Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1169/19.6T8PVZ.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOÃO VENADE
Descritores: PEDIDO RECONVENCIONAL
EXCEPÇÃO DE CASO JULGADO
CONTRATO PROMESSA
RESOLUÇÃO DO CONTRATO
DANOS CAUSADOS
ANIMAIS
Nº do Documento: RP202011051169/19.6T8PVZ.P1
Data do Acordão: 11/05/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA A DECISÃO
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Julgado improcedente pedido reconvencional onde se pedia a condenação dos Autores/reconvindos no pagamento de uma quanta a título de responsabilidade contratual, os factos que sustentavam esse pedido não podem voltar a ser discutidos entre as mesmas partes.
II - Se depois da decisão referida em 1), com base nos mesmos factos, os outrora Réus/reconvintes intentam nova ação em que formulam igual pedido, agora sustentado no seu empobrecimento e enriquecimento injustificado dos Réus, existe caso julgado que impede a apreciação desse pedido.
III - Ocorrendo a resolução da tradição do imóvel prometido vender a favor dos promitentes compradores, alegando-se a deterioração do imóvel causada por um cão que coabitava com os mesmos promitentes, a solução jurídica há-de encontrar-se pela aplicação do artigo 1269.º, ex vi artigo 289.º, n.º 3, do C. C..
IV - O disposto no artigo 493.º, do C. C., quando relativo a danos causados por animais, reporta-se a uma responsabilidade extracontratual não sendo assim aplicável àquela resolução contratual.
V - O prazo de prescrição aplicável ao direito de pedir o ressarcimento dos danos causados no imóvel é de 20 anos (artigo 309.º, do C. C.) e não de três anos como previsto no artigo 498.º, n.º 1, do C. C. por este ser aplicável à responsabilidade extracontratual.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 1169/19.6T8PVZ.P1.
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1). Relatório.
B… e mulher, C…, residentes na Travessa…, n.º .., …, Vila do Conde, propuseram contra
D… e mulher, E…, residentes na Rua…, n.º …, Póvoa de Varzim,
Ação declarativa de condenação sob a forma de processo comum a correr termos no Juízo Local Cível da Póvoa do Varzim, Juiz 1, formulando os seguintes pedidos de condenação solidária dos Réus:
a). ressarcir os Autores da quantia de 9.000 EUR a título de danos patrimoniais que lhe causaram no imóvel com a sua conduta descrita na petição inicial;
b). pagar aos Autores uma indemnização no montante de 6.300 EUR pelo uso e fruição do imóvel durante catorze meses consecutivos, tudo acrescido de juros de mora, à taxa legal de 4% desde a citação até à data do efetivo e integral pagamento.
Em sustento, resumidamente alegam que:
celebraram com os Réus em 01/05/2012 um contrato promessa de compra e venda de um imóvel, ficando acordado que estes passariam a ocupar e usufruir do mesmo, aí habitando com a sua família a título permanente, o que sucedeu até 28/06/2013;
na data da celebração da escritura de compra e venda, em 10/05/2013, os Réus recusaram-se a outorgar a mesma, alegando que o referido imóvel padecia de defeitos e patologias graves, tendo então restituído o imóvel o que sucedeu naquela data de 28/06/2013, frisando a intenção de não celebrar o contrato definitivo;
em 12/05/2014, os Réus intentaram uma ação judicial contra os Autores - processo n.º 833/14.0TBPVZ - onde peticionaram, além do mais, que os estes fossem condenados a reembolsá-los no montante de 20.000,00€, sendo esse o valor correspondente ao somatório das quantias que a título de sinal e adiantamento do preço, enquanto promitentes compradores, foram entregando;
os Autores contestaram a acção e deduziram reconvenção, pedindo que fosse declarada a resolução do contrato promessa de compra e venda por incumprimento definitivo imputável aos aqui Réus e que se declarasse o direito a fazerem sua a quantia de 10.000 EUR entregues a titulo de sinal bem como a pagar 7.800 EUR como indemnização pelo incumprimento definitivo do contrato prometido por terem ocupado de facto o imóvel e usufruído dos seus cómodos;
a ação foi julgada parcialmente procedente e improcedente a reconvenção, declarando-se a resolução do contrato promessa, condenando os aí Réus a pagar aos Autores 10.000 EUR, acrescidos de juros de mora à taxa de 4% ao ano desde a citação até integral pagamento;
a decisão transitou em julgado, no S. T. J., sendo que aí não se apreciou o direito dos agora Autores a uma indemnização pelo uso e fruição do locado por parte dos Réus pelo que têm agora legitimidade e fundamento para propor a presente ação;
nos autos 833/14.0TBPVZ, resultou provado que o valor locativo do imóvel, com aquelas características, é de 450 EUR;
decorre do instituto da resolução do contrato (artigo 289.º, do C. C.) que deve restituir-se tudo o que tiver sido prestado e, na impossibilidade, é restituído o valor correspondente;
essa questão ainda não foi judicialmente decidida no que respeita ao enriquecimento sem causa, embora reconhecido o direito dos Autores, decisão judicial que é o que se pretende com a presente ação;
assim, têm os Réus de pagar 6.300 EUR (450 EUR x 14 meses);
no período em que os Réus habitaram o imóvel não adotaram um uso e prudência que lhes era exigível de alguém que faz uso de um bem que não lhe pertence, razão pela qual resultaram danos e prejuízos para os Autores nomeadamente com um cão que coabitou com os Réus, situação em que existe presunção de culpa nos termos do artigo 493.º, do C. C.;
com a reparação dos estragos causados pelo cão, pagaram os Autores 9.000 EUR;
sem prescindir, há sempre uma situação de enriquecimento sem causa quanto aos 6.300 EUR que se peticionam.
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Citados, contestaram os Réus alegando em síntese que:
existe caso julgado pois as partes nestes autos são exatamente as mesmas que estiveram em juízo no processo n.º 833/14.0TBPVZ e o pedido que é deduzido relativamente à sua condenação no pagamento de indemnização pelo uso e fruição do imóvel durante os 14 meses em que nele habitaram é exatamente o mesmo que já haviam deduzido, por via reconvencional, na mesma ação;
a causa de pedir é a resultante do incumprimento do contrato promessa de compra e venda celebrado entre as partes e a consequentemente resolução decretada pelo Tribunal;
o direito que sustenta o pedido de indemnização por danos causados no imóvel, está prescrito por força do artigo 498.º, do C. C. já que desde 28/06/2013 que conhecem o estado da casa;
deduzem igualmente reconvenção pelos prejuízos sofridos com os defeitos verificados no imóvel prometido vender e que vieram a determinar a resolução do contrato promessa celebrado, em valor não inferior a 7.000 EUR.
