Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
12581/21.0T8PRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ARTUR DIONÍSIO OLIVVEIRA
Descritores: QUESTÃO DE FACTO
QUESTÃO DE DIREITO
FRAUDE À LEI
VENDA FIDUCIÁRIA
Nº do Documento: RP2023061312581/21.0T8PRT.P1
Data do Acordão: 06/13/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: RECURSO IMPROCEDENTE; DECISÃO CONFIRMADA.
Indicações Eventuais: 2. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – A qualificação de uma questão como sendo de facto ou de direito depende do objecto da acção: se este estiver dependente do significado jurídico de determinada expressão, estaremos perante uma questão de direito.
II – São os seguintes os elementos caracterizadores da fraude à lei: (i) uma pluralidade de atos jurídicos; (ii) a aparência de licitude; (iii) uma articulação teleologicamente preordenada de atos jurídicos (uma operação jurídica complexa); (iv) um resultado final global ilícito; (v) a inexigibilidade de uma intenção fraudulenta.
III – A venda fiduciária em garantia consiste numa venda do bem como garantia do pagamento da quantia mutuada pelo comprador ao vendedor, num contrato de mútuo que pode ser oculto pelos interessados, obrigando-se o comprador mutuante a revender o bem ao vendedor mutuário depois de estar pago o mútuo, no prazo acordado por ambos.
IV – Difere da venda a retro prevista no artigo 927.º do CC, porque nesta fica especialmente prevista a faculdade de resolução do contrato pelo vendedor, faculdade que não lhe é atribuída na venda fiduciária.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo: 12581/21.0T8PRT.P1
Origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Juízo Central Cível do Porto – Juiz 6



Acordam no Tribunal da Relação do Porto


I. Relatório
A..., Lda., com sede na Rua ..., ... ..., intentaram a presente acção declarativa comum de condenação contra AA, residente na Rua ... e ..., ... Gondomar.
Alegou, em síntese, o seguinte:
Em 7 de novembro de 2016, autora e ré celebraram contrato promessa de arrendamento do imóvel identificado nos autos, pelo qual a ré prometeu tomar esse imóvel de arrendamento assim que a autora se tornasse proprietária do mesmo, mediante outorga de escritura pública de compra e venda a celebrar no futuro, e no qual já se encontrava a habitar; de acordo com a cláusula 12.ª do referido contrato, foi convencionada a convolação automática do contrato de promessa em contrato de arrendamento aquando da outorga da dita escritura pública de compra e venda pela autora, o que viria a suceder no dia 7 de novembro de 2016; o contrato foi celebrado pelo prazo certo de 36 meses, renovável por iguais e sucessivos períodos se nenhuma das partes se opusesse a essa renovação ou se a ré não exercesse o seu direito de opção de compra do imóvel pelo preço final de 200.000,00 €; tendo a ré deixado de pagar as rendas devidas, a autora declarou resolvido o contrato por carta registada com aviso de recepção de 11 de Março de 2021; em 29.07.2021 o valor das rendas vencidas e não pagas ascendia a 72.000,00 €, acrescido dos respectivos juros de mora; a ré não pagou estes valores nem desocupou o locado.
Concluiu pedindo:
- Se reconheça que a resolução do contrato foi operada através da comunicação efetuada à ré por carta registada de 11.03.2021;
- Se condene a ré a entregar à autora o imóvel sito na Rua ... e ..., ... Gondomar, livre de pessoas e bens;
- Se condena a ré no pagamento do montante das rendas vencidas e não pagas até Julho de 2021, no montante total de 72.000,00 €, acrescido de juros à taxa de 4%, e das rendas vincendas até efetiva entrega do sobredito imóvel livre de pessoas e bens, acrescidas ainda da indemnização nos termos do disposto no artigo 1045.º, n.º 2;
- No caso de não se entender que o contrato foi resolvido comunicação de 11.03.2021, se declare resolvido o referido contrato de arrendamento, condenando-se a ré no pagamento de todas as rendas vencidas e não pagas, bem como as vincendas até efetiva entrega do imóvel.
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A ré contestou, alegando, em essência, que as partes não pretenderam celebrar qualquer contrato promessa de arrendamento ou contrato de arrendamento, mas sim um contrato promessa de compra e venda do referido prédio, esclarecendo que a ré e a respectiva família sempre habitaram nesse prédio, que o mesmo pertencia à mãe da ré e que foi objecto de diversos negócios destinados a garantir o pagamento dos empréstimos que BB havia concedido àquela, designadamente os contatos promessa de compra e venda com eficácia real celebrados com BB e CC e o contrato de compra e venda celebrado com a autora em 07.11.2016, constituindo o “contrato promessa de arrendamento” assinado pelas partes na mesma data o instrumento, engendrado pelo gerente da autora, por via do qual a ré pagaria o preço do prédio que prometeu comprar.
Mais alegou que nunca recebeu a carta por via da qual a autora afirma ter resolvido o contato de arrendamento e que, como promitente compradora do prédio em causa, foi pagando à autora, por várias tranches, o preço acordado de 200.000,00€, pelo que já nada deve a esta.
Conclui pugnando pela total improcedência da acção.
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Dispensada a realização da audiência prévia, foi proferido despacho saneador, identificado o objecto do litígio, enunciados os temas da prova.
Veio a realizar-se audiência de discussão e julgamento, na sequência da qual foi proferida sentença que julgou a acção totalmente improcedente e, consequentemente, absolveu a ré do pedido.
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Inconformada, a autora apelou da sentença, formulando as seguintes conclusões:
«I. O presente recurso é interposto da douta decisão do Tribunal a quo, que julgou a ação intentada pela Autora/ Recorrente improcedente e, consequentemente absolveu a Ré/Recorrida de todos os pedidos contra ela deduzidos.
II. A Recorrente entende que o Tribunal não valorou adequadamente os diversos meios probatórios constantes do processo, não tendo retirado as devidas ilações, tendo descurado aspetos legais essenciais.
III. O Tribunal a quo deu como provados factos sem cuidar de analisar criticamente a prova produzida em audiência de julgamento desconsiderando a postura incongruente que a Ré assumiu em todo o processo.
IV. Considerando a prova documental e testemunhal produzida nos autos, verificamos que, erroneamente, foram dados como provados factos relativamente aos quais não foi produzida qualquer prova, e ainda outros factos que não foram considerados provados, quando o deveriam ter sido, e que conduziram à decisão de que ora se recorre;
V. Foi peticionado pela Recorrente, nos presentes autos instaurados contra a Recorrida o seguinte:
“- Reconhecida que a resolução do contrato foi operada através da comunicação efetuada à Ré por carta registada de 11.03.2021
- A Ré condenada na entrega à Autora do imóvel sito na Rua ... e ..., ... Gondomar, livre de pessoas e bens;
- A Ré condenada no pagamento do montante das rendas vencidas e não pagas até julho de 2021 no montante total de €72.000,00 (setenta e dois mil euros) acrescido de juros à taxa de 4% e das rendas vincendas até efetiva entrega do sobredito imóvel livre de pessoas e bens, acrescidas ainda da indemnização nos termos do disposto no artigo 1045, n.º 2
- Caso não se entenda que não foi resolvido o contrato por comunicação de 11 de Março de 2021, seja declarado resolvido o referido contrato de arrendamento em causa nestes autos, condenando-se a Ré ao pagamento de todas as rendas vencidas e não pagas, bem como as vincendas até efetiva entrega do imóvel.”
VI. Da prova carreada para os autos, verificamos que, erroneamente, foram dados como provados factos sem qualquer sustentação probatória ou até lógica à luz da experiência comum.
VII. Tendo antes sido produzida prova que deveria ter conduzido a decisão diferente da que ora se recorre.
VIII. O Tribunal a quo, reproduziu textualmente factos alegados na contestação para a matéria de facto dada como provada, não tendo sido produzida, como a seguir veremos, qualquer prova nesse sentido.
IX. Não poderá deixar aqui de se referir que a Recorrida foi alterando a sua “história” de acordo com as evidências documentais que a Recorrente juntou aos autos.
X. Nesta matéria veja-se veja- se a alegação da Recorrida na sua contestação ao afirmar que entregou à Recorrente (tendo junto para o efeito os respetivos documentos) os valores de €13.655,00 e €16.980,00 em 30.07.2020, a título de pagamento do alegado preço pelo imóvel dos autos.
XI. Após ser confrontada por documentos que demonstraram a falsidade de tal afirmação, veio a Recorrida retratar-se quanto à alegação de tais factos, dando o dito por não dito…
XII. Numa contradição entre factos alegados na sua contestação e declarações por si prestadas em audiência de julgamento, a Recorrida, por um lado alegou desconhecer o contrato de arrendamento, por outro afirmou que sabia que estava registado nas finanças (Declarações de parte da Recorrida prestadas em 17.10.2022 com início às 15:57:31 e término às 16:17:28) supra transcritas, e por outro deu instruções para identificar no depósito a que se refere o documento nº9 da contestação que os valores dele constantes respeitavam a rendas.
XIII. Caso fosse verdade a versão da Recorrida, não se compreende porque razão a mesma não reagiu aquando da receção da carta de interpelação para o pagamento de rendas em atraso assim como a informação sobre a resolução do contrato de arrendamento (cfr. facto provado 7).
XIV. A Recorrida nada invocou quanto à interpelação para pagamento de rendas assim como a ordem para entregar o locado livre de pessoas e bens, tendo vindo apenas, em sede de contestação, muitos meses depois de ter sido interpelada para pagar, contar uma “história”, sem qualquer fundamento alegando ter efetuado o pagamento de €223.135,00 à Recorrente (cfr. artigo 78.º da contestação).
XV. A Recorrida não demonstrou, nem sequer alegou, que tenha respondido à referida carta de interpelação, ou tenha confrontado a Recorrente da inexistência do contrato de arrendamento ou, tenha ainda alegado que o que estava em causa era, afinal, um contrato promessa de compra e venda.
XVI. Entende a Recorrente que o Tribunal a quo errou no julgamento que é feito da matéria de facto.
XVII. Quanto à matéria dada como provada sob o facto 1), entende a Recorrente que a mesma deverá ser alterada, porquanto a Recorrente é a legítima proprietária do imóvel em causa nos autos porque, efetivamente, o adquiriu à mãe da Ré, mediante o pagamento do respetivo preço, e no seu direito de o usar fruir e dispor, permitiu, por via de um contrato de arrendamento, que a Recorrida pudesse usar o mencionado prédio mediante o pagamento de uma renda à Recorrente
XVIII. Tendo sido a Recorrente quem suportou, e tem suportado até à data, os impostos sobre o imóvel, nomeadamente IMI e os impostos sobre as rendas recebidas no âmbito do contrato de arrendamento celebrado com a Recorrida, o que nunca foi posto em causa por esta ou por quem quer que fosse.
XIX. Pelo que, não ficou demonstrado nos autos que Recorrente não fosse a respetiva dona e legitima proprietária do imóvel pelo que o Facto 1) dos factos provados, deverá ser alterado passando a ter o seguinte conteúdo:
“A Autora é a atual, dona e legítima proprietária de um prédio urbano composto por casa de cave, rés-do-chão e andar, com anexo, sito na rua ... e ..., ... Gondomar, descrito na Conservatória do Registo Predial de Gondomar sob o n.º ...16 e inscrita na matriz predial sob o artigo ...10. – Cfr. Documento nº 1.”
XX. Quanto ao facto 2) da matéria de facto dada como provada impõe-se igualmente que o mesmo seja alterado nos termos a seguir mencionados, uma vez que na matéria de facto provada nos factos 3), 4) e 6), o Tribunal considerou provado que as partes convencionaram os termos do contrato promessa de arrendamento, nomeadamente quanto ao prazo de duração e o montante da respetiva renda, e ainda que o promessa de arrendamento se convolou em contrato de arrendamento (cfr. ponto 6) dos factos provados).
XXI. Pelo que tendo o Tribunal considerada provada a matéria dos factos 3), 4) e 6) deverá, em consonância a matéria provada constante do facto 2) ser a mesma alterada nos seguintes termos:
“2) Em 07 de novembro de 2016, Autora e Ré celebraram o contrato promessa de arrendamento tendo por objecto o imóvel acima identificado, pelo qual a Ré prometeu tomá-lo de arrendamento assim que a Autora se tornasse proprietária do imóvel mediante outorga de escritura pública de compra e venda a celebrar no futuro e no qual já se encontrava a habitar - Cfr. Documento n.º 2.
XXII. No que respeita ao facto 10) dos factos provados, vemos que o Tribunal a quo assentou a sua convicção apenas nas declarações de parte da Recorrida.
XXIII. Da prova produzida em audiência de julgamento resultou que à promessa e contrato de arrendamento esteve subjacente à compra e venda do prédio efetuada entre a Recorrente e a mãe da Recorrida.
XXIV. O contrato de arrendamento dos autos foi proposto pela Recorrida como, de resto, resulta das declarações de parte do legal representante da Recorrente, CC (sessão de 17 de Outubro de 2022 – com início às: 16:18:15 e término: 16:44:45) da testemunha DD (depoimento prestado na sessões de julgamento de 17/10/2022 com início: 14:15:58 e término: 14:49:58) e EE (sessão de 14/11/2022, com início às 14:53:43 e término às 15:05:42) conforme depoimentos gravados e transcritos na alegação de recurso quando foi abordada esta matéria.
XXV. Devendo, por isso, atenta a prova produzida e supra referida ser alterada a matéria de facto do ponto 10) dos factos provados passando do mesmo a conter o seguinte teor: “10) Foi outorgado um Contrato Promessa de Compra e Venda com Eficácia Real, em 25FEV.2015, no Cartório do Lic. FF, na Maia, entre a, então, proprietária e legítima possuidora, GG (mãe da aqui R. e falecida em .../.../2019) e HH, em representação de BB, residente no Canadá.”
XXVI. Quanto ao facto 15) da matéria de facto dada como provada, contrariamente ao que deu como provado o Tribunal não resulta do mencionado documento n.º 4, junto à contestação, que tenha sido a mãe da Recorrida quem pediu o cancelamento da penhora que consta na descrição predial do imóvel dos autos.
XXVII. Do mencionado documento n.º 4 resulta apenas um pedido ao serviço de Finanças da cópia certificada do despacho da Sra. Chefe de Finanças que ordenou o cancelamento da penhora, conforme consta do formulário de requisição a que se refere aquele documento.
XXVIII. Daquele documento º 4, por via do qual o Tribunal deu como provado o facto 15, não consta que tenha sido a mãe da Recorrida quem tenha cancelado a penhora, até porque da descrição predial junta com a contestação sob documento n.º 5 não consta qualquer registo de cancelamento da mencionada penhora apresentado pela mãe da Recorrida.
XXIX. Donde pela falta de prova nesta matéria deverá ser alterado o facto n.º15 dos factos provados, passando o mesmo a referir que:
“15) Em 16/06/2016, o prédio objecto dos presentes autos e descrito em 1) é penhorado em Proc. Executivo Fiscal, N.º ...54, por dívidas às Finanças de Gondomar-1, no montante de €16.453,18, penhora cujo cancelamento foi ordenado por despacho da Sra. Chefe de Finanças de Gondomar, após despacho que determinou o levantamento daquela penhora, transitado em julgado em 26.12.2016, conforme (doc.4).”
