Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1910/17.1T8STS-F.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: RODRIGUES PIRES
Descritores: INSOLVÊNCIA
REMUNERAÇÃO DO ADMINISTRADOR
SATISFAÇÃO DOS CRÉDITOS
Nº do Documento: RP202301241910/17.1T8STS-F.P1
Data do Acordão: 01/24/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: RECURSO IMPROCEDENTE; DECISÃO CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – Para determinação da remuneração variável a que tem direito o Administrador da Insolvência, ao abrigo do disposto no art. 23º, nº 7 do Estatuto do Administrador Judicial, na redação da Lei nº 9/2022, de 11.1., há que atender ao grau de satisfação dos créditos.
II – Como tal, no cálculo da majoração prevista nesta disposição legal ter-se-á em atenção a percentagem de satisfação dos créditos reclamados que foram admitidos.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 1910/17.1 T8STS-F.P1
Comarca do Porto – Juízo de Comércio de Santo Tirso – Juiz 1
Apelação (em separado)

Recorrente: AA
Recorrido: Min. Público
Relator: Eduardo Rodrigues Pires
Adjuntos: Desembargadores Márcia Portela e João Ramos Lopes


Acordam na secção cível do Tribunal da Relação do Porto:

RELATÓRIO
No presente processo de insolvência referente a BB e CC o Sr. Administrador da Insolvência, AA, veio, em 5.7.2022, apresentar o seguinte requerimento:
“1. No âmbito do processo supra mencionado deu o Administrador Judicial por encerrada a liquidação;
2. Sendo que, o Administrador Judicial deu cumprimento ao art. 62º CIRE;
3. Uma vez quem, já se encontram liquidadas todas as dívidas da responsabilidade da massa insolvente que o Administrador Judicial teve conhecimento, encontram-se reunidas as condições para efectuar o cálculo da proposta da remuneração do AJ;
4. Pelo que, procedeu o AJ ao cálculo dos mesmos;
5. Como tal, somos a JUNTAR o seguinte:
a. Cálculo da Remuneração Variável do AJ (Anexo 1);
6. Sendo que, cumpre prestar os seguintes esclarecimentos:
a. Anexo 1 – Remuneração Variável
i. O Administrador Judicial procedeu à liquidação do património do ora insolvente;
ii. Como se constata, no presente processo foram apreendidos bens imóveis os quais foram liquidados pelo montante de 17.803,47€;
iii. Ora de acordo com o Estatuto do Administrador de Insolvência e aplicando a Tabela a que se refere o nº 2 do art. 20º da Lei nº 32/2004, de 22 de Julho e a Tabela a que se refere o nº 4 do art. 20º da Lei nº 32/2004, de 22 de Julho, determina-se o cálculo do Valor de Remuneração Variável a Receber por parte do Administrador de Insolvência no montante global de 17.803,47€;
iv. Sendo certo, já foi o Administrador Judicial ressarcido de todos os montantes referentes à sua Remuneração Fixa;
v. Em suma, o Administrador Judicial tem [a] haver de remuneração variável 17.803,47€ a que acresce IVA à taxa legal em vigor de 23%, perfazendo um montante global de 21.898.27€;
7. Aproveitamos para informar que o presente requerimento foi junto aos credores (Anexo 2);
8. Face ao supra exposto, somos a SOLICITAR que o mui Nobre Tribunal se pronuncie quanto ao Cálculo da Remuneração Variável do AJ de forma a ser apresentado o Cálculo da Proposta de Rateio e posteriormente efectuados os pagamentos.”
Em 22.8.2022 foi feita a seguinte informação pela Secretaria:
“Compulsados os autos, não podemos concordar com o cálculo da remuneração variável apresentado, nos termos do artº 23º, nº 4, al. b), do EAJ, uma vez que, pelas nossas contas, o resultado da liquidação é superior ao apresentado no requerimento.
Discordámos também da fórmula do cálculo da majoração, nos termos do artº 23º, nº 7, al. b), do EAJ.
O Sr. Administrador da Insolvência apresentou proposta de cálculo da sua remuneração variável feita à luz das novas regras introduzidas pela Lei 9/2022, de 11 de Janeiro. Analisada a mesma, afigura-se-nos que ela não respeita os termos definidos no artº 23º, nº 4 e 7, da Lei 22/2013, de 26 de Fevereiro (Estatuto dos Administradores Judiciais), na sua nova redacção.