Pedem igualmente a condenação dos Autores como litigantes de má-fé, em multa e indemnização.
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Apresentaram os Autores articulado onde pugnaram pela improcedência das exceções alegadas e da reconvenção.
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Após realização de audiência prévia onde se pugnou pelo aperfeiçoamento de articulados e atribuição de prazo para pronúncia sobre exceções, foi proferido em 16/03/2020 despacho onde se decidiu:
caso julgado – refere-se, citando jurisprudência, que «o caso julgado abrange todas as possíveis qualificações jurídicas do objecto apreciado, dado que o que releva é a identidade de causa de pedir, ou seja os facto concretos com relevância jurídica, e não a identidade das qualificações jurídicas que esse fundamento comporte.
Menciona-se também que o caso julgado não abrange apenas a parte decisória da sentença ou despacho mas também os fundamentos (de facto e de direito) pressupostos da parte dispositiva tal como se vem sustentando.
Prossegue-se, referindo que na ação n.º 833/14.0TBPVZ o pedido já foi apreciado quer na vertente indemnizatória, quer de enriquecimento sem causa, consubstanciando a presente ação uma segunda tentativa de discutir uma mesma questão, violando o caso julgado já formado.
Conclui-se então que o pedido formulado nos presentes autos sob a alínea b) coincide com o pedido reconvencional deduzido na alínea d) da reconvenção apresentada na ação n.º 833/14.0TBPVZ (pagamento de uma quantia pelo uso e fruição do imóvel durante 14 meses), absolvendo-se os Réus da instância em relação ao mesmo.
prescrição – está assente a seguinte factualidade:
«Os autores e os réus celebraram em 01-05-2012 um acordo que denominaram de “contrato promessa de compra e venda” de uma casa de habitação, de cave, rés-do-chão e andar, com logradouro, sito na Rua…, n.º .., freguesia de …, concelho da Póvoa de Varzim, inscrito na matriz sob o artigo 1734.º urbano e descrito na Conservatória do Registo Predial da Póvoa de Varzim sob o n.º 188, nos termos constantes de fls. 13 verso a 14 cujo teor se dá aqui integralmente por reproduzido.
2. Ficou também acordado que, desde a data da celebração do acordo, em 01-05-2012, os réus passariam a ocupar e usufruir do imóvel objecto de negócio, aí habitando com a sua família a titulo permanente, o que sucedeu até 28-06-2013.
3. Em 01-05-2012 os réus mudaram-se para o imóvel com a sua família, tendo aí instalado móveis, electrodomésticos e demais haveres próprios e necessários de uma habitação.
4. Na data da celebração da escritura de compra e venda, em 10-05-2013, os réus compareceram na escritura mas, recusaram-se a outorgar a mesma, alegando que o referido imóvel padecia de patologias.
5. E na sequência dessa recusa comunicaram aos autores a sua intenção de proceder à entrega do imóvel, o que sucedeu em 28-06-2013 com a entrega do imóvel e das respectivas chaves.
6. Os autores retomaram o imóvel em Junho de 2013 e constataram que a casa se encontrava limpa e aparentava não haver sido habitada.
7. A presente acção foi intentada em 11-07-2019.».
Depois refere-se que:
nos termos do artigo 498.º, n.º 1, do C. C., o direito de indemnização prescreve no prazo de três anos, a contar da data em que o lesado teve conhecimento do direito que lhe compete, sendo que, no caso, essa data se deve fixar em junho de 2013 pois foi quando os Autores tiveram acesso à casa e noção do seu estado.
não ocorreu qualquer suspensão ou interrupção da prescrição, sendo que quanto a estes concretos danos nada foi alegado na acção n.º 833/14.0TBPVZ, nem os Autores manifestaram qualquer intenção de exercer tal direito de indemnização, não sendo aplicável o disposto no artigo 323.º, do C. C.;
à data da propositura da presente ação já se mostrava prescrito o invocado direito dos Autores.
Assim, absolveram-se os Réus do pedido de condenação a ressarcir os Autores na quantia de 9.000 EUR a título de danos patrimoniais, mais se julgando prejudicado o conhecimento da reconvenção por ter sido deduzida a título subsidiário.
Inconformados, recorrem os Autores formulando as seguintes conclusões:
«1. Entendem os AA./Recorrentes que a douta sentença labora em erro crasso de análise e interpretação da situação sub judice bem como erro de interpretação e aplicação da lei, na justa medida que in casu não se verifica a tríplice identidade entre ambas as acções, isto é, que numa e noutra ação não ocorre identidade de sujeitos, pedidos e causas de pedir;
2. In casu, não estamos perante uma situação de caso julgado, nos termos exigidos pelo artigo 581.º, CPC como, infelizmente, considerou o julgador a quo;
3. Entendem os recorrentes que nos presentes autos não se verifica a referida situação de caso julgado, uma vez que, apesar de existir identidade de sujeitos e pedidos não há, porém, identidade de causas de pedir como se irá evidenciar infra com detalhe.
