Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
| ||
Nº Convencional: | JTRP000 | ||
Relator: | RODRIGUES PIRES | ||
Descritores: | EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE PERÍODO DE CESSÃO | ||
Nº do Documento: | RP20230613900/13.8T2AVR.P3 | ||
Data do Acordão: | 06/13/2023 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | RECURSO IMPROCEDENTE; DECISÃO CONFIRMADA | ||
Indicações Eventuais: | 2. ª SECÇÃO | ||
Área Temática: | . | ||
Sumário: | I – O art. 242º-A, aditado ao CIRE pela Lei nº 9/2022, de 11.1, relativo à prorrogação do período de cessão, é imediatamente aplicável aos processos pendentes à data da sua entrada em vigor [art. 10º, nº 3 da referida Lei]; II – A prorrogação do período de cessão por um período máximo de três anos só poderá ocorrer se se concluir pela existência de uma probabilidade séria de cumprimento, por parte do devedor, das obrigações a que se refere o art. 239º do CIRE; III – Não basta assim uma probabilidade qualquer, antes se exigindo uma probabilidade séria de, nesse período alargado, o devedor vir a cumprir as obrigações a que se sujeitou inicialmente para obter a exoneração; IV - Impõe-se, por conseguinte, que o devedor, face aos elementos constantes do processo, crie no julgador a convicção de que derradeiramente vai cumprir; | ||
Reclamações: | |||
Decisão Texto Integral: | Proc. nº 900/13.8 T2AVR.P3 Comarca de Aveiro – Juízo do Comércio de Aveiro – Juiz 3 Apelação Recorrentes: AA e BB Relator: Eduardo Rodrigues Pires Adjuntos: Desembargadores Márcia Portela e João Ramos Lopes Acordam na secção cível do Tribunal da Relação do Porto: RELATÓRIO Por decisão proferida em 19.1.2022 julgou-se procedente o pedido de cessação antecipada do procedimento de exoneração requerido pela credora “A...” e, em consequência, foi recusada a exoneração do passivo restante aos insolventes AA e BB. Nesta decisão deu-se como assente a seguinte factualidade: 1) Em 20/06/2017, foi proferido despacho admitindo liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante formulado pelos insolventes AA e BB, determinando que o rendimento disponível dos devedores/insolventes, objecto da cessão, seria integrado por todos os rendimentos que lhe adviessem a qualquer título, com exclusão do correspondente ao montante de duas vezes e meia (2,5x) o salário mínimo nacional por mês (12 meses), para o agregado familiar; 2) No referido despacho inicial deram-se como assentes os seguintes factos: “1. Os insolventes são casados no regime de comunhão de adquiridos. 2. A insolvente nasceu em .../.../1962. 3. O insolvente nasceu em .../.../1956. 4. A declaração de insolvência foi requerida pelo credor CC e declarada por sentença em 18/09/2013. 5. O agregado familiar dos insolventes é constituído pelos próprios. 6. À data da realização do relatório a que alude o art.º 155.º do CIRE, o insolvente encontrava-se aposentado compulsivamente por doença, desde 2011, com a reforma mensal ilíquida de €1.921,70, e a insolvente era trabalhadora por conta de outrem, com o salário mensal de €544,00. 7. A causa da insolvência decorre do estado de saúde do insolvente, com aposentação compulsiva e dos créditos que os insolventes contraíram, que deixaram de conseguir pagar pontualmente. 8. Apresentam um passivo de €430.756,28 proveniente essencialmente de crédito bancário. 9. Do certificado de registo criminal dos insolventes não consta qualquer condenação pelos crimes previstos nos arts. 227.º a 229.º do Código Penal.”; 3) Tendo-se ali também consignado o seguinte: “No caso dos autos, considerando, por um lado, o rendimento que os insolventes auferem e os encargos que suportam, levando em conta a situação de doença do insolvente, e por outro lado, o valor do passivo, e considerando ainda que a exoneração do passivo restante impõe algum sacrifício aos devedores, como supra exposto, afigura-se que o rendimento disponível dos devedores/insolventes, objecto da cessão ora determinada, deva ser integrado por todos os rendimentos que lhes advenham a qualquer título com exclusão do correspondente ao montante de duas vezes e meia (2,5x) o salário mínimo nacional, por mês (12), para o agregado familiar.”; 4) O insolvente marido recorreu do referido despacho, mas o recurso interposto não foi admitido, por ser extemporâneo; 5) O fiduciário, em 13/10/2020, apresentou um relatório, nele fazendo constar que, até Junho de 2020, os insolventes haviam auferido rendimentos que excederam o valor fixado para sustento mínimo, num montante total de €31.584,27, montante esse que não entregaram; 6) O insolvente marido veio requerer a alteração do sustento mínimo fixado para o montante equivalente a 3,75x salários mínimos nacionais, nos termos e com os fundamentos expressos no requerimento datado de 09/12/2020, que aqui se reproduzem; 7) O referido pedido de alteração do sustento mínimo foi indeferido, nos termos e com os fundamentos que resultam do despacho proferido em 17/06/2021, notificado em 18/06/2021, qua aqui se dá por integralmente reproduzido; 8) No relatório apresentado em 08/09/2021, o Sr. fiduciário veio informar continuar ainda em divida o montante de €31.584,27 e estar impossibilitado de calcular os rendimentos relativos ao quarto ano de cessão por não lhe terem sido fornecidos elementos para tanto; 9) Por despacho proferido em 11/11/2021, entre o mais, ordenou-se a notificação dos devedores para exercerem o contraditório quanto à requerida cessação antecipada e ainda para informarem as razões que determinarem a não prestação das informações solicitadas e informarem quais foram os seus rendimentos mensais concretos auferidos durante o período de cessão já decorrido, apresentando ainda os correspondentes recibos dos salários auferidos ou documentos dos subsídios ou pensões de reforma de que eventualmente beneficiem e ainda as respectivas declarações fiscais de rendimentos, bem como justificarem a razão pela qual não entregaram os rendimentos em falta; 10) No prazo concedido para o efeito, o insolvente marido veio apresentar o requerimento com data de 22/11/2021, que aqui se dá por integralmente reproduzido, entre