Os administradores judiciais auferem uma remuneração variável directamente relacionada com o resultado da liquidação da massa insolvente, correspondente a 5% do resultado desta, deduzidas as respectivas despesas, sendo este valor majorado, numa segunda operação, em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos, numa nova percentagem de 5% do montante dos créditos satisfeitos.
O legislador ao consagrar o seu pensamento no nº 7 do artº 23º da Lei 22/2013, de 26 de Fevereiro, poderá não ter escolhido a formulação mais clara para expressar o seu pensamento mas, de forma sistematicamente lógica, estabeleceu um princípio que não pode ser ignorado, a saber:
A operação de majoração assenta na consideração de duas realidades que são o grau de satisfação dos créditos reclamados e acolhidos e a aplicação da percentagem de 5% sobre o montante dos créditos satisfeitos operada a concretização do grau de cobertura dos créditos admitidos e reconhecidos. Em suma, a fixação da remuneração variável pressupõe a realização de duas operações; uma incidindo directamente sobre os valores obtidos com a liquidação – deduzidas as despesas da massa insolvente – outra, majorativa, incidindo sobre o montante dos créditos satisfeitos, mas temperada com a percentagem de pagamento dos créditos reconhecidos.
No caso dos autos afigura-se-nos que o cálculo apresentado não considerou o grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos, apresentando-se como um cumular de duas operações incidentes em ambos os casos “grosso modo” sobre o resultado da liquidação assim ignorando a variável “(…) do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos” prevista no nº 7 do artº 23º do citado Estatuto do Administrador Judicial, na redacção que recentemente entrou em vigor.
O conceito de remuneração variável e a sua fixação, em termos basilares, não sofreu uma alteração radical quanto aos termos em que estava previsto no Estatuto do Administradores Judiciais e na Portaria 51/2005, de 20 de Janeiro. Esta continha duas tabelas – anexos I e II – que abordando, respectivamente, o resultado da liquidação e a percentagem dos créditos admitidos e satisfeita, e que são presentemente replicadas, sob outra formulação, nos nºs 4, al. b), e 7, do artº 23º do EAJ, se mantêm como referenciais das regras base que norteavam este tema – o valor da liquidação e a percentagem dos créditos satisfeitos.
Na nossa óptica, no caso da situação em apreço, quanto à fixação da remuneração variável, importará considerar o cálculo que a seguir apresentamos.
(…)”
A remuneração variável do Sr. Administrador da Insolvência foi então calculada em 14.443,77€.
Notificado para se pronunciar no tocante ao teor desta informação o Sr. Administrador da Insolvência veio expor o seguinte em 15.9.2022:
“1. Na sequência do douto despacho o Administrador Judicial é notificado com a cota quanto ao cálculo da sua remuneração variável, bem como novo cálculo;
2. Sendo que, da análise dos documentos juntos, somos a informar o seguinte:
a. Desde já somos a informar que os valores das despesas retiradas da massa não se encontram corretas;
b. Sendo que, foram retirados os seguintes valores:
i. Condomínio: 1.043,42€;
ii. Troca de fechaduras: 70,00€
iii. Troca de fechaduras: 98,40€
iv. Custos de transferência: 2,60€
v. IMI 2017 e 2019: 647,88€ - conforme junto aos autos em Mar2022
vi. Remuneração fixa paga pela MI: 1.230,00€
c. Relativamente aos 5% dos montantes reclamados e reconhecidos, salvo melhor opinião, o referido não corresponde à alteração à Lei;
d. Sendo que, a alteração à Lei refere Majoração, 5% do montante dos créditos satisfeitos, pago previamente à satisfação daqueles, Art. 23º, n.º7 do EAJ, alterado pela Lei 9/2022 (Sem IVA);
e. Isto é, e salvo melhor opinião, caso tenha existido rateio parcial, diminuição de créditos, entre outros;
f. A alteração à Lei, e salvo melhor opinião, não contempla que o cálculo da remuneração variável seja em função dos créditos reconhecidos;
3. Face ao exposto, o Administrador Judicial mantém o cálculo junto aos autos pelo mesmo.”
Em 19.9.2022 o Min. Público promoveu o seguinte:
“Desde já se consigna posição de integral concordância com a forma de cálculo da RV tal como plasmada sob Referência 439455613, de 22-08-2022.