4. No caso sub judice ocorre identidade de sujeitos e pedidos, mas as causas de pedir de ambas as ações são diferentes, uma vez que representam vias jurídicas alternativas e estruturalmente diferenciadas, assentes em pressupostos legais também eles diferentes e autónomos para alcançar a tutela jurídica desejada;
5. Não se verificando a identidade dos três pressupostos - sujeitos, pedidos e causas de pedir, não podia jamais o julgador a quo julgar verificada a predita excepção de caso julgado com base apenas na dupla identidade;
6. Entendem os recorrentes que o julgador a quo olvidou que, apesar de a génese do litígio em ambas as ações, assentar no mesmo contrato-promessa celebrado entre as partes, aquelas seguem vias jurídicas alternativas, com escopos e pressupostos totalmente distintos e, por isso, ficou totalmente arredada a declarada mas incorrecta situação de caso julgado;
7. A sentença ora recorrida, relativamente à excepção de caso julgado, encerra dois erros cabais que cumpre evidenciar: em primeiro lugar, olvidou que a primeira ação teve como causa de pedir o instituto da responsabilidade civil contratual, mormente, o incumprimento definitivo do contrato promessa celebrado que os ora RR./Recorridos imputaram aos AA./Recorrentes e a segunda ação, além de sindicar a aplicação dos efeitos da resolução do negócio jurídico operada na primeira ação, assenta também ela no instituto do enriquecimento sem causa;
8. O segundo erro da sentença recorrida radica no facto de o julgador a quo ter considerado que na primeira ação os ora recorrentes invocaram o instituto do enriquecimento sem causa, argumentando assim que o tribunal já se pronunciou de mérito sobre essa questão, o que não corresponde à verdade em termos de pedido da primitiva acção;
9. Os preditos erros influenciaram decisivamente a decisão proferida quanto à verificação do caso julgado;
10. Entendem os recorrentes que a decisão proferida nestes termos não fez uma correta interpretação e aplicação da lei, mormente, o disposto no artigo 581.º, do CPC, que foi nessa medida violado;
11. A interpretação sufragada na douta sentença dá sentido inconstitucional ao artigo 581.º, do CPC;
12. Entendem os AA./Recorrentes que a douta sentença padece igualmente de erro de análise e interpretação da situação sub judice no que respeita à apreciação da alegada prescrição do direito daqueles;
13. O tribunal a quo não analisou a questão sub judice com o grau de cuidado que lhe era exigido, porquanto, olvidou uma análise objectiva e singela das concretas questões materiais que foram submetidas à sua apreciação, tendo, ao invés, analisado a causa legal e abstractamente ignorando os limites impostos quer pelo princípio da adequação formal previsto no artigo 5.º, n.º 3, do CPC, quer pela proibição de condenação ultra vel petitum ínsita no artigo 609.º do mesmo diploma, razão pela qual está a douta sentença eivada de nulidade;
14. Entendem os AA./Recorrentes que o julgador a quo fez uma errada e/ou incorrecta análise da factualidade sub judice, na justa medida em que olvidou que o pedido contido na alínea a) da p.i., é um efeito legal que decorre da declaração de resolução do contrato celebrado entre as partes e que impõe a obrigação de restituição de tudo o que foi prestado na sua vigência, ex vi do disposto no artigo 289.º, do CC;
15. A presente ação não tem como causa de pedir nem foi deduzido qualquer pedido estribado em responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos devido a danos causados por animais;
16. Ao analisar a factualidade e o concreto pedido deduzido pelos AA./Recorrentes na alínea a) da petição inicial, o julgador a quo confundiu a génese deste pedido como decorrente da resolução com um suposto pedido fundado em danos causados por animais, alicerçado em responsabilidade civil extracontratual, nos termos dos artigos 483.º e 493.º, ambos do CC, pelo que não tem aqui aplicação o prazo de três anos previsto n.º 1, do artigo 498.º, daquele diploma legal;
17. Tendo o predito pedido sido aduzido no pressuposto da resolução contratual que só foi discutida e operada na primeira ação judicial, a sindicância dos seus efeitos decorre à luz das regras à responsabilidade contratual e não sob a égide dos danos causados por animais, porque os AA./Recorrentes não deduziram a causa de pedir e pedidos nesse sentido;
18. Os AA./Recorrentes invocaram os efeitos decorrentes da resolução do contrato, nos termos do disposto no artigo 289.º, do CC e não o ressarcimento dos danos causados por animais;
19. O tribunal a quo socorreu-se do princípio da adequação formal previsto no artigo 5.º, n.º 3 do CPC e procedeu a uma alteração da qualificação jurídica dos factos, fazendo de conta que a causa de pedir radica na invocação do artigo 493.º, do CC o que não foi alegado, nem a título principal nem a título subsidiário;
20. O MM Juiz a quo, socorrendo-se de uma interpretação errada quanto ao alcance do princípio da adequação formal, ínsito no artigo 5.º, n.º 3 do CPC e à revelia daquela ausência petitória, ignorou a questão de fundo do pedido concreto da alínea a) e converteu esse pedido deduzido a título de indemnização pelo interesse contratual negativo (ex vi do artigo 289.º do CC) numa causa de pedir fundada em “danos causados por animais”, alicerçada em responsabilidade civil extracontratual,
21. O julgador a quo não podia decidir como decidiu, uma vez que, embora caiba ao tribunal proceder à qualificação jurídica que julgue adequada, nos termos do artigo 5.º, n.º 3, do CPC, a mesma deve operar dentro da fronteira da factualidade alegada e nos limites do efeito prático-jurídico pretendido,
22. Está vedado ao julgador enveredar pela decretação de uma medida de tutela que extravase os limite do artigo 5.º, n.º 3, do CPC, ainda que pudesse, porventura, ser congeminada por extrapolação da factualidade apurada;
23. O julgador a quo procedeu a uma convolação jurídica que excedeu os limiares de liberdade de qualificação jurídica plasmados no artigo 5.º, n.º 3 do CPC e proferiu uma decisão ultra vel petitum;
24. Entendem os recorrentes que in casu, quando a presente ação deu entrada em juízo ainda não se encontrava prescrito o seu direito alegado;
25. A causa de pedir da primeira ação assentou na invocação do incumprimento definitivo do contrato-promessa por causa imputável aos AA. e ora RR., cujos efeitos são os decorrentes do artigo 289.º, do Código Civil;
26. A causa de pedir da segunda ação não assenta na alegação de factos ou de qualquer pretensão de incumprimento contratual do aludido contrato-promessa, uma vez que, a apreciação da validade da sua resolução já foi apreciada naquela primeira ação;
27. A resolução do contrato implica que se discutam os seus efeitos, na justa medida em que, em caso de resolução, a lei prevê a faculdade de a parte cujo incumprimento não é imputável, exigir uma indemnização pelo interesse contratual negativo, isto é, uma indemnização com intuito de compensar a situação deste, colocando-o, ainda que hipoteticamente, na situação em que estaria se o contrato não tivesse sido celebrado;
28. Não estando em causa nos presentes autos uma causa de pedir alicerçada na invocação de factos atinentes ao incumprimento contratual e, por essa via, obter a aludida indemnização pelo interesse contratual negativo, jamais se poderá considerar, como considerou o julgador a quo, que existe entre uma e outra ação identidade de causas de pedir;
29. A mera alegação da existência do contrato-promessa bem como a situação de incumprimento que se evidenciou apenas a título de enquadramento da nova ação não se confunde com uma repetição no todo ou em parte da ação anterior;
