam o valor de 11.580,49 euros.
Alegou ainda que, descontando o valor de 844,70 euros de que a R. era credora, os aludidos valores dos prémios de seguro, pese embora vencidos, e de depois de interpelada para tanto, não foram liquidados, permanecendo em dívida o montante de 10.735,79 euros, valor a que acresce o montante de 669,92 euros, relativo a juros de mora comerciais vencidos, o montante de 153 euros relativa a taxa de justiça e o montante de 40 euros, relativos a custos de cobrança.
Notificada, a R. deduziu oposição alegando, grosso modo, que, no âmbito do contrato de seguro celebrado, a Autora comprometeu-se a assegurar, em caso de incumprimento dos clientes, o pagamento de 90% do valor das facturas em caso de clientes do mercado externo e de 80% no caso do mercado interno e que, a partir do início do ano de 2020, a Autora começou a reduzir a zero todas as garantias e cobertura relativamente aos clientes da R., razão pela qual resolveu o contrato, com efeitos imediatos, em 21.05.2020.
Acrescentou que, não obstante, e mesmo desconsiderando a resolução operada, à Ré sempre seria lícito recusar cumprimento face à actuação da Autora de redução praticamente integral das garantias contratadas.
Conclui pela improcedência da pretensão da Autora.
A Autora respondeu à matéria de excepção invocada pela Ré na sua oposição, alegando, além do mais, que a factura datada de 10.03.2021, no valor de 27,06 euros, peticionada nos autos, por se reportar a período posterior à denúncia do contrato, não é devida, razão pela qual o valor devido ascende a 10.708,73 euros.
Após audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:
“Em face do exposto, julga-se a acção totalmente procedente e, em consequência, condena-se a R. B..., Lda. a pagar à A. A..., S.A. o seguinte:
a) A quantia de 5.670 euros, correspondente à factura ...76, acrescida de juros de mora legais, à taxa comercial, calculados desde 06.06.2020 e até efectivo e integral pagamento;
b) A quantia de 130,38 euros, correspondente à factura ...39, acrescida de juros de mora legais, à taxa comercial, calculados desde 04.06.2020 e até efectivo e integral pagamento;
c) A quantia de 36,91 euros, correspondente à factura ...12, acrescida de juros de mora legais, à taxa comercial, calculados desde 05.07.2020 e até efectivo e integral pagamento;
d) A quantia de 5.670 euros, correspondente à factura ...68, acrescida de juros de mora legais, à taxa comercial, calculados desde 05.09.2020 e até efectivo e integral pagamento;
e) A quantia de 23,07 euros, correspondente à factura ...91, acrescida de juros de mora legais, à taxa comercial, calculados desde 03.10.2020 e até efectivo e integral pagamento;
f) A quantia de 23,07 euros, correspondente à factura ...54, acrescida de juros de mora legais, à taxa comercial, calculados desde 06.01.2021 e até efectivo e integral pagamento.
g) A quantia de 40 euros, nos termos do disposto no art.7.º do DL 62/2013 de 10.05.
Custas pela R. (art.527.º n.º 1 e 2 CPC, art. 6.º n.º 1 do RCP, por referência à tabela I-A, anexa a este diploma)”.
Não se conformando a Ré com tal sentença, dela interpôs recurso de apelação para esta Relação, formulando com as suas alegações as seguintes conclusões:
A) O tribunal julgou erradamente a matéria de facto;
B) Deveria ter dado como provada a factualidade do ponto considerado como não provado, nos seguintes termos: “A partir do ano início do ano de 2020, a A. começou a reduzir a zero todas as garantias e cobertura relativamente aos clientes da R.,”
C) Por se considerar que a partir do início do ano de 2020 de facto a autora começou a reduzir a zero as garantias de cobertura relativamente aos clientes da Ré.
D) Para tanto, bastaria atentar no teor do documento n.º 1, fls. 3 junto com a Oposição e que não foi impugnado e bem assim pela análise dos depoimentos das testemunhas: AA e BB, acima transcritos parcialmente.
E) Para além da alteração à matéria de facto acima suscitada, deveria ainda ser aditado à matéria de facto provada que: “Em Maio de 2020 a Autora procedeu unilateralmente à alteração das condições e garantias da apólice, sem qualquer aviso prévio, em plena vigência da anuidade.”
F) O Tribunal faz uma aplicação enviesada e parcial da norma do ponto 7 do artigo quarto das condições gerais da apólice, tanto mais que apenas transcreve parte da norma, sem preocupação da análise completa e exaustiva da mesma.
G) É que esta diz o seguinte: “A redução e a anulação do limite de crédito por iniciativa da A... têm efeitos na data indicada na garantia. As condições especiais e ou particulares da apólice podem estipular que a eficácia destas decisões está dependente do decurso de um período de dilação entre a data da respectiva emissão e a data da sua eficácia.
Nos casos em que tal período não tiver sido considerado na fixação da data de inicio da validade incluída na garantia, esta é substituída pela resultante da consideração do período de dilação fixado na apólice.”