Todavia, por ora e uma vez que, para além dessa questão, vêm postos em crise os concretos valores parcelares e global das despesas da massa considerados em tal cálculo, promovo a remessa dos autos à Secretaria/Sr. Funcionário contador para pronúncia sobre tal específico aspeto.”
Por despacho judicial de 20.9.2022 os autos foram de novo remetidos à Secretaria e em 10.10.2022 foi feita a seguinte informação:
“… compulsados novamente os autos e analisado o requerimento refª 43270917, de 15-09-2022, verificamos haver razão por parte do Sr. Administrador da insolvência no que se refere às despesas do processo, já que tínhamos considerado como pagos, a título de IMI, os valores constantes na promoção refª 430495011, de 18-11-2021, do apenso da prestação de contas e não o indicado no requerimento supra referido, que foi o montante realmente pago.
Pelo exposto, apresentamos um novo cálculo da remuneração variável.”
A remuneração variável do Sr. Administrador da Insolvência foi agora calculada em 14.473,05€.
Em 14.10.2022 o Min. Público fez a seguinte promoção:
“Promovo:
- a aprovação do cálculo da RV efetuado pela Secretaria/Sr. Funcionário contador em 12-10-2022;
- a confirmar-se (tal aprovação), também, subsequente oportuna notificação do Exmo. AI para reformular em conformidade a anterior proposta de rateio (junta aos autos em 29-07-2022).”
Em 17.10.2022 foi proferido o seguinte despacho judicial:
“Requerimentos com refª 42977416 e 43270917 e promoção com refª 441111560:
Pese embora o teor do requerimento do(a) Exm(a) Sr(a) Administrador(a) da Insolvência e dos fundamentos expendidos no mesmo, face à atual redação do artº 27º, nº 7, do CIRE, onde expressamente se faz referência ao grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos, é nosso entendimento que o cálculo da remuneração variável efetuado pelo Exm. Sr. Contador se encontra correto, dando-se por integralmente reproduzida a análise efetuada pelo mesmo aos 22-08-2022.
Deste modo, indefere-se a reclamação apresentada pelo(a) Exm(a) Sr(a) Administrador(a) da Insolvência, fixando-se a remuneração variável nos termos da informação supramencionada e do cálculo retificado aos em 12-10-2022.
Notifique.”
Inconformado com este despacho dele interpôs recurso o Sr. Administrador da Insolvência, em 2.11.2022, tendo finalizado as suas alegações com as seguintes conclusões:
“a) Vem o recurso interposto do Despacho judicial de 17 de Outubro de 2022, segundo o qual o Tribunal a quo entendeu indeferir, por não concordar, com o cálculo apresentado pelo Senhor Administrador de Insolvência no valor total de 21.898,27€;
b) Ao decidir dessa forma, o Tribunal a quo não fez a correcta interpretação e aplicação dos preceitos legais aplicáveis nomeadamente do atual artº 23 do Estatuto do Administrador Judicial – Lei n.º 22/2013, de 26 de Fevereiro, na versão introduzida pela Lei n.º 9/2022, de 11 de Janeiro - devendo, por conseguinte, ser revogada e substituída por outra decisão que aplique o direito ao caso concreto;
c) Em especial o previsto no n.º 7, do artigo 23.º do EAJ, uma vez que a atual redação da lei implica a total irrelevância da percentagem do valor a ratear sobre a totalidade dos créditos reconhecidos.
d) Pois, contrariamente ao entendimento do tribunal, a majoração não incide, nem é relevante a “percentagem” sobre os créditos satisfeitos;
e) Pelo que, deve de ser reconhecido ao recorrido o direito a remuneração variável que apresentou e constante da proposta de remuneração variável e no valor de 17.803,47€, a que acresce o IVA (totalizando assim 21.898,27€), por ter sido calculado de acordo com a nova fórmula de cálculo instituída pela Lei 9/2022 de 11 de Janeiro.
Nestes termos e nos demais de Direito que V. Exas. doutamente suprirão, requer-se que a decisão recorrida seja revogada e substituída por outra, que ordene que a remuneração variável a pagar ao recorrido é a contemplada na proposta de remuneração variável que apresentou, que perfaz o total de 21.898,27€ nos termos previstos no artº 23 do Estatuto do Administrador Judicial – Lei n.º 22/2013, de 26 de Fevereiro.”