30. A sentença ora recorrida enferma de erro, quer porque considerou que as causas de pedir assentam na mesma pretensão, isto é, são uma repetição assente nos mesmos pressupostos com vista a lograr o mesmo efeito jurídico,
31. A sentença ora recorrida enferma de erro porque considerou que a reconvenção deduzida na primeira ação, teve também ela fundamento no instituto do enriquecimento sem causa o que não sucedeu e se afere dos pedidos aí deduzidos;
32. Na primeira ação, os ora AA./Recorrentes não invocaram nem a título principal nem a título subsidiário o instituto do enriquecimento sem causa, mas tão só o incumprimento definitivo do contrato-promessa imputável aos RR./Recorridos;
33. A pretensão material formulada nos presentes autos segue uma via jurídica alternativa e estruturalmente diferente da pretensão deduzida na primeira ação, que foi fundamentada no incumprimento contratual do contrato-promessa;
34. Sendo as vias jurídicas das duas ações estruturalmente diferentes, assentes em pressupostos também eles diferentes, com consequências jurídicas igualmente diferentes, não pode jamais considerar-se, como considerou o tribunal a quo que existe entre ambas as ações repetição de causa de pedir;
35. O instituto da responsabilidade civil tem como escopo a eliminação de um dano através da atribuição de uma indemnização que vise compensar o seu titular pelo prejuízo sofrido, Ao passo que, o instituto do enriquecimento sem causa não visa qualquer reparação do dano, mas antes uma remoção de uma “riqueza” ou “excesso” que beneficiou, injustificadamente alguém, impondo-se por isso a sua correção;
36. O instituo do enriquecimento sem causa, constitui um meio alternativo e subsidiário, face ao instituto da responsabilidade civil;
37. É errado e/ou incorreto considerar como considerou o julgador a quo que a presente ação é uma repetição da ação anterior, quando na verdade ambas as ações assentam em pressupostos distintos e que visam alcançar tutelas igualmente distintas;
38. A ação destinada a eliminar um enriquecimento injustificado à custa de outrem não se confunde com uma ação destinada a operar a resolução do contrato-promessa por via do incumprimento definitivo e inerente indemnização;
39. O acréscimo no património dos RR./Recorridos resultou, além dos mais, do facto de estes terem ocupado, durante catorze meses consecutivos, o imóvel objecto do contrato-promessa, sem terem indemnizado os AA./Recorrentes por esse uso do imóvel;
40. Entendem os AA./Recorrentes que a douta sentença sub judice fez errada interpretação e aplicação da lei, uma vez que o requisito da identidade da causa de pedir, elencado no, número 4, do artigo 581.º, do CPC não se encontra preenchido;
41. Entendem os Recorrentes que o silogismo judiciário efectuado pelo julgador a quo padece de erro, na justa medida em que parte da identidade de pedidos para fundamentar e declarar a identidade de causas de pedir, como se a identidade de uns e outras fosse aferível pelos mesmos pressupostos e critérios;
42. A identidade de pedidos não determina por si a identidade de causas de pedir, já que a existência daquela identidade não determina a identidade destas, podendo existir uma e não existir outra, com sucede in casu;
43. A identidade de pedidos e de causas de pedir são requisitos autónomos de que depende a verificação do caso julgado;
44. In casu só se verificaria caso julgado se os AA./Recorrentes, tivessem alegado novamente como causa de pedir, o incumprimento do contrato-promessa imputável aos RR./Recorridos, tentando através desta nova ação reverter a decisão de mérito anteriormente proferida e transitada em julgado, o que não sucedeu;
45. Os RR. foram apenas absolvidos da instância e o juiz nada decidiu quanto ao mérito da causa, apenas se extinguiu aquela relação processual das partes em litígio;
46. A absolvição da instância não obsta, nos termos legais, a que se proponha uma outra ação sobre o mesmo objeto, não constituindo a nova ação exceção de caso julgado (artigo 279.º, n.º 1, do CPC);
47. Ainda que por mera hipótese de raciocínio - que não se aceita nem concede – o julgador entendesse que a alegação nos presentes autos da aplicação dos efeitos do artigo 289.º, do Código Civil, devido à resolução do contrato-promessa, encerra nesta parte, a declarada situação de identidade de causas de pedir, sempre se diria, face aos fundamentos invocados, que a causa de pedir relativamente ao pedido subsidiário de enriquecimento sem causa está totalmente fora dessa identidade por não ter sido alegada na primeira ação;
48. O julgador a quo ao concluir imediatamente pela identidade de causas de pedir, aquilatando tudo num mesmo “bolo”, violou o disposto no artigo 581.º, n.º 4, do CPC;
49. Pelo que, deve a douta sentença ser revogada, substituindo-se por outra que em conformidade declare não verificada a excepção de caso julgado, pela ausência de identidade de causas de pedir em ambas as ações judiciais;
50. Entendem os recorrentes que a douta sentença padece de erro de análise da situação sub judice e aplicação da lei, na justa medida em que in casu não se verifica a excepção de prescrição, pois no momento em que a presente ação foi intentada o predito prazo ainda não se tinha esgotado;
51. Entendem os recorrentes que quando deram entrada em juízo da presente ação judicial, o prazo de um ano previsto no artigo 287.º, do CC, em conjugação com o artigo 289.º do mesmo diploma legal, ainda não se tinha esgotado atenta a suspensão do prazo que ocorreu com a entrada da primeira ação judicial em juízo, em 12/05/2014;
52. Entendem os recorrentes que in casu não tem qualquer aplicação o prazo de 3 anos, previsto no artigo 498.º, ex vi do disposto no artigo 493.º, ambos do CC, uma vez que a causa de pedir, como largamente já se expôs supra a propósito da sindicância da decisão quanto à excepção de caso julgado, não tem fundamento nem assenta na responsabilidade civil extracontratual por facto ilícitos, devido a danos causados por animais, ex vi do disposto no artigo 483.º, do CC;
53. A presente ação assenta tão só - por ser essa a causa de pedir e pedido – na discussão da indemnização pelo interesse contratual negativo, sendo esse o fundamento e único fundamento da mesma;
54. A ação judicial intentada pelos RR./Recorridos, em 12/05/2014, contra os aqui recorrentes, para discussão da resolução do contrato promessa, redundou na suspensão do prazo previsto no artigo 287.º, do CC a correr por conta destes, sendo que, tal suspensão manteve-se até ao trânsito em julgado da decisão proferida nessa ação judicial e que só ocorreu em 12/06/2019;
55. A entrada em juízo daquela ação judicial para discutir a resolução do contrato promessa, suspendeu o prazo que corria por conta dos ora recorrentes para eles próprios intentarem a ação judicial própria para requerem a declaração de resolução do contrato promessa por culpa dos aqui recorridos e a restituição de tudo o que foi prestado, bem como indemnização destinada a compensar os recorrentes;
56. O julgador a quo não podia ter ignorado como, infelizmente, sucedeu, que ocorreu a suspensão do prazo dos recorrentes para intentar ação, dentro daquele prazo de 1 ano, para discutir os efeitos da resolução do contrato promessa, numa leitura conjugada dos artigos 287.º e 289.º, ambos do CC;
57. O julgador a quo partiu do prazo previsto no artigo 498.º, do CC, reportando o seu início à data da entrega do imóvel, como se até 11/07/2019 não tivesse ocorrido qualquer circunstância que operasse a suspensão do prazo;
