Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
397/21.9GDVFR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: PEDRO VAZ PATO
Descritores: PENA ACESSÓRIA DE PROIBIÇÃO DE CONDUÇÃO DE VEÍCULOS MOTORIZADOS
EFEITOS DAS PENAS
DIREITO AO TRABALHO
INCONSTITUCIONALIDADE
Nº do Documento: RP20230607397/21.9GDVFR.P1
Data do Acordão: 06/07/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFERÊNCIA
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO PARCIAL AO RECURSO INTERPOSTO PELO ARGUIDO.
Indicações Eventuais: 1,ª SECÇÃO CRIMINAL
Área Temática: .
Sumário: I – Não têm suporte legal nem a suspensão da execução da pena acessória de proibição de condução de veículos motorizados, nem a possibilidade de cumprimento desta pena de forma descontínua.
II - O que o n.º 4 do artigo 30.º da Constituição proíbe não são penas que se traduzam na perda de direitos civis (como sucede com a pena acessória de proibição de condução de veículos motorizados), mas que de uma simples condenação anterior o legislador retire automaticamente esse efeito sem a mediação do julgador, ora, neste caso verifica-se tal mediação, pois a aplicação dessa pena depende de uma intervenção judicial que atende às particularidades do caso e doseia a medida da pena em função dessas particularidades, da gravidade da infração em concreto e da culpa do agente em concreto.
III – A pena acessória de proibição de condução de veículos motorizados não colide com o direito ao trabalho constitucionalmente consagrado, pois este direito não é absoluto e estamos perante uma sua limitação lateral e temporária que não atinge o seu núcleo essencial, sendo que tal limitação se justifica em função da salvaguarda de outros direitos constitucionalmente protegidos, como são os da vida e da integridade física, que são colocados em perigo com a condução em estado de embriaguez; as eventuais (eventuais, porque dependerão das particularidades de cada caso) limitações desse direito são equiparáveis às limitações de direitos que qualquer pena (desde logo, a pena de prisão) necessariamente acarreta.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 397/21.9GDVFR.P1


I –
AA veio interpor recurso da douta sentença do Juiz 2 do Juízo Local Criminal de Santa Maria da Feira do Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro que o condenou, pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelos artigos 292.º, n.º 1, e 69.º, n.º 1, a), do Código Penal, na pena acessória de cinco meses de proibição de condução de veículos motorizados.