O Min. Público apresentou contra-alegações, em 7.11.2022, nas quais se pronunciou pela confirmação do decidido, tendo formulado as seguintes conclusões:
“1. O despacho recorrido, ao validar o cálculo da RV tal como elaborado pela Secretaria/Sr. Funcionário contador, fixando o respetivo montante no valor ali indicado, procedeu à correta interpretação e aplicação das normas jurídicas que assinalam a forma de cálculo da RV (Remuneração Variável) auferida pelos Administradores judiciais em processo de insolvência, máxime, as constantes do art.23º/4, b), 6 e 7, do EAJ (Estatuto do Administrador Judicial) aprovado pela Lei nº22/2013, de 26-02, na redação dada pelo art.5º da Lei nº9/2022, de 11-01;
2. Com o que deve o douto tribunal da Relação julgar improcedente o presente recurso, confirmando na íntegra a douta decisão recorrida.”
Por despacho de 7.12.2022 o recurso foi admitido como apelação, com efeito meramente devolutivo, a subir imediatamente e em separado.
Cumpre então apreciar e decidir.
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FUNDAMENTAÇÃO
O âmbito do recurso, sempre ressalvadas as questões de conhecimento oficioso, encontra-se delimitado pelas conclusões que nele foram apresentadas e que atrás se transcreveram – cfr. arts. 635º, nº 4 e 639º, nº 1 do Cód. do Proc. Civil.
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A questão a decidir é a seguinte:
Apurar se o cálculo da remuneração variável do Sr. Administrador da Insolvência efetuado pela Secretaria é correto, o que envolve a interpretação da redação do art. 23º, nº 7 da Lei nº 22/2013, de 26.2. [Estatuto do Administrador Judicial] na redação que lhe foi conferida pela Lei nº 9/2022, de 11.1.
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Os elementos factuais e processuais relevantes para o conhecimento do presente recurso constam do antecedente relatório.
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Passemos à apreciação do mérito do recurso.
O art. 60º, nº 1 do Cód. da Insolvência e da Recuperação de Empresas [CIRE] estatui que «o administrador da insolvência nomeado pelo juiz tem direito à remuneração prevista no seu estatuto e ao reembolso das despesas que razoavelmente tenha considerado úteis ou indispensáveis
Por seu turno, o art. 23º da Lei nº 22/2013, de 26.2., que aprovou o Estatuto do Administrador Judicial [EAJ], na redação da Lei nº 9/2022, de 11.1., preceitua o seguinte:
«(…)
4 - Os administradores judiciais referidos no n.º 1 auferem ainda uma remuneração variável em função do resultado da recuperação do devedor ou da liquidação da massa insolvente, cujo valor é calculado nos termos seguintes:
a) 10 /prct. da situação líquida, calculada 30 dias após a homologação do plano de recuperação do devedor, nos termos do n.º 5;
b) 5 /prct. do resultado da liquidação da massa insolvente, nos termos do n.º 6.
(…)
6 - Para efeitos do n.º 4, considera-se resultado da liquidação o montante apurado para a massa insolvente, depois de deduzidos os montantes necessários ao pagamento das dívidas dessa mesma massa, com exceção da remuneração referida no n.º 1 e das custas de processos judiciais pendentes na data de declaração da insolvência.
7 - O valor alcançado por aplicação das regras referidas nos nºs 5 e 6 é majorado, em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos, em 5 /prct. do montante dos créditos satisfeitos, sendo o respetivo valor pago previamente à satisfação daqueles.
(…)
10 – A remuneração calculada nos termos da alínea b) do n.º 4 não pode ser superior a 100 000 (euro). (…)”
A interpretação a dar ao art. 23º, nº 7 do Estatuto do Administrador Judicial, nesta sua nova redação, está a ser objeto de entendimentos divergentes, de que é reflexo a interposição do presente recurso por parte do Sr. Administrador da Insolvência.
Ora, tal disparidade de entendimentos já deu origem a várias e recentes decisões jurisprudenciais, as quais, porém, de forma constante, têm vindo a seguir posição diferente da agora sustentada em via recursiva.
A questão coloca-se em saber se na majoração prevista do dito art. 23º, nº 7 do EAJ se deve entrar em linha de conta com a percentagem de satisfação dos créditos reclamados que foram admitidos, como se fez na decisão recorrida que acompanhou o cálculo efetuado pela Secretaria, ou se esta percentagem deve ser desconsiderada, conforme entende o recorrente.