58. A causa de pedir e pedido deduzido pelos ora recorrentes não teve por fundamento o disposto no artigo 493.º do CC, isto é, danos causados por animais, mas apenas e só a aplicação do artigo 289.º, por força da ocorrida resolução do contrato promessa;
59. Para fazer vingar esta interpretação o julgador omitiu a efectiva ocupação do imóvel com a concordância dos aqui AA. e que sempre afastaria qualquer ilicitude extracontratual e quaisquer danos culposos causados por animais;
60. Ao contrário do doutamente decidido não é nem nunca foi a questão do cão nuclear na presente acção sendo apenas instrumental e concursal do pedido feito relativo à efectiva ocupação do imóvel;
61. Entendem os recorrentes que o tribunal a quo olvidou uma análise objectiva e singela das concretas questões materiais que foram submetidas à sua apreciação, tendo, ao invés, analisado a causa legal e abstractamente ignorando os limites impostos quer pelo princípio da adequação formal previsto no artigo 5.º, n.º 3, do CPC, quer pela proibição de condenação ultra vel petitum ínsita no artigo 609.º do mesmo diploma, razão pela qual está a douta sentença eivada de nulidade;
62. O julgador a quo extravasou as limitações impostas pelo princípio da adequação formal, na medida em que, ao conhecer e aplicar regra de direito que não foi solicitada pelas partes, violou frontalmente quer o predito princípio da adequação formal, quer os princípios do dispositivo e do contraditório e por isso está a douta sentença eivada de nulidade, ex vi do disposto na alínea d), do número 1, do artigo 615.º, do CPC;
63. O tribunal a quo socorrendo-se do princípio da adequação formal previsto no artigo 5.º, n.º 3 do CPC, procedeu a uma alteração da qualificação jurídica dos factos, fazendo de conta que a causa de pedir radica na invocação do artigo 493.º, do CC o que não foi alegado, nem a título principal, nem a título subsidiário;
64. O MM Juiz a quo, socorrendo-se de uma interpretação errada quanto ao alcance do princípio da adequação formal, ínsito no artigo 5.º, n.º 3 do CPC e à revelia daquela ausência petitória, ignorou a questão de fundo do pedido concreto da alínea a) e converteu esse pedido deduzido a título de indemnização pelo interesse contratual negativo (ex vi do artigo 289.º do CC) numa causa de pedir fundada em “danos causados por animais”, alicerçada em responsabilidade civil extracontratual;
65. Ao efectuar essa alteração da qualificação jurídica a sentença foi para além desse alcance, pronunciando-se e julgando questões que não lhe foram suscitadas e ignorando e omitindo a real pretensão da demanda e o alcance e efeitos da resolução do contrato promessa;
66. Em caso de danos causados por animais haverá responsabilidade civil por factos ilícitos, nos termos do disposto no artigo 483.º, do CC e jamais responsabilidade contratual decorrente da resolução do contrato entre as partes;
67. A convolação jurídica que excedeu os limiares de liberdade de qualificação jurídica plasmados no artigo 5.º, n.º 3 do CPC e proferiu uma decisão ultra vel petitum;
68. O julgador a quo decidiu em total atropelo pelos princípios da adequação formal e do dispositivo, na medida em que ignorou as regras e a necessidade de alegação de factos essenciais e a necessidade de formulação de pedidos concretos de tutela jurídica que incumbe às partes;
69. O tribunal a quo não poderia conhecer da questão sub judice sob a perspectiva da responsabilidade civil extracontratual e do prazo para agir judicialmente porque tal tutela não lhe foi solicitada e, para além disso, sem permitir à parte contra quem decidiu a oportunidade de se pronunciar sobre tal questão;
70. Incumbe às partes a alegação dos factos principais que contendem e instruem o pedido ou pedidos concretos, podendo no entanto o tribunal apreender da prova factos complementares que de harmonia com a lei conferem eficácia jurídica necessária para satisfazer essa actuação, mas nunca substituir-se às mesmas a não ser nas concretas situações em que a lei lhe permitir a intervenção e conhecimento oficioso;
71. O princípio da oficiosidade na aplicação do direito aos factos ou aos elementos que transparecem dos autos não implica uma necessária “auscultação” das partes, a não ser que tal seja necessário para evitar uma “decisão surpresa”;
72. Se o julgador pretendia efectuar diferente qualificação jurídica, para além da causa de pedir e pedidos deduzidos na petição inicial, impunha-se a notificação das partes para exercer o direito ao contraditório, no intuito de evitar uma decisão surpresa como sucedeu in casu;
73. A ação que é intentada sob a égide da responsabilidade civil contratual com causa de pedir e pedidos nesse sentido e é decidia sob responsabilidade civil extracontratual, encerrou infelizmente, para além do total desvirtuamento da demanda, uma completa decisão surpresa;
74. A liberdade de adequação, o artigo 5.º, n.º 3 do CPC, veda ao tribunal a possibilidade de julgar provado na sentença um facto essencial nuclear não alegado, por se tratar de uma questão jurídica nova, da qual o tribunal não possa tomar conhecimento, sob pena de se verificar a nulidade prevista na alínea d) do nº 1 do artigo 615.º do CPC;
75. O princípio do dispositivo impede que o tribunal decida para além ou diversamente do que foi pedido, mas não obsta a que profira decisão que se inscreva no âmbito da pretensão formulada;
76. A ação destinada a obter os efeitos do artigo 289.º, maxime indemnização pelo interesse contratual negativo é uma ação assente em instituto diferente da responsabilidade civil extracontratual, com pressupostos distintos e que visam tutelas também elas distintas;
77. A responsabilidade civil extracontratual visa a reparação de um dano, ilicitamente causado ao passo que a responsabilidade contratual (indemnização pelo interesse contratual negativo) visa tão só repor o status quo ante, que existiria caso o negócio não tivesse sido celebrado;
78. A mera alteração da qualificação jurídica dada pelas partes à sua causa de pedir e pedidos não pode confundir-se com uma alteração dos pedidos realmente formulados das partes, com o conhecimento de uma questão nova, sob pena de se proferir uma sentença ultra vel petitum como sucedeu in casu;
79. Não foi realizado qualquer pedido a titulo de responsabilidade civil extracontratual, pelo que, estava totalmente vedado ao tribunal conhecer da questão sub judice sob a perspectiva da responsabilidade civil extracontratual por se tratar de uma alteração da qualificação jurídica que está para além da causa de pedir e pedidos formulados e que não constitui matéria de excepção susceptível de conhecimento oficioso;
80. O julgador a quo ignorou que a questão essencial submetida à sua apreciação foi a da indemnização fundada na resolução do contrato promessa, cujo prazo suspendeu com a entrada da ação intentada pelos ora recorridos em 12/05/2014;
81. Não podia o julgador a quo aplicar oficiosamente o instituto da responsabilidade civil extracontratual aos presentes autos e bem assim o prazo de prescrição de 3 anos para o efeito, previsto no artigo 498.º, do CC;
82. Pelo que, deve a douta sentença ora recorrida ser revogada e substituida por outra que em conformidade decida pela improcedência da excepção de prescrição alegada pelos RR./Recorridos, retomando-se o prosseguimento dos autos;
Pelo exposto, deve ser julgada verificada a arguida nulidade, impõe-se a revogação da douta sentença ora recorrida e a sua substituição por outra que em conformidade julgue nos termos peticionados supra pelos ora recorrentes.».