H) Ou seja, da leitura completa da norma, resulta que a redução ou cancelamento das garantias não poderá ser completamente livre, designadamente, imediatamente aplicável, estando sujeita a alguma dilação, entre a decisão e a entrada em vigor.
I) Aliás, se assim não fosse, estaria completamente coartado quer o princípio da protecção da confiança, quer da boa fé, quer o mínimo de equilíbrio entre as partes.
J) Aliás, qualquer clausula que permitisse a redução ou anulação dos limites de credito de forma indiscriminada, sempre seria nula, pois absolutamente contrária aos ditames da boa fé e absolutamente desproporcional.
K) Mas, no caso concreto, até se remete para as condições particulares e especiais da apólice.
L) Sendo certo que, da analise das mesmas, parece resultar do seu espirito que essa redução ou anulação, no mínimo, apenas entraria em vigor no inicio da anuidade.
M) Pelo menos é o que parece resultar do teor da acta adicional de subscrição de condições especiais coberturas adicionais, no seu ponto 3.3.2, ou, no mínimo, por aplicação analógica, no mesmo prazo fixada para a redução a pedido do segurado, conforme indicado no seu ponto 3.2.7, pois só isto garantiria alguma equidade na execução do contrato.
N) Sob pena de nulidade do mesmo, ou, no mínimo, da clausula que permitisse a entrada em vigor de forma imediata dessa redução ou anulação do limite do crédito.
O) A actuação de boa-fé, postulada sem matizes nos contratos em geral, quer na sua fase preliminar – art. 227º do Código Civil – quer durante a sua execução, art. 762º, nº1, do mesmo diploma, é um princípio normativo, uma regra de conduta que deve ser escrupulosamente observada pelos contraentes.
P) As regras de conduta postuladas pela actuação leal, prudente e que contempla os interesses das partes, deve ser apanágio dos contratos em que as partes negoceiam em pé de igualdade e onde a liberdade contratual está por regra assegurada;
Q) Com mais rigor deve ser exigida em contratos em que tal paridade não existe, ou seja, naqueles em que a liberdade negocial está cerceada pela patente superioridade económica e negocial de um dos contratantes como é o caso dos contratos de adesão sujeitos a cláusulas contratuais gerais. Acresce que, o contrato foi resolvido em razão de uma completa alteração das circunstancias.
R) Para que a alteração das circunstâncias pressupostas pelos contraentes conduza à resolução do contrato ou à modificação do respectivo conteúdo, exige o cit. art. 437º que se achem reunidos cumulativamente os seguintes requisitos:
a) que a alteração considerada relevante diga respeito a circunstâncias em que se alicerçou a decisão de contratar, isto é, a circunstâncias que, ainda que não determinantes para ambas as partes, se apresentem como evidentes, segundo o fim típico do contrato, ou seja, que se encontrem na base do negócio, com consciência de ambos os contraentes ou razoável notoriedade - «como representação mental ou psicológica comum patente nas negociações (base subjectiva), ou condicionalismo objectivo apenas implícito, porque essencial ao sentido e aos resultados do contrato celebrado (base objectiva);
b) que essas circunstâncias fundamentais hajam sofrido uma alteração anormal, isto é, imprevisível ou, ainda que previsível, afectando o equilíbrio do contrato;
c) que a estabilidade do contrato envolva lesão para uma das partes, quer porque se tenha tornado demasiado onerosa, numa perspectiva económica, a prestação de uma das partes (conquanto não se exija que a alteração das circunstâncias coloque a parte numa situação de ruína económica, a manter-se incólome o contrato), quer porque a alteração das circunstâncias envolva, para o lesado, grandes riscos pessoais ou excessivos sacrifícios de natureza não patrimonial;
d) que a manutenção do contrato ou dos seus termos afecte gravemente os princípios da boa fé negocial;
e) que a situação não se encontre abrangida pelos riscos próprios do contrato, isto é, que a alteração anómala das circunstâncias não esteja compreendida na álea própria do contrato, isto é, nas suas flutuações normais ou finalidade ou nos riscos concretamente contemplados pelas partes no acordo contratual celebrado
S) No caso vigente e conforme se confirma quer pela factualidade que o próprio tribunal apurou, quer com as alterações aqui suscitadas, parece-nos evidente que existiu uma completa alteração das circunstancias que determinaram a decisão de contratar.
T) Tal ficou bem evidente, seja pelo teor do e-mail que comunica a resolução contratual, quer nas declarações das testemunhas acima transcritos.
U) Como resulta evidente à luz das regras de experiencia.
V) Logo, não se tratando se uma pontual redução ou anulação de garantias, mas de uma anulação massiva de garantias, não seria exigível, à luz do principio da boa fé, a manutenção do presente contrato.
W) Razão pela qual, deve ser revogada a decisão recorrida e substituída por uma que considera válida e licita a resolução operada pela Ré e, em conformidade, a absolva do pedido.