o mais, alegando, em síntese, resultar da documentação junta aos autos com o requerimento de 09/12/2020, que os insolventes não cumpriram com a sua obrigação de entrega, em primeiro lugar face à situação de saúde de ambos e da progenitora da insolvente. Tendo ainda alegado que aguardavam a confrontação das contas respeitante à quantia a entregar ao fiduciário, sendo certo que, pelas contas do insolvente a quantia a entregar até 31/10/2021 seria de €27.275,14, considerando até que a insolvente mulher teve um período de baixa por assistência familiar (progenitora) na qual não auferiu qualquer rendimento; 11) No referido requerimento, o insolvente marido requereu ainda que se mantenha a decisão de exoneração do passivo restante nos termos em vigor, permitindo aos insolventes pagar as quantias em dívida respeitantes à exoneração (no montante de €27.275,14), em prestações de €500,00; 12) Posteriormente, o fiduciário veio esclarecer que, no primeiro [ano] de cessão ficou por entregar a quantia total de €10.976,71, no segundo ano a quantia total de €10.963,71 e no terceiro ano a quantia total de €9.644,30, totalizando o referido montante de €31.584,27. 13) No período entre Julho de 2017 e Setembro de 2021, os insolventes auferiram, pelo menos, os rendimentos discriminados na tabela junta como documento nº 1 com o requerimento apresentado pelo insolvente marido, em 22/11/2021, que aqui se dá por integralmente reproduzida; 14) Os insolventes, até à presente data, não entregaram qualquer quantia ao fiduciário; 15) Foram diagnosticadas ao insolvente marido as patologias indicadas no documento nº 1 junto com o requerimento apresentado em 09/12/2020; 16) Foram diagnosticadas à insolvente mulher as patologias indicadas no documento nº 2 junto com o requerimento apresentado em 09/12/2020; 17) Os insolventes tiveram as despesas médicas e medicamentosas que resultam dos documentos juntos com o mesmo requerimento; 18) O Sr. fiduciário remeteu os emails que constam do requerimento de 11/11/2021, cujo teor se dá aqui por reproduzido. O insolvente AA, inconformado com a decisão que lhe recusou a exoneração do passivo restante, dela interpôs recurso, o qual, porém, viria a ser julgado improcedente por Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 21.4.2022 Em 3.5.2022, antes do trânsito em julgado deste acórdão, o insolvente AA veio requerer que se ordenasse a prorrogação do período de cessão por três anos, em conformidade com o artigo 242º-A do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas [doravante CIRE], na redação introduzida pela Lei nº 9/2022 de 11.1. É o seguinte o texto deste requerimento: “Com a entrada em vigor, em 11/04/2022, da Lei n.º 9/2022 a qual aditou o art. 242º A ao CIRE, aos Devedores foi concedida a possibilidade de pedir a prorrogação do período de cessão, até ao máximo de três anos, desde que devidamente fundamentado. - Ora, sendo certo que tal lei apenas entrou em vigor no dia 11/04/2022, não pode o Devedor fazer fazer-se valer da mesma em período anterior, nada mais lhe restando do que efectuar o pedido na presente data. - Sendo certo que está dentro dos seis meses conferidos pela lei e que a decisão de [cessação] antecipada ainda não transitou em julgado, atenta a possibilidade de requerer a sua reforma ou até mesmo um acórdão uniformizador de jurisprudência. - De todo o modo, para os efeitos ora pretendidos, vem o Devedor solicitar a prorrogação do período de cessão nos termos do art. 242ºA do CIRE, por forma a [poder] cumprir com a entrega da fidúcia e liquidar a totalidade do seu montante. - Conforme requerimentos anteriores, o incumprimento do Devedor deveu-se essencialmente à situação de saúde dos insolventes e ao apoio prestado à progenitora da insolvente mulher, a qual, entre outras situações, teve que disponibilizar tempo para acompanhar a mesma, com a consequente perda de remuneração, conforme documentação junta aos autos (Recibos de Vencimento juntos Com o Requerimento de 22/11/2021 e comprovativos das despesas médicas juntas com o Requerimento de 09/12/2020). - Como forma de demonstrar boa-fé e vontade de cumprir, o Devedor junta, desde já, o comprovativo de entrega à fidúcia da quantia de €500,00 (Doc. n.º 1) - Conforme requerimento de 23/07/2021, os Requerentes são interessados no âmbito dos presentes autos, porquanto são proprietários da Fracção “H” descrita na CRP sob o n.º ...98 e inscrita na matriz sob o artigo ...76; - Fracção essa que foi vendida no âmbito de um processo de execução, tendo a quantia de €79.663,41, sido transferida para a Massa Insolvente (cfr. Req. De 17/07/2008 e sentença de verificação e graduação de créditos), - Encontrando-se há cerca de 14 anos, com o averbamento das seguintes hipotecas: Ap. ...3 de 2003/04/30 e Ap. ... de 2003/04/13 a favor da Credora B..., S.A. (Doc. n.º 1). - Facto que tem impedido os Requerentes [de] proceder à venda da fracção em causa. Isto posto, - Atento o trânsito em julgado da sentença de verificação e graduação de créditos e estando verificados os requisitos previstos no art. 178º do CIRE, na redação que lhe é dada pela Lei n.º 9/2022, se requer a realização do rateio parcial, o qual tem carácter obrigatório. Requerer: - Muito respeitosamente a V/ Exa. que em face do exposto, se digne ordenar prorrogação do período de cessão por três anos, em conformidade [com] o art. 242º A [do] CIRE.” Este pedido, por despacho judicial de 6.6.2022, foi julgado improcedente. O insolvente AA recorreu para o Tribunal da Relação do Porto que, por Acórdão de 22.11.2022, julgou procedente o recurso e admitiu liminarmente o referido requerimento de prorrogação do período de cessão de rendimentos. Por despacho judicial de 18.1.2023 foi facultado o contraditório, tendo o Mmº Juiz “a quo” alertado para a necessidade de se virem a compatibilizar as duas decisões proferidas pelo Tribunal da Relação do Porto. A insolvente mulher BB declarou para os devidos efeitos aderir na íntegra ao pedido de prorrogação do período de cessão, chamando ainda a atenção para o facto de estar em discussão a aplicação de uma prerrogativa legal que entrou em vigor