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Contra-alegaram os recorridos pugnando pela manutenção do decidido.
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As questões a decidir são:
prescrição do direito invocado pelos recorrentes quanto ao pedido formulado em a) da petição inicial.
existência de caso julgado em relação ao pedido formulado em b) pelos recorrentes
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2). Fundamentação.
2.1). De facto.
Dá-se por reproduzido o teor do relatório acima elaborado sendo que os factos considerados assentes para a análise da prescrição serão reproduzidos infra.
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2.2). Do mérito do recurso.
1). Do caso julgado.
Nos termos dos artigos 580.º e 581.º, do C. P. C., exige-se uma tríplice identidade entre sujeitos, causa de pedir e pedido em duas ações para se poder concluir que ocorre caso julgado.
No caso concreto, recorrentes e recorrido estão de acordo que na presente ação e no processo n.º 833/14.0TBPVZ as partes são as mesmas e o pedido em causa – condenação no pagamento de 6 300 EUR por ocupação do imóvel – é o mesmo nesses dois processos; e, na realidade, assim é pois os ora recorrentes formularam pedido igual em sede reconvencional naquele processo, posteriormente reduzido em termos monetários.
Importa então aferir se existe identidade de causa de pedir.
O artigo 581.º, n.º 4, do C. P. C., no que respeita às ações reais, define causa de pedir como o facto jurídico de que deriva o direito real e, quanto às ações constitutivas e de anulação, como sendo o facto concreto ou a nulidade específica que se invoca para se obter o efeito pretendido. Assim, há identidade de causa de pedir quando o pedido formulado em duas ações advém desse mesmo facto jurídico, adotando-se desse modo a teoria da substanciação.
Estaremos perante ações diferentes sempre que seja igualmente diferente o facto constitutivo invocado.
Temos então que na ação n.º 833/14.0TBPVZ, intentada pelos aqui Réus contra os ora Autores, aqueles pediram que se declarasse resolvido o contrato promessa em causa (celebrado em 01/05/2012) e, em sede de reconvenção, os ora Autores, ali Réus/reconvintes pediram, no que aqui importa, que os Autores/reconvindos:
fossem condenados a pagar a quantia de 7.800 EUR a título de indemnização decorrente da ocupação do imóvel e incumprimento definitivo do contrato promessa.
Alegam que, em consequência do incumprimento definitivo do contrato promessa por culpa imputável aos promitentes compradores (os aí Autores, aqui Réus), têm direito a ser indemnizados pelo montante equivalente à renda de uma habitação com idênticas características e localização visto que a resolução do contrato tem eficácia retroativa. Esse valor é de 600 EUR/mês pelo que têm direito a receber a uma indemnização de 7.800 EUR (600 EUR x 13 meses) – artigos 67.º a 69.º da reconvenção cuja cópia foi junta pelos então Autores aos presentes autos em 02/09/2019.
Alegam ainda que esse valor se estriba no artigo 801.º, n.º 2, do C. C, sendo certo que, a falta de pagamento do montante correspondente a uma renda mensal durante o período que os aí Autores habitaram o imóvel sempre constituiria um enriquecimento sem causa para os mesmos.
Este valor é depois reduzido em sede de alegações de recurso de apelação para 6 300 EUR conforme consta do Ac. do S. T. J. de 11/04/2019 com cópia também junta em 02/09/2019.
Na presente ação, alegam os Autores/recorrentes que:
haverá sempre um enriquecimento sem causa, na justa medida em que os Réus se locupletaram de uma quantia pecuniária que não lhes pertente, à custa da diminuição do seu património e, com esse facto, viram o seu património incrementado no valor de 6.300 EUR resultando do uso e fruição do imóvel durante catorze meses consecutivos;
não se verifica caso julgado formal porque, apesar da decisão que conduziu à improcedência do pedido na outra ação n.º 833/14.0TBPVZ, o recurso excecional foi admitido para apreciação desta questão por se reconhecer esse direito dos Autores, o que só não foi apreciado por ausência de sucumbência enquanto pressuposto de admissibilidade do recurso.
Assim, a questão não foi ainda apreciada e definitivamente julgada.
Vejamos então.
A factualidade integradora da causa de pedir na presente ação e na outra que a antecedeu - n.º 833/14.0TBPVZ – é a mesma: incumprimento de contrato promessa celebrado em 01/05/2012, o qual sustenta o pedido de indemnização por alegados danos que daí tenham advindo.