Nestes termos, e nos melhores de direito que V. Ex.as doutamente suprirão, deve o presente recurso ser julgado procedente e, por força dessa procedência, ser revogada a decisão recorrida e substituída por uma que absolva a ré dos pedidos formulados pela Autora.
A recorrida apresentou contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso e manutenção do decidido.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar.

II. OBJECTO DO RECURSO.
A. Sendo o objecto do recurso definido pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pela recorrente e as que forem de conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras, importando destacar, todavia, que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito.
B. Considerando, deste modo, a delimitação que decorre das conclusões formuladas pela recorrente, no caso dos autos cumprirá apreciar:
- se ocorreu erro na apreciação da prova;
- se é lícita a resolução do contrato celebrado entre as partes.

III - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO.
III.1. Foram os seguintes os factos julgados provados em primeira instância:
1) A A. é uma sociedade comercial que se dedica à actividade seguradora.
2) No exercício da sua actividade, a A. celebrou com a R. o contrato de seguro de crédito titulado pela apólice n.º ...15.
3) O contrato foi celebrado em 01.12.2016 e pelo prazo de 1 ano, prorrogável por igual período.
4) O contrato referido visava a cobertura de sinistros relativos a eventuais incumprimentos dos créditos titulados pela R. e decorrentes do exercício da sua actividade de comércio de calçado.
5) De acordo com o estipulado, a A. assumiu a obrigação de assegurar, em caso de incumprimento, pelos clientes da R. do pagamento dos créditos devidos, a proceder ao pagamento de 90% do valor das facturas, em caso de clientes de mercado externo, e de 80%, em caso de clientes de mercado interno.
6) O Artigo Preliminar das Condições Gerais do acordo celebrado, com a epígrafe “Definições”, dispõe da seguinte forma: “(…) Limite de Crédito – Montante máximo do crédito que a A... aceita segurar por Cliente; (…) Garantia – Decisão através da qual a A... fixa para cada Cliente o Limite de Crédito que aceita segurar e eventuais condições adicionais de cobertura e que consta do documento integrante da apólice, também designado garantia; (…) Limite Máximo de Indemnização – Montante máximo de indemnizações a pagar, relativamente a cada período de 12 (doze) meses, ou Anuidade, da vigência da Apólice, determinado pela aplicação de um factor, fixado nas Condições Particulares, ao Valor do Prémio Anual relativo à Anuidade em que se constituiu o Crédito sinistrado (…)”.
7) O artigo 4.º das Condições Gerais, com a epígrafe “Limites de Crédito”, dispõe o seguinte: “(…) 3. A A... fixa o Limite de Crédito por cada Cliente proposto ao seguro, seus termos e validade, podendo, por iniciativa própria ou a pedido do Segurado, elevar, reduzir, suspender ou anular os Limites de Crédito previamente fixados. (…) 6. A fixação do Limite de Crédito e o aumento do limite anteriormente fixado são válidos e produzem efeitos desde a data em que o Cliente foi apresentado ao seguro, ou em que tenha sido solicitado aumento, consoante o caso, a menos eu outra data seja expressamente indicada pela A... no acto da fixação. 7. A redução e a anulação de Limite de Crédito por iniciativa da A... têm efeitos indicados na Garantia. (…).
8) O artigo 15.º das Condições Gerais, com a epígrafe “Termo do Contrato”, dispõe o seguinte: “(…) 2. A denúncia pode ser efectuada por qualquer das partes, mediante comunicação escrita à outra, com antecedência não inferior a sessenta dias relativamente à data fim de cada Período de Vigência da Apólice, mantendo-se o seguro em relação aos Créditos constituídos até essa data. Nos casos em que o Período de Vigência da apólice inclua mais do que uma Anuidade, a denúncia só produz efeitos no final da última Anuidade desse Período de Vigência.”.
9) No ano de 2020, foi efectuada uma redução nas coberturas da apólice relativamente aos clientes de risco mais elevado.
10) Em Maio de 2020, a A. comunicou à R. a redução da garantia a valor zero relativamente a créditos titulados pela R. no valor total de 1.470.000 euros e relativos a 17 clientes desta.
11) À data da anulação da apólice, esta mantinha 830.000 euros de garantia em vigor.
12) Na anuidade correspondente ao período de Dezembro de 2019 a Dezembro de 2020, foram declaradas à R. vendas em 11 dos 12 meses da referida vigência,
13) Tendo a R. registado vendas seguráveis em todos os meses da anuidade, as quais foram comunicadas à A.
14) As vendas anuais contratadas à R. eram de 8.000.000 euros com um mínimo de 6.400.000 euros, tendo a R. declarado, em 11 meses, um total de 5.055.191,03 euros.