Da motivação deste recurso constam as seguintes conclusões:
«A. - Ao abrigo do artigo 412.º, n.º2 b), do Código de Processo Penal, o Recorrente impugna a decisão proferida sobre matéria de direito, no que tange à duração e extensão da pena acessória de proibição de condução de veículos motorizados pelo período de 5 (cinco) meses, sendo que considera incorrectamente julgado, sempre com a devida vénia e salvo melhor opinião, uma vez que a impossibilidade de suspensão na execução desta pena acessória, que apesar de tudo é consensual na Jurisprudência portuguesa, deveria ter sido decidida em atenção à circunstância de o aqui Recorrente,
B. - Necessitar imperiosamente de conduzir o seu automóvel, para o seu local de trabalho, situado na freguesia ..., na localidade de ..., concelho de Valongo, e a empresa onde exerce a sua actividade profissional por conta de outrem, dista 22 kms da sua habitação, a qual se situação na Freguesia ..., concelho de Gondomar, mas que não possui transportes públicos directos de ... para aquela freguesia do concelho de Valongo onde o ora Recorrente trabalha,
C. - Tendo que começa a trabalhar muitíssimo cedo, às 06h da manhã e não tem qualquer hipótese de cumprir o horário de trabalho, se não for com recurso a veículo próprio,
D. - Na verdade, e como confirmaram quase todas as testemunhas arroladas pelo aqui Recorrente no julgamento, para poder ir de transporte público desde ... e até ... para poder trabalhar, terá que utilizar autocarros da empresa de transportes Gondomarense a partir da localidade de sua residência, Freguesia ..., no concelho de Gondomar, até ao Porto e daqui para ... através de comboio suburbano até à estação de caminhos-de-ferro de ..., já que para se deslocar de ... para Valongo não existe qualquer outra alternativa de transporte público de passageiros, directamente, tem sempre que se deslocar até ao Porto ou até Gondomar.
E. - Sucede porém que, o problema surge decorrente da circunstância de o seu horário de trabalho por turnos ser das 06h às 14h, no período da manhã e das 14h às 22 no turno da tarde, e não existir compatibilidade de horários para conseguir entrar no seu local de trabalho a tempo, às 6h da manhã, no seu turno da manhã, uma vez que a 1.ª camionete (autocarro) da empresa Gondomarense só passa em ... pelas 5h41 da manhã, ou seja, apenas 19 minutos antes da hora de entrada e ainda por cima só permitiria que o aqui arguido e Recorrente chegasse ao seu local de trabalho apenas às 8h, duas horas após a hora marcada.
F. - Como se poderá comprovar pelo horário dos autocarros da Gondomarense já constante dos autos e confirmado por quase todas as testemunhas arroladas pelo Recorrente, o qual se considera integralmente reproduzido para todos os devidos e legais efeitos, o 1.º autocarro de manhã que sai de ... (freguesia do concelho de Penafiel) às 5h30 e passa posteriormente na Estrada Nacional ...08 (Estrada ...) em ... apenas às 5h41, chegando ao Porto às 6h25,
G. - Ora, como do Porto ainda tem de apanhar o comboio para ..., através de um comboio suburbano, apenas conseguiria estar em ... às 8h da manhã, isto porque não existem transportes públicos de ... para ... em qualquer horário que seja compatível com as suas obrigações laborais. H. - Significando isto um atraso de 2 horas em cada turno matinal, equivalendo por dizer que por cada dia de atraso e por cada duas horas de falta injustificada, bastariam 4 quatro turnos para ter um dia completo de faltas injustificadas,
I. - Atendendo também que, após 20 turnos com atrasos de 2 horas e falta injustificada nesse período, o aqui arguido perfaria 5 faltas injustificadas seguidas, o que daria direito a que a entidade patronal pudesse levantar um auto por falta de assiduidade, instaurar um processo disciplinar que provocasse a demissão e o despedimento por justa causa.
J. Algo que o aqui Recorrente sabe que a sua entidade patronal não deixará nunca de utilizar as prerrogativas legais ao seu dispor para penalizar o aqui Recorrente por esses atrasos constantes de duas horas diárias, pelo que o aqui arguido não tem qualquer alternativa que não seja sugerir e solicitar aos Venerandos Desembargadores a suspensão na execução do cumprimento da proibição de condução de veículo motorizado durante cinco meses, decidida pela Tribunal “a quo”
K. - Daqui que, para justificar e sustentar esta circunstância e esta necessidade imperiosa se socorra também o ora Recorrente da invocação da inconstitucionalidade das normas extraídas do artigo 69.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, no sentido de:
(i) «não permitir a suspensão da execução de pena acessória, a sua substituição por prestação de boa conduta, ou o cumprimento da execução da referida pena acessória de forma descontínua»; e (ii) «com a condenação pela prática do crime previsto no artigo 292,° n.° 1 do Código Penal, te[r] lugar, sem necessidade de se apurar qualquer outro requisito, a aplicação da pena acessória consistente na inibição de conduzir veículos com motor».
L. - Uma vez que a sua carta de condução é necessária para a execução do posto de trabalho que o arguido ocupa (pintor) a circunstância de não poder conduzir em qualquer período durante o período de inibição que lhe foi fixado irá forçosamente determinar que este não possa exercer a sua atividade profissional e não lhe possibilitará chegar a tempo ao local de trabalho, onde começa a trabalhar a partir das 06h da manhã, por ausência de transporte público, o que colide com o seu direito a trabalhar, direito esse constitucionalmente assegurado.
M. - Considerando que a inibição de conduzir veículos com motor prevista no artigo 69.ºn°1 do Código Penal assume a natureza de uma verdadeira pena e está associada à prática de um crime - artigo 65°, n° 1 e 69°, n°1 ambos do Código Penal e que a aplicação da pena de inibição de conduzir veículos automóveis não constitui uma consequência automática da prática do crime a que está associada,
N. - Que a licença de condução revela-se indispensável ao exercício da atividade do Recorrente, que este confessou integralmente e sem reservas a prática do crime que lhe foi imputado e que demonstrou arrependimento, estão reunidos os requisitos para que se proceda à suspensão da execução da pena acessória fixada ao Recorrente,
O. - Ou que esta seja substituída por uma prestação de boa conduta, ou que o cumprimento da dita pena acessória se execute nos dias não úteis comprometendo-se o Recorrente a entregar e levantar a sua carta de condução no posto policial mais próximo da sua residência (conferir Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, com data de 15/12/1993, processo n.ºconvencional JTRL00005887, disponível em www.dgsi.pt)
P. O artigo 69.ºn.º1 a) do Código Penal viola os artigos 18.ºn.º2, 19.ºn.º1, 30.ºn.º4 e 58.º n.º1, todos da Constituição da República Portuguesa, quando interpretado no sentido de não permitir a suspensão da execução de pena acessória, a sua substituição por prestação de boa conduta, ou o cumprimento da execução da referida pena acessória de forma descontínua traduz-se e concretiza-se assim por uma ofensa do direito ao trabalho. O aqui Recorrente fica objectivamente impedido de trabalhar porque não consegue cumprir o horário de entrada na sua empresa a tempo do início do turno, às 6h da manhã, porque do local em que vive (...) ao local onde trabalha, sito em ... (...), distam 22 kms, não existindo transporte público directo, daqui que se se encontrar privado de conduzir não conseguirá chegar a tempo ao seu local de trabalho e perderá o seu posto de trabalho.
Q. - Para além de que o mesmo artigo 69.º n.º1 alínea a) do Código Penal, viola os artigos 18.ºn.º2 e 30.ºn.º4, ambos da Constituição da República Portuguesa, quando interpretado no sentido segundo o qual, com a condenação pela prática do crime previsto no artigo 292.ºn.º1 do Código Penal, tem lugar (sem necessidade de se apurar qualquer outro requisito) a aplicação da pena acessória consistente na inibição de conduzir veículos,
R. - Violando-se com esta interpretação o princípio da proporcionalidade e da necessidade das penas, constante do art.º18.º n.º2 da C.R.P, uma vez que esta norma expressa que:
“A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.”
S. - É evidente que em causa com a prática de crimes de condução de veículos em estado de embriaguez está a salvaguarda do bem jurídico segurança rodoviária ou das comunicações, e no limite a vida de terceiros ou a sua integridade física, não se pode ser condescendente com quem viola as normas do art.º292.º do C.P, contudo, se a aplicação da pena decorrente do preenchimento dos elementos do tipo de ilícito é a consequência natural do preenchimento dos pressupostos da infracção em causa, já a proibição de conduzir veículos com motor apenas porque se comete o crime previsto no art.º292.º, equiparando-se esta conduta prevista na II.ª parte da alínea a) do n.º1 do art.º69.º do Código Penal à gravidade das condutas previstas na I.ª Parte da mesma alínea a) do n.º1 do art.º69.º do C.P em que os agentes praticam crime de homicídio ou de ofensa à integridade física cometidos no exercício da condução de veículo motorizado com violação das regras de trânsito rodoviário,