O facto concreto, com ressonância jurídica, em ambas as ações consiste nesse incumprimento contratual que sustenta a pretensão; se esse facto permite outro tipo de leitura jurídica, nomeadamente com recurso ao instituto do enriquecimento sem causa (artigo 473.º e seguintes do C. C.), esse outro enquadramento não altera a factualidade concreta.
Ou seja, quer se entenda que o pedido pode ser analisado sob a vertente das consequências advindas do incumprimento contratual ou quer se entenda que essas consequências têm de ser analisadas sob a vertente do enriquecimento sem causa, a factualidade concreta continua inalterável: celebração de contrato promessa que vem a ser incumprido.
É preciso notar que não é uma mera qualificação jurídica dos factos alegados diferente da pretendida numa anterior ação que pode levar a concluir que há uma causa de pedir diferente.
O que é preciso aferir é se essa nova qualificação jurídica não leva a uma «convolação qualificativa tão ampla que conduza a um modo de tutela de conteúdo essencialmente diferente do visado pelo autor, extravasando o limite da condenação prescrito no art.º 609.º, n.º 1, do CPC e atentando mesmo contra os princípios do dispositivo e do contraditório, em função dos quais as partes pautaram a configuração do litígio e a discussão da causa» - Ac. do S. T. J. de 18/09/2018, www.dgsi.pt -.
Ora, no caso concreto não existe esse modo de tutela de conteúdo essencialmente diferente pois o núcleo factual é o mesmo – incumprimento contratual e danos provocados por força desse incumprimento e resolução que se sustentou naquele -.
Se o ressarcimento se opera com recurso a normas específicas dessa figura de resolução ou de enriquecimento sem causa, mantém-se a conclusão de que se está a analisar a mesma factualidade, não podendo o autor de uma ação que vê ser julgado improcedente o seu pedido com base em incumprimento contratual sustentar novo pedido na mesma factualidade «apenas» com recurso a uma nova qualificação jurídica (veja-se Ac. do S. T. J. de 17/04/2018, no mesmo sítio que analisa situação semelhante).
Assim, estando decidida a questão no processo n.º 833/14.0TBPVZ, no sentido da sua improcedência, mesmo que não se tivesse alegado e analisado a questão sob o instituto definido no artigo 473.º, do C. C., permitir a sua reanálise, como pretendem os recorrentes, seria também permitir que se ponderasse a mesma factualidade concreta sob uma nova qualificação jurídica. Essa possibilidade, como referimos, não é permitida pelo caso julgado que se formou.
Declarado que os recorrentes não têm direito a receber aquela indemnização por força do incumprimento contratual, também não a têm direito a receber quando sustentam o novo pedido com base na mesma realidade (incumprimento contratual) mas com recurso a nova roupagem jurídica.
Como referem Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, 2.º, 3.ª edição, páginas 598 e 599, sendo o núcleo essencial dos factos integradores das normas concorrentes numa e noutra ações, é a mesma a causa de pedir agora invocada na presente ação, apenas existindo diversa qualificação jurídica sendo que «a qualificação jurídica dada aos factos na primeira ação nunca é elemento identificador do caso julgado, estando vedada nova ação em que aos mesmos factos se atribua uma nova qualificação, trata-se dum corolário de a causa de pedir ser sempre um facto concreto, e não o facto abstractamente descrito na lei.».
Todos os factos que os recorrentes agora alegam sustentar o enriquecimento sem causa dos recorridos já constam da anterior ação – ocupação do seu imóvel sem pagamento de contrapartida – não sendo acrescentada qualquer nova realidade que possa fazer supor que não houve apreciação judicial dessa questão.
E é precisamente neste aspeto que os dois autores acima referidos, na mesma obra na página 599 mencionam que «se o autor tiver perdido a ação de responsabilidade civil, contratual ou extracontratual, poderá pedir a condenação do mesmo réu na restituição do que lhe for devido a título de enriquecimento sem causa, desde que, naquela ação, não haja invocado os factos integradores do enriquecimento do réu e do seu próprio empobrecimento». No caso, os recorrentes alegaram na primeira ação todos os factos que poderiam conduzir à análise da ocorrência do enriquecimento injustificado dos Autores/reconvindos.
E tanto assim foi que os próprios recorrentes alegaram, nessa primeira ação, enquanto reconvintes, que havia enriquecimento sem causa dos Autores/reconvindos nesta matéria (artigo 71.º, da reconvenção com cópia junta também no dia 02/09/2019), questão que até foi apreciada neste Tribunal Superior por esta mesma secção em 21/02/2018 conforme documento n.º 3 também junto em 02/09/2019, pelo que nem se pode concluir que exista uma nova qualificação jurídica nesta ação quanto a este pedido.
E, diga-se, este pedido foi julgado improcedente e nunca foi reconhecido aos recorrentes qualquer direito a receber esta indemnização, antes pelo contrário, essa pretensão foi negada pelo tribunal de primeira instância, tendo essa decisão sido confirmada pelo tribunal da Relação e, por não ser possível recorrer para o S. T. J., transitou em julgado.
A questão foi apreciada até à instância que a lei permite, não se podendo concluir que afinal não houve apreciação porque o S. T. J. não a analisou e que, por isso, esse direito ainda pode ser discutido. A partir do momento em que não é possível o recurso, seja por questão de valor seja por se conseguir esgotar todas as instâncias de recurso (por exemplo, por o valor da ação e o tipo de decisão permitir recurso até ao S. T. J.), considera-se a decisão transitada em julgado – artigo 628.º, do C. P. C. -.
Deste modo, permitir que se discutisse na presente ação se os recorrentes tinham direito a receber a apontada indemnização seria permitir que se voltasse a discutir uma questão já definitivamente transitada em julgado, o que não é possível, sendo assim correta a absolvição da instância dos Réus/recorridos quanto a este pedido.
Não se vislumbra qualquer vício de inconstitucionalidade nesta interpretação, vício não concretizado pelos recorrentes pois a mesma interpretação não denega qualquer acesso à justiça (na eventualidade de poder ser esse direito constitucional em causa – artigo 20.º. da Constituição da República Portuguesa); apenas impede que se coloque em causa a segurança jurídica e a estabilidade das decisões proferidas pelos tribunais tal como pretendido pelo legislador.
Improcede assim este argumento.
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2). Da prescrição.
O pedido que o tribunal recorrido entendeu que não podia ser apreciado por estar prescrito foi o de condenação dos Réus/recorridos no pagamento de 9.000 EUR a título de danos patrimoniais por ter sido esse o valor necessário para a reparação dos estragos causados no imóvel pelos mesmos Réus.