15) A A. emitiu, relativamente aos prémios de seguro devidos no ano de 2020, os seguintes documentos de cobrança:
- AP AVP1/...76, vencido em 06.06.2020, no valor de 5.670 euros;
- F FNP1/...39, vencido em 04.06.2020, no valor de 130,38 euros;
- F FNP1/...12, vencido em 05.07.2020, no valor de 36,91 euros;
- AP AVP1/...68, vencido em 05.09.2020, no valor de 5.670 euros;
- F FNP1/...91, vencido em 03.10.2020, no valor de 23,07 euros;
- F FNP1/...54, vencido em 06.01.2021, no valor de 23,07 euros;
16) Relativamente ao período referido nos documentos mencionados no facto 15), a R. é credora de um estorno no valor de 844,70 euros.
17) A R., por e-mail datado de 21.05.2020, comunicou à A. o seguinte: “Por indicação do Segurado em assunto, vimos informar que o mesmo pretende a resolução imediata do contrato devido às sucessivas reduções/anulações de garantias verificadas.
18) A R. não procedeu ao pagamento das quantias referidas em 15).
III.2. A mesma instância considerou não provados os seguintes factos:
a) A partir do ano início do ano de 2020, a A. começou a reduzir a zero todas as garantias e cobertura relativamente aos clientes da R., tendo ficado demonstrado o vertido em 10) a 14) do elenco dos factos provados.

IV. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO.
1. Reapreciação da matéria de facto.
Dispõe hoje o n.º 1 do artigo 662.º do Código de Processo Civil que “a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”, estabelecendo o seu nº 2:
A Relação deve ainda, mesmo oficiosamente:
a) Ordenar a renovação da produção da prova quando houver dúvidas sérias sobre a credibilidade do depoente ou sobre o sentido do seu depoimento;
b) Ordenar, em caso de dúvida fundada sobre a prova realizada, a produção de novos meios de prova;
c) Anular a decisão proferida na 1.ª instância, quando, não constando do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, ou quando considere indispensável a ampliação desta”.
Como refere A. Abrantes Geraldes[1], “a Relação deve alterar a decisão da matéria de facto sempre que, no seu juízo autónomo, os elementos de prova que se mostrem acessíveis determinem uma solução diversa, designadamente em resultado da reponderação dos documentos, depoimentos e relatórios periciais, complementados ou não pelas regras de experiência”… “afastando definitivamente o argumento de que a modificação da decisão da matéria de facto deveria ser reservada para casos de erro manifesto” ou de que “não é permitido à Relação contrariar o juízo formulado pela 1ª instância relativamente a meios de prova que foram objecto de livre apreciação”, acrescentando que este tribunal “deve assumir-se como verdadeiro tribunal de instância e, por isso, desde que, dentro dos seus poderes de livre apreciação dos meios de prova, encontre motivo para tal, deve introduzir as modificações que se justificarem”.
Importa notar que a sindicância cometida à Relação quanto ao julgamento da matéria de facto efectuado na primeira instância não poderá pôr em causa regras basilares do ordenamento jurídico português, como o princípio da livre apreciação da prova[2] e o princípio da imediação, tendo sempre presente que o tribunal de 1ª instância encontra-se em situação privilegiada para apreciar e avaliar os depoimentos prestados em audiência. O registo da prova, pelo menos nos moldes em que é processado actualmente nos nossos tribunais – mero registo fonográfico –, “não garante a percepção do entusiasmo, das hesitações, do nervosismo, das reticências, das insinuações, da excessiva segurança ou da aparente imprecisão, em suma, de todos os factores coligidos pela psicologia judiciária e dos quais é legítimo ao tribunal retirar argumentos que permitam, com razoável segurança, credibilizar determinada informação ou deixar de lhe atribuir qualquer relevo”[3].
Insurge-se a recorrente contra a decisão relativa à matéria de facto, imputando à mesma erro de julgamento ao considerar não provada a matéria constante da alínea a) dos factos não provados, a qual, na sua perspectiva, deve ser julgada provada. Convoca como meios de prova, em amparo do sentido defendido, prova documental (documento n.º 1 junto com a oposição) e testemunhal (depoimento das testemunhas AA e BB).
Reclama, em consequência, que seja adicionada aos factos provados a seguinte matéria: “Em Maio de 2020 a Autora procedeu unilateralmente à alteração das condições e garantias da apólice, sem qualquer aviso prévio, em plena vigência da anuidade”.
Procedeu-se à audição das indicadas testemunhas.
- A testemunha AA é funcionária administrativa da R. há cerca de seis anos, revelando conhecimento dos factos sobre os quais depôs em virtude do exercício dessas funções.
Depois de referir ser possível que tenha partido da Ré a decisão de resolver o contrato, acrescenta que tal ocorreu “porque as garantias que tinham sido inicialmente atribuídas aos nossos clientes foram diminuídas, mais de 18-20 clientes tínhamos garantidos pela A..., ficamos apenas com 4. E os que tinham cobertura não necessitavam que elas realmente tivessem cobertas, porque confiávamos nos clientes e continuávamos com os pagamentos regularizados. E foi a partir daí que tomamos a decisão de resolver o contrato imediatamente porque não estava a ser prestado o serviço que foi contratado”.