antes do trânsito em julgado da sentença. A credora “A...” sustentou que, com o trânsito em julgado da decisão de recusa de exoneração do passivo restante, tal decisão não poderá ser alterada, sem deixar de alertar para o facto de o insolvente pedir a prorrogação de 3 anos, sem referir como se propõe a pagar o valor em dívida nesse período, sendo certo que, caso pretenda liquidar através de prestações mensais de 500,00€, o período de 3 anos não será suficiente já que 36 meses de prestações apenas resultam em 18.000,00€, quando o valor em divida (até Junho de 2020) ascendia a 31,584.27€. Por sua vez, o credor “C..., S.A.” declarou aderir à posição da credora “A...”, requerendo expressamente a improcedência do pedido de prorrogação. Depois em 13.2.2023 foi proferido despacho judicial que passamos a transcrever no segmento mais relevante: “…importa, pois, dar cumprimento ao decidido pelo Tribunal da Relação do Porto, compatibilizando tal decisão com as demais já proferidas. Para tanto cumpre fixar o alcance da decisão proferida pelo acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 22/11/2022, em ordem a compatibilizá-la com os demais actos já praticados no processo e em especial com o anterior acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 21/04/2022. No acórdão proferido em 22/11/2022, entre o mais, consignou-se o seguinte quanto ao objecto do recurso: “Como decorre do exposto, a única questão que se coloca no presente recurso é a de saber se, contrariamente ao decidido, deve admitir-se o requerimento apresentado pelo insolvente - já depois de ter sido proferida decisão (não transitada em julgado) de cessação antecipada do período da cessão do rendimento disponível - em que pede a prorrogação do período da cessão por mais 3 anos, fundando-se tal pedido na Lei n.º 9/2022 - com a entrada em vigor, em 11/04/2022 - a qual aditou o art. 242º A ao CIRE, preceito legal que passou a conceder aos Devedores a possibilidade de pedir a prorrogação do período da cessão, até ao máximo de três anos, desde que devidamente fundamentado.”. Na mesma decisão também se consignou o seguinte: “A questão que se coloca, pois, no presente recurso é apenas a de saber se, no momento em que o requerimento foi apresentado pelo devedor/insolvente/recorrente, se podia ainda entender que o período da cessão do rendimento disponível ainda não tinha terminado (e que, assim, o juiz ainda podia ordenar a prorrogação do aludido período da cessão de rendimentos). É esta a única questão controvertida.”. Tendo-se concluído no mesmo acórdão o seguinte: “Pelo exposto, decide-se julgar procedente o recurso e, em consequência, admitir liminarmente o requerimento de prorrogação do período de cessão de rendimentos formulado pelo devedor/recorrente (por estarem reunidos todos os pressupostos legais previstos no art. 242-A do CIRE), devendo o tribunal recorrido dar cumprimento ao disposto no nº 3 do citado art. (princípio do contraditório) e, de seguida, proferir decisão sobre o requerimento de prorrogação apresentado pelo devedor, tendo em conta o critério aí mencionado (“decretar a prorrogação apenas se concluir pela existência de probabilidade séria de cumprimento, pelo devedor, das obrigações a que se refere o n.º 1, no período adicional”). Aqui chegados, não poderá deixar de se apreciar o pedido de prorrogação requerido pelo insolvente AA, facultado que está o prévio e legal contraditório (artigo 242º-A nº 3 do CIRE), dando-se assim cabal e estrito cumprimento ao que foi decidido no acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto em 22/11/2022, atendendo ao objecto do recurso e ao que nele foi determinado. Sem, todavia, perder de vista que a decisão em causa não recaiu quanto ao próprio mérito do pedido de prorrogação, tendo-se cingido, a nosso ver, quanto à questão da admissibilidade, à data, do pedido de prorrogação, porque nessa data a decisão proferida quanto à cessação antecipada do procedimento e recusa da exoneração ainda não havia transitado em julgado. Como se deixou já expresso, importa compatibilizar o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto em 22/11/2022 com os demais actos já praticados no processo e em especial com o anterior acórdão do Tribunal da Relação do Porto. Isto porque se é verdade que o Tribunal de 1ª instância deverá dar cumprimento às decisões proferidas pelo Tribunal Superior, não se poderá deixar de relevar, em concreto, que nestes autos existe já uma anterior decisão também proferida pelo Tribunal da Relação do Porto, designadamente a que decorre do acórdão datado de 21/04/2022, que negou provimento ao recurso do insolvente e confirmou a decisão recorrida, na qual se julgou procedente o pedido de cessação antecipada do procedimento de exoneração e em consequência foi recusada a exoneração do passivo restante aos insolventes AA e BB. Ou seja, se é verdade que, na data em que o insolvente apresentou o seu requerimento de prorrogação, a decisão de recusa da exoneração do passivo restante ainda não havia transitado em julgado, não é menos verdade que o acórdão do Tribunal da Relação do Porto, proferido em 21/04/2022, não foi objecto de recurso. Donde, decorridos poucos dias, a decisão que recusou a exoneração do passivo restante transitou em julgado. Aqui chegados não poderemos deixar de notar que no processo existem duas decisões proferidas pelo Tribunal Superior, uma que confirmou a recusa da exoneração do passivo restante e outra que determinou a admissibilidade do requerimento apresentado para prorrogação do período de cessão e que determinou que tal requerimento fosse apreciado. Importa ponderar que, conforme decorre do disposto no artigo 613º do Código de Processo Civil, proferida decisão quanto à matéria em apreciação, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz, facultando-se ao mesmo apenas a possibilidade de rectificar erros materiais, suprir nulidades e reformar a sentença nos termos legalmente previstos. Assim, para que a decisão em causa não se venha a consolidar, a parte que com ela não se conforme, terá de recorrer e obter provimento no recurso. Por via de decisão