T. - Traduz uma absoluta e completa desproporcionalidade e um excesso punitivo que viola o art.º18.ºn.º2 da C.R.P, atendendo a que com esta proibição “in totum” do art.º69.ºn.º1 a) da C.P, se colocam em causa outros princípios constitucionais de igual densidade, como sejam o direito ao trabalho e ao acesso a condições de subsistência.
U. - No pior dos cenários, então que seja facultado ao aqui Recorrente a possibilidade de cumprimento dessa pena em dias não úteis para que, deste modo não perca o seu emprego e coloque em causa as condições de subsistência do Recorrente, da sua filha menor de 8 anos e da sua esposa.
V. Daqui que se requeira aos Venerandos Desembargadores julguem verificada a inconstitucionalidade material da norma do art.º69.ºn.º1 a ) do C.P na interpretação no sentido de não permitir a suspensão da execução de pena acessória, a sua substituição por prestação de boa conduta, ou o cumprimento da execução da referida pena acessória de forma descontínua traduz-se e concretiza-se assim por uma ofensa do direito ao trabalho,
W. - Para além de que o mesmo artigo 69.º n.º1 alínea a) do Código Penal, viola os artigos 18.ºn.º2 e 30.ºn.º4, ambos da Constituição da República Portuguesa, quando interpretado no sentido segundo o qual, com a condenação pela prática do crime previsto no artigo 292.ºn.º1 do Código Penal, tem lugar (sem necessidade de se apurar qualquer outro requisito) a aplicação da pena acessória consistente na inibição de conduzir veículos, violando-se com esta interpretação o princípio da proporcionalidade e da necessidade das penas, constante do art.º18.ºn.º2 da C.R.P, uma vez que esta norma admite a restrição de direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos, o que não aconteceu com a douta Sentença “a quo”, uma vez que esta para penalizar a conduta do ora Recorrente e fazer incidir sobre o mesmo a necessidade da punição acessória, coloca-o numa posição de vulnerabilidade excessiva porque corre o risco de perder o emprego,
X. - Quando a utilidade e necessidade da pena seria prosseguida na mesma se a sanção acessória pudesse ser cumprida, por exemplo, aos fins-de-semana, em dias não úteis.
Y. - Que se requer seja reconhecido pelos Venerandos Desembargadores, ordenando-se a revogação da Douta Sentença recorrida e atendida a pretensão de cumprimento da sanção acessória em dias não úteis, o que expressamente se invoca e requer aos Venerandos Desembargadores, desde já.
Z. - A não ser concedida a modificação da decisão requerida, sustenta-se que deverá ser reduzida a duração da proibição de condução de veículos motorizados aplicada, atenta a premente necessidade de utilização de veículo automóvel por questões de subsistência do arguido e da sua família, bem como decorrente da inexistência de antecedentes criminais por parte do aqui Recorrente.
AA. - Já que a Douta Sentença “a quo” determinou a aplicação de 5 meses de proibição de condução de veículos a motor, quando, o aqui Recorrente não tem quaisquer antecedentes criminais, por este ou outros crimes, nem tão pouco tem qualquer suspensão provisória do processo cumprida por este ou outros crimes.
BB. - Confessou o crime voluntariamente e mostrou-se arrependido pela sua conduta,
CC. - Tendo sido com inaudita surpresa que lhe viu ser aplicada uma proibição de condução de veículos a motor por um período de tempo, 5 meses, que se afasta já com alguma severidade do limite mínimo de 3 meses, mesmo admitindo que o nível de alcoolemia também não era próximo do mínimo legalmente punível mas não era um valor tão acima do mínimo que corresponda a um nível de punição temporal que faça descurar o facto de ser um arguido primário, ter confessado o crime, ter sido provado em julgamento que no momento da intercepção policial ter colaborado e respeitado as autoridades, estar perfeitamente lúcido e consciente,
DD. - Mas ter apenas utilizado a prerrogativa de solicitar o reconhecimento da sua necessidade de conduzir, pelo menos, durante a semana, por questões laborais e de subsistência, em sede de audiência, não tendo tal pretensão sido minimamente atendido, quando o próprio Ministério Público, em sede de proposta de aplicação de suspensão provisória do processo, ter sugerido que a sanção acessória fosse cumprida durante 4 meses,
EE. - Daqui se podendo perceber a excessiva penalização a que o Recorrente está sujeito,
FF. - Pelo que se requer aos Venerandos Desembargadores a Revogação da Douta Sentença Recorrida e aplicação de uma proibição que se aproxime mais do mínimo legalmente admissível e que reduza com relevo a sanção acessória aplicada.»