Confirma ainda a listagem dos clientes em que as garantias foram reduzidas a zero e o impacto que tal redução teve para a empresa Ré.
- A testemunha BB, mediador de seguros, confirmou o envio à A... do e-mail datado de 21 de Maio de 2020, na sequência de uma reunião que se realizou na empresa B..., na qual não esteve presente o depoente, mas antes um colega seu, da empresa C..., S.A., tendo conhecimento que “a B... a partir de certa altura e particularmente por altura dessa reunião, manifestou alguma insatisfação por parte das garantias ou algumas garantias, em concreto não sei quantificar, manifestou que havia algum desagrado com a redução de garantias ao que deu a entender que não fazia sentido manter o contrato, no fundo de forma resumida, creio que foi essa a posição da empresa, que nós transmitimos, ou que eu transmiti no caso nesse e-mail”.
Da conjugação destes depoimentos, em especial do depoimento da testemunha AA, não resulta evidenciado que a Autora haja reduzido “a zero todas as garantias e cobertura relativamente aos clientes da R.”., mas que tal ocorreu em relação a parte substancial desses clientes, mais concretamente os indicados na listagem que constitui o documento n.º 1, fls. 3, junto aos autos pela Ré, num total de 17 clientes, em conformidade, de resto, com o que consta no ponto 10) dos factos provados, que não foi objecto de impugnação pela recorrente.
Consta, além disso, no ponto 11) dos factos provados que “À data da anulação da apólice, esta mantinha 830.000 euros de garantia em vigor”, matéria que igualmente não foi impugnada recursivamente, o que contraria o facto mencionado na alínea a) dos factos não provados, onde se refere que “A partir do ano início do ano de 2020, a A. começou a reduzir a zero todas as garantias e cobertura relativamente aos clientes da R.”.
Como tal, improcede o recurso relativamente à impugnação da decisão sobre a matéria de facto, que, assim, se mantém inalterada.
2. Da aplicação do Direito aos factos provados.
Contrato de seguro é aquele pelo qual alguém se obriga, mediante o pagamento de determinado prémio, a indemnizar o respectivo tomador ou um terceiro pelos prejuízos decorrentes da verificação de certo dano ou risco. Constitui, pois, um contrato oneroso, tipicamente aleatório, de prestações recíprocas e de execução continuada.
Trata-se de um contrato consensual, porque a sua celebração pressupõe apenas o simples acordo das partes, mas formal, porquanto a sua validade depende da sua redução a escrito (formalidade ad substantiam), traduzida na respectiva apólice, não podendo a declaração negocial valer com um sentido que não tenha no texto um mínimo de correspondência[4].
Joaquín Garrigues[5] propõe para o contrato em causa a definição seguinte: "seguro é um contrato substantivo e oneroso pelo qual uma pessoa - o segurador - assume o risco de que ocorra um acontecimento incerto pelo menos quanto ao tempo, obrigando-se a cobrir a necessidade pecuniária sentida pela outra parte - o segurado - em consequência deste risco, determinado no contrato. É um contrato, oneroso, tipicamente aleatório, de prestações recíprocas e de execução continuada.
O contrato de seguro é um contrato aleatório por via da qual uma das partes, a seguradora, se obriga, mediante o recebimento de um prémio, a suportar um risco, liquidando o sinistro que venha a ocorrer[6].
Numa formulação mais ampla, Margarida Lima Rego[7] define-o como “contrato pelo qual uma parte, mediante retribuição, suporta um risco económico da outra parte ou de terceiro, obrigando-se a dotar a contraparte ou o terceiro dos meios adequados à supressão ou atenuação das consequências negativas reais ou potenciais da verificação de um determinado facto”.
Esta formulação doutrinária encontra hoje assento no artigo 1.º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro, segundo o qual “por efeito do contrato de seguro, o segurador cobre um risco determinado do tomador do seguro ou de outrem, obrigando-se a realizar a prestação convencionada em caso de ocorrência do evento aleatório previsto no contrato, e o tomador do seguro obriga-se a pagar o prémio correspondente”.
Conforme previsto no artigo 123.º do aludido Regime Jurídico do Contrato de Seguro, o seguro de danos pode respeitar a coisas, bens imateriais, créditos e quaisquer outros direitos patrimoniais.
No seguro de crédito o risco seguro é o risco de crédito, ou seja, o risco da não satisfação do crédito do segurado e tomador do seguro sobre um seu cliente. Embora não seja o único risco passível de ser segurado, como resulta do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 183/88, de 24 de Maio, normalmente o seguro de crédito cobre o risco de falta ou atraso no pagamento dos montantes devidos ao credor.
De acordo com o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11.02.1999[8], “I - O contrato de seguro é a convenção por virtude da qual uma das partes (segurada) se obriga, mediante caução (prémio) paga pela outra parte (seguradora) a assumir um risco ou um conjunto de riscos e, caso a situação de risco se concretize, a satisfazer ao segurado ou a terceiro uma indemnização pelos prejuízos sofridos ou um determinado montante previamente estipulado.