do Tribunal Superior, a decisão poderá então ser revertida em caso de revogação. Todavia, sendo tal decisão confirmada, ela consolidar-se-á na data do respectivo trânsito em julgado, com os efeitos previstos nos artigos 619º e 620º do Código de Processo Civil. Descendo ao caso, constata-se que o acórdão do Tribunal da Relação do Porto, proferido em 21/04/2022, confirmou a decisão proferida nestes autos que, não só julgou procedente o pedido de cessação antecipada do procedimento de exoneração, mas igualmente recusou a exoneração do passivo restante aos insolventes AA e BB. Tal acórdão não foi revogado. Por outro lado, também não se vislumbra que o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto de 21/04/2022 tenha ou possa ter como efeito a revogação do que foi decidido no acórdão anterior e/ou possa colocar em causa os efeitos que dele decorrem (sendo certo que as decisões proferidas pelo Tribunal da Relação apenas serão passíveis de revogação pelo Supremo Tribunal de Justiça, conforme decorre do artigo 671º do Código de Processo Civil, nos casos em que seja admissível o recurso). Enfatizando uma vez mais que o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto de 21/04/2022 já transitou em julgado, em data posterior ao requerimento de prorrogação, mas em data muito anterior à data de prolação do acórdão que determinou o prosseguimento da instância para apreciação do pedido de prorrogação, cumpre ainda salientar o seguinte. Afigura-se-nos que o Juiz de 1ª Instância estará sempre impedido de reverter uma decisão em que julgou cessado o período de cessão e recusou a exoneração do passivo restante, proferindo nova decisão concedendo a prorrogação de tal período, na medida em que proferida a primeira decisão estará sempre esgotado o poder jurisdicional quanto às questões resolvidas e efeitos dela decorrentes (artigo 613º do Código de Processo Civil). Sendo que a reversão da primeira decisão apenas será possível por via de recurso e decisão em sentido contrário do Tribunal Superior. Não podendo deixar de se notar que, aquando da prolação da decisão que deferiu o pedido de cessação antecipada e recusou a exoneração (19/01/2022), ainda não se encontrava em vigor o novo regime introduzido pela Lei nº 9/2022 de 11 de Janeiro, designadamente a possibilidade de prorrogação. Face ao que se expôs afigura-se-nos que não seria possível que, nestes autos, sem mais, dando o dito por não dito, após declarar cessado o período de cessão e recusar a exoneração, o tribunal de 1ª instância, de mote próprio ou a requerimento, tivesse depois decidido haver lugar à prorrogação, revertendo assim os efeitos da primeira decisão sem que a mesma fosse objecto de recurso. Dúvidas não existem de que, vindo a ser revogada tal decisão pelo Tribunal Superior, então já nada obstaria a tal apreciação por este Tribunal, de harmonia com o novo regime entretanto aprovado. No entanto, não é isso que sucede, já que, como se disse, a decisão proferida em 19/01/2022, confirmada integralmente pelo acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 21/04/2022, não poderá deixar de produzir os seus efeitos. Afigurando-se-nos até pela mesma razão que, na pendência do recurso da decisão que recusou a exoneração e até ao trânsito em julgado da decisão que sobre ele recaísse, nem seria legítimo ao Tribunal apreciar tal requerimento de prorrogação, considerando o efeito devolutivo do recurso e que por via do disposto no artigo 704º nºs 1 e 2 do Código de Processo Civil, a decisão recorrida apenas se extinguirá ou modificará em conformidade com a decisão definitiva. Por outro lado, não se poderá descurar que, de harmonia com o disposto no artigo 625º do Código de Processo Civil, não poderão existir duas decisões contraditórias sobre a mesma pretensão, devendo dar-se sempre cumprimento àquela que passou em julgado em primeiro lugar, sendo aplicável o mesmo princípio à contradição existente entre duas decisões que, dentro do processo, versem sobre a mesma questão concreta da relação processual. Recorrendo à reconhecida autoridade doutrinária de ALBERTO DOS REIS (Código de Processo Civil Anotado, vol. III, 3ª edição, Coimbra, p. 94), dir-se-á que “A razão da força e autoridade do caso julgado é a necessidade da certeza do direito, da segurança nas relações jurídicas. Desde que uma sentença, transitada em julgado, reconhece a alguém certo beneficio, certo direito, certos bens, é absolutamente indispensável, para que haja confiança e segurança nas relações sociais, que esse beneficio, esse direito, esses bens constituam aquisições definitivas, isto é, que não lhes possam ser tirados por uma sentença posterior”. E aderindo às considerações expressas no acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 09/04/2013, diremos que “(…) A extensão do caso julgado refere-se não apenas à indiscutibilidade da subsistência de certa afirmação que acarreta necessariamente a indiscutibilidade da subsistência ou insubsistência doutra afirmação, mas abrange também a sua extensão inversa: da insubsistência do conteúdo deste conclui-se a insubsistência de outra afirmação, por incompatibilidade entre ambas. Em suma, a pronuntatio judicis traduz um conteúdo de pensamento e o suporte real ou conteúdo primário do caso julgado é um certo conteúdo de pensamento deixado indiscutível por uma decisão judicial. (…)”. A significar que se nos afigura que, nestes autos, não poderá vir a ser proferida uma decisão que viole o caso julgado material que se formou não só com a decisão proferida em 19/01/2022, mas em especial com a decisão proferida no acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 21/04/2022. Permitindo que venha a ser facultado aos devedores a possibilidade de lhes vir a ser concedido um beneficio que lhes foi já recusado por decisão anterior, transitada em julgado, com isso colocando em causa confiança e segurança jurídica das decisões e legitimas expectativas dos seus destinatários. Importando não descurar que a decisão que negou o direito aos devedores de virem a obter o benefício de exoneração do passivo restante, no reverso da medalha, também