A este propósito escreve-se o seguinte no Ac. Rel. Coimbra de 25.10.2022 (proc. 318/12.0 TBCNT-V.C1, relator EMÍDIO SANTOS, disponível in www.dgsi.pt.), que iremos seguir na apreciação da questão interpretativa aqui em análise:
“A interpretação da lei tem como base e como limite a respectiva letra. A letra é a base à interpretação pois é por ela que deve começar a interpretação. Funciona como limite, pois segundo o n.º 2 do artigo 9.º do Código Civil a lei não poderá valer com um sentido que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.
Sobre a importância da letra na interpretação, importa dizer, socorremo-nos das seguintes palavras de Manuel de Andrade, que “… a letra da lei não servirá apenas para traçar o quadro dos sentidos legais possíveis. Compete-lhe ainda propor uma graduação entre eles. É que uns terão no texto uma expressão bastante natural, desafogada e perfeita; outros, pelo contrário, só uma expressão mais ou menos constrangida, desairosa, inapropriada. Daí uma certa razão de preferência a favor dos sentidos com melhor qualificação literal, mesmo não sendo eles, simultaneamente, os portadores das soluções mais justas” [Sentido e Valor da Jurisprudência, Coimbra 1973, página 26].
Guiados por estas palavras, há que reconhecer que nenhum dos sentidos em confronto é excluído pela letra do n.º 7 do artigo 23.º do estatuto. Com efeito, a letra da lei tanto relaciona a majoração da remuneração variável com o grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos como a associa ao montante [dos] créditos satisfeitos. Ao dizer que “o valor alcançado … é majorado em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos” relaciona a majoração com o grau de satisfação dos créditos reclamados. Ao afirmar que o “valor alcançado é majorado em 5% do montante dos créditos satisfeitos” associa a majoração com o montante dos créditos satisfeitos.”
Se é certo que nenhum destes dois sentidos é excluído pela letra da lei, aquele que melhor se coaduna com esta é aquele em que se funda a lacónica decisão proferida pela 1ª Instância.
É que a interpretação feita pelo recorrente despreza um dos segmentos do preceito, mais concretamente aquele em que se diz que o valor da remuneração variável é majorado em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos. Seguindo-a, é como se do preceito não constasse este segmento e tivesse antes a seguinte redação: “o valor alcançado por aplicação das regras referidas nos nºs 5 e 6 é majorado em 5% do montante dos créditos satisfeitos.”
Sucede que esta leitura do preceito se afasta do que se dispõe no art. 9º, nº 3 do Cód. Civil, onde se diz que «na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados».
Assim, tal como se afirma no dito Ac. Rel. Coimbra de 25.10.2022, “… é de presumir que o legislador, ao estabelecer que o valor alcançado por aplicação das regras referidas nos n.ºs 5 e 6 é majorado, “em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos”, soube exprimir o seu pensamento em termos adequados. Ora, o pensamento que está compreendido no referido segmento é o de que a majoração depende também do grau de satisfação dos créditos. Na verdade, quando se diz que um valor é calculado em função de um certo elemento quer-se dizer que o valor depende desse elemento.”
Por isso, é de entender que a letra do preceito leva a que se siga a posição assumida pela 1ª Instância, sendo que no sentido desta também apontam os respetivos antecedentes legislativos.
Ora, sobre tais antecedentes escreve-se o seguinte no Ac. Rel. Coimbra de 25.10.2022:
“O artigo 23.º do estatuto do administrador da insolvência que está sob interpretação tem como antecedentes o artigo 20.º da Lei n.º 32/2004, de 22 de Julho (estatuto do administrador da insolvência revogado pela Lei n.º 22/2013)) e a Portaria n.º 51/2005, de 20 de Janeiro.
O artigo 20.º do anterior estatuto, à semelhança do que sucede com o actual, previa uma remuneração fixa, uma remuneração variável e uma majoração desta última, mas remetia para portaria conjunta dos Ministros da Finanças e da Justiça o montante da remuneração fixa e o cálculo da variável e da majoração.
No que dizia respeito à remuneração variável, dispunha que o administrador auferia tal remuneração em função do resultado da liquidação da massa insolvente, cujo valor era o fixado na tabela constante da portaria (n.º 2 do artigo 20.º).
No que tocava à majoração da remuneração variável, dispunha que o valor alcançado por aplicação da tabela constante da portaria era majorado, em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos, pela aplicação dos factores constantes da portaria (n.º 4 do artigo 20.º).