No que concerne ao facto 18) da matéria de facto considerada provada, contrariamente ao julgado pelo Tribunal a quo foi produzida prova no sentido que a Recorrida, após a aquisição do imóvel pela Recorrente, passou a fruir do imóvel mediante uma retribuição (cfr. depoimentos das testemunhas DD e EE (depoimentos prestados na sessões de julgamento de 17/10/2022 com início: 14:15:58 e término: 14:49:58 e sessão de 14/11/2022, com início às 14:53:43 e término às 15:05:42, respetivamente e ainda do representante legal da Recorrente CC depoimento com início: 16:18:15 término: 16:44:45, e todas elas vieram confirmar a celebração do contrato de arrendamento a pedido da Recorrida, conforme resulta dos depoimentos gravados e supra transcritos na alegação de recurso sobre esta matéria.
XXX. Devendo, por isso, em conformidade com a prova supra referida, ser o facto provado 18) alterado, passando o mesmo a referir o seguinte:
“18) Após a compra e venda do mencionado prédio, pela Autora à mãe da Ré, a Ré e a sua família passaram a fruir do imóvel, por via do contrato de arrendamento celebrado com a Autora e mediante o pagamento do montante de €2.000,00, a título de renda nos termos propostos pela Ré à Autora.”
XXXI. Acresce que, sem qualquer prova idónea o Tribunal a quo deu como provado que o prédio em causa nos autos, à data de 2016, tinha um valor aproximado de €500.000,00 (quinhentos mil euros) – cfr facto provado 19).
XXXII. O Tribunal sustentou a sua decisão apenas no depoimento da testemunha II ouvida na sessão de julgamento de 17/10/2022 com início às 15:26:51 e término às 15:56:16.
XXXIII. Essa testemunha afirmou ser consultora imobiliária, não tendo demonstrado que capacidades técnicas detinha para avaliar o imóvel em causa.
XXXIV. A testemunha nem sequer soube explicar como chegou a tal valor,
XXXV. Na verdade, não consta dos autos qualquer avaliação do imóvel de onde pudesse o Tribunal, com segurança, sustentar que o imóvel tinha o valor de €500.000,00.
XXXVI. Como é sabido, o valor dos imóveis afere-se por via de avaliações efetuadas por pessoa com capacidade técnica para o efeito e não porque uma qualquer testemunha, ainda que se diga consultora imobiliária.
XXXVII. Pelo que, no entender da Recorrente não foi produzida prova suficiente para dar como provado o facto 19) da matéria de facto provada, devendo em consequência o mesmo passar para o elenco dos factos não provados.
XXXVIII. Relativamente ao facto provado 20) não foi produzida prova suficiente que permitisse ao Tribunal dar como aquela matéria.
XXXIX. Das declarações de parte da Recorrida, do depoimento das testemunhas JJ e II, e ainda das testemunhas da Recorrente não resultou que as mesmas tivessem conhecimento que tivesse sido a Recorrente a propor à Recorrida celebrar um contrato de alienação por compra no valor de €200.000,00 e que lhe tivesse sido garantido que não perderia a casa.
XL. Do depoimento da Recorrida não se ouve uma única palavra sobre o alegado acordo proposto pela Recorrente - cfr. depoimento de 17 de Outubro de 2022 com início às 15:57:31 e término às 16:17:28.
XLI. Na verdade, o Tribunal limitou-se a transcrever factos tal qual estavam alegados pela Recorrida na sua contestação.
XLII. Pelo que deverá a matéria de facto provada 20) passar para o elenco dos factos não provados o que aqui se requer para os devidos e legais efeitos.
XLIII. Quanto ao facto provado 21) “Contrato esse que nunca chegou a ser entregue à ora R. – tinha, a R., ao tempo, total confiança na tal EE – como toda outra documentação que ficou em posse da dita EE.”
XLIV. Foi referido pela EE ( cfr. 17.10.2022 supra transcrito e que aqui se dá novamente por reproduzido) que a mesma apenas redigiu um contrato de arrendamento a pedido da Recorrida, nos termos por esta indicados e que nada mais sabia sobre esta matéria e qualquer outra documentação.
XLV. Devendo, nesta conformidade o facto provado 21) passar a constar do elenco da matéria de facto não provada, por não ter sido produzida qualquer prova sobre aquela matéria.
XLVI. Acresce ainda que quanto ao facto 22) da matéria de facto provada, o Tribunal a quo mais uma vez veio reproduzir, tal qual, o facto alegado pela Recorrida na contestação, sem que para o efeito tivesse sido produzida, também quanto a esta matéria, qualquer prova.
XLVII. Efetivamente nem sequer resultou das declarações de parte da Recorrida que a esta lhe tivesse sido apresentado um contrato de arrendamento já assinado pelo CC.
XLVIII. Nesta matéria veja-se o depoimento da Recorrida (depoimento gravado e transcrito na alegação de recurso quando foi abordada esta matéria, onde estão identificados os respetivos minutos).
XLIX. Sendo que, em nenhum momento do seu depoimento a Recorrida afirmou que a EE lhe deu a assinar um contrato promessa de arrendamento previamente assinado pelo CC.
L. Pelo que sem qualquer prova produzida nos autos, não podia o Tribunal ter retirado a conclusão, e dar como provada, que a EE apresentou à Recorrida um contrato promessa já assinado pelo CC.
LI. Deverá pois a matéria de facto constante do ponto 22) ser retirada da matéria de facto provada e passar a constar da matéria de facto não provada, o que se requer.
LII. Igualmente quanto ao facto 23) não se vislumbra como pode o Tribunal a quo ter considerado provado que terá sido o referido CC quem “engendrou” o contrato promessa de arrendamento.
LIII. Quanto a esta matéria o Tribunal limitou-se a transcrever factos alegados na contestação, sem cuidar de verificar que efetivamente nenhuma das testemunhas ouvida em audiência, nem a própria Recorrida referiram ter sido o CC a engendrar o que quer que fosse – Cfr. os depoimentos gravados e transcritos na alegação de recurso quando foi abordada esta matéria de II ouvida na sessão de julgamento de 17/10/2022 com início às 15:26:51 e término às 15:56:16 :DD( início: 14:15:58e término: 14:49:58) depoimento prestado na sessão de julgamento de 17/10/2022,CC (início: 16:18:15 término: 16:44:45) depoimento prestado na sessão de julgamento de 17/10/2022, JJ, ouvido na sessão de 17 de Outubro de 2022, com início às 14:51:39 e término às 15:26:06, declarações de parte da Recorrida prestadas em 17.10.2022, com início às 15:57:31 e término às 16:17:28. E EE (com início às 14:53:43 e término às 15:05:42) depoimento prestado na sessão de 14/11/2022,
LIV. Sobre este facto nenhuma das testemunhas da Recorrida tinha conhecimento sobre os termos e em que circunstâncias foi assinado o mencionado contrato de arrendamento.
LV. Nada referido a Recorrida que tenha sido o CC a engendrar o que quer que fosse.
LVI. Foi ainda dado como provado pelo Tribunal a matéria de facto 27) dos factos provados.
LVII. Relativamente aos mencionados factos 23) e 27) da matéria provada cumpre referir que, mais uma vez, não foi produzida qualquer prova, nem o Tribunal tirou as corretas conclusões dos documentos que constam nos autos.
LVIII. Na verdade, basta atentar no prazo de duração do contrato de arrendamento (36 meses) e no valor da renda (€2.000.00) para perceber que o valor total das rendas não correspondiam ao valor de €200.000,00 como concluiu o Tribunal.
LIX. Ademais, sobre aquelas rendas a Recorrida tinha ainda que suportar o respetivo imposto, sendo por isso desprovido de qualquer fundamento o raciocínio realizado pelo Tribunal a quo
LX. Pelo que a matéria dos factos 23) e 27) deverá ser considerada como não provada.
LXI. Igualmente deverá ser considerado não provado o facto 25) dos factos provados, porquanto ficou demonstrado que foi a Recorrida quem à Recorrente o contrato de arrendamento em causa nos autos tudo conforme decorreu, à saciedade, dos depoimentos da testemunha DD( início: 14:15:58 e término: 14:49:58), do depoimento de parte do legal representante da Recorrente, CC (início: 16:18:15 término: 16:44:45) depoimentos prestados nas sessões de julgamento de 17/10/2022, e ainda depoimento da testemunha EE (com início às 14:53:43 e término às 15:05:42) depoimento prestado na sessão de 14/11/2022 supra transcritos e que aqui se dão por novamente reproduzidos.
LXII. Resultando do depoimento de parte da Recorrida que a mesma sabia “que o contrato estava nas finanças” (cfr. declarações de parte da Recorrida prestadas em 17.10.2022 com início às 15:57:31 e término às 16:17:28.
LXIII. Ainda sobre esta matéria é revelador o documento n.º 9, junto pela Recorrida na sua contestação, e que corresponde a um depósito efetuado pela testemunha II, de onde consta precisamente que aquele depósito se refere ao “Pagamento rendas AA”,
LXIV. Não podendo, de resto, o Tribunal ter concluído no facto 25) dado como provado, que se teriam pago menos impostos num contrato de arrendamento do que num contrato promessa de compra e venda.
LXV. Ora, apesar de não ter decorrido de qualquer prova produzida em audiência de julgamento o apuramento de tal facto, nem sequer se aventou o tema do pagamento de mais ou menos impostos, também o Tribunal não explicou na sua motivação como chegou a tal raciocínio.
LXVI. A verdade é que a Recorrente ao celebrar o contrato de arrendamento dos autos teve que suportar o imposto devido pelas rendas que recebeu, o que não teria sucedido, caso tivesse celebrado um contrato promessa de compra e venda, como entendeu o Tribunal a quo.
LXVII. Deverá, nesta conformidade, face à ausência de prova, o facto 25) passar a constar da matéria de facto não provada.
LXVIII. No que respeita ao facto 26) da matéria de facto provada não foi, igualmente produzida qualquer prova sobre o valor da renda adequado ao imóvel em causa nos autos.
LXIX. Nesta matéria o Tribunal bastou-se com o depoimento da testemunha II sem qualquer capacidade técnica que lhe permitisse asseverar que esse era o preço praticado no mercado.
LXX. Além disso, o valor da renda foi proposta pela Recorrida, conforme resultou do depoimento da testemunha EE e do Legal representante da Recorrente - conforme depoimentos gravados e transcritos na alegação de recurso quando foi abordada esta matéria, onde estão identificados as respetivas passagens.
LXXI. Nem se compreende como pode o Tribunal concluir que tendo o valor de €500.000,00 a renda adequado não seria superior a €850.00, sem qualquer elementos técnicos de suporte,
LXXII. E sem ter explicado de forma lógica e fundamentada porque é que um imóvel com o valor de €500.000,00 não poderá a renda ser superior a €850.00.
LXXIII. Pelo que deverá a matéria de facto constante no ponto 26) ser declarada não provada.
LXXIV. No que respeita ao facto 29) da matéria de facto provada, considerando a prova produzida tal facto deverá ser alterado, porquanto os valores identificados naquela matéria respeitam efetivamente ao pagamento das rendas estipuladas no contrato de arrendamento e não ao pagamento de qualquer preço.
LXXV. Veja-se a menção que consta no documento n.º 9 junto à contestação para justificar o depósito do valor de e 10.000,00.
LXXVI. De resto, nenhuma outra quantia foi entregue à Recorrente pela Recorrida, conforme se apurou e audiência de julgamento e como também concluiu o Tribunal.
LXXVII. Nesta matéria resulta claro do depoimento da testemunha EE (depoimento supra transcrito e identificado na alegação) que Recorrida entregou à Recorrente apenas os valores a título de rendas, que constam nos documentos 9, 10 e 11 não se tendo provado que tivesse entregue outras quantias a EE que nunca recebeu quaisquer quantias da Recorrida referentes ao Imóvel ou relacionadas com o CC.
LXXVIII. Nesta conformidade o facto provado 29) deverá ser alterado passando do mesmo a constar o seguinte: 29) A R., pagou, directamente ou através da sua amiga, II, umas vezes por depósito bancário, outras vezes por transferência bancária as seguintes rendas:
- Em 31/07/2020 – Banco 1... - €10.000,00 (doc.9);
- Em 26/05/2020 – Banco 1... - €1.500,00 (doc.10);
- Em 11/01/2018 – Banco 1... - €1.000,00 (doc.11);
LXXIX. Por fim, quanto à matéria de facto constante das als. a) e b) dos factos não provados, contrariamente ao que entendeu o Tribunal a quo, ficou provado que a Recorrida deixou de pagar rendas desde Março de 2018, sendo que as rendas de abril, maio, junho e julho de 2018, pagas apenas em julho de 2020 e as rendas de março e agosto de 2018 pagas parcialmente no mesmo dia.
LXXX. Sendo certo que, na carta de interpelação para pagamento das rendas em atraso recebida pela Recorrida esta nada respondeu ou impugnou a quantia em dívida tendo-o feito apenas quando foi citada para a presente ação.
LXXXI. Não tendo ainda feito prova nos autos do pagamento de quaisquer montantes, a título de rendas, à exceção dos pagamentos constantes dos documentos 9, 10 e 11 da contestação.
LXXXII. Sobre esta matéria confirmou a testemunha DD na sessão de 17/10/2022 com início às 14:15:58 e fim às 14:49:58, que não foi pago o valor da rendas em divida e que a Recorrida havia sido interpelada para o respetivo pagamento, nada tendo respondido quanto à referida interpelação.
LXXXIII. Pelo que perante a prova produzida quanto a esta matéria deverão os factos das als. a) e b) dos factos não provados, passarem a constar do elenco dos factos provados, o que aqui se requerer.
LXXXIV. Acresce ainda que o Tribunal na sua motivação referiu não ter tido dúvidas em dar como provada a versão que foi trazida aos autos pela Recorrida constante dos factos que o Tribunal deu como provados de 10) a 30) .
LXXXV. Mais referiu o Tribunal que suportou a sua decisão nos vários documentos referidos na factualidade dada como provada “que atestam que todo o processo que desembocou no pretenso “contrato de arrendamento” se deveu a uma dívida inicial de €148.800,00 tida pela mãe da R. perante o BB, com a sequência retratada na factualidade provada.”
LXXXVI. Sustentou ainda o Tribunal que “A versão dos factos trazida aos autos pela R., encontra-se ainda suportada nas declarações de parte da R., no depoimento da testemunha JJ (irmão da R.) e da testemunha II, amiga da família e que conhecia bem toda a dinâmica familiar da R., os quais não foram abalados pelos depoimentos do DD, EE e declarações de parte do CC.”
LXXXVII. Contrariamente ao que entendeu o Tribunal, não ficou demonstrado nos autos que as testemunhas apresentadas pela Recorrida tivessem conhecimento direto do contrato de arrendamento aqui em causa.
LXXXVIII. Nomeadamente desconheciam o contrato de arrendamento, não podendo daí concluir-se que pura e simplesmente o contrato não foi celebrado e executado entre a Recorrente e a Recorrida.
LXXXIX. Relativamente ao depoimento do irmão da Recorrida, JJ, muito pouco, ou nenhum, conhecimento direto revelou aquela testemunha sobre o contrato em discussão nestes autos, conhecendo a testemunha apenas sobre os contratos celebrados entre a mãe e o dito BB – cfr. depoimento desta testemunha ouvida na sessão de 17 de Outubro de 2022, com início às 14:51:39 e término às 15:26:06:
XC. Em todo o caso, não poderá deixar de se referir que se Recorrida, ou a mãe, contraíram empréstimos com o referido BB, a Recorrente nada tem a ver com esse facto.