O Ministério Público junto do Tribunal de primeira instância apresentou resposta a tal motivação, pugnando pelo não provimento do recurso.

O Ministério Público junto desta instância emitiu douto parecer, pugnando também pelo não provimento do recurso.

II –
As questões que importa decidir, são, tendo em conta as conclusões da motivação do recurso, as seguintes:
- saber se a pena acessória de proibição de condução de veículos motorizados por cinco meses em que o arguido e recorrente foi condenado deverá, ou não, atendendo à necessidade dessa condução para o trabalho deste, ser suspensa na sua execução, com caução de boa conduta em matéria de trânsito, ou deverá ser cumprida de forma descontínua, aos fins de semana.
Caso tal não se entenda, por o artigo 69.º, n.º 1, a) do Código Penal não o permitir:
- saber se esta interpretação deste preceito deverá, ou não, ser declarada materialmente inconstitucional, por violação dos artigos 30.º, n.º 4 (“nenhuma pena envolve como efeito necessário a perda de quaisquer direitos civis, profissionais ou políticos”), 18.º, n.º 2 (princípio da necessidade e proporcionalidade das penas) e 58.º, n.º 1 (direito ao trabalho) da Constituição.
Caso tal não se entenda:
- saber se essa pena acessória de cinco meses de proibição de condução de veículos motorizados em que o arguido e recorrente foi condenado deverá, ou não, face aos critérios legais, ser reduzida.


III –
Da fundamentação da douta sentença recorrida, proferida oralmente, consta que resultaram provados os factos seguintes:

«No dia 05/06/2021, pelas 02h10m, na E.N. 1, ao Km ..., o arguido conduzia o veículo automóvel ligeiro de passageiros com a matrícula ..-..-NZ, quando foi fiscalizado por militares da G.N.R., no exercício das respetivas funções de fiscalização de trânsito.
Nessa ocasião, o arguido foi submetido a exame para pesquisa de álcool no sangue através do aparelho “ACS SAF’IR EVOLUTION”, aprovado e autorizado pela A.N.S.R. e acusou uma taxa de álcool no sangue de 1,539 g/l, já deduzido o valor de erro máximo legalmente admissível.
O arguido agiu com o propósito concretizado de conduzir o veículo supra referido depois de ter ingerido uma quantidade indeterminada de bebidas alcoólicas, bem sabendo que conduzia numa via pública e que apresentava uma taxa de álcool no sangue superior a 1,2 g/l.
O arguido atuou de forma livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal.
O arguido, à data da prática dos factos, não tinha antecedentes criminais.
Após a produção integral da prova, o arguido reconheceu a prática dos factos que lhe eram imputados.
Tem o 9º ano de escolaridade, trabalha há cerca de 4 anos na sociedade metalúrgica A..., localizada em ..., Paredes, a cerca de 22 km da sua residência e aufere um vencimento não inferior a 760 euros mensais.
Desempenha a sua atividade profissional por turnos compreendidos entre as 6 e as 14 horas, todos os dias.
Vive maritalmente com a mulher há cerca de 2 anos, sendo que o casal tem uma filha com 8 anos de idade.
A mulher é auxiliar despenseira no Hospital ..., no Porto, auferindo um vencimento mensal de valor não concretamente apurado, mas não inferior ao salário mínimo nacional.
Atualmente, e desde o dia 6 de novembro, o arguido encontra-se incapacitado para o trabalho mercê de doença (partiu dois dedos), estando o termo da incapacidade fixado para o dia 7 de fevereiro, mas sem previsão sobre se retomará, ou não, a sua atividade profissional normal.
A referido veículo automóvel corresponde a uma viatura de marca ... e modelo ..., do ano de 1999 e pertença do arguido.
O arguido reside em casa arrendada, pagando o agregado familiar de renda a quantia de 220 euros mensais.»