II - O contrato de seguro caução é uma modalidade do contrato de seguro regulado pelo Decreto-Lei 183/88 de 24 de Maio e é um negócio rigorosamente formal.
III - No seguro caução, o risco tem uma natureza própria, é o risco do incumprimento temporário ou definitivo de obrigações que, por lei ou convenção, sejam susceptíveis de caução, fiança ou aval [...]”.
O contrato de seguro de crédito rege-se pelas disposições do Decreto-Lei n.º 183/88, de 24 de Maio (na redacção dada pelos Decretos-Lei n.ºs 127/91, de 22 de Março, 214/99, de 15 de Junho, 51/2006, de 14 de Março, e 31/2007 de 14 de Fevereiro), e pelas disposições aplicáveis do regime jurídico do contrato de seguro aprovado pelo Decreto-Lei n.º 72/2008, de 16 de Abril, que revogou os artigos 425.º a 462.º do Código Comercial (artigo 6.º) e entrou em vigor no dia 1 de Janeiro de 2009 (artigo 7.º).
Como modalidade da espécie de seguro de coisas, ao seguro de crédito são aplicáveis os artigos 161.º a 165.º daquele regime jurídico e bem assim as disposições constantes da parte geral desse regime que não sejam incompatíveis com a sua natureza (artigos 2.º e 166.º).

Ao contrário do que sucede em relação ao seguro obrigatório de responsabilidade civil, que tem como escopo fundamental a tutela de terceiros, em que a liberdade contratual sofre apertadas restrições, não só pelo facto de ser imposta às partes o dever da sua celebração, mas ainda por esta se ter de reger por certos parâmetros legalmente definidos e impostos aos contratantes[9], no domínio do seguro facultativo, como o destinado à cobertura de danos próprios, impera o princípio da autonomia privada, assistindo às partes, como da designação se depreende, não só a liberdade de contratarem, como ainda a liberdade de convencionarem as regras do contrato, apenas cedendo essa liberdade perante os limites da boa fé, quer contratual, quer pré-contratual.
Assim, no seguro facultativo os direitos e deveres de cada um dos contratantes são os convencionados entre eles, constantes do respectivo contrato traduzido na apólice que o titula.
No caso em apreço, a Autora celebrou com a Ré, em 01.12.2016 e pelo prazo de 1 ano, prorrogável por igual período, um contrato de seguro de crédito titulado pela apólice n.º ...15.
O referido contrato visava a cobertura de sinistros relativos a eventuais incumprimentos dos créditos titulados pela Ré e decorrentes do exercício da sua actividade de comércio de calçado.
De acordo com o estipulado, a Autora assumiu a obrigação de assegurar, em caso de incumprimento, pelos clientes da Ré, o pagamento dos créditos devidos, a proceder ao pagamento de 90% do valor das facturas, em caso de clientes de mercado externo, e de 80%, em caso de clientes de mercado interno.
Celebraram as partes entre si um contrato que a respectiva apólice designa por “seguro de créditos”.
A Autora reclamou a condenação da Ré no pagamento [além de juros e outros valores correspondentes a taxa de justiça e custos de cobrança] da quantia de €10.735,79, correspondente a prémios de seguros vencidos e não pagos.
Sustenta a Ré não ser devida tal quantia, invocando o facto de a Autora haver reduzido as garantias tuteladas pelo contrato celebrado entre ambas, esvaziando o seu conteúdo, o que, na sua perspectiva, justifica a resolução do contrato, com efeitos extintivos reportados à data da respectiva declaração resolutiva operada através do e-mail enviado a 21.05.2020.
Ou seja: a Ré fundamenta a resolução do contrato de seguro de crédito celebrado com a Autora na circunstância de haver esta incumprido o programa negocial nele traçado.
O artigo 432.°, n.º 1 do Código Civil admite a resolução do contrato fundada na lei ou em convenção, operando mediante declaração duma parte à outra, nos termos do artigo 436.° do mesmo Código.
A revogação pode ser unilateral, quando é reconhecida a uma das partes a faculdade de dar sem efeito o contrato, ou bilateral, quando a extinção do contrato se dá por mútuo consentimento dos contraentes.
A resolução consiste na destruição da relação contratual, validamente constituída, operada por um acto posterior de vontade de um dos contraentes, que pretende fazer regressar as partes à situação em que elas se encontrariam se o contrato não tivesse sido celebrado[10].
O direito de resolução é um direito potestativo extintivo, que depende de um fundamento: exige a verificação de um facto que crie esse direito, isto é, tem de ocorrer um facto ou situação – no caso, o incumprimento ou inadimplência - a que a lei atribua como consequência o desencadeamento desse direito potestativo[11].
Assim, o direito de resolução está sempre condicionado a uma situação de inadimplência e, como ocorre no universo contratual, a resolução legal do contrato pressupõe uma situação de incumprimento “stricto sensu”.