E entendeu-se que esse direito estava prescrito porque, tendo os mesmos sido causados pelo cão que convivia com os Réus no imóvel, está-se perante uma situação de danos causados por animais enquadrável no artigo 493.º, n.º 1, do C. C., prescrevendo o direito, nos termos do artigo 498.º, n.º 1, do mesmo diploma, no prazo de três anos a contar da data em que o lesado teve conhecimento do direito.
E, como está assente que em junho de 2013 os recorrentes tomaram posse do imóvel, a partir dessa data ficaram a conhecer os estragos pelo que intentando a ação em 2019 já passaram esses três anos.
Na nossa visão, o enquadramento fáctico dado pelos recorrentes continua sustentado na celebração do contrato promessa entre Autores e (promitentes vendedores) e Réus (promitentes compradores), o seu incumprimento mas agora aliado a um novo acordo (contrato) firmado por ambos – a traditio do imóvel -.
É certo que os próprios recorrentes alegam que está em causa o artigo 493.º, do C. C. – artigo 56.º, da petição inicial – mas isso, a nosso ver e com o devido respeito, não afasta a incorreta perceção jurídica tida pelos recorrentes (e pelo tribunal recorrido).
É aceite pelas partes que foi entregue pelos ora recorrentes aos recorridos a detenção do imóvel antes da celebração do contrato de compra e venda o que consubstancia a celebração de um acordo através do qual estes podem usufruir do bem.
Este tipo de acordo não está legalmente tipificado pelo que, sendo celebrado no âmbito da liberdade contratual (artigo 405.º, do C. C.), se deve considerar um contrato atípico/inominado.
Ora, no caso concreto, também estando definitivamente julgado que o contrato promessa foi resolvido e que, em consequência, também aquele acordo já findou pois o imóvel foi entregue aos recorrentes pelos recorridos, se estes descortinam que o imóvel padece de danos, pensamos que a solução passa pela conjugação das normas da resolução contratual e não pela aplicação de uma regra de responsabilidade extracontratual como é a do artigo 493.º, do C. C.. [1]
Ocorrendo a resolução contratual, também da apontada traditio (resolução ao menos tácita, nos termos do artigo 217.º, n.º 1, 2.ª parte, do C. C., pois houve a restituição do imóvel pelos seus detentores/recorridos aos proprietários/recorrentes), há que aplicar as consequências dessa resolução à situação em questão para se aferir se a pretensão destes pode ser deferida.
Assim, resolvido o contrato atípico em causa, os recorridos tinham de restituir o imóvel aos recorrentes como fizeram ao abrigo dos artigos 433.º, 289.º, n.º 1, do C. C. (não se coloca nos autos qualquer situação que pudesse retardar essa obrigação, por exemplo, serem os recorridos titulares de direito de retenção – artigo 755.º, n.º 1, f), do C.C. -).
Mas não se esgotam naquela consequência os efeitos derivados da resolução contratual pois aplicam-se, por analogia, igualmente os artigos 1269.º e seguintes do C. C. por força do n.º 3, do citado artigo 289.º; ora, precisamente o artigo 1269.º determina que «o possuidor de boa-fé só responde perda ou deterioração da coisa se tiver procedido com culpa» (aplicando-se ao detentor por analogia o que diretamente se aplica ao possuidor).
Alegadamente, os danos ocorreram antes da restituição do imóvel que é o momento em que sabemos que ocorreu a resolução, pelo menos, da traditio (não há qualquer alegação de que este contrato tenha cessado antes); assim, tem que se aferir se os Réus/recorridos, enquanto detentores do imóvel, o deterioraram e, na afirmativa, se o fizeram com culpa (afigurando-se estarem de boa-fé pois ignoram que estejam a lesar o direito dos recorrentes já que foram estes quem voluntariamente lhes possibilitaram essa detenção – artigo 1260.º, n.º 1, do C. C. -).
Ou seja, na nossa perspetiva, tem que se aferir, por força das regras atinentes à resolução contratual, se os recorrentes têm direito a serem indemnizados pela deterioração do imóvel, deterioração que pode ser direta (as próprias pessoas provocam estragos) ou indireta como seja através de terceiras pessoas ou animais que convivam consigo – estará sempre em causa uma deterioração causada pelos recorridos -.
Seria diferente se tivesse sido um animal pertencente a um terceiro que não os contraentes que tivesse provocado os danos pois aqui seria esse terceiro responsabilizado nos termos do citado artigo 493.º, do C. C..
E estando em causa a apreciação da responsabilidade advinda da resolução de um contrato, o prazo de prescrição não é o fixado para a responsabilidade extracontratual (artigo 498.º, do C. C.) nem é aplicável o prazo de um ano do artigo 287.º, do C. C. (como alegado pelos recorrentes) reservado à anulabilidade contratual que não está em causa nos autos mas sim o prazo ordinário de prescrição de vinte anos previsto no artigo 309.º, do C. C. –.
Esse prazo claramente não decorreu desde a resolução do contrato em junho de 2013 e a citação dos Réus (artigo 323.º, n.º 1, do C. C.) em 16 ou 19 de julho de 2019 conforme visualização dos autos via citius.
Conclui-se assim que o direito em causa dos Autores não está prescrito, devendo os autos prosseguir para apreciação do mérito desse pedido por a sua apreciação estar dependente da produção de prova.
*
3). Decisão.
Pelo exposto, altera-se a decisão recorrida nos seguintes termos:
1). Revoga-se a absolvição de instância dos Réus/recorridos quanto ao pedido formulado em a) da petição inicial, devendo os autos prosseguir para sua apreciação e também eventualmente do pedido reconvencional.
2). Manter o decidido quanto à existência de caso julgado quanto ao pedido formulado em b), da petição inicial.
Custas do recurso a cargo de recorrentes e recorridos em partes iguais.
Registe e notifique.
*
Porto, 5 de novembro de 2020.
João Venade.
Paulo Duarte.
Amaral Ferreira.
______________
[1] «O art. 493º, nº 1, do CC, regula uma situação de responsabilidade extracontratual, em que a culpa se presume, a qual não se confunde com outras que envolvam responsabilidade objectiva, submetidas a tipificação legal, em que a obrigação de indemnizar é independente da existência de culpa do agente, apenas se admitindo o seu afastamento em casos de força maior» - Ac. S. T. J. de 10/03/2016, www.dgsi.pt -.