IV 1. –
Cumpre decidir.
Vem o arguido e recorrente alegar que a pena acessória de proibição de condução de veículos motorizados por cinco meses em que foi condenado deverá, atendendo à necessidade dessa condução para o exercício do seu trabalho, ser suspensa na sua execução, com caução de boa conduta em matéria de trânsito, ou deverá ser cumprida de forma descontínua, aos fins de semana.
Vejamos.
Estas duas questões são de há muito suscitadas e têm obtido resposta unânime na doutrina e na jurisprudência.
Quanto à suspensão de execução da pena acessória de proibição de condução de veículos motorizados prevista no artigo 69.º do Código Penal, ela não tem alguma forma de suporte legal. Não está prevista nesse Código alguma forma de substituição dessa pena acessória. A suspensão da execução da pena está prevista nesse Código apenas no que se refere à pena (principal) de prisão (ver artigo 50.º, n.º 1). Superar estas opções legislativas seria contrário ao princípio da legalidade das penas.
Tais opções legislativas encontram justificação na finalidade preventiva de tal pena acessória (que seria esvaziada se ela pudesse ser suspensa na sua execução) e na circunstância de ela não envolver a privação de liberdade, como envolve a pena de prisão com as consequências desta decorrentes no plano da inserção social do condenado (que justificam a suspensão da execução desta pena).
Foi outra a opção do legislador no que se refere às contraordenações rodoviárias e à sanção acessória de inibição de conduzir a elas aplicável (ver artigo 141.º do Código da Estrada), o que também tem justificação, face à menor gravidade destas.
Quanto à possibilidade de cumprimento descontínuo dessa pena acessória, também essa possibilidade carece de suporte legal. Pelo contrário, o disposto no n.º 3 do referido artigo 69.º do Código Penal e nos n.ºs 2 e 4 do artigo 500.º do Código de Processo Penal (que impõem a entrega da carta de condução no tribunal e sua retenção pelo período de duração da proibição) apontam claramente no sentido da continuidade do cumprimento dessa pena. Continuidade que também se justifica pela finalidade preventiva dessa pena, finalidade que seria esvaziada se o cumprimento da pena pudesse ser descontínuo.
Neste sentido se pronunciam, na doutrina, Germano Marques da Silva in Crimes Rodoviários, Universidade Católica Editora, Lisboa, 1996, pg. 28; António Casebre Latas. “A pena acessória de proibição de conduzir”, in Sub Judice, vol. 17, janeiro/março de 2001, pgs. 79-81; e Pedro Soares de Albergaria e Pedro Mendes Lima, “Condução em estado de embriaguez: aspectos processuais e substantivos do regime vigente”, in Sub Judice, vol. 17, janeiro/março de 2001, pgs. 68-69; e, na jurisprudência, a título de exemplo e entre outros, os acórdãos desta Relação de 18 de dezembro de 2013, proc. n.º 600/12.6PFPRT.P1, relatado por José Carreto; e de 7 de dezembro de 2022, proc. n.º 314/22.9, relatado por Amélia Catarino; da Relação de Lisboa de 23 de março de 2007, proc. n.º 1093/07-5, relatado por José Adriano; e de 18 de janeiro de 2022, proc. n.º 230/17.6GDMFR.L1-5, relatado por Vieira Lamim; da Relação de Coimbra de 9 de novembro de 2016, proc. n.º 78/15.2GTCTB.C1, relatado por Inácio Monteiro; e de 24 de abril de 2013, proc. n.º 181/12.0GTVIS.C1, relatado por Eduardo Martins; da Relação de Évora de 11 de março de 2010, proc. n.º 528/09.7PBEVR.E1, relatado por Gilberto Cunha, de 2 de junho de 2015, proc. n.º 944/14.2PCSTB.E1, relatado por Ana Barata Brito; e de 16 de maio de 2017, proc. n.º 377/16.6GGSTB.E1, relatado por Gilberto Cunha; e da Relação de Guimarães de 15 de abril de 2008, proc. n.º 589/08-1, relatado por Cruz Bucho; todos acessíveis in www,dgsi.pt.
Deverá, assim, ser negado provimento ao recurso quanto a este aspeto.