Ao abrigo da Lei n.º 32/2004, de 22 de Julho, o Governo aprovou a Portaria n.º 51/2005, de 20 de Janeiro, que compreendia o montante fixo de remuneração do administrador da insolvência nomeado pelo juiz e as tabelas relativas ao montante variável de tal remuneração.
A tabela relativa à majoração da remuneração variável era composta por duas colunas, em conformidade com o que previa o n.º 4 do artigo 20.º: uma relativa à percentagem dos créditos admitidos que fora satisfeita e outra com a indicação dos factores de majoração.
A conjugação do n.º 4 do artigo 20.º com a tabela não deixava dúvidas quanto ao seguinte:
A majoração dependia da percentagem dos créditos admitidos que fora satisfeita;
Quanto maior fosse a percentagem maior seria o factor de majoração da remuneração variável.
Esta solução estava em linha com a razão de ser da remuneração variável, concretamente: incentivar os administradores a desenvolver esforços no sentido de alcançar o melhor resultado possível para a satisfação dos credores. Quanto maior fosse a percentagem de créditos satisfeitos maior seria a remuneração variável.
O estatuto aprovado pela Lei n.º 32/2004 foi revogado pela Lei n.º 22/2013, de 26 de Fevereiro, que aprovou novo estatuto do administrador judicial, ainda em vigor, embora com as alterações que lhe foram introduzidas pelos seguintes diplomas: Lei n.º 17/2017, de 16 de Maio, Decreto-lei n.º 52/2019, de 17 de Abril, lei n.º 79/21, de 24-11 e Lei n.º 9/2022, de 11 de Janeiro.
No novo estatuto a remuneração do administrador passou a estar prevista no artigo 23.º.
As disposições deste preceito sobre a remuneração variável e respectiva majoração (números 2 e 5) não diferiam das disposições do anterior estatuto sobre igual matéria.
Em 2019, a redacção dos números 2 e 3 do artigo 23.º foi alterada pela Lei n.º 52/2019, de 17 de Abril.
As alterações consistiram no seguinte:
1. Enquanto na redacção original se dispunha que o administrador da insolvência nomeado por iniciativa do juiz auferia uma remuneração variável em função do resultado da liquidação da massa insolvente, cujo valor era o fixado nas tabelas constantes da portaria referida no número anterior, na nova redacção passava a dispor-se que o administrador da insolvência nomeado por iniciativa do juiz auferia ainda uma remuneração variável em função do resultado da liquidação da massa insolvente, cujo valor era o fixado portaria referida no número anterior. Isto é, fazia-se referência “à portaria” e não “às tabelas constantes da portaria”.
2. No que diz respeito à majoração da remuneração variável, enquanto na redacção original se dispunha que “o valor alcançado por aplicação das tabelas referidas nos n.ºs 2 e 3 era majorado, em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos, pela aplicação dos fatores constantes da portaria referida no n.º 1”, na nova redacção passou a dispor-se que “o valor alcançado por aplicação das regras referidas nos n.ºs 3 e 4 é majorado em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos, pela aplicação dos fatores constantes da portaria referida no n.º 1”. Isto é, em vez de se falar “em valor alcançado por aplicação das tabelas referidas nos n.ºs 2 e 3” passa a falar-se “em valor alcançado por aplicação das regras referidas nos n.ºs 3 e 4”.
A redacção do artigo 23.º volta a ser alterada pela Lei n.º 9/2022, de 11 de Janeiro, redacção que é a relevante para o caso.
Comparando a redacção anterior com a actual, a primeira diferença que importa assinalar entre elas é a de que esta deixou de remeter a fixação dos valores da remuneração do administrador para diploma regulamentar (portaria). A regulamentação da remuneração passou a ser feita no estatuto (artigo 23.º). Este passou a ser auto-suficiente em matéria de fixação dos valores da remuneração do administrador.
A regulamentação passou a ser a seguinte:
No que diz respeito à remuneração variável, estabeleceu-se na alínea b) do n.º 4 que tal remuneração era função do resultado da liquidação da massa insolvente e correspondia a 5% desse resultado, apurado nos termos do n.º 6 do mesmo preceito;
Quanto à majoração da remuneração variável, estabeleceu-se no n.º 7 que ela seria majorada, em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos, em 5% do montante dos créditos satisfeitos.
Comparando as redacções dos preceitos relativos à majoração da remuneração variável, vemos que a nova redacção manteve a afirmação de que majoração é feita em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e satisfeitos.