Sob a epígrafe “Definições”, estabelece o Artigo Preliminar do acordo celebrado entre as partes: “
“(…)
Limite de Crédito – Montante máximo do crédito que a A... aceita segurar por Cliente; (…)
Garantia – Decisão através da qual a A... fixa para cada Cliente o Limite de Crédito que aceita segurar e eventuais condições adicionais de cobertura e que consta do documento integrante da apólice, também designado garantia;
(…)
Limite Máximo de Indemnização – Montante máximo de indemnizações a pagar, relativamente a cada período de 12 (doze) meses, ou Anuidade, da vigência da Apólice, determinado pela aplicação de um factor, fixado nas Condições Particulares, ao Valor do Prémio Anual relativo à Anuidade em que se constituiu o Crédito sinistrado (…)”.
O artigo 4.º das mesmas Condições Gerais, agora sob a epígrafe “Limites de Crédito”, dispõe:
“(…)
3. A A... fixa o Limite de Crédito por cada Cliente proposto ao seguro, seus termos e validade, podendo, por iniciativa própria ou a pedido do Segurado, elevar, reduzir, suspender ou anular os Limites de Crédito previamente fixados.
(…)
6. A fixação do Limite de Crédito e o aumento do limite anteriormente fixado são válidos e produzem efeitos desde a data em que o Cliente foi apresentado ao seguro, ou em que tenha sido solicitado aumento, consoante o caso, a menos eu outra data seja expressamente indicada pela A... no acto da fixação.
7. A redução e a anulação de Limite de Crédito por iniciativa da A... têm efeitos indicados na Garantia. (…)”.
Quanto aos limites de crédito, estabelece a cláusula V das Condições Particulares da apólice:
Eficácia das decisões de redução e ou anulação de limites de crédito (Artigo 4.º, I, n.º 5 das CGA)
Clientes do Mercado Interno: Após 30 dias sobre a data da decisão.
Clientes de Mercados Externos exceto Angola: Após 30 dias sobre a data da decisão.”
Assim, as Condições Gerais da apólice que titula o contrato de seguro celebrado entre as partes faculta à A... a possibilidade de, por iniciativa própria, reduzir, suspender ou anular os limites de crédito previamente fixados.
Nos termos das mesmas Condições a fixação de limite de crédito por iniciativa da seguradora é válida, estando a sua eficácia condicionada ao cumprimento dos prazos previstos na cláusula V) das Condições Particulares, que, no caso, se mostram observados – cfr. documento n.º 1, fls. 2, junto pela Ré.
Estando contratualmente assegurado o direito de a A..., por iniciativa própria, poder proceder à redução das garantias previamente fixadas, e mostrando-se respeitado o prazo definido na cláusula V das Condições Particulares da apólice, inexiste justificação para a resolução do contrato de seguro, sendo, como tal ilícita a resolução em que se firma a Ré para sustentar não serem devidos os prémios cujo pagamento é reclamado pela Autora.
Como precisa a sentença aqui sindicada, “...atentando naquelas que são as estipulações contratuais relevantes que regem o contrato de seguro celebrado entre as partes, a situação de incumprimento invocada pela R. não encontra respaldo no programa a que ambas as partes se vincularam.
Com efeito, a invocada redução de garantias operada pela A. encontra respaldo no artigo 4.º das Condições Gerais que, com a epígrafe “Limites de Crédito”, dispõe o seguinte: “(…) 3. A A... fixa o Limite de Crédito por cada Cliente proposto ao seguro, seus termos e validade, podendo, por iniciativa própria ou a pedido do Segurado, elevar, reduzir, suspender ou anular os Limites de Crédito previamente fixados. (…) 6. A fixação do Limite de Crédito e o aumento do limite anteriormente fixado são válidos e produzem efeitos desde a data em que o Cliente foi apresentado ao seguro, ou em que tenha sido solicitado aumento, consoante o caso, a menos eu outra data seja expressamente indicada pela A... no acto da fixação. 7. A redução e a anulação de Limite de Crédito por iniciativa da A... têm efeitos indicados na Garantia. (…) – facto 7) do elenco dos factos provados. Desta cláusula contratual resulta, assim, expressa a possibilidade da A. reduzir o limite de crédito – o montante máximo do crédito que a A. aceita segurar por cliente – desde que observado o procedimento descrito para a comunicação dessa redução.
Tal forma de conformação da prestação contratual devida, para além de consagração expressa no programa contratual, traduz-se a final numa forma regulada de garantir o equilíbrio das prestações (obstando à assunção de um risco desmesurado pela seguradora e relativamente ao qual esta se encontra totalmente exposta às vicissitudes dos mercados onde o segurado opera e que, nessa medida, não controla).
Este mecanismo é, por sua vez, e da perspectiva do interesse do segurado, contrabalançado com a necessidade de comunicação da redução dos limites de crédito a operar ex tunc permitindo ao segurado reajustar a sua actividade e a sua relação com os seus clientes de forma mais cautelosa. Esta forma de concordância prática dos interesses em jogo resulta assim, a nosso ver, num mecanismo de equilíbrio das prestações como refracção do princípio geral da boa-fé o cumprimento das obrigações (art.762.º CC), crivo à luz do qual é sempre, e a final, apreciada a licitude da pretensão resolutiva dos contraentes.