XCI. O que ficou demonstrado nos presentes autos foi a compra e venda pela Recorrente à mãe da Recorrida do imóvel em causa nos autos, assim como a celebração de um contrato promessa de arrendamento que, entretanto, se convolou em contrato de arrendamento (facto provado 6).
XCII. O Tribunal a quo, baseado em coincidências e sucessão dos registos constantes na descrição predial do imóvel dos autos, decidiu concluir, por existirem empréstimos entre a mãe da Recorrida e o dito BB, que também no caso da Recorrente se trataria de um empréstimo, sem cuidar de analisar a prova produzida nos autos, e aqui já abundantemente referida.
XCIII. O Tribunal não ponderou, nem apreciou corretamente as provas produzidas em audiência de julgamento aceitando, sem mais, a versão da Recorrida apesar das contradições quanto a alegados pagamentos por ela efetuados à Recorrente a que se referem os documentos 7 e 8 que a mesma juntou com a contestação e documento e documento 2 junto com a resposta da Recorrente.
XCIV. Acresce ainda que, o Tribunal a quo nem sempre deu a conhecer os meios de prova que sustentaram a posição adotada, fazendo remissão quanto à matéria provadas nos factos provados 20) a 27) para a sequência factual e temporal do considerado provado no facto em 10) dos factos provados.
XCV. Analisado o facto provado 10) não conseguimos vislumbrar, como foi possível ao Tribunal dar como provado os factos 20) a 27) da matéria de facto provada, nomeadamente a celebração do contrato promessa, a fixação do preço da compra e venda, o montante da renda e de quem redigiu o contrato promessa de compra e venda.
XCVI. Na verdade, como aqui já se referiu e reitera “Não basta fixar os factos, dando-os como provados ou não provados, mas é preciso explicar e dizer o porquê de tal opção, relativamente a cada um deles”. – cfr. Acórdão da Relação de Coimbra, proc. n.º 370/15.6JALRA.C1, de 02 de agosto de 2017, disponível em www.dgsi.pt.
XCVII. Em nosso entender, o Tribunal limitou-se a dar como provados factos sem explicar os motivos ou o percurso lógico e racional que levou a à sentença proferida.
XCVIII. Sobre esta matéria veja-se o que escreveu Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, p. 718.
“O importante é que, na enunciação dos factos provados e não provados, o juiz use uma metodologia que permita perceber facilmente a realidade que considerou demonstrada, de forma linear, lógica e cronológica, a qual, uma vez submetida às normas jurídicas aplicáveis, determinará o resultado da ação
XCIX. Pelo que, salvo o devido respeito, não existiu um exame crítico relativamente a parte da prova produzida, tal como era obrigação do Tribunal, nos termos do artigo 607.º, n.º 4 do CPC.
C. Tribunal a quo não procurou a verdade material dos factos, fundando a sua decisão entre o que era habitual a mãe da Recorrida fazer (recorrer a empréstimos) e à sucessão de registos constantes na descrição predial do imóvel em causa nos autos, bastando-se com esses elementos para entender que o caso dos autos não se tratava de um contrato de arrendamento.
CI. O Tribunal considerou não ter ocorrido simulação por falta de requisitos e veio qualificar o contrato de arrendamento como sendo um contrato promessa de compra e venda, o que, do ponto de vista legal é completamente desprovido de fundamento.
CII. Nos termos do disposto no artigo 1023.º do CC “A Locação diz-se arrendamento quando versa sobre coisa imóvel, aluguer quando incide sobre coisa móvel.
CIII. Dispõe artigo 1083.º, n.º 3 CC é inexigível ao senhorio a manutenção do arrendamento em caso de mora igual ou superior a três meses no pagamento da renda.
CIV. Resulta do preceituado no artigo 1084.º, n.º 2 do CC, que a resolução pelo senhorio quando fundada no não pagamento de renda por período superior a três meses opera por comunicação dirigida ao inquilino, onde fundamentadamente se invoque a obrigação incumprida.
CV. A Recorrente, por via dos seus mandatários, interpelou a Recorrida para o pagamento das rendas em atraso e ainda para a resolução do contrato de arrendamento ( documento n.º 6 junto à p.i).
CVI. A resolução que operou, por via da referida comunicação, só pode ser afastada se o inquilino puser fim à mora no prazo de um mês contado da data de receção de tal comunicação, como decorre do disposto no artigo 1084.º, n.º 3 do CC,
CVII. Nesta conformidade, a resolução do contrato de arrendamento operou, pois a Recorrida encontra-se em mora no pagamento de renda superior a três meses, conforme resulta da comunicação por ela recebida cfr facto 7 da matéria de facto dada como provada) na qual se discriminou o montante de rendas em falta e se resolveu o contrato de arrendamento, instando a Recorrida ao seu pagamento e à desocupação do locado em prazo razoável.
CVIII. No entender da Recorrente ficou provado nos autos a celebração de um contrato promessa de arrendamento, que se convolou em contrato de arrendamento, mediante o qual a Recorrida pagaria à Recorrente a renda mensal de €2.000,00 – Cfr. facto 6 da matéria de facto da como provada.
CIX. Sendo certo que a Recorrida, sempre se comportou como arrendatária do imóvel tendo depositado valores, a título de rendas o que fez constar no depósito junto sob documento 9 com a contestação.
CX. A verdade é que a Recorrida só após ser confrontada com uma ação de despejo, veio surpreendentemente, veio trazer aos autos uma versão cientemente deturpada para se furtar às suas obrigações contratuais.
CXI. Apenas uma conclusão sobreleva, a de que o Tribunal a quo não procurou a verdade material dos factos considerando provada matéria relativamente à qual nenhuma prova se produziu o que levou o Tribunal a tomar uma decisão errada.
CXII. Nesta conformidade, perante o que aqui se expôs e face à prova produzida supra referida deverá alterar-se a matéria de facto dos factos 1), 2), 10), 15), 18), e 29 em conformidade com o que supra se demonstrou.
CXIII. Deverão ser considerados como não provados, face insuficiente prova produzida nos autos, os factos 19), 20), 21), 22), 23), 25), 26) e 27) pelas razões atrás aduzidas.
CXIV. E, ser considerada como provada a matéria de facto ínsita nas alíneas a) e b) dos factos considerados não provados pelo Tribunal a quo.
CXV. Antes o exposto, ao julgar a ação improcedente o Tribunal a quo violou o disposto nos artigos 1022.º e 1023.º, 1083.º, n.º 3 e 1084.º n.º 2 todos do CC e artigo 607.n.º 3 e 4 do CPC».
Concluiu pugnando se revogue a sentença recorrida e se julgue a acção totalmente procedente.
*
A ré respondeu à alegação da recorrente, pugnando pela total improcedência do recurso.
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II. Objecto do Recurso
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, como decorre do disposto nos artigos 635.º, n.º 4, e 639.º do Código de Processo Civil (CPC), não podendo o Tribunal conhecer de quaisquer outras questões, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o seu conhecimento oficioso (cfr. artigo 608.º, n.º 2, do CPC). Não obstante, o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes e é livre na interpretação e aplicação do direito (artigo 5.º, n.º 3, do citado diploma legal).
As questões a decidir, tendo em conta o teor das conclusões formuladas pela recorrente, são as seguintes:
1. O erro no julgamento da matéria de facto no que concerne aos pontos 1, 2, 10, 15, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 25, 26, 27 e 29 dos factos provados e nas alíneas a) e b) dos factos não provados;
2. A procedência da acção, com base na pretendida alteração da decisão da matéria de facto.
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III. Fundamentação
A. Decisão sobre a matéria de facto na primeira instância
1. Factos Provados
São os seguintes os factos julgados provados pelo tribunal de primeira instância:
1) Encontra-se inscrito a favor da Autora o prédio urbano composto por casa de cave, rés-do-chão e andar, com anexo, sito na rua ... e ..., ... Gondomar, descrito na Conservatória do Registo Predial de Gondomar sob o n.º ...16 e inscrita na matriz predial sob o artigo ...10. – Cfr. Documento nº 1.
2) Em 07 de novembro de 2016, Autora e Ré declararam celebrar contrato promessa de arrendamento tendo por objecto o imóvel acima identificado, pelo qual a Ré prometeu tomá-lo de arrendamento assim que a Autora se tornasse proprietária do imóvel mediante outorga de escritura pública de compra e venda a celebrar no futuro e no qual já se encontrava a habitar - Cfr. Documento n.º 2.
3) Nos termos da cláusula 12ª do referido contrato, foi convencionada a convolação automática do contrato de promessa em contrato de arrendamento aquando da outorga da dita escritura pública de compra e venda pela Autora, o que viria a suceder no dia 07 de novembro de 2016 - Cfr. Documento n.º 3.
4) O contrato foi celebrado com prazo certo, pelo prazo certo de 36 (trinta e seis) meses, tendo ficado convencionado que o mesmo se renovaria por iguais e sucessivos períodos de 36 (trinta e seis) meses, se nenhuma das partes se opusesse à sua renovação, ou se a Ré não tivesse exercido o seu direito de opção de compra do imóvel pelo preço final de €200.000,00.
5) O Contrato foi registado junto da Autoridade Tributária e Aduaneira e pago o correspondente Imposto de Selo – Cfr. Documento n.º 4.
6) Nos termos da Cláusula Quinta do intitulado Contrato Promessa de Arrendamento, entretanto convolado em “Contrato de Arrendamento”, foi convencionada a renda anual de €24.000,00 (vinte e quatro mil euros), a ser paga em duodécimos de €2.000,00 (dois mil euros) vencendo-se no dia 08 do mês a que dissesse respeito.
7) Por carta de 11 de março de 2021 carta registada com aviso de recepção para o imóvel, alertam a R. para o incumprimento da obrigação de pagamento das rendas, tendo sido recebida por esta a 15 de março de 2021, Cfr. Documento nº 6.
8) Tendo sido considerado incumprido o contrato de arrendamento, foi também, por via da comunicação supra-referida, resolvido o contrato de arrendamento, nos termos do artigo 1084º nº 2 do CC e do artigo 9º nº 7 alínea c) do NRAU, e exigida a devolução do imóvel, livre de pessoas e bens no prazo de cinco dias. - Cfr. Documento n.º 6.
9) À data da comunicação que foi remetida a Ré, a A. considerou que se encontravam em dívida as seguintes rendas, no montante total de €64.000,00 (sessenta e quatro mil euros) facto que foi expressamente mencionado em tal comunicação:
- março de 2018, encontrando-se em dívida o montante de €540,00;
- agosto de 2018, encontrando-se em dívida o montante de €1.460,00;
- setembro de 2018, no montante de €2.000,00;
- outubro de 2018, no montante de €2.000,00;
- novembro de 2018, no montante de €2.000,00;
- dezembro de 2018, no montante de €2.000,00;
- janeiro de 2019, no montante de €2.000,00;
- fevereiro de 2019, no montante de €2.000,00;
- março de 2019, no montante de €2.000,00;
- abril de 2019, no montante de €2.000,00;
- maio de 2019, no montante de €2.000,00;
- junho de 2019, no montante de €2.000,00;
- julho de 2019, no montante de €2.000,00;
- agosto de 2019, no montante de €2.000,00;
- setembro de 2019, no montante de €2.000,00;
- outubro de 2019, no montante de €2.000,00;
- novembro de 2019, no montante de €2.000,00;
- dezembro de 2019, no montante de €2.000,00;
- janeiro de 2020, no montante de €2.000,00;
- fevereiro de 2020, no montante de €2.000,00;
- março de 2020, no montante de €2.000,00;
- abril de 2020, no montante de €2.000,00;
- maio de 2020, no montante de €2.000,00;
- junho de 2020, no montante de €2.000,00;
- julho de 2020, no montante de €2.000,00;
- agosto de 2020, no montante de €2.000,00;
- setembro de 2020, no montante de €2.000,00;
- outubro de 2020, no montante de €2.000,00;
- novembro de 2020, no montante de €2.000,00;
- dezembro de 2020, no montante de €2.000,00;
- janeiro de 2021, no montante de €2.000,00;
- fevereiro de 2021, no montante de €2.000,00;
- março de 2021, no montante de €2.000,00;
Até à presente data a quantia em falta não foi regularizada pela Ré, acrescendo às mesmas as rendas vencidas desde então, no montante total de €8.000,00 (oito mil euros) e que se discriminam:
- abril de 2021, no montante de €2.000,00;
- maio de 2021, no montante de €2.000,00;
- junho de 2021, no montante de €2.000,00.
- Julho de 2021, no montante de € 2.000,00
Num total de €72.000,00 à data de 29 de Julho de 2021.
10) O que está subjacente ao contrato de arrendamento aludido em 2) e 3) é o Contrato Promessa de Compra e Venda com Eficácia Real, outorgado em 25FEV.2015, no Cartório do Lic. FF, na Maia, entre a, então, proprietária e legítima possuidora, GG (mãe da aqui R. e falecida em .../.../2019) e HH, em representação de BB, residente no Canadá.
11) No aludido contrato, a promitente vendedora, prometia vender e o promitente comprador prometia comprar, o prédio questionado nos presentes autos, por cento e quarenta e oito mil e oitocentos euros, quantia esta que este, naquele acto, entregou à promitente vendedora, conforme doc. 1.
12) Estabeleceram, ainda, os outorgantes, naquela escritura, que a escritura definitiva, a marcar pelo promitente comprador, seria no Cartório Notarial, à sua escolha, a partir do prazo de seis meses, a contar daquela data, isto é, depois de 25 de Agosto de 2015, tudo como melhor consta daquela escritura que aqui se junta, por fotocópia e se dá por integralmente reproduzida para os legais efeitos, conforme doc. 1.
13) Com aquele dito promitente comprador (Sr. BB), a promitente vendedora, porque havia precisado de mais dinheiro para resolver determinados problemas, concede-lhe um EMPRÉSTIMO, do qual se confessa devedora, em 17SET.2015, de cento e três mil e seiscentos euros, que aquele lhe havia emprestado, e a pagar, em doze prestações, que acabariam em 17SET.2016, dando-lhe, como garantia do integral pagamento daquela quantia, constituindo hipoteca voluntária sobre um outro prédio seu, situado em ..., tudo como melhor consta do documento junto, que aqui se dá por integralmente reproduzido para os legais efeitos (doc. 2).
14) Em 10 de Março de 2016, estando bastante doente, a promitente vendedora, GG, constituindo sua procuradora, sua filha e aqui R., AA, é distratado, com o promitente comprador, BB, também representado pelo seu procurador, HH, e que tinha intervindo, no Contrato Promessa de Compra e Venda, de 25FEV.2015, aquele mesmo contrato-promessa, nos termos exarados naquele distrate, ali tendo declarado, o representante do promitente vendedor, que “recebe da primeira outorgante, a quantia de CENTO E QUARENTA E OITO MIL E OITOCENTOS EUROS, correspondente à devolução do preço pago”, tudo como melhor consta daquela escritura de distrate, conforme (doc.3).
15) Em 16/06/2016, o prédio objecto dos presentes autos e descrito em 1) é penhorado em Proc. Executivo Fiscal, N.º ...54, por dívidas às Finanças de Gondomar-1, no montante de €16.453,18, penhora que depois foi cancelada pela executada, mãe da R., GG, tudo como melhor consta do pedido de cancelamento da própria e respectiva certidão de 14JAN.2019, conforme (doc.4).