tutelou os interesses dos credores da insolvência em não verem os seus créditos afectados nessa medida. Mostra-se assim este Tribunal no impasse, aparente, de ter de vir a dar cumprimento a ambos os referidos acórdãos (salientando-se que o segundo acórdão não afectou ou poderá afectar os efeitos decorrentes do primeiro). Mas pelos fundamentos expostos, afigura-se-nos que, sem prejuízo de dar estrito cumprimento ao acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 22/11/2022, considerando liminarmente admitido o requerimento e dando o contraditório (o que já foi feito), mais nenhum efeito dele se poderá extrair. Isto porque não se poderá igualmente deixar de relevar agora, neste momento, sob pena de se fazer letra morta ou desconsiderar a decisão anterior, designadamente a decisão de recusa da exoneração do passivo restante, confirmada pelo Tribunal da Relação do Porto, transitada em julgado, bem como os efeitos daí decorrentes. Sem deixar de se considerar que o referido impasse até poderá ser meramente aparente, como se disse, precisamente atendendo ao objecto do recurso e que o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 22/11/2022 não recaiu sobre o mérito do pedido de prorrogação. Por outro lado, também não se poderá deixar de atentar que o pedido de prorrogação se refere apenas ao insolvente AA, já que a insolvente BB, representada por mandatário distinto, nada requereu e aliás nem recorreu da decisão anterior que indeferiu o pedido de prorrogação. Afigurando-se-nos que o pedido de adesão agora formulado sempre será intempestivo, face ao prazo previsto no artigo 242º-A do Código de Processo Civil, sem prejuízo do que se referiu. Por outro lado, sem prejuízo de se considerar que a decisão a proferir quanto ao pedido de prorrogação só poderá ser no sentido do seu indeferimento, atendendo à força de caso julgado e ao que acima se expôs, sempre se dirá o seguinte. Nos termos do disposto no artigo 242º-A do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (na redacção introduzida pela Lei nº 9/2022 de 11 de Janeiro) o juiz pode prorrogar o período de cessão, até ao máximo de três anos, antes de terminado aquele período e por uma única vez, mediante requerimento fundamentado das pessoas ali elencadas, apresentado nos prazos ali previstos, caso o devedor tenha violado alguma das obrigações que lhe são impostas pelo artigo 239.º, prejudicando por esse facto a satisfação dos créditos sobre a insolvência. Depois de ouvir o devedor, o fiduciário e os credores da insolvência, o juiz poderá então decretar a prorrogação apenas se concluir pela existência de probabilidade séria de cumprimento, pelo devedor, das referidas obrigações no período adicional. No requerimento apresentado em 03/05/2022, o insolvente AA veio alegar que o incumprimento se deveu, essencialmente, à situação de saúde dos insolventes e ao apoio prestado à progenitora da insolvente mulher, a qual, entre outras situações, teve que disponibilizar tempo para a acompanhar a mesma, com a consequente perda de remuneração. Tendo declarado como forma de demonstrar boa-fé e vontade de cumprir, juntar comprovativo de entrega à fidúcia da quantia de €500,00. Desde logo, cumpre relevar que, conforme resulta da decisão proferida nestes autos em 17/06/2021, também transitada em julgado (o que assumimos terá alguma validade) indeferiu-se a pretensão dos insolventes quanto à alteração do sustento mínimo fixado, tendo como fundamento as despesas agravadas pelo apoio à mãe da insolvente. Mas nem sequer é isso que é agora alegado. O que é alegado é que o apoio à mãe da insolvente a privou de rendimento. Mas não foi essa causa do incumprimento constatado. O que se constatou, como resulta da decisão que recusou a exoneração (transitada em julgado), foi que existiam valores em divida no montante total de €31.584,27 (tendo o insolvente reconhecido estar em dívida pelo menos o valor de €27.275,14), sem que os insolventes tivessem procedido à entrega de qualquer quantia. Sem que os devedores agora também expliquem que concretos fundamentos levarão a concluir ser expectável o cumprimento das obrigações no período de uma eventual prorrogação (caso fosse possível), na medida em que não justificam porque é que antes nada entregaram e agora poderiam passar a entregar e nem sequer referiram que montantes iriam entregar de harmonia com os seus rendimentos actuais (sendo certo que à razão de €500,00 mensais apenas se atingiria o montante de €18.000,00 nos três anos em causa). Para concluir que, mesmo que fosse legalmente possível, sempre caberia indeferir o pedido de prorrogação, por não se poder concluir, face ao alegado, pela existência de probabilidade séria de cumprimento, pelos devedores, das referidas obrigações no período adicional. Tudo razões a determinar a improcedência do pedido de prorrogação formulado pelo insolvente AA, ao qual agora aderiu a insolvente BB. Sendo que os insolventes serão responsáveis pelas custas do incidente a que deram causa (artigo 547º nºs 1 e 2 e artigos 1º nº 2 e 7º do Regulamento das Custas Processuais, tendo por referência a tabela II a ele anexa). Pelo exposto julgo improcedente o pedido de prorrogação do período de cessão requerido pelos insolventes AA e BB e em consequência condeno os mesmos no pagamento das custas do incidente a que deu causa, com taxa de justiça que se fixa em 3 UC.” Inconformados com o decidido interpuseram recurso os insolventes AA e BB, tendo finalizado as suas alegações com as seguintes conclusões: I. Vem o presente recurso interposto de douto despacho de 14/02/2023, por o mesmo ter concluído pela improcedência do pedido de prorrogação do período de cessão por três anos ao abrigo do artigo 242º-A do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas (adiante designado, CIRE), na sua redacção actual. II. O recurso merece – com o devido respeito – inteiro provimento, como se irá tentar demonstrar. Vejamos: I – Do Caso Julgado III. No despacho em crise e por forma a fundamentar a improcedência do pedido de prorrogação do período de cessão, inicia o Douto Tribunal a quo por invocar que “sem prejuízo