Chegados aqui, é inarredável, quanto a nós, a conclusão de que não assistia à R. o direito de resolver o contrato de seguro celebrado com a A. não apenas porque a actuação desta encontra, como sublinhado, arrimo nas estipulações contratuais que aquela livremente aceitou e que, por anos, regularam o contrato sem qualquer objecção, como também pelo facto de, no plano concreto, tal actuação reconduzir-se a um mecanismo de equilíbrio contratual que, perante um agravamento de risco como mensurado pela A., veio a traduzir-se numa redução de 18,75% do valor máximo de vendas (a saber, 1.470.000 euros face às vendas anuais contratadas no montante de 8.000.000 euros), sendo ademais certo que, não obstante tais reduções, à data da anulação da apólice, esta mantinha 830.000 euros de garantia em vigor, tendo a R. declarado, em 11 meses do ano de 2020, um total de 5.055.191,03 euros. Ou seja, o contrato de seguro de crédito celebrado não ficou de todo, em razão da referida faculdade de redução de limite de crédito que à A. assistia (contratualmente prevista, recorda-se), esvaziado de conteúdo, não podendo, por esta via, ser assacada qualquer conduta atentatória da lisura contratual que a resolução pressupõe.
Não sendo lícita a resolução, não pode a R. pretender que os seus efeitos – designadamente, a extinção concomitante do vínculo contratual – sejam reconhecidos. E não sendo, a sua declaração datada de 21.05.2020, encerrando uma inequívoca pretensão extintiva de tal vínculo, apenas pode ser conformada como uma denúncia do contrato pois que, como referido, e independentemente da denominação utilizada pela R. na aludida missiva, a verdade é que se trata de uma declaração destinada a pôr fim imediato ao contrato”.
Não merecendo censura o decidido, confirma-se a sentença recorrida, com a consequente improcedência do recurso.
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Síntese conclusiva:
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Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente o recurso da apelante B..., Lda., confirmando a sentença recorrida.

Custas da apelação: a cargo da recorrente.



Porto, 15.06.2023
Acórdão processado informaticamente e revisto pela primeira signatária.
Judite Pires
Aristides de Almeida
Francisca Mota Vieira
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[1] “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 2013, Almedina, pág. 224 e 225.
[2] Artigos 396º do C.C. e 607º, nº5 do Novo Código de Processo Civil.
[3] Abrantes Geraldes, “Temas da Reforma do Processo Civil”, vol. II, 1997, pág. 258. Cfr. ainda, o Acódão Relação de Coimbra de 11.03.2003, C.J., Ano XXVIII, T.V., pág. 63 e o Ac. do STJ de 20.09.2005, proferido no processo 05A2007, www.dgsi.pt, podendo extrair-se deste último: “De salientar a este propósito, como se faz no acórdão recorrido, que o controlo de facto em sede de recurso, tendo por base a gravação e/ou transcrição dos depoimentos prestados em audiência não pode aniquilar (até pela própria natureza das coisas) a livre apreciação da prova do julgador, construída dialecticamente na base da imediação e da oralidade.
Na verdade, a convicção do tribunal é construída dialecticamente, para além dos dados objectivos fornecidos pelos documentos e outras provas constituídas, também pela análise conjugada das declarações e depoimentos, em função das razões de ciência, das certezas e ainda das lacunas, contradições, hesitações, inflexões de voz, (im) parcialidade, serenidade, "olhares de súplica" para alguns dos presentes, "linguagem silenciosa e do comportamento", coerência do raciocínio e de atitude, seriedade e sentido de responsabilidade manifestados, coincidências e inverosimilhanças que, por ventura transpareçam em audiência, das mesmas declarações e depoimentos (sobre a comunicação interpessoal, RICCI BOTTI/BRUNA ZANI, A Comunicação como Processo Social, Editorial Estampa, Lisboa, 1997)”.
[4] Cf. Acórdão Relação do Porto, 25.03.2004, processo nº 0430103, www.dgsi.pt.
[5] “Contrato de Seguro Terrestre”, Madrid, 1983.
[6] Cf. Pedro Romano Martinez, Direito dos Seguros, 2006, pág. 51.
[7] Contrato de seguro e terceiros, 2010, pág. 66.
[8] Processo n.º 98B484, www.dgsi.pt.
[9] Maria Clara Lopes, “Responsabilidade Civil Extracontratual”, Rei dos Livros, pág. 27.
[10] Antunes Varela, “Das Obrigações em Geral”, II, 2.ª edição, 1974, pág. 238.
[11] Cfr. João Baptista Machado, “Pressupostos da Resolução por Incumprimento”, in Obra Dispersa, Scientia Ivridica, Braga, 1991, págs. 130 e seguintes.