A alteração residiu apenas no segmento final do preceito: onde antes se dizia, “pela aplicação dos factores constantes da portaria referida no n.º 1” diz-se agora “em 5% do montante dos créditos satisfeitos”. O sentido da alteração é apenas o seguinte: na versão actual, em vez de se aplicarem os factores referidos na Portaria (Anexo II), aplica-se a taxa de 5%. E, assim, qualquer que seja o grau de satisfação dos créditos aplica-se sempre a mesma taxa (5%).
A ilação a tirar desta evolução legislativa é a de que o grau (percentagem) de satisfação dos créditos reclamados e admitidos mantém-se como um dos factores determinantes da majoração da remuneração variável.
Se assim não fosse, seria de esperar que a proposta de Lei que esteve na origem da alteração do artigo 23.º do actual estatuto do administrador da insolvência fizesse menção a tal alteração, o que não sucedeu. Na verdade, a proposta de lei em questão, que foi apresentada pelo Partido Socialista e pelo Partido Social Democrata, como proposta de alteração à proposta de Lei n.º 115/XIV/3.ª que deu origem ao processo legislativo que culminou com a aprovação a Lei n.º 9/2022, de 11 de Janeiro, é completamente omissa quanto às razões da alteração do artigo 23.º do estatuto.
Por último cabe dizer que não vale contra a decisão a alegação de que a interpretação da decisão não era compatível com o elemento teleológico. Vejamos.
Socorrendo-nos mais uma vez das palavras e Manuel Andrade, “na indagação do sentido mais justo deve tomar-se em conta a razão da lei (ratio legis – a valoração dos interesses que lhe está subjacente a finalidade que a inspirou …” (obra supracitada página 27).
Sabe-se qual é o objectivo da remuneração variável. Eles foram expostos na exposição de motivos da proposta de Lei que deu origem à Lei n.º 32/2004 [Proposta de lei n.º 112/IX/2] nos seguintes termos: “No que respeita à remuneração, estabeleceu-se um regime misto constituído por uma parte fixa e outra variável. Assim, a par de um montante fixo suportado pela massa insolvente, cria-se um sistema de prémios cujo montante varia em função da efectiva satisfação dos créditos. Este sistema garante, quer uma maior certeza no que respeita ao montante da remuneração, em virtude da existência de critérios objectivos, quer um incentivo que premeia o bom exercício da actividade”.
A interpretação da decisão recorrida, ao relacionar a majoração da remuneração variável com o grau de satisfação dos créditos, está em inteira conformidade com o propósito de a remuneração variar “em função da efectiva satisfação dos créditos”.”
Perfilhamos assim, por inteiro, a posição assumida no Ac. Rel. Coimbra de 25.10.2022, cuja argumentação transcrevemos largamente, assinalando que no mesmo sentido se pronunciaram também os seguintes acórdãos, todos disponíveis in www.dgsi.pt.:
- Ac. Rel. Coimbra de 28.9.2022 (proc. 2495/20.7 T8ACB.C1, relatora MARIA CATARINA GONÇALVES);
- Ac. Rel. Évora de 29.9.2022 (proc. 260/14.0 TBVTR.E1, relator TOMÉ DE CARVALHO);
- Ac. Rel. Coimbra de 11.10.2022 (proc. 3947/08.2 TJCBR-AY.C1, relator ARLINDO OLIVEIRA);
- Ac. Rel. Coimbra de 9.11.2022 (proc. 462/12.3 TJCBR-AF.C1, relatora HELENA MELO);
Também se pronunciou em idêntico sentido o recente Ac. Rel. Porto de 10.1.2023 (proc. 367/18.4 T8VNG.P1, relatora ANA LUCINDA CABRAL), neste momento não publicado, em que o ora relator figura como 1º adjunto.
Deste modo, na sequência do que atrás se expôs, há que confirmar a decisão recorrida, com o que se julga improcedente o recurso interposto pelo Sr. Administrador da Insolvência.
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Sumário (da responsabilidade do relator – art. 663º, nº 7 do Cód. de Proc. Civil):
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DECISÃO
Nos termos expostos, acordam os juízes que constituem este tribunal em julgar improcedente o recurso de apelação interposto por AA e, em consequência, confirma-se a decisão recorrida.

Custas, pelo seu decaimento, a cargo do recorrente.


Porto, 24.1.2023
Rodrigues Pires
Márcia Portela
João Ramos Lopes