IV 2. –
Vem o arguido e recorrente alegar que esta interpretação do artigo 69.º do Código Penal (que impede, no caso vertente, em que a condução é indispensável para o exercício da atividade profissional do arguido, a suspensão de execução da pena acessória em causa, ou o seu cumprimento descontínuo) deverá ser declarada materialmente inconstitucional, por violação dos artigos 30.º, n.º 4 (“nenhuma pena envolve como efeito necessário a perda de quaisquer direitos civis, profissionais ou políticos”), 18.º, n.º 2 (princípio da necessidade e proporcionalidade das penas”) e 58.º, n.º 1 (direito ao trabalho) da Constituição.
Também estas questões vêm sendo de há muito suscitadas e têm obtido resposta unânime da jurisprudência, desde logo da jurisprudência do Tribunal Constitucional.
Quanto à questão do princípio consignado no artigo 30.º, n.º 4, da Constituição (reproduzido no artigo 65.º, n.º 1, do Código Penal), segundo o qual. “nenhuma pena envolve como efeito necessário a perda de quaisquer direitos civis, profissionais ou políticos”, o Tribunal Constitucional tem seguido, de forma recorrente e uniforme, o entendimento seguinte.
O que o referido n.º 4 do artigo 30.º da Constituição proíbe não são penas que se traduzam na perda de direitos civis (como sucede com a pena acessória em causa), mas que de uma simples condenação anterior o legislador retire automaticamente esse efeito sem a mediação do julgador. Ora, neste caso verifica-se tal mediação, pois a aplicação dessa pena depende de uma intervenção judicial que atende às particularidades do caso e doseia a medida da pena em função dessas particularidades, da gravidade da infração em concreto e da culpa do agente em concreto.
Neste sentido, pronunciam-se, entre outros, os acórdãos do Tribunal Constitucional nºs 362/1992, 667/1994, 73/1995, 143/1995, 243/1995, 630/2004 e 53/2011 (todos acessíveis in www.tribunalconstitucional.pt).
Quanto à alegada violação do direito ao trabalho, tem entendido, também de forma unânime, a jurisprudência, designadamente a do Tribunal Constitucional, que tal violação não se verifica, pois o direito ao trabalho não é absoluto e estamos perante uma sua limitação lateral e temporária que não atinge o seu núcleo essencial, sendo que tal limitação se justifica em função da salvaguarda de outros direitos constitucionalmente protegidos, como são os da vida e da integridade física, que são colocados em perigo com a condução em estado de embriaguez. As eventuais (eventuais, porque dependerão das particularidades de cada caso) limitações desse direito são equiparáveis às limitações de direitos que qualquer pena (desde logo, a pena de prisão) necessariamente acarreta. Não seria aceitável que o condutor que necessitasse da carta para trabalhar se pudesse eximir ao cumprimento de regras de trânsito ou pudesse, devido a tal necessidade, beneficiar de um tratamento penal mais favorável.
Neste sentido, pronunciam-se, entre outros, o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 440/2002 (acessível in www.tribunalconstitucional.pt); os acórdãos desta Relação de 3 de março de 2010, proc. n.º 1418/09.9PTPRT.P1, relatado por Joaquim Gomes; e de 7 de dezembro de 2022, proc. n.º 314/22.9PFVNG.P1, relatado por Amélia Catarino; da Relação de Lisboa de 11 de dezembro de 2018, proc. n.º 132/18.9PFBRR.L1-3, relatado por Nuno Coelho; da Relação de Coimbra de 8 de fevereiro de 2023, proc. n.º 50/22.6GDGRD.C1, relatado por Rosa Pinto; e da Relação de Évora de 27 de setembro de 2011, proc. n.º 249/11.0OPALGS.E1, relatado por João Amaro; e de 2 de junho de 2015, proc. n.º 296/14.0GAVNO.E1, relatado por Alberto Borges; todos acessíveis in www.dgsi.pt.
Esta jurisprudência considera, portanto, que estamos perante uma (lateral e eventual) limitação do direito ao trabalho que é necessária e proporcional. A previsão de condenação na pena acessória em causa não contraria, por si só, os princípios da necessidade e da proporcionalidade das penas, independentemente do que possa opinar-se da moldura abstrata da pena em questão no plano das opções de política legislativa (questão alheia às que nesta sede se discutem).
Tal não significa, em nosso entender, que, por exigência desse princípio da proporcionalidade das penas, não deva atender-se às consequências que a medida concreta da pena em causa em concreto acarreta para o condenado. Sendo certo que a particular danosidade dessas consequências não deixa de ser imputável ao condenado, de quem seria também exigível (por causa dessa particular danosidade) uma atenção também particular às regras de segurança no trânsito.
Assim, deverá ser negado provimento ao recurso também quanto a este aspeto.


IV 3. –
Vem o arguido e recorrente alegar que a pena acessória de cinco meses de proibição de condução de veículos motorizados em que foi condenado deverá, face aos critérios legais, ser reduzida e situar-se próximo do mínimo legal de três meses. Invoca as circunstâncias de não ter antecedentes criminais (nem nunca lhe ter sido aplicada uma suspensão provisória do processo pela prática de crime de condução em estado de embriaguez), ter confessado e ter demonstrado arrependimento e de essa condução ser indispensável para se deslocar para o seu local de trabalho (não existem transportes públicos que o permitam), sem o que perderá o seu emprego.
Vejamos.
O crime de condução em estado de embriaguez, p. e p. pelo artigo 292.º, nº 1, do Código Penal, é punível com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até cento e vinte dias. Nos termos do artigo 69.º, n.º 1, a), o crime de condução em estado de embriaguez é punível com a pena acessória de proibição de condução de veículos com motor por um período fixado entre três meses e três anos.
Na escolha e determinação da medida dessas penas, há que considerar os seguintes preceitos do Código Penal.
De acordo com o artigo 40.º, a aplicação de penas visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade (n.º 1), sendo que em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa (n.º 2).
Nos termos do n.º 1 do artigo 71.º, a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção. E, nos termos do n.º 2 do mesmo artigo, nessa determinação o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando, nomeadamente, o grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente (alínea a)); a intensidade do dolo ou da negligência (alínea b)), os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram (alínea c)); as condições pessoais do agente e a sua situação económica (alínea d)); a conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime (alínea e)); a falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena (alínea f)).
A respeito das finalidades da pena acessória de proibição de condução de veículos motorizados e das regras da determinação da sua medida concreta, devem ser tidos em conta os critérios indicados no citado artigo 71.º, com a ressalva de que a finalidade prevalente é, aqui, a de prevenção especial negativa e afastamento da perigosidade do agente (ver, neste sentido, entre outros, o acórdão da Relação de Coimbra de 7 de janeiro de 2004, proc. nº 3717/03, relatado por Belmiro Andrade, in www.dgsi.pt).
A esta luz, há que considerar o seguinte.
A taxa de alcoolémia com que o arguido e recorrente conduzia (1,539 g/l) não se afasta muito do mínimo a partir do qual a condução sob influência de álcool configura um crime (1,2 g/l). Considerando esse facto, a circunstância de ele não ter antecedentes criminais e a particular danosidade que em concreto para ele acarreta a proibição de condução de veículos motorizados, afigura-se adequado fixar em quatro meses a pena acessória em causa.
Deverá, assim, ser concedido provimento parcial ao recurso quanto a este aspeto.

Não há lugar a custas (artigo 513.º, n.º 1, a contrario, do Código de Processo Penal).


V - Pelo exposto, acordam os juízes da 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em conceder provimento parcial ao recurso, reduzindo para quatro (4) meses a pena acessória de proibição de condução de veículos motorizados em que ele foi condenado e mantendo, no restante, a douta sentença recorrida.


Notifique.


Porto, 7 de junho 2023.
(processado em computador e revisto pelo signatário)

Pedro Vaz Pato
Eduarda Lobo
Castela Rio