16) O promitente-comprador BB veio a falecer em 8 de Março de 2016 (assento óbito nº 158), e a promitente vendedora, GG, mãe da aqui R., já muito doente, também veio a falecer, em 11FEV.2019.
17) Decorre da certidão com o histórico do prédio referido em 1), que no dia, 10/03/2016, aparecem 2 ... de 2016/03/10 – pág. 3, da certidão, cancelamento da promessa de alienação de 2015/02/25, e, ao mesmo tempo, a AP. ...21, de 2016/03/10, Promessa de Alienação a CC, com o prazo até 25SET.2016, a qual é cancelada pela AP....00, de 2016/11/07, sendo que, na mesma data, o prédio volta a ser objecto de aquisição, por compra, mas já não pelo CC, mas pela “A..., Investimentos Imobiliários, Lda”, aqui A., e de que aquele é sócio-gerente, conforme doc. 5.
18) Pese todos os sucessivos actos registrais atrás mencionados, a R. e sua família, designadamente, os seus pais, estiveram sempre e estão na posse e uso real e efectivo daquela casa, morada de família, dado estarem a pagar os empréstimos que contraíram com o BB.
19) O prédio identificado em 1), à data de 2016, tinha um valor aproximado de €500.000,00 (quinhentos mil euros).
20) A R., como filha da vendedora, em acordo e combinação com o sóciogerente da A., “A..., Lda”, que havia registado o prédio em seu nome, é que lhe garantiu que não perderia a casa, aceitou fazer com ela, um Contrato de Alienação por compra, no valor de €200.000,00 (duzentos mil euros), com determinadas cláusulas, e que esteve a cargo de EE, como esteve a grande parte da documentação.
21) Contrato esse que nunca chegou a ser entregue à ora R. – tinha, a R., ao tempo, total confiança na tal EE – como toda outra documentação que ficou em posse da dita EE.
22) E, foi desta forma que, naquela mesma data, 07/NOV/2016, que a dita EE, como mediadora, deu a assinar à ora R., o “CONTRATO PROMESSA DE ARRENDAMENTO” (cfr. doc. 2, junto com a p.i.), contrato aquele elaborado pela dita EE, o qual lhe foi apresentado já assinado pelo CC, e que ela também assinou.
23) Era, portanto, através daquele instrumento, engendrado pelo CC, sócio-gerente da A. – Contrato Promessa de Arrendamento – que a R. pagaria o preço da compra que havia prometido comprar, o questionado prédio, isto é, por €200.000,00 (duzentos mil euros).
24) Nos termos do nº 2, da cláusula segunda do Contrato-Promessa de Arrendamento, “durante a vigência do contrato de arrendamento prometido e até ao termo do mesmo, e desde que a Segunda Outorgante não esteja em incumprimento do contrato – nomeadamente da obrigação do pagamento pontual e atempado da renda mensal à Segunda Outorgante é conferido o Direito de Opção de Compra do prédio pelo preço de €200.000,00.”.
25) Nunca percepcionou a R., aquele Contrato-Promessa de Arrendamento – pagando menos impostos que o Contrato-Promessa de Compra e Venda – que estivesse na presença dum efectivo contrato de arrendamento, e, muito menos, tendo ficado ciente de que tal Contrato Promessa se podia convolar em, simplesmente, Contrato de Arrendamento, coisa bem diferente de que ambos haviam acordado, para pagar o preço porque a aqui R., prometeu comprar o prédio, já que o que estava subjacente e em causa, não era o arrendamento, mas a compra.
26) Em 2016, – não havia, ao tempo, crise de habitação – a renda para uma habitação da mesma tipologia, em Gondomar, não ultrapassaria o valor de €850,00 mensais.
27) O que estava em causa, não era o pagamento de qualquer renda – apesar de assim constar do contrato, mas sim do pagamento do preço do imóvel (€200.000,00), em prestações de €2.000,00, porque a R. tinha acordado comprá-lo ao CC, sócio-gerente da A..
28) Em 7 de Novembro 10 de Março de 2016, CC, na qualidade de promitente comprador e a GG, promitente vendedora, distratam o contrato que haviam celebrado em 10/03/2016, recebendo, o CC, de volta (devolução do preço) €200.000,00 (duzentos mil euros);
- Declarando, de seguida, a 1ª outorgante (promitente vendedora), “Que, pela presente escritura, mediante o preço de duzentos mil euros, que já recebeu, vende, à sociedade que o terceiro representa “A..., Lda”, o prédio urbano atrás identificado.”, vide doc. 3 da p.i..
29) A R., foi pagando à A., por várias tranches, o preço acordado de €200.000,00, directamente ou através da sua amiga, II, umas vezes por depósito bancário, outras vezes por transferência bancária:
- Em 31/07/2020 – Banco 1... - €10.000,00 (doc.9);
- Em 26/05/2020 – Banco 1... - €1.500,00 (doc.10);
- Em 11/01/2018 – Banco 1... - €1.000,00 (doc.11);
Tendo ainda sido entregues quantias em dinheiro em valor não apurado à EE que trabalhava e tratava de toda a documentação com o CC.
30) Devido ao conhecido processo do “ouro e facturas falsas”, no qual estava envolvido o pai da R., e em que ela por trabalhar com ele, também foi objecto de atenção e buscas, no decorrer da qual foi apreendida vária documentação, como também foi apreendida documentação em posse da aludida EE, no âmbito de buscas, doutros processos-crime,
31) Os valores entregues pela R. em 30/07/2020 – Banco 1... - €16.980,00 (doc.7); Em 30/07/2020 – Banco 1... - € 13.655,00 (doc.8), tais valores não correspondem ao pagamento de quaisquer rendas, mas antes à devolução de parte de um valor a CC por este ter pago à casa de penhores “B..., S.A.” o montante de €60.631,76 destinado a libertar uma quantia em ouro que a Ré havia dado de penhor naquela sociedade.
32) Para o efeito, a Ré transmitiu que tinha dado em penhor na “B..., S.A.” uma quantidade em ouro, pretendendo recuperá-lo para o vender no âmbito da sua atividade profissional,
33) Nesse sentido, procurou o referido CC, a quem propôs que o mesmo pagasse junto da “B..., S.A.” o valor necessário que permitisse levantar o penhor sobre o ouro, para dessa forma a Ré o comercializar e, com o produto da venda, devolver a quantia paga pelo referido CC à casa de penhores e ainda pagar à aqui Autora as rendas que se encontravam em atraso.
34) De acordo com a Ré, o valor necessário para levantar o referido penhor seria de €60.631,76, valor esse que o mencionado CC transferiu, em 29/07/2020, para a sociedade de penhores supra identificada – Cfr documento n.º 1 da resposta.
35) O que permitiu à Ré recuperar o ouro dado de penhor, vendê-lo e proceder ao pagamento ao CC do valor de €60.631,76, que este tinha entregue na sociedade de penhores.
36) Dessa forma, a Ré devolveu aquele valor pago pelo CC através da entrega das quantias de €13.655,00 e €16.980,00 em 30/07/2020, correspondentes ao depósito identificado na contestação sob documentos 7 e 8 e ainda o montante de €30.000,00 em 29/07/2020 que efectuou por depósito na conta bancária pessoal do mencionado CC – Cfr. Documentos 7 e 8 da contestação e documento 2 junto com a resposta.
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2. Factos Não Provados
O Tribunal a quo julgou não provados os seguintes factos:
a) Desde março de 2018 que a Ré deixou de pagar as rendas devidas, tendo as rendas dos meses de abril, maio, junho e julho de 2018 sido pagas na totalidade em 31 de julho de 2020 e as rendas dos meses de março e agosto de 2018 pagas parcialmente, no mesmo dia.
b) Com efeito, à data da comunicação que foi remetida a Ré, encontravam-se em dívida as seguintes rendas, no montante total de €64.000,00 (sessenta e quatro mil euros) facto que foi expressamente mencionado em tal comunicação:
- março de 2018, encontrando-se em dívida o montante de €540,00;
- agosto de 2018, encontrando-se em dívida o montante de €1.460,00;
- setembro de 2018, no montante de €2.000,00;
- outubro de 2018, no montante de €2.000,00;
- novembro de 2018, no montante de €2.000,00;
- dezembro de 2018, no montante de €2.000,00;
- janeiro de 2019, no montante de €2.000,00;
- fevereiro de 2019, no montante de €2.000,00;
- março de 2019, no montante de €2.000,00;
- abril de 2019, no montante de €2.000,00;
- maio de 2019, no montante de €2.000,00;
- junho de 2019, no montante de €2.000,00;
- julho de 2019, no montante de €2.000,00;
- agosto de 2019, no montante de €2.000,00;
- setembro de 2019, no montante de €2.000,00;
- outubro de 2019, no montante de €2.000,00;
- novembro de 2019, no montante de €2.000,00;
- dezembro de 2019, no montante de €2.000,00;
- janeiro de 2020, no montante de €2.000,00;
- fevereiro de 2020, no montante de €2.000,00;
- março de 2020, no montante de €2.000,00;
- abril de 2020, no montante de €2.000,00;
- maio de 2020, no montante de €2.000,00;
- junho de 2020, no montante de €2.000,00;
- julho de 2020, no montante de €2.000,00;
- agosto de 2020, no montante de €2.000,00;
- setembro de 2020, no montante de €2.000,00;
- outubro de 2020, no montante de €2.000,00;
- novembro de 2020, no montante de €2.000,00;
- dezembro de 2020, no montante de €2.000,00;
- janeiro de 2021, no montante de €2.000,00;
- fevereiro de 2021, no montante de €2.000,00;
- março de 2021, no montante de €2.000,00;
Até à presente data a quantia em falta não foi regularizada pela Ré, acrescendo às mesmas as rendas vencidas desde então, no montante total de €8.000,00 (oito mil euros) e que se discriminam:
- abril de 2021, no montante de €2.000,00;
- maio de 2021, no montante de €2.000,00;
- junho de 2021, no montante de €2.000,00.
- Julho de 2021, no montante de € 2.000,00.
c) Em 2016 a renda anual de um prédio igual ao dos autos não ultrapassasse a renda anual de €1.000,00 (mil euros).
d) A R. tenha entregue ao CC a quantia de €192.500,00.
*
B. Fundamentação de Direito
1. Impugnação da matéria de facto
A impugnação da decisão sobre a matéria de facto está expressamente consagrada e regulada no Código de Processo Civil (CPC) actualmente vigente, nomeadamente nos seus artigos 640.º e 662.º.
1.1. Nos termos do disposto n.º 1, do artigo 640.º, quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição, a) os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, b) os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão diversa da recorrida, e c) a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes, conforme preceitua a al. a), do n.º 2, do mesmo artigo.
Concatenando este ónus, a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto, com o ónus de alegar e formular conclusões consagrado no artigo 639.º do CPC, que impende sobre o recorrente independentemente do recurso visar a matéria de facto e/ou a matéria de direito, Abrantes Geraldes (Recursos em Processo Civil, 6.ª ed., Coimbra 2020, pp. 196 e s.) sintetiza assim o sistema que vigora sempre que a apelação envolva a impugnação da decisão sobre a matéria de facto:
- O recorrente deve indicar os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões;
- Deve ainda especificar, na motivação, os meios de prova que, no seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos;
- Relativamente aos factos cuja impugnação se funde em prova gravada, deve indicar com exactidão, na motivação, as passagens da gravação relevantes (podendo proceder à transcrição dos excertos que considere oportunos);
- O recorrente deve ainda deixar expressa, na motivação, a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
De um modo genérico – sem prejuízo da análise mais minuciosa que faremos infra – podemos afirmar que a recorrente cumpriu os referidos ónus, visto que indicou de forma expressa e discriminada todos os pontos de facto que considera incorretamente julgados, expressou a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre cada um desses factos e fundamentou a sua discordância, relativamente a quase todos aqueles pontos, nos concretos meios de prova que descreve e analisa nas suas alegações, invocando, quanto aos demais, as circunstâncias que analisaremos de seguida.
Mais indicou, de forma minimamente esclarecedora, as passagens da gravação em que se funda o seu recurso.
Nada obsta, por tanto, ao conhecimento da impugnação da decisão da matéria de facto.
1.2. Dispõe, por sua vez, o artigo 662.º, n.º 1, do CPC, que a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
A análise e a valoração da prova na segunda instância está, naturalmente, sujeita às mesmas normas e princípios que regem essa actividade na primeira instância, nomeadamente a regra da livre apreciação da prova e as respectivas excepções, nos termos previstos no artigo 607.º, n.º 5, do CPC, conjugado com a disciplina adjectiva dos artigos 410.º e seguintes do mesmo código e com a disciplina substantiva dos artigos 341.º e seguintes do Código Civil (CC).
É consabido que a livre apreciação da prova não se traduz numa apreciação arbitrária, pelo que, nas palavras de Ana Luísa Geraldes (Impugnação e reapreciação da decisão sobre a matéria de facto, Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Lebre de Freitas, Volume I, pág. 591), «o Tribunal ao expressar a sua convicção, deve indicar os fundamentos suficientes que a determinaram, para que através das regras da lógica e da experiência se possa controlar a razoabilidade daquela convicção sobre o julgamento dos factos provados e não provados, permitindo aferir das razões que motivaram o julgador a concluir num sentido ou noutro (…), de modo a possibilitar a reapreciação da respectiva decisão da matéria de facto pelo Tribunal de 2ª Instância». De resto, como escrevem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, Vol. I – Parte Geral e Processo de Declaração, Coimbra 2019, p. 720), o juiz deve «expor a análise crítica das provas que foram produzidas, quer quando se trate de prova vinculada, em que a margem de liberdade é inexistente, quer quando se trate de provas submetidas à sua livre apreciação, envolvendo os motivos que o determinaram a formular o juízo probatório relativamente aos factos considerados provados e não provados».
Mas não podemos olvidar que, por força da imediação, da oralidade e da concentração que caracterizam a produção da prova perante o juiz da primeira instância, este está numa posição privilegiada para apreciar essa prova, designadamente para surpreender no comportamento das testemunhas elementos relevantes para aferir a espontaneidade e a credibilidade dos seus depoimentos, que frequentemente não transparecem na gravação. Por esta razão, Ana Luísa Geraldes (ob. cit. página 609) salienta que, em caso de dúvida, «face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida, deverá prevalecer a decisão proferida pela primeira instância em observância aos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, com a consequente improcedência do recurso nesta parte».
No caso vertente, o recorrente pugnou pela alteração da decisão no que respeita aos pontos 1, 2, 10, 15, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 25, 26, 27 e 29 dos factos provados e nas alíneas a) e b) dos factos não provados.
Vejamos se lhe assiste razão.
1.2.1. É a seguinte a redacção do ponto 1 dos factos provados: «Encontra-se inscrito a favor da Autora o prédio urbano composto por casa de cave, rés-do-chão e andar, com anexo, sito na rua ... e ..., ... Gondomar, descrito na Conservatória do Registo Predial de Gondomar sob o n.º ...16 e inscrita na matriz predial sob o artigo ...10. – Cfr. Documento nº 1».