de dar estrito cumprimento ao acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 22/11/2022, considerando liminarmente admitido o requerimento e dando o contraditório (o que já foi feito), mais nenhum efeito dele se poderá extrair. Isto porque não se poderá igualmente deixar de relevar agora, neste momento, sob pena de se fazer letra morta ou desconsiderar a decisão anterior, designadamente a decisão de recusa da exoneração do passivo restante, confirmada pelo Tribunal da Relação do Porto, transitada em julgado, bem com os efeitos daí decorrentes.” IV. Ou seja, entende o Tribunal de 1ª Instância que ainda que tenha sido admitido liminarmente o requerimento de prorrogação do período de cessão por três anos ao abrigo do artigo 242º-A do CIRE (conforme Acórdão de 23/11/2022), a decisão de tal requerimento estaria sempre condicionada pelo Acórdão datado de 21/04/2022 que recusou a exoneração do passivo restante, confirmando a decisão do tribunal a quo. V. Vejamos os factos decorre do acórdão de 21/04/2022 a recusa da exoneração do passivo restante única e exclusivamente pelo facto de os Insolventes não terem entregue à fidúcia o rendimento disponível, considerando que “Por último, cumpre referir que a violação do dever em causa não é passível de vir a ser sanada nos termos requeridos, a saber, pagamento em prestações de €500,00. Sem prejuízo de se notar que tal implicaria que o pagamento em dívida fosse muito para além do termo do período de cessão e que, conforme o próprio insolvente admite, existem ainda outras quantias em divida, designadamente quanto [ao] quarto e ao quinto ano do período de cessão (pelo menos nos montantes de €2.208,83 e 2.320,97)” VI. Como facilmente se verificará o objeto do mencionado recurso não foi a prorrogação prevista no art. 242º-A do CIRE (até porque esse dispositivo legal só entrou em vigor em 11/04/2022), mas única e exclusivamente a recusa da exoneração, na qual foi referido não ser viável aos Insolventes até ao término do 5º ano (terminaria em 06/2022) liquidarem a quantia em dívida. VII. Sucede que, em 11/04/2022 entra em vigor a Lei n.º 9/2022, de 11 de janeiro, a qual adita ao CIRE o art. 242º-A, o qual prevê que “o juiz pode prorrogar o período de cessão, até ao máximo de três anos”, dispondo o seu art. 10º, n.º 1 (regime transitório) que é imediatamente aplicável aos processos pendentes. VIII. O que nos remete para o art. 12º, n.º 2 in fine, do Código Civil, a saber: “quando dispuser directamente sobre o conteúdo de certas relações jurídicas, abstraindo dos factos que lhes deram origem, entender-se-á que a lei abrange as próprias relações já constituídas, que subsistam à data da sua entrada em vigor” IX. Pelo que a entrada em vigor da Lei n.º 9/2022 e o pedido de prorrogação do período de cessão (prévio ao trânsito em julgado do acórdão de 21/04/2022) baseiam-se em pressupostos distintos dos que se encontram na base da recusa da exoneração e são disposições legais com finalidades e pressupostos próprios. X. Sendo nesse sentido que este Tribunal da Relação admitiu liminarmente o requerimento de prorrogação nos termos do art. 242ºA do CIRE. XI. Neste sentido, sempre se dirá que improcede o invocado efeito positivo do caso julgado (autoridade do caso julgado), porquanto no acórdão de 21/04/2022 apenas foi analisada a viabilidade de os Insolventes efetuarem a entrega do rendimento disponível até 06/2022, enquanto no pedido de prorrogação é peticionada a entrega desses mesmos valores em três anos. XII. Assim, salvo o devido respeito por opinião diversa, inexiste qualquer impedimento/incompatibilidade entre o acórdão de 21/04/2022 e o que seria um despacho de prorrogação do período de cessão, não estando o Tribunal a quo vinculado, por qualquer forma, ao primeiro. II – Do Pedido de Prorrogação da Insolvente BB XIII. Conforme resulta dos autos foi requerida da declaração conjunta da insolvência, dos aqui Recorrentes, tendo os autos prosseguido desde então em coligação passiva, nos termos do art. 36º do CPC e 264.º a 266.º do CIRE. XIV. Por despacho de 20/06/2017, proferido à margem dos presentes autos, foi admitido liminarmente a exoneração do passivo restante, e, consequentemente determinado que “o rendimento disponível dos devedores/insolventes, objecto da cessão ora determinada, será integrado por todos os rendimentos que lhes advenham a qualquer título com exclusão do correspondente ao montante de duas vezes e meia (2,5x) o salário mínimo nacional por mês (12 meses), para o agregado familiar.” XV. Ou seja, o rendimento disponível dos Recorrentes foi fixado conjuntamente. XVI. Pelo que o pedido de prorrogação do período de cessão aproveitará necessariamente aos dois, tendo inclusive a Recorrente aderido ao mesmo. XVII. Face ao exposto e pese embora não especifique o Tribunal a quo, a consequência do seu entendimento diverso, a verdade é que o mesmo não poderá produzir qualquer efeito, face ao que vem aqui alegado. III – Da “probabilidade séria do cumprimento” XVIII. Por fim, no despacho em crise, conclui o Tribunal de 1ª instância que (de qualquer forma) não estariam cumpridos os requisitos necessários à prorrogação do prazo de cessão nos termos do art. 242º-A do CIRE, porquanto não se podia concluir pela existência de probabilidade séria de cumprimento, pelos devedores, das referidas obrigações no período adicional. XIX. Segundo o mencionado despacho, a presente conclusão encontra-se fundamentada pelo facto de que “O que se constatou, como resulta da decisão que recusou a exoneração (transitada em julgado), foi que existiam valores em dívida no montante total de €31.584,27 (tendo o insolvente reconhecido estar em dívida pelo menos o valor de €27.275,14), sem que os insolventes tivessem procedido à entrega de qualquer quantia. Sem que os devedores agora também expliquem que concretos fundamentos levarão a concluir ser expectável o cumprimento das obrigações no período de uma eventual prorrogação (caso fosse possível), na medida em que não justificam porque é que antes nada entregaram e agora poderiam passar a entregar e nem sequer referiram que montantes iriam entregar de harmonia com os seus rendimentos actuais (sendo certo que à razão de €500,00 mensais apenas se atingiria o montante de €18.000,00 nos três anos em causa).” XX. Em primeiro lugar, novamente com o devido respeito, olvidou-se o tribunal a quo de referir que os Recorrentes já efetuaram duas entregas de €500,00 cada (e não apenas uma), bem como solicitaram a compensação do montante de €382,50, respeitantes a custas de parte que teriam de receber, em plena demonstração da sua vontade de cumprir e de obter a derradeira oportunidade. XXI. Em segundo lugar, como resulta do douto despacho, o que está aqui em causa é única e exclusivamente a falta de entrega do rendimento disponível. XXII. Pelo que cumpre analisar o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, datado de 12/06/2022 e proferido à margem do Proc. n.