Afirmando ser a legítima proprietária do referido prédio, porque o adquiriu e pagou, suportando os respectivos impostos, apenas permitindo que a recorrida usufrua do mesmo por via do contrato de arrendamento que celebrou com ela, a recorrente pretende que aquele facto passe a ter a seguinte redacção: «A Autora é a atual, dona e legítima proprietária de um prédio urbano composto por casa de cave, rés-do-chão e andar, com anexo, sito na rua ... e ..., ... Gondomar, descrito na Conservatória do Registo Predial de Gondomar sob o n.º ...16 e inscrita na matriz predial sob o artigo ...10. – Cfr. Documento nº 1».
Mas esta pretensão traduz-se em substituir um facto – o teor de uma inscrição predial, comprovada pelo documento para onde remete – por uma valoração jurídica – a afirmação de que a recorrente é proprietária do prédio ali mencionado. Tal afirmação não tem (não deve ter) lugar na descrição dos fundamentos de facto da decisão, nada havendo a censurar à forma cuidada como o Tribunal a quo descreveu o facto alegado pela recorrente, expurgando-o daquela valoração jurídica.
De resto, a própria circunstância de a recorrente não ter indicado os concretos meios de prova em que baseia a impugnação deste ponto 1 dos factos provados – o que teria levao à rejeição desta parte da impugnação, nos termos já expostos, se estivéssemos perante uma verdadeira impugnação da decisão sobre a matéria de facto – revela que apenas pretendeu introduzir nos fundamentos de facto da decisão a sua apreciação jurídica.
E não se argumente que a dicotomia questão de facto/questão de direito está, perante o actual regime processual civil, ultrapassada ou, pelo menos, atenuada, nada obstando à inclusão de conceitos jurídicos na descrição dos fundamentos de facto da decisão, desde que tenham um significado unívoco e compreensível pela generalidade das pessoas, como sucede com os conceitos de propriedade e arrendamento.
Como veremos melhor infra, só será assim se estivermos perante o que a doutrina denomina de relações jurídicas pressuponentes, mas já não quando a decisão da acção tiver por objecto esse conceito ou relação jurídica. Ora, embora a contestação apresentada pela ora recorrida não prima pela clareza, não restam dúvidas de que aí se afirma que a transmissão que deu origem à inscrição registal descrita no ponto 1 dos factos provados se destinou a garantir o pagamento integral dos empréstimos que BB havia concedido à sua mãe. Deste modo, é manifesto que a presente acção versa, também, sobre os efeitos jurídicos da referida transmissão e, consequentemente, do registo predial baseado na mesma.
Nos termos expostos, improcede a impugnação do ponto 1 dos factos provados.
1.2.2. O que dissemos anteriormente aplica-se, mutatis mutandis, à impugnação do ponto 2 dos factos provados.
É a seguinte a redacção desse facto: «Em 07 de novembro de 2016, Autora e Ré declararam celebrar contrato promessa de arrendamento tendo por objecto o imóvel acima identificado, pelo qual a Ré prometeu tomá-lo de arrendamento assim que a Autora se tornasse proprietária do imóvel mediante outorga de escritura pública de compra e venda a celebrar no futuro e no qual já se encontrava a habitar - Cfr. Documento n.º 2». Mais uma vez se evidencia a forma cuidada como o Tribunal a quo descreve o facto demonstrado pelo documento para onde remete, que consiste nas declarações das partes exaradas no aludido documento escrito.
Baseando-se na interpretação que faz das declarações negociais das partes, nomeadamente das descritas nos pontos 3, 4 e 6 dos factos provados, a recorrente pretende que aquele ponto 2 passe a ter a seguinte redacção: «Em 07 de novembro de 2016, Autora e Ré celebraram o contrato promessa de arrendamento tendo por objecto o imóvel acima identificado, pelo qual a Ré prometeu tomá-lo de arrendamento assim que a Autora se tornasse proprietária do imóvel mediante outorga de escritura pública de compra e venda a celebrar no futuro e no qual já se encontrava a habitar - Cfr. Documento n.º 2». Mais uma vez a recorrente pretende que a descrição dos factos englobe a sua apreciação jurídica, desse modo condicionando, ou melhor, determinando a decisão da causa.
Recorde-se que a defesa da ré, ora recorrida, assenta na alegação de que, por via das declarações negociais exaradas no documento n.º 2 da petição inicial, intitulado “contrato-promessa de arrendamento para Habitação com prazo certo”, as partes não pretenderam celebrar um contrato promessa ou um contrato definitivo de arrendamento, mas antes um contrato promessa de compra e venda. Sendo esta a questão a decidir, é manifesto que a mesma configura uma questão de direito, e não uma questão de facto.
É certo que, como escrevem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, vol. I, Parte Geral e Processo de Declaração, Coimbra 2019, pp. 24 e 25) em anotação ao artigo 5.º do CPC, «[o] preceituado no n.º 3, associado à eliminação no actual CPC do que se previa no n.º 4 do art. 646.º do CPC de 1961 (que considerava “não escritas as respostas do tribunal colectivo sobre questões de direito”), implica que deva ser moderada a ideia tradicionalmente arreigada, posto que formalmente excessiva, de se estabelecer uma rígida delimitação entre o que constitui matéria de facto e matéria de direito».
Mas, reconhecendo a persistência no nosso ordenamento jurídico da distinção entre o que constitui matéria de facto e matéria de direito, bem como a existência de conceitos ambivalentes e, por isso, de frequentes dúvidas quanto ao estabelecimento de linhas de demarcação entre as questões de facto e as questões de direito, os mesmos autores acrescentam que, «sem dogmatismos que já nem sequer encontravam apoio numa norma como a do n.º 4 do art. 646.º do CPC de 1961 (que não transitou para o CPC de 2013) e tendo em consideração o modo como em simultâneo na sentença final serão abordadas as questões de facto e as questões de direito, podemos já antecipar que a inclusão daquelas expressões numa ou noutra das categorias dependerá fundamentalmente do objecto da acção. Se este, no todo ou em parte, estiver precisamente dependente do significado real daquelas expressões, tem de considerar-se que estamos perante matéria de direito, pois o significado a atribuir-lhes será determinante para o desfecho da causa. Se, pelo contrário, o objecto da acção não estiver directamente associado ao significado a conferir a certas afirmações das partes, as expressões assim utilizadas (arrendamento, renda, hóspede, e outras de cariz semelhante) poderão ser tomadas no âmbito da matéria de facto, sendo passíveis de apuramento por via da prova e de pronúncia em sede de julgamento, sempre encaradas com o significado vulgar e corrente, não já com o sentido técnico-jurídico que possa colher-se nos textos legais».
No caso concreto, como vimos, o que se discute é, precisamente, se as declarações negociais das partes configuram um contrato promessa de arrendamento convertido em contrato de arrendamento, como afirma a recorrente, ou se, como afirma a recorrida, essas declarações configuram um contrato que visa a “reaquisição” do prédio em causa pela recorrida, mediante o pagamento de determinas quantias, que não configuram verdadeiras rendas, mas sim prestações.
Deste modo, fazer constar dos factos provados que «Em 07 de novembro de 2016, Autora e Ré celebraram o contrato promessa de arrendamento» redundaria em fazer constar dos fundamentos fácticos da causa uma das questões de direito a decidir.
É, assim, manifesta a improcedência da impugnação relativamente ao ponto 2 dos factos provados.
1.2.3. A recorrente insurgiu-se também contra o teor do ponto 15 dos factos provados.
O Tribunal a quo fez constar o seguinte desse ponto: «Em 16/06/2016, o prédio objecto dos presentes autos e descrito em 1) é penhorado em Proc. Executivo Fiscal, N.º ...54, por dívidas às Finanças de Gondomar-1, no montante de €16.453,18, penhora que depois foi cancelada pela executada, mãe da R., GG, tudo como melhor consta do pedido de cancelamento da própria e respectiva certidão de 14JAN.2019, conforme (doc.4)».
Afirmando que do documento n.º 4 da contestação não resulta que tenha sido a mãe da recorrida a pedir o cancelamento da penhora, que tal não resulta igualmente do documento n.º 5 do mesmo articulado, a recorrente entende que aquele ponto deve passar a ter a seguinte redacção: «Em 16/06/2016, o prédio objecto dos presentes autos e descrito em 1) é penhorado em Proc. Executivo Fiscal, N.º ...54, por dívidas às Finanças de Gondomar-1, no montante de €16.453,18, penhora cujo cancelamento foi ordenado por despacho da Sra. Chefe de Finanças de Gondomar, após despacho que determinou o levantamento daquela penhora, transitado em julgado em 26.12.2016, conforme (doc.4)».
Tem razão a recorrente quando afirma que os documentos juntos aos autos não comprovam que a penhora foi cancelada pela executada – afirmação que, de resto, nem sequer faz sentido –, não comprovando também que o levantamento da penhora ou o cancelamento do respectivo registo tenham ocorrido a seu pedido. Aqueles documentos apenas demonstram que a executada solicitou certidão do despacho que determinou o “cancelamento da penhora”, tendo em vista a sua apresentação na Conservatória do Registo Predial, inferindo-se deste requerimento que a referida certidão se destinava a instruir o pedido de cancelamento do registo da penhora. Mais resulta daquele documento que o chefe das finanças subscreveu um pedido de cancelamento do registo da penhora, com fundamento no seu despacho que ordenou o levantamento da mesma. Resulta, por sua vez, do documento n.º 5 da contestação que o referido registo da penhora veio a ser efectivamente cancelado. Todavia, desconhece-se se o pedido para esse cancelamento acabou por ser apresentado directamente pelo chefe das finanças ou pela executada.
Nestes termos, decide-se alterar o ponto 15 dos factos provados, que passa a ter a seguinte redacção:
«15) Em 16/06/2016, o prédio objecto dos presentes autos e descrito em 1) é penhorado em Proc. Executivo Fiscal, N.º ...54, por dívidas às Finanças de Gondomar-1, no montante de €16.453,18, penhora cujo levantamento foi ordenado por despacho da Sra. Chefe de Finanças de Gondomar, tendo a executada GG solicitado cópia certificada do “despacho de cancelamento da penhora” destinada a ser apresentada na Conservatória do Registo Predial, tendo sido emitido e subscrito pela Sra. Chefe de Finanças um “Pedido de Cancelamento de Registo de Penhora de Imóvel”, com base no qual o referido registo veio a ser cancelado».
1.2.4. Por estarem intimamente relacionados, analisaremos em conjunto a impugnação dos factos descritos nos pontos 10, 18, 20, 21, 22, 23, 25, 27 e 29 dos factos provados.
É a seguinte a redacção dessas normas:
10) O que está subjacente ao contrato de arrendamento aludido em 2) e 3) é o Contrato Promessa de Compra e Venda com Eficácia Real, outorgado em 25FEV.2015, no Cartório do Lic. FF, na Maia, entre a, então, proprietária e legítima possuidora, GG (mãe da aqui R. e falecida em .../.../2019) e HH, em representação de BB, residente no Canadá.
18) Pese todos os sucessivos actos registrais atrás mencionados, a R. e sua família, designadamente, os seus pais, estiveram sempre e estão na posse e uso real e efectivo daquela casa, morada de família, dado estarem a pagar os empréstimos que contraíram com o BB.
20) A R., como filha da vendedora, em acordo e combinação com o sócio-gerente da A., “A..., Lda”, que havia registado o prédio em seu nome, é que lhe garantiu que não perderia a casa, aceitou fazer com ela, um Contrato de Alienação por compra, no valor de €200.000,00 (duzentos mil euros), com determinadas cláusulas, e que esteve a cargo de EE, como esteve a grande parte da documentação.
21) Contrato esse que nunca chegou a ser entregue à ora R. – tinha, a R., ao tempo, total confiança na tal EE – como toda outra documentação que ficou em posse da dita EE.
22) E, foi desta forma que, naquela mesma data, 07/NOV/2016, que a dita EE, como mediadora, deu a assinar à ora R., o “CONTRATO PROMESSA DE ARRENDAMENTO” (cfr. doc. 2, junto com a p.i.), contrato aquele elaborado pela dita EE, o qual lhe foi apresentado já assinado pelo CC, e que ela também assinou.
23) Era, portanto, através daquele instrumento, engendrado pelo CC, sócio-gerente da A. – Contrato Promessa de Arrendamento – que a R. pagaria o preço da compra que havia prometido comprar, o questionado prédio, isto é, por €200.000,00 (duzentos mil euros).
25) Nunca percepcionou a R., aquele Contrato-Promessa de Arrendamento – pagando menos impostos que o Contrato-Promessa de Compra e Venda – que estivesse na presença dum efectivo contrato de arrendamento, e, muito menos, tendo ficado ciente de que tal Contrato Promessa se podia convolar em, simplesmente, Contrato de Arrendamento, coisa bem diferente de que ambos haviam acordado, para pagar o preço porque a aqui R., prometeu comprar o prédio, já que o que estava subjacente e em causa, não era o arrendamento, mas a compra.
27) O que estava em causa, não era o pagamento de qualquer renda – apesar de assim constar do contrato, mas sim do pagamento do preço do imóvel (€200.000,00), em prestações de €2.000,00, porque a R. tinha acordado comprá-lo ao CC, sócio-gerente da A..
29) A R., foi pagando à A., por várias tranches, o preço acordado de €200.000,00, directamente ou através da sua amiga, II, umas vezes por depósito bancário, outras vezes por transferência bancária:
- Em 31/07/2020 – Banco 1... - €10.000,00 (doc.9);
- Em 26/05/2020 – Banco 1... - €1.500,00 (doc.10);
- Em 11/01/2018 – Banco 1... - €1.000,00 (doc.11);
Tendo ainda sido entregues quantias em dinheiro em valor não apurado à EE que trabalhava e tratava de toda a documentação com o CC.
Com base na análise que faz da prova produzida (mormente os depoimentos do legal representante da recorrente, CC, e das testemunhas DD e EE – que considera credíveis e não abalados pela demais prova produzida –, o documento n.º 9 da contestação e a total ausência de prova quanto a alguns daqueles factos), a recorrente entende que devem julgar-se não provados os factos descritos nos pontos 20, 21, 22, 23, 25 e 27, e que os restantes devem ter a seguinte redacção:
10) Foi outorgado um Contrato Promessa de Compra e Venda com Eficácia Real, em 25FEV.2015, no Cartório do Lic. FF, na Maia, entre a, então, proprietária e legítima possuidora, GG (mãe da aqui R. e falecida em .../.../2019) e HH, em representação de BB, residente no Canadá.
18) Após a compra e venda do mencionado prédio, pela Autora à mãe da Ré, a Ré e a sua família passaram a fruir do imóvel, por via do contrato de arrendamento celebrado com a Autora e mediante o pagamento do montante de €2.000,00, a título de renda nos termos propostos pela Ré à Autora.
29) A R., pagou, directamente ou através da sua amiga, II, umas vezes por depósito bancário, outras vezes por transferência bancária as seguintes rendas:
- Em 31/07/2020 – Banco 1... - €10.000,00 (doc.9);
- Em 26/05/2020 – Banco 1... - €1.500,00 (doc.10);
- Em 11/01/2018 – Banco 1... - €1.000,00 (doc.11).
A versão dos factos que a recorrente pretende ver julgada provada corresponde, na sua essência, à versão relatada na sua petição inicial, de acordo com a qual se limitou a adquirir o prédio em causa nestes autos e a arrendá-lo à aqui recorrida, tendo esta deixado de pagar as rendas devidas por força desse contrato, o que levou a primeira a resolvê-lo e a exigir a devolução do prédio e o pagamento das rendas vencidas.
Por sua vez, a factualidade julgada provada pelo Tribunal a quo aproxima-se da versão relatada pela recorrida na contestação que apresentou. Ainda que este relato não prima pela clareza, na sua essência afirma-se aí que os diversos contratos celebrados por GG, mãe da ré, tendo como objecto o prédio em causa nesta acção de despejo, mormente os contratos promessa de compra e venda celebrados com BB e com CC e o contrato de compra e venda celebrado com a recorrente, se destinaram a garantir o pagamento dos valores que o referido BB havia emprestado àquela, mais se afirmando que o contrato promessa de arrendamento invocado na petição inicial constituiu o instrumento encontrado pelas partes para a recorrida liquidar o valores ainda em dívida por força dos aludidos empréstimos e, por essa via, recuperar para a sua esfera jurídica a casa da família.
Analisada toda a prova produzida, verifica-se que a mesma não confirma a singeleza dos factos relatados na petição inicial, antes confirmando a ligação entre o denominado contrato promessa de arrendamento e os empréstimos antes aludidos.
A mera análise dos documentos juntos aos autos suscita dúvidas (senão mesmo perplexidades) dificilmente explicadas por um simples e escorreito acordo de arrendamento para habitação.
O documento n.º 1 da contestação apresenta-se como um contrato promessa de compra e venda com eficácia real, por via do qual a mãe da ré prometeu vender o prédio em causa a BB, pelo preço de 148.800,00 €, que este logo entregou àquela, ficando acordado que a escritura pública seria celebrada depois de decorridos seis meses, ou seja, a partir de 25.08.2015, o que nunca veio a suceder.
Nem este documento nem a restante prova produzida esclarecem por que razão, tendo sido logo pago preço, as partes não optaram por celebrar ab initio a escritura pública, tal como não esclarecem por que razão o promitente comprador nunca marcou a referida escritura, nos termos previstos no n.º 2, da cláusula 2.ª, do referido contrato, não obstante, repita-se, ter pago a totalidade do preço, sendo inverosímil e carecida de razão de ciência a afirmação (ou melhor, o alvitre) do legal representante da recorrente de que o promitente vendedor, embora quisesse vender o prédio, cedeu – aparentemente por pura bondade – à vontade da promitente vendedora, que estava doente, de continuar a habitar ali, ainda que fosse proprietária de uma outra casa na ....
Para além de não ter marcado a escritura pública do contrato definitivo antes mencionado, decorre do documento n.º 2 da contestação que em meados de Setembro de 2015, quando já havia decorrido integralmente o prazo a partir do qual podia ser marcada aquela escritura, o promitente comprador emprestou à mãe da recorrida a quantia de 103.600,00€ – porque esta havia precisado de mais dinheiro, conforme provado sob o ponto 13, que a recorrente não impugnou –, que a mutuária se comprometeu a devolver em 12 prestações mensais, sem juros, vencendo-se a primeira em 15.10.2015 e última em 15.09.2016, tendo este cumprimento ficado garantido por uma hipoteca constituída sobre um outro prédio da mãe da recorrida.
Por via do documento n.º 3 da contestação, em 10.03.2016 as partes celebraram uma escritura pública de distrate do contrato promessa de compra e venda de 25.02.2015, declarando o promitente comprador que recebeu da promitente vendedora a quantia de 148.800,00€, correspondente à devolução do preço pago.
No mesmo dia, por via do documento n.º 6 da contestação, a mãe da recorrida celebrou com CC um novo contrato promessa de compra e venda com eficácia real, por via do qual a primeira prometeu vender ao segundo o mesmo prédio, pelo preço de 200.000,00€, valor que este logo entregou àquela, ficando acordado que a escritura pública do contrato definitivo seria celebrada até 25.09.2016.
Nem estes documentos nem a restante prova produzida esclarecem por que razão o primeiro promitente comprador, BB (ou o seu procurador, visto que este veio a falecer em 08.03.2016), não optou por marcar a escritura pública de compra e venda, cujo preço já havia pago integralmente há mais de um ano, e celebrar ele mesmo com CC um contrato promessa de compra e venda, um contrato de compra e venda ou, simplesmente, ceder a sua posição contratual a este, pelo referido valor de 200.000,00€, assim lucrando 51.200,00 €, em vez de se limitar a recuperar o valor que investiu e de que esteve desapossado durante mais de um ano, sem qualquer retorno. A estranheza aumenta se tivermos em conta que o próprio CC esclareceu em audiência de julgamento que foi o procurador do BB, que conhece há anos, e não a ré ou a mãe dela, quem lhes propôs este contrato. Esta perplexidade é ainda reforçada pelo facto de, segundo as declarações prestadas pelo legal representante da recorrente, o Sr. BB pretender libertar-se de alguns investimentos que fez, tendo em vista obter dinheiro para finalizar um prédio que estava a construir em .... Na verdade, não se compreende que alguém que se quer capitalizar desperdice um lucro de mais de 50 mil euros.
O referido CC esclareceu que, embora o preço tenha sido pago de imediato, optaram por celebrar um contrato promessa e fixar um prazo de seis meses para celebrar o contrato definitivo por ter sido esse o prazo que a recorrida (que representou a sua mãe naquele acto) pediu para a família se mudar para uma casa que tinham na ....
Mais esclareceu que, findo este prazo, a recorrida manifestou a vontade de celebrar com ele um contrato de arrendamento, pois a mãe estava doente e pretendia continuar a habitar na casa. Mas, como havia comprado para revender e não para arrendar, propôs o negócio à autora, de que é gerente.
Teria sido nesta sequência que em 07.11.2016, por via do documento n.º 3 da petição inicial, a mãe da recorrida e o referido CC distrataram o contrato promessa de 10.03.2016, declarando esta ter recebido de volta os 2oo mil euros que havia pago, e, por via do mesmo documento, a mãe da recorrida vendeu à recorrente o mesmo prédio, pelo mesmo valor de 200 mil euros, nada referindo quanto ao pagamento desse preço.
Sucede que em 16.06.2016 o prédio vendido havia sido penhorado numa execução movida pela Fazenda Nacional contra a vendedora, GG, para pagamento da quantia de 16.453,62 €, como decorre do documento n.º 5 da contestação, penhora cujo levantamento apenas foi determinado por despacho transitado em julgado em 26.12.2016, ou seja, já depois da venda efectuada, sendo ainda certo que o pedido de cancelamento do registo dessa penhora apenas foi apresentado em data posterior a 11.01.2019, como decorre do documento n.º 4 da contestação.
A referida penhora é expressamente mencionada na escritura pública de 07.11.2016.
Ficou, todavia, por esclarecer por que razão a recorrente assumiu o risco de ter de pagar esta dívida da mãe da recorrida (ou, o que é a mesma coisa, de ver judicialmente vendido o prédio para pagar tal dívida), quando, segundo o seu gerente, logo pagou os 200.000,00 € correspondentes ao preço (não directamente à vendedora GG, mas ao CC, substituindo-se àquela na devolução do preço que este havia pago anteriormente, diversamente do que foi declarado na escritura pública).
Segundo as declarações do legal representante da ré, teria sido na sequência de todos estes negócios – aparentemente geradores de prejuízos ou riscos financeiros para os promitentes compradores e para a compradora final, beneficiando sempre a promitente vendedora / vendedora – que a recorrente, apesar de ter declarado que destinava o prédio que adquiriu a revenda, celebrou com a recorrida o contrato promessa de arrendamento invocado na petição inicial.
Mas também este último contrato gera algumas interrogações.
Não se compreende, desde logo, por que razão a recorrente se qualificou a si própria como promitente compradora do prédio em causa, nem por que razão as partes prometeram dar e tomar de arrendamento, respectivamente, esse prédio logo que a recorrente celebrasse a escritura pública de compra e venda do mesmo, altura em que o referido contrato promessa de arrendamento se convolaria automaticamente num contrato definitivo de arrendamento. Por um lado, a recorrente nunca celebrou qualquer contrato promessa de compra e venda do referido prédio. Por outro lado, a aludida escritura pública de compra e venda foi celebrada no mesmo dia do contrato promessa de arrendamento. Assim, a recorrente já era, nessa data, proprietária, nunca tendo sido promitente compradora.
A análise documental assim feita suscita sérias reservas a respeito da versão simplificada dos factos apresentada na petição inicial. Acresce que, diferentemente do que defende a recorrente, não cremos que aquelas dúvidas sejam supridas de forma esclarecedora pelos depoimentos prestados em audiência de julgamento pelo legal representante da recorrida, CC, e pelas testemunhas DD e EE.
Tanto o legal representante da recorrente como a testemunha DD, sócio da mesma, revelaram um interesse idêntico na causa, não tendo esta testemunha escondido que participa activamente da gestão da recorrente, usando mesmo a primeira pessoa o plural quando menciona os actos praticados pela sociedade.
Mas, para além desta natural parcialidade, os seus depoimentos evidenciaram contradições difíceis de explicar e reveladoras da falta de consistência dos respectivos relatos.
Ambos esclareceram que a recorrente pagou directamente ao CC os 200 mil euros que teriam de pagar à vendedora GG, uma vez que esta tinha de devolver ao referido CC a mesma quantia. Mas enquanto o sócio DD afirmou que não houve entrega efectiva de dinheiro, mas apenas um acerto de contas com o CC, este afirmou que a recorrente lhe pagou por transferências bancárias, sem que tal esteja documentado nos autos, o que suscita dúvidas legítimas sobre a realidade deste pagamento e, consequentemente, da própria compra e venda.
A testemunha DD referiu ainda que em 2019, já depois de ter deixado de pagar as rendas devidas, a recorrida apresentou um comprador para o prédio (o que foi corroborado pela testemunha EE), que pagaria 234 mil euros, correspondente às rendas em atraso, acrescido do valor que a recorrente havia pago pelo prédio, ou seja, 200 mil euros (o que a recorrente teria aceitado se o referido comprador não tivesse exigido que a transmissão da propriedade fosse feita livre de ónus e encargos). Ora, constando do contato (promessa) de arrendamento junto aos autos, celebrado em 07.11.2016, que a renda anual ascendia a 24 mil euros, era impossível que no ano de 2019 estivessem em dívida 234 mil euros de rendas, mesmo que a recorrida nunca tivesse pago uma única, pois seriam precisos quase 10 anos para que a dívida de rendas ascendesse a esse montante. E ainda que não se consiga descortinar como calculou a testemunha aquele valor, o seu depoimento deixou mais claro que o valor em dívida pela recorrida não correspondia às rendas previstas no alegado contrato de arrendamento.
A mesma testemunha referiu que chegaram a propor à recorrida que saísse do prédio e que lhe perdoavam as rendas, o que se revela pouco consentâneo com a exploração de uma actividade lucrativa, quando a recorrente tinha a seu dispor uma alternativa simples para recuperar o prédio devoluto e, assim, poder rentabilizar o alegado investimento de 200 mil euros: a acção de despejo que acabou por intentar. Aquela proposta parece, portanto, reforçar as dúvidas quanto à existência de um simples contrato de arrendamento.
Relativamente às declarações do legal representante da recorrente, já antes enunciamos as dúvidas suscitadas pelo relato que fez da proposta que lhe foi apresentada a título particular por HH, procurador de BB, e dos termos em que a aceitou, bem como as dúvidas suscitadas pelo relato das transferências de dinheiro envolvidas no distrate do contrato promessa em que era outorgante e na celebração do contrato de compra e venda entre a recorrente e a mãe da ré. Mas o seu relato revelou-se igualmente pouco assertivo relativamente ao pagamento de 200 mil euros que afirma ter feito ao procurador do referido BB, pois quando foi questionado sobre a forma como efectuou esse pagamento, respondeu evasivamente que já tinha adiantado dinheiro ao Sr. HH por causa de outro negócio e que o resto pagou a posteriori, nunca esclarecendo de forma minimamente clara qual ou quais foram as datas e as formas de pagamento, o que levanta dúvidas legítimas quanto ao mesmo.
Aparentemente ainda menos esclarecedor se revelou o depoimento da testemunha EE. Todavia, o seu depoimento acabou por adensar as dúvidas relativas à tese da recorrente e por reforçar a tese da recorrida.
Esta testemunha começou por referir que trabalhava num escritório que tratava de “créditos bancários”, onde a recorrida já se havia dirigido para solicitar empréstimos, embora se depreenda do seu depoimento que os aludidos empréstimos não envolviam entidades bancárias (nomeadamente quando referiu que a recorrida lhe entregou dinheiro dos empréstimos que pediu a título particular). Acrescentou que a recorrente voltou ao referido escritório dizendo que queria vender a casa (referindo-se ao imóvel em litígio nestes autos) e que o seu marido lhe indicou o Sr. BB, afirmando nada mais saber, a não ser que a casa acabou por ser vendida ao Sr. CC. Ficou, todavia, por esclarecer a razão pela qual a recorrida se dirigiu a um escritório de empréstimos para tratar da venda da sua casa, em vez de se dirigir a uma mediadora imobiliária.
Questionada sobre o contrato de arrendamento em discussão nestes autos, afirmou nada saber, numa clara atitude de quem não quer responder às perguntas colocadas. Contudo, acabou por esclarecer que a recorrente se dirigiu ao seu escritório solicitando ajuda para redigir um contrato de arrendamento que pretendia propor ao Sr. CC e que lhe deu essa ajuda, mas que não “sabe mais nada!”
Muito se estranha, mais uma vez, que a recorrida se tenha dirigido a um escritório de empréstimos para que a ajudassem a redigir um contrato de arrendamento; mais se estranha que a funcionário desse escritório de empréstimos tenha acedido a esse pedido, redigindo o contrato, segundo afirma, de acordo com as instruções dadas pela próprio recorrida; estranha-se igualmente que a testemunha não se recorde do teor de tão insólito pedido. Mas o que se revela ainda mais inverosímil é que duas pessoas sem formação jurídica conhecida tenham gizado um acordo tão complexo e tão sui generis como o que serve de base à presente acção de despejo, que certamente não se terá inspirado em modelos disponíveis na internet ou, mesmo, em livros de compilações de formulários jurídicos – um contrato promessa de arrendamento, automaticamente convolável em contrato de arrendamento por mero efeito da aquisição do prédio pela promitente senhoria, com opção de compra pela arrendatária, prevendo ainda que o atraso no pagamento de duas ou mais rendas faz extinguir tal direito de opção, consagrando ainda a essencialidade desta cláusula para a formação da vontade das partes (cfr. cláusula 12.ª).
Atento o exposto, embora esta testemunha tenha afirmado que o Sr. BB “comprou ou ia comprar” e não emprestar e tenha negado ter recebido da recorrida qualquer quantia para pagamento desse empréstimo, o seu depoimento acaba por corroborar com segurança uma clara ligação entre o contrato promessa de compra e venda com eficácia real datado de 25.02.2015, o contrato promessa de arrendamento datado de 07.11.2016 e empréstimos contraídos pela recorrida ou pela sua mãe.
Tal ligação é reforçada pela circunstância de ter sido o escritório onde trabalhava a testemunha EE a pôr em contacto a mãe da recorrida e o referido BB e de este se dedicar à concessão de empréstimos, como decorre com clareza do ponto 13 dos factos provados e do documento aí referido.
Em contrapartida, as declarações prestadas pela recorrida em sede de audiência de julgamento, não obstante o seu natural interesse na causa, revelam maior coerência e são mais compagináveis com a prova documental, designadamente quando esclareceu: que a sua mãe necessitou de pedir um empréstimo, por estar a atravessar grandes dificuldades financeiras, tendo-se socorrido do escritório onde trabalhava a testemunha EE, o que a recorrida também já havia feito anteriormente; que, para além de ficar sujeita ao pagamento de juros muito altos, teve de dar a casa como garantia do pagamento desse empréstimo – o que justifica a celebração do primeiro contrato promessa de compra e venda –; que após a morte do Sr. BB o empréstimo “passou” para o Sr. CC – o que justifica o distrate e o novo contrato promessa datados de .../.../2016, dois dias após aquele falecimento –, sendo certo que era o próprio procurador do falecido BB que conhecia e tinha negócios com o referido CC.
Acresce que estas declarações foram corroboradas pela testemunha II, amiga de longa data da recorrida e respectiva família, que confirmou as dificuldades económicas da D. GG, o recurso a um empréstimo não bancário junto do escritório onde trabalhava a testemunha EE, com juros muito altos e que implicava dar a casa como garantia, as entregas de dinheiro à referida EE, algumas presenciadas por si, a transição do empréstimo para o Sr. CC, as transferências bancárias para este, algumas realizadas por si (conforme documentos n.º 9 a 11 da contestação e ponto 29 dos factos provados, na parte não impugnada pela recorrente), e os esforços da recorrida e da sua mãe para irem cumprindo os pagamentos relativos ao empréstimo e manter a propriedade da casa, mais esclarecendo que estas nunca pretenderam viver numa casa arrendada.
Por fim, também a testemunha JJ, irmão da recorrida, confirmou de forma um pouco mais genérica o empréstimo contraído pela sua mãe junto de um investidor que vivia no estrangeiro, por intermédio de uma “D. EE” que nunca conheceu, esclarecendo que a sua irmã trabalhava com a sua mãe na ourivesaria e que os seus pais sempre viveram na casa em discussão nestes autos. Referiu ainda os esforços aquelas fizeram para pagar esse empréstimo e acrescentou nunca ter sabido que a casa estava à venda por apenas 200 mil euros, só tendo tido conhecimento de que a mesma estava registada em nome da recorrente e que havia sido subscrito um contrato de arrendamento quando tomou conhecimento da pendência da presente acção.
Perante a prova assim analisada, conclui-se que as partes não quiseram prometer dar e tomar de arrendamento, tal como não pretenderam dar e tomar de arrendamento o prédio em causa, mas sim garantir que a recorrida, embora mantendo a disponibilidade da casa, apenas lograsse recuperar a sua titularidade formal depois de liquidar a dívida emergente dos empréstimos que a sua mãe havia contraído, de que era credor originário KK e de que é credor actual a recorrente, dívida essa que foi garantida pelo imóvel em causa nestes autos, sucessivamente por via dos contratos promessa de compra e venda com eficácia real celebrados em 25.02.2015 e 10.03.2016 e do contrato de compra e venda celebrado em 07.11.2016, não constituindo as rendas estipuladas uma simples contraprestação pelo gozo da coisa.
A prova produzida – na sequência das limitações impostas pela alegação da ré – não revela com rigor o valor total da dívida emergente dos referidos empréstimos, desde logo porque não se apurou, pois nem sequer foram alegados, os termos em que esses empréstimos foram concedidos, designadamente no que concerne à retribuição acordada, não tendo sido igualmente possível apurar o valor dos pagamentos efectuados, dada a quase ausência de prova documental e o conhecimento vago evidenciado pelas testemunhas ouvidas.
De todo o modo, os termos do “contrato promessa de arrendamento” apontam no sentido de o valor em dívida em 07.11.2016 ascender a 200 mil euros, acrescido do valor das “rendas” que se fossem vencendo, o que sugere que estas integravam a retribuição do mútuo, até porque deixariam de ser devidas assim que a recorrida exercesse o seu direito de opção de compra.
E assim voltamos à análise documental, mais concretamente do “contrato-promessa de arrendamento para habitação com prazo certo” que constitui o documento n.º 2 da petição inicial.
Como já está implícito no que acabamos de dizer, o teor destas declarações negociais escritas não só não infirma, como acaba mesmo por corroborar a análise que vimos fazendo, pelas razões que passamos a expor.
Depois de identificar o imóvel objecto do contrato (cláusula 1.ª) e de declarar que pretendem dar e tomar esse imóvel de arrendamento (n.º 1 da cláusula 2.ª), as partes estipularam o direito de opção de compra (n.ºs 2 e 3 da mesma cláusula), condicionado ao pagamento pontual e atempado da renda mensal, mesmo antes de definirem o prazo do arrendamento e o valor da renda. A centralidade da opção de compra na economia deste acordo é reforçada pela sua reiteração na cláusula 6.ª e pelo teor da cláusula 12.ª, onde as partes convencionam que o não pagamento de duas ou mais rendas constitui causa objectiva de resolução e extinção do direito de opção de compra, declarando ainda estarem de acordo quanto à essencialidade desta cláusula para a formação das respectivas vontades de celebrar o contrato promessa e o contrato prometido.
Acresce que esta diferenciação entre contrato promessa e contrato prometido não faria sentido se o documento em causa versasse sobre um arrendamento, pois nesse caso aqueles dois contratos confundir-se-iam. Recorde-se que ficou ali escrito que o contrato promessa de arrendamento se convolaria no contrato prometido de arrendamento na data em que a recorrente celebrasse a escritura pública de compra e venda da imóvel, o que havia sucedido nesse mesmo dia, pelo que o contrato promessa se converteu em contrato prometido no dia em que foi celebrado, ou melhor, o denominado contrato promessa já era o contrato definitivo. Assim, ao aludir à essencialidade da cláusula para a formação da vontade das partes «de celebrar o presente contrato e o contrato prometido», estas parecem querer aludir a um novo contrato, a celebrar no futuro. Ora, esse contrato a celebrar no futuro só pode ser o contrato por via do qual a propriedade da casa seria transmitida para a recorrida.
Pelas razões expostas, afigura-se-nos correcta a conclusão do Tribunal a quo de que, verdadeiramente, as partes prometeram comprar e vender o prédio em questão.
Acrescente-se ainda que esta interpretação das declarações negociais exaradas pelas partes no documento n.º 2 da petição inicial não é afastada pelas regras de interpretação da declaração negocial consagradas nos artigos 236.º e seguintes do Código Civil (CC).
Embora a regra geral plasmada no n.º 1 do referido artigo 236.º seja a da impressão do destinatário («A declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele»), o n.º 2 preceitua que «[s]empre que o declaratário conheça a vontade real do declarante, é de acordo com ela que vale a declaração emitida». Assim, ainda que se entendesse que a impressão do destinatário não poderia corresponder à interpretação aqui preconizada, a mesma sempre corresponderia à vontade real de ambas as partes.
É certo que, nos termos do disposto no artigo 238.º, n.º 1, do CC, «[n]os negócios formais não pode a declaração valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento, ainda que imperfeitamente expresso». Mas, por força do n.º 2, do mesmo artigo, «[e]sse sentido pode, todavia, valer, se corresponder à vontade real das partes e as razões determinantes da forma do negócio não se opuserem a essa validade». Assim, ainda que se entendesse – o que não é o nosso caso, como vimos – que a vontade real das partes não tem um mínimo de correspondência no texto do documento, nenhuma razão determinante da forma do negócio se oporia à sua validade, visto que a forma escrita foi respeitada e que o eventual incumprimento dos demais requisitos formais previstos no artigo 410.º, n.º 3, do CC, só poderia ser invocado pela recorrente se tal incumprimento tivesse sido culposamente causado pela recorrida, sendo certo que nada permite afirmar essa culpa.
Tudo ponderado, não nos afastamos significativamente da apreciação factual feita pelo Tribunal a quo, nomeadamente no que concerne aos pontos 10 e 18, ressalvando-se apenas alguns pormenores, não determinantes para a apreciação da causa, descritos nos pontos 20, 22, 23, 25, 27 e 29, bem como o teor do ponto 21 dos factos provados, os quais não encontram sustentação segura na prova produzida.
Concretizando melhor, já vimos que a prova produzida não demonstra que as partes tivessem acordado pagar, como contrapartida da transferência da propriedade do imóvel da recorrente para a recorrido, a quantia global de 200 mil euros em prestações mensais de 2 mil euros, como se refere nos pontos 20, 23, 27 e 29, mas sim a quantia de 200 mil euros acrescida das prestações mensais de 2 mil euros que entretanto já se tivessem vencido.
Por outro lado, nada permite afirmar que a redação do contrato de “alienação por compra” estivesse a cargo da testemunha EE e que esta não chegou a entregá-lo à ré, conforme ficou a constar dos pontos 20 e 21.
Também não cremos que a prova demonstre os pormenores relativos à assinatura do “contrato promessa de arrendamento” mencionados no ponto 22, designadamente se foi apresentado já assinado pelo legal representante da ré ou se ambos os outorgantes o assinaram em simultâneo.
Por fim, também nada se demonstrou a respeito dos impostos que foram pagos ou deveriam ter sido, afigurando-se que o ponto 25 foi além da prova produzida.
Em contrapartida, flui naturalmente do exposto que a descrição dos factos provados ficou aquém da prova produzida, deixando apenas insinuados factos que foram alegados pela ré e conformados pela prova produzida.
Na verdade, embora se sugira no ponto 13 dos factos provados que o empréstimo aí aludido não era o primeiro empréstimo concedido por KK a GG e embora se afirme no ponto 18 que a ré e a sua família sempre se mantiveram na casa em discussão nestes autos «dado estarem a pagar os empréstimos que contraíram com o BB», daí se inferindo que não só o acordo aludido no ponto 13, mas também o contrato promessa de compra e venda aludido no ponto 10 tinham subjacente os referidos empréstimos, a verdade é que os factos selecionados pelo Tribunal a quo nunca expressam de forma clara e inequívoca que aquele contrato promessa decorria da concessão de um empréstimo de 148.800,00€ concedido à mãe da recorrida e que esta havia dado de garantia o prédio em causa. Contudo, já vimos que esses factos ficaram demonstrados pela prova produzida. Acresce que, embora de forma muito pouco clara e assertiva, a recorrida alegou esses mesmos factos, designadamente nos artigos 11 e 55 da sua contestação.
Importa, assim, aditar esta matéria aos factos julgados provados, mais concretamente ao ponto 10.
Em suma, decide-se manter o teor do ponto 18, eliminar o ponto 21, por não estar provado e se mostrar irrelevante para a apreciação da causa, e alterar a redacção dos pontos 10, 20, 22, 23, 25 e 27, nos seguintes termos:
10) O que está subjacente ao contrato de arrendamento aludido em 2) e 3) é o Contrato Promessa de Compra e Venda com Eficácia Real, outorgado em25FEV.2015, no Cartório do Lic. FF, na Maia, entre a, então, proprietária e legítima possuidora, GG (mãe da aqui R. e falecida em .../.../2019) e HH, em representação de BB, residente no Canadá, decorrente do empréstimo de 148.800,00€ que este concedeu àquela, cujo pagamento ficou assim garantido pelo imóvel objecto do referido contrato promessa.
20) A R., como filha da vendedora, em acordo e combinação com o sócio-gerente da A., “A..., Lda”, que havia registado o prédio em seu nome, e que lhe garantiu que não perderia a casa, aceitou fazer com ela um Contrato de Alienação por compra, no valor de €200.000,00 (duzentos mil euros), acrescidos de €2.000,00 por cada mês decorrido até à celebração desse contrato.
22) E, foi desta forma que, naquela mesma data, 07/NOV/2016, a R. assinou o “CONTRATO PROMESSA DE ARRENDAMENTO” (cfr. doc. 2, junto com a p.i.), contrato aquele também assinado pelo CC.
23) Era, portanto, através daquele instrumento, engendrado pelo CC, sócio-gerente da A. – Contrato Promessa de Arrendamento – que a R. pagaria o preço referido no ponto 20) dos factos provados.
25) Nunca percepcionou a R. aquele Contrato-Promessa de Arrendamento como um efectivo contrato de arrendamento, muito menos tendo ficado ciente de que tal Contrato Promessa se podia convolar em Contrato de Arrendamento, coisa bem diferente do que ambos haviam acordado para pagar o preço por que a aqui R. prometeu comprar o prédio, já que o que estava subjacente e em causa não era o arrendamento, mas a compra.
27) O que estava em causa não era o pagamento de qualquer renda, apesar de assim constar do contrato, mas sim o pagamento do preço do imóvel por que a R. tinha acordado comprá-lo ao CC, sócio-gerente da A., nos termos referidos no ponto 20) dos factos provados.
29) A R., foi pagando à A., por várias tranches, o preço acordado, directamente ou através da sua amiga, II, umas vezes por depósito bancário, outras vezes por transferência bancária:
- Em 31/07/2020 – Banco 1... - €10.000,00 (doc.9);
- Em 26/05/2020 – Banco 1... - €1.500,00 (doc.10);
- Em 11/01/2018 – Banco 1... - €1.000,00 (doc.11);
Tendo ainda sido entregues quantias em dinheiro em valor não apurado à EE e ao próprio CC.
1.2.5. No que concerne aos pontos 19 e 26 dos factos provados, também impugnados pela recorrente, entendemos que a prova produzida é suficiente para os julgar demonstrados, como fez o Tribunal a quo.
Diz-se o seguinte naqueles pontos:
«19) O prédio identificado em 1), à data de 2016, tinha um valor aproximado de €500.000,00 (quinhentos mil euros)».
«26) Em 2016, – não havia, ao tempo, crise de habitação – a renda para uma habitação da mesma tipologia, em Gondomar, não ultrapassaria o valor de €850,00 mensais».
Entende a recorrente que estes factos devem ser julgados não provados, alegando que o Tribunal a quo não dispunha de qualquer avaliação do imóvel ou informação técnica e que a testemunha II, em cujo depoimento se baseou, se limitou a referir aqueles valores, sem qualquer sustentação ou habilitação técnica para o efeito e, no caso do valor referido no ponto 19, por sugestão do mandatário da recorrida.
Mas a própria passagem que a recorrente transcreve na sua alegação demonstra que o referido valor de meio milhão de euros foi avançado pela testemunha sem qualquer sugestão do mandatário da ré. Quanto às habilitações técnicas da testemunha, omite a recorrente que a mesma referiu ser consultora imobiliária há cerca de 6 anos, pelo que conhecerá o mercado desde então.
Acresce que nada na lei impõe que a prova do valor de venda ou o valor locativo de um imóvel tenha de ser feita por prova pericial, não vigorando aqui qualquer imposição de prova vinculada, mas sim um puro princípio da livre apreciação da prova.
Acresce ainda que o valor de meio milhão de euros referido acabou por ser corroborado pela testemunha DD quando afirmou que a recorrida lhe apresentou uma pessoa interessada em comprar a casa por um valor global de 434 mil euros.
Refira-se também que o valor julgado provado não abarca apenas a casa de habitação, mas também um anexo com 49,50 m2 e um terreno em zona edificável com mais de 4.000 m2, como decorre da respectiva descrição predial.
Relativamente ao valor locativo, a testemunha alertou para a circunstância de ter grande relevância a tipologia, sendo certo que estamos perante um T3+1 e de estarmos a falar de preços em finais de 2016, muito inferiores aos que se praticam actualmente. Nestes termos, tendo em conta a ocupação profissional desta testemunha e a ausência de qualquer prova em sentido contrário, julgamos que bem andou o Tribunal a quo ao dar como demonstrado o valor locativo de 850,00 € mensais referidos por II.
1.2.6. Resta apreciar a impugnação dos pontos a) e b) dos factos não provados, relativos às rendas alegadamente vencidas e não pagas pela recorrida.
Tal apreciação flui com clareza de tudo quanto foi sendo exposto e implica a confirmação da decisão do Tribunal a quo.
Já dissemos que a prova produzida é insuficiente para que se possa afirmar com rigor os valores acordados, bem como os pagamentos efectuados e os que ficaram por fazer. Em todo o caso, vimos igualmente que nunca esteve em causa o pagamento de rendas enquanto contraprestação pelo gozo do prédio, pelo que tal apuramento nem sequer releva para a apreciação da causa, sem prejuízo da sua relevância em acção que eventualmente venha a ser intentada para discussão da verdadeira relação material estabelecida entre as partes.
*
2. O Direito
Dos factos apurados decorre com clareza que as partes não celebraram um contrato de arrendamento, não obstante o nomen juris que atribuíram ao documento onde exararam as suas declarações negociais, mas sim um acordo de transferência da propriedade do prédio em causa para a recorrida, após pagamento de determinado montante.
Assim, não ficou demonstrada a causa de pedir alegada pela autora na petição inicial – a celebração de um contrato promessa de arrendamento convolado em contato de arrendamento e, consequentemente, não ficou demonstrado o incumprimento da obrigação de pagar as rendas aí estipuladas, não sendo assim aplicáveis ao caso as regras do contrato de locação, maxime as regras que disciplinam a resolução do contrato de arrendamento urbano para habitação e as respectivas consequências, conforme propugnado pela recorrente.
Acresce que esta baseou o recuso da matéria de direito na procedência da impugnação da decisão sobre a matéria de facto, não questionado a adequação entre o enquadramento legal preconizado na decisão recorrida e os factos aí julgados provados. Tendo-se mantido, no essencial, a decisão sobre a matéria de facto, maxime no que concerne ao teor do acordo celebrado entre as partes, o recurso da matéria de direito está, naturalmente, votado ao fracasso.
De todo o modo, porque este Tribunal sempre teria liberdade para enquadrar juridicamente os factos, dentro dos limites do objecto do recurso, importa fazer uma referência, ainda que breve, a esse enquadramento.
Não sendo, obviamente, equacionável a celebração pelas partes de um negócio simulado, também não cremos que se possa afirmar, como se faz na decisão recorrida, que «jamais esteve previsto que em virtude do não pagamento dos valores sucessivamente estabelecidos como valores de “reaquisição” pela R, pudesse o credor, aqui A., representada pelo CC, ficar para si com a propriedade do imóvel».
Na verdade, como já dissemos, a factualidade apurada apenas nos permite afirmar que as partes não celebraram um contrato de arrendamento, mas sim um acordo que visava a transferência da propriedade do prédio em discussão para a recorrida – e, assim, o regresso da titularidade desse direito para a família da mãe da recorrida –, mediante o integral cumprimento das obrigações emergentes dos empréstimos que esta havia contraído junto de BB, de que é actualmente credora a recorrente e cujo cumprimento havia sido garantido por via do prédio em causa. Mas porque esta não foi a relação material controvertida invocada na petição inicial, não foi possível apurar nestes autos, de forma completa e totalmente esclarecedora, o alcance das negociações relativas aos referidos empréstimos e ao prédio cujo despejo foi requerido nesta acção. Não se discutiu nem se apurou nesta acção, designadamente, como seria accionada a garantia dada por via do referido imóvel, por ser outra a causa de pedir.
Mas a circunstância de não podermos afirmar que não tenha sido previsto que o não pagamento dos valores de “reaquisição” devidos pela ré permitisse à autora ficar com a propriedade do imóvel, não significa que essa consequência tenha sido prevista e querida pelas partes e, muito menos, que a mesma seja lícita.
Em todo o caso, como se afirma na decisão recorrida, «a rejeição do direito que o autor se apresenta a exercer deriva directamente do próprio quadro negocial que se apurou, face ao qual, excluída que está a identificação de um contrato de arrendamento típico tal como o por si invocado, se lhe não pode reconhecer um direito à resolução de um tal contrato, nos puros termos do nº 4 do art. 1083º do Código Civil, decretando-se os típicos efeitos de despejo do locado e condenação no pagamento de rendas em dívida». Assim, a falta de pagamento das prestações acordadas «haverá de determinar outras consequências, designadamente as tendentes à realização do direito da A. e da R., com o conteúdo que lhes for reconhecido e que neste momento os autos não permitem reconhecer com um mínimo de rigor».
No mesmo sentido, afirma-se no ac. deste TRP, de 14.11.2017, proferido no processo n.º 5463/16.0T8PRT.P1, citado na sentença recorrida, que «o incumprimento das correspondentes obrigações contratuais, pela ré, não coincide com uma simples falta de pagamento de rendas no âmbito de um contrato de arrendamento (…), habilitante à resolução do contrato pela parte contrária. Por isso, não pode decretar-se aqui a pretendida resolução do contrato invocado, que não se comprovou existir enquanto tal».
Mas ainda que assim não se entendesse, por se considerar que aquilo que os factos revelam é, tão somente, uma divergência entre a vontade real dos declarantes e a vontade por eles declarada, mas sem qualquer impacto sobre a validade dessas declarações, por não estarem preenchidos os requisitos de nenhum dos vícios da vontade previstos nos artigos 240.º e seguintes do CC, sempre se imporia considerar que o negócio que serve de causa de pedir à acção se traduz numa fraude à lei, o que determina a sua nulidade ou, pelo menos, a desconsideração do efeito fraudulento.
A respeito da definição jurídica da fraude à lei, a doutrina mais recente elege como elementos caracterizadores da mesma (i) uma pluralidade de atos jurídicos, (ii) a aparência de licitude, (iii) uma articulação teleologicamente preordenada de atos jurídicos (uma operação jurídica complexa), (iv) um resultado final global ilícito e (v) a inexigibilidade de uma intenção fraudulenta (cfr. Ana Filipa Morais Antunes, A Fraude à Lei no Direito Civil Português, Coimbra, Almedina, 2018, pp. 226 e 232).
Segundo Rui Pinto Duarte (A Fraude à Lei – Alguns Apontamentos, in Revista de Direito Comercial, 30.08.2020, pp. 1601 e seguinte, disponível emhttps://www.revistadedireitocomercial.com/a-fraude-lei-alguns-apontamentos), «[o] que neste domínio fundamentalmente importa, na verdade, é interpretar a norma proibitiva em causa. Se for de concluir que ela pretende proibir não só o negócio ou negócios que especificadamente visou (contra legem) mas quaisquer outros que conduzam ao mesmo resultado ou a um resultado pràticamente equivalente ou análogo, então a estes outros negócios (in fraudem legis) também se aplica aquela proibição – também eles, ao cabo e ao resto, estão coenvolvidos na proibição legal, tal como os que lhe são directa e abertamente contrários, sem ser preciso, aliás, como não é preciso para estes, uma ilicitude por assim dizer subjectiva (intenção ou consciência fraudatória), mas somente objectiva».
No mesmo sentido vide Manuel de Andrade (Teoria Geral da Relação Jurídica, vol. II – Facto Jurídico, em especial Negócio Jurídico, p. 337 e seguintes) e António Menezes Cordeiro (Tratado de Direito Civil, II – Parte Geral – Negócio Jurídico, Coimbra, Almedina, 2014, p. 580 e 583). A respeito do conceito de fraude à lei pode ainda consultar-se ainda Mota Pinto (Teoria Geral do Direito Civil, Coimbra, 2005, p. 557), Luís Carvalho Fernandes (Teoria Geral do Direito Civil, II – Fontes, conteúdo e garantia da relação jurídica, Lisboa, Universidade Católica Editora, 2001, p. 580 e 583).
No caso concreto, a nosso ver, os factos apurados integram a figura atípica da venda fiduciária em garantia, que consiste numa venda do bem como garantia do pagamento da quantia mutuada pelo comprador ao vendedor, num contrato de mútuo que pode ser oculto pelos interessados, obrigando-se o comprador mutuante a revender o bem ao vendedor mutuário, depois de estar pago o mútuo, no prazo acordado por ambos.
Trata-se de um instituto que, já se encontrando contemplado na lei para a alienação fiduciária por contrato de garantia financeira, previsto no Decreto-Lei n.º 105/2004, de 8 de Maio, não está previsto na lei para os negócios jurídicos em geral e difere da venda a retro prevista no artigo 927.º do CC, porque nesta última fica especialmente prevista a faculdade de resolução do contrato pelo vendedor, enquanto que na venda fiduciária, tal faculdade não é atribuída ao vendedor, pelo que a revenda do bem pelo comprador ao vendedor constitui apenas um compromisso de natureza obrigacional.
Assim, a venda fiduciária tem uma componente real, pois, de acordo com a vontade das partes, o bem é efectivamente transmitido para a propriedade do comprador e tem uma componente obrigacional, na medida em que, cumprida a obrigação do mutuário, o mutuante não está sujeito à resolução do contrato, encontrando-se vinculado apenas a um dever de revender o prédio com natureza meramente obrigacional (podendo eventualmente recorrer-se à execução específica nos casos em que tenha sido celebrado um contrato promessa e podendo então ser atribuída natureza real, ou, não havendo contrato promessa, a uma mera indemnização por incumprimento contratual), assentando essencialmente o instituto, como o nome indica, na confiança do vendedor de que o comprador lhe revenderá o prédio.
A admissibilidade da venda fiduciária tem sido recusada por alguns autores, que entendem que a mesma só deverá ser admissível quando prevista e regulada na lei, como é o caso do Decreto-Lei n.º 105/2004, sob pena de constituir negócio contrário à lei, dando causa à desprotecção do vendedor (quer no que diz respeito ao carácter obrigacional do dever de revenda do prédio, quer por o valor do bem vendido poder ser superior ao valor da quantia mutuada e não haver acordo de restituição da diferença) e ao prejuízo dos seus outros credores (cfr. Ferreira de Almeida, Contratos III, p. 181 e 182).
A jurisprudência, porém, tem atendido e admitido esta figura, ao abrigo do princípio da autonomia contratual, entendendo que não se verificam, para o vendedor e para os outros credores, os perigos que estão subjacentes à figura do pacto comissório proibida pelo artigo 694.º do CC e entendendo ainda que existem mecanismos de defesa do vendedor, nomeadamente o recurso à anulabilidade do negócio ao abrigo do artigo 282.º do CC, caso sejam alegados e provados factos que integrem a usura (vide, entre outros, os acórdãos do STJ de 16.11.2011, proc. n.º 279/2002, e do TRP de 05.02.2013, proc. 4867/06, ambos disponíveis em www.dgsi.pt).
Não estando a venda fiduciária regulada na lei relativamente aos contratos de compra e venda em geral, será prudente uma apreciação casuística, sendo de admitir em princípio o instituto, ao abrigo da autonomia contratual e com vantagens para o comércio jurídico, nomeadamente nos casos em que o bem venha a ser transmitido a terceiros de boa fé (como era o caso objecto do ac. do STJ de 16.11.2011, acima citado).
Mas deverá ser considerada inválida a venda fiduciária sempre que no caso concreto se revele não só usurária, mas por qualquer forma abusiva e contrária à lei, segundo os critérios dos artigos 280.º, 282.º, 294.º e 334.º do CC, tendo em atenção que a sua falta de parametrização poderá proporcionar uma situação que estes artigos visam impedir.
No caso concreto, embora os factos apurados sugiram que a recorrente está a cobrar juros no valor absoluto de 2 mil euros por mês, admite-se que os factos apurados são pouco claros para se afirmar que estamos perante empréstimos usurários por violação do disposto no artigo 1146.º do CC. Contudo, salta à vista que o resultado perseguido por via do esquema negocial acima descrito lhe confere uma natureza usurária e, por isso, ilícita, ao abrigo do disposto no artigo 282.º do CC, na medida em que permite consolidar na esfera jurídica da recorrente a titularidade do prédio em discussão por uma quantia bem inferior ao seu valor real.
Neste sentido se pronunciou o ac. do STJ, de 10.05.2018 (proc. n.º 5463/16.0T8PRT.P1.S1, rel. Salreta Pereira, cujo sumário está disponível em https://www.stj.pt/wp-content/uploads/2019/06/civel2018-1.pdf), que incidiu sobre o acórdão do TRP acima citado, em cujo sumário se pode ler o seguinte: «Devem improceder os pedidos de resolução do contrato de arrendamento e a entrega da fracção se do comportamento do autor se retira que, conhecendo a debilidade económico-financeira da ré, era seu propósito adquirir a fracção por uma quantia bem inferior ao seu real valor, sendo usurários e em manifesta fraude à lei os negócios entre ambos celebrados, procurando alcançar um fim proibido por lei através de um artifício legal (art. 282.º do CC)».
Refira-se, a este propósito, que a fraude à lei não tem necessariamente como consequência a nulidade do negócio ou negócios em causa. Como se infere de vários preceitos legais que particularizam situações específicas de fraude à lei (nomeadamente os artigos 21.º, 418.º, n.º 2, e 2067.º do CC; o artigo 38.º da Lei Geral Tributária; o artigo 980.º, al. c), do CPC; os artigos 27.º do Decreto-Lei n.º 133/2009, de 2 de junho, e 37.º do Decreto-Lei n.º 74-A/2017, de 23 de junho) e vem sendo defendido pela doutrina mais recente, o efeito principal da fraude é a desconsideração do efeito fraudulento, ou seja, a irrelevância, em termos de efeitos jurídicos, da conduta fraudulenta. Neste sentido, vide Rui Pinto Duarte, cit., pp. 1612 e seguintes, e a doutrina aí citada, nomeadamente Pedro Pais de Vasconcelos, que afirma o seguinte: «A sanção da fraude à lei não necessita da nulidade, é-lhe suficiente a sanção de ineficácia. A nulidade acarreta a ineficácia e, por isso, parece resolver alguns casos, mas é excessiva porque, na verdade, não é necessária uma ineficácia total (que é excessiva) sendo suficiente uma ineficácia específica, que se limite à desconsideração do que seria a eficácia fraudatória» (p. 1614). Esta é, de facto, a solução mais eficiente, pois permite alcançar o efeito visado pela nulidade, ao mesmo tempo que evita os excessos ou defeitos desta.
No caso concreto, independentemente de se considerar ou não totalmente nulo o negócio celebrado, a desconsideração da fraude à lei sempre implicaria a improcedência dos pedidos formulados pela recorrente nestes autos, mormente o despejo do imóvel e o pagamento das supostas rendas em atraso, pois tal permitira ao recorrente ficar com o bem dado de garantia por um valor inferior ao real e, simultaneamente, receber quantias em atraso, sejam elas juros ou capital em dívida.
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IV. Decisão
Pelo exposto, os Juízes do Tribunal da Relação do Porto julgam improcedente a apelação e confirmam a decisão recorrida.

Custas pela recorrente.

Registe e notifique.
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Sumário (artigo 663.º, n.º 7, do CPC):
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Porto, 13 de Junho de 2023
Artur Dionísio Oliveira
João Proença
Maria Graça Mira