º 35/13.3TBPVC.L1-1 (disponível em www.dgsi.pt), que se cita: “1. A Lei n.º 9/2022, de 11 de janeiro é aplicável aos processos pendentes à data da sua entrada em vigor (11-04-2022), com reflexos no âmbito da regulação alusiva ao período de cessão, tendo em conta o regime transitório fixado no número 3 do art. 10.º da referida lei. 2. Como expressamente mencionado no diploma, a Lei n.º 9/2022 estabeleceu medidas tendo em vista a transposição da Diretiva (UE) 2019/1023, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de junho de 2019, nomeadamente quanto à fixação do período de cessão – prazo para o perdão, na terminologia da Diretiva – em três anos e a possibilidade de prorrogação desse prazo (por igual período). 3. Encontrando-se o devedor em situação de incumprimento quanto à obrigação de entrega à fidúcia do rendimento disponível (art. 239.º, nº4, alínea c) do CIRE), formulando pedido de prorrogação do prazo de cessão já depois do terminus do período de cessão, esse pedido deve ser perspetivado no âmbito do art. 244.º do CIRE, como alternativa à recusa de exoneração: o devedor pode, pois, deduzir o pedido no prazo de 10 dias que a lei lhe concede para se pronunciar quanto à decisão final de exoneração (nº1 do referido preceito). 4. Quanto ao conteúdo da medida de prorrogação, a solução que melhor se coaduna com o texto da lei e a filosofia do sistema é aquela que considera que com a prorrogação se abre efetivamente um novo período de cessão, que deve ser perspetivado – como o próprio nome indica – como tal, com a obrigação que decorre, para o devedor, nomeadamente, do disposto no art. 239.º nº4 alínea c) do CIRE, isto é, o devedor não tem de pagar a quantia que estava em falta à fidúcia, mas deve continuar a entregar à fidúcia, no período de prorrogação, o valor que foi fixado como correspondendo ao rendimento disponível; em suma, tratando-se de uma prorrogação do período de cessão, a mesma comunga do que carateriza esse período, nomeadamente no que concerne à esfera de direitos e obrigações que impendem sobre o devedor e sobre os demais sujeitos processuais.” (…) XXIII. Pelo que o raciocínio matemático constante do despacho em crise, não é motivo bastante para o indeferimento do pedido de prorrogação. XXIV. Até por que, o incumprimento dos Insolventes deveu-se essencialmente à situação de saúde dos mesmos e ao apoio prestado à progenitora da insolvente mulher, a qual, entre outras situações, teve que disponibilizar tempo para a acompanhar a mesma, com a consequente perda de remuneração, conforme documentação junta aos autos. XXV. No mais, a prorrogação do período de cessão por três anos é a solução mais equitativa e benéfica para todos os Credores, uma vez que os Recorrentes apenas dispõem da pensão de velhice e vencimento, uma vez que tudo o mais foi liquidado no âmbito deste processo. XXVI. Atenta a sua idade, não estão em condições de adquirirem qualquer outro património, pelo que não se perspetiva que na sua vida consigam pagar o remanescente do crédito reclamado XXVII. Assim sendo, o único credor a ser pago (e provavelmente não na totalidade), seria o primeiro a penhorar os seus rendimentos. XXVIII. Pelo que a forma mais equitativa de satisfazer os Credores seria pela prorrogação do período de cessão, pois apenas este salvaguarda a igualdade entre Credores, os quais (à presente data), são todos comuns. XXIX. Por fim, reitera-se que probabilidade séria do cumprimento mais se justifica quando se verte sobre os factos provados no âmbito destes autos concluem pela realidade de que os Insolventes envolveram-se em contingências familiares e de saúde de tal escala que os impediram da obrigação de entrega atempadamente. XXX. Pelo que é forçoso concluir que inexiste um juízo adicional sobre a probabilidade séria do cumprimento das obrigações de entrega pelos Recorrentes, os quais já se encontram a demonstrar. XXXI. Até porque, o objectivo principal do processo de insolvência é rigorosamente este, pelo que o “dolo”, “a conduta censurável” e “culpa intensa”, que se cataloga ao comportamento do Insolvente é resultado de uma presunção judicial, a qual não pode ignorar os factos dados como provados nos autos. XXXII. Neste sentido, vejamos o Acórdão do Supremo tribunal de Justiça, datado de 11/05/2019 e proferido à margem do Proc. n.º 8531/14.9T8LSB.L1.S1 (disponível em www.dgsi.pt) que se cita: “I. As presunções judiciais não se reconduzem a um meio de prova próprio, consistindo, antes, em ilações que o julgador extrai a partir de factos conhecidos para dar como provados factos desconhecidos, nos termos definidos no artigo 349.º do Código Civil. II. O Supremo Tribunal de Justiça só pode censurar o recurso a presunções judiciais pelo Tribunal da Relação se esse uso ofender qualquer norma legal, se padecer de evidente ilogicidade ou se partir de factos não provados. III. O erro sobre a substância do juízo presuntivo formado, em sede probatória, pelo Tribunal da Relação com apelo às regras da experiência, não se afere em função de questões de natureza jurídica, mas sim em função dos factos materiais que as suportam, pelo que, neste contexto, o mesmo só será sindicável pelo tribunal de revista em caso de manifesta ilogicidade. IV. Para aferir da ocorrência de uma tal ilogicidade, importa, assim, indagar se da decisão de facto e/ou da respetiva motivação constam, ou não, os factos instrumentais a partir dos quais o tribunal tenha extraído ilações em sede dos factos essenciais, nos termos dos artigos 349º do C. Civil e 607º, nº4 do Código de Processo Civil.” XXXIII. Neste seguimento, é de concluir que se encontram verificados os pressupostos legais e factuais para a prorrogação do período de cessão por três anos, em conformidade com o art. 242º-A do CIRE. XXXIV. Face ao exposto e atento todo o acervo probatório, resulta forçoso concluir que o despacho em crise viola o art. 242º-A, 264º a 266º do CIRE, 10º, n.º 1 da Lei n.º 9/2022, 12º, n.º 2 in fine do CC e art. 36º do CPC devendo ser substituído por outro que acolhendo as razões supra elencadas prorrogue o período de cessão até ao máximo de três anos. Não foi apresentada qualquer resposta. O recurso foi admitido como apelação, com subida nos próprios autos e com efeito devolutivo. Cumpre então apreciar e decidir. * FUNDAMENTAÇÃO O âmbito do recurso, sempre ressalvadas as questões de conhecimento oficioso, encontra-se delimitado pelas conclusões que nele foram apresentadas e que atrás se transcreveram – cfr. arts. 635º, nº 4 e 639º, nº 1 do Cód. do Proc. Civil. * As questões a decidir são as seguintes:I – A questão do caso julgado; II – O pedido de prorrogação do período de cessão formulado ao abrigo do art. 242º-A do CIRE. * Os elementos factuais e processuais relevantes para o conhecimento do presente recurso constam do antecedente relatório.* Passemos à apreciação de mérito.I – A questão do caso julgado Na decisão recorrida o Mmº Juiz “a quo” produz extensas considerações sobre a eventual violação do caso julgado material a propósito da compatibilização entre os acórdãos proferidos pela Relação do Porto em 21.4.2022 e 22.11.2022, em virtude da entrada em vigor, em 11.4.2022, da Lei nº 9/2022, de 11.1. que aditou ao CIRE o art. 242º-A, o qual se refere à possibilidade de prorrogação do período de cessão. Afigura-se-lhe que não poderá ser proferida decisão que viole o caso julgado material que se formou relativamente ao despacho que, em 19.1.2022, recusou a exoneração do passivo restante aos insolventes e que foi confirmado pelo acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 21.4.2022, permitindo-lhes a concessão de um benefício que já lhes havia sido recusado. O referido art. 242º-A, vigente desde 11.4.2022, é, por força do disposto no art. 10º, nº 1 da Lei nº 9/2022, de 11.1, de aplicação imediata aos processos pendentes à data da sua entrada em vigor. Sucede que nas alegações de recurso que o insolvente AA apresentou em 6.2.2022 aludira já ao novo art. 242º-A do CIRE na sua conclusão 21 que tem o seguinte texto: “Sendo certo que o legislador, sensível a estas situações, aprovou a Lei n.º 9/2022 de 11 de Janeiro (a qual entrará em vigor em 11/04/2022), a qual procede ao aditamento art. 242º-A do CIRE, o qual prevê a prorrogação do pedido de cessão pelo prazo de três anos, situação que se aplicaria a casos como o decidendo.” Apesar desta alusão constante das conclusões do recurso, o Tribunal da Relação do Porto no acórdão proferido em 21.4.2022, estando já em vigor o novo art. 242º-A do CIRE, nada disse quanto à possível aplicação deste normativo. Porém, ainda antes do trânsito em julgado do acórdão de 21.4.2022 que, sem afrontar a questão da entrada em vigor do art. 242º-A do CIRE, confirmara a decisão da 1ª Instância que recusara a exoneração do passivo restante ao insolvente AA, deu este entrada, no dia 3.5.2022, ao requerimento, atrás transcrito, em que pugnava pela prorrogação do período de cessão por três anos, em conformidade com o dito art. 242º-A do CIRE. Esta pretensão viria a ser indeferida por despacho de 6.6.2022 com fundamento no trânsito em julgado do acórdão proferido em 21.4.2022, sendo que o insolvente AA dele interpôs recurso em 27.6.2022. Recurso que foi decidido através de acórdão de 22.11.2022, onde se analisou a questão da aplicação ao presente processo do disposto no art. 242º-A do CIRE e a sua compatibilização com o acórdão entretanto proferido em 21.4.2022. Escreveu-se o seguinte no acórdão de 22.11.2022 (que se passa a transcrever nos segmentos mais significativos para apreciação da presente questão): “Como decorre do exposto, a única questão que se coloca no presente recurso é a de saber se, contrariamente ao decidido, deve admitir-se o requerimento apresentado pelo insolvente - já depois de ter sido proferida decisão (não transitada em julgado) de cessação antecipada do período da cessão do rendimento disponível - em que pede a prorrogação do período da cessão por mais 3 anos, fundando-se tal pedido na Lei n.º 9/2022 - com a entrada em vigor, em 11/04/2022 - a qual aditou o art. 242º A ao CIRE, preceito legal que passou a conceder aos Devedores a possibilidade de pedir a prorrogação do período da cessão, até ao máximo de três anos, desde que devidamente fundamentado. (…) Sucede que, no caso concreto, na sequência de requerimento de um dos credores dos insolventes, onde peticionava a cessação antecipada do procedimento de exoneração, o tribunal recorrido veio a proferir decisão, entretanto confirmada por Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, onde concluía pela procedência do aludido requerimento e decretava a cessação antecipada da cessão do rendimento no âmbito da exoneração do passivo restante. Sucede que, ainda antes do trânsito em julgado do aludido Acórdão do tribunal da Relação, veio o insolvente apresentar o requerimento de prorrogação do período de cessão do rendimento disponível (em 3.5.2022) que foi indeferido pela decisão que aqui constitui objecto do presente recurso. Como decorre do exposto, o recorrente insiste, no presente recurso, que o seu pedido de prorrogação do período da cessão por mais 3 anos, fundado no art. 242º A do CIRE aditado pela Lei n.º 9/2022 - com a entrada em vigor, em 11/04/2022 – não deveria ter sido liminarmente rejeitado, pois que, não tendo a aludida decisão transitado em julgado, no momento em que foi apresentado o seu requerimento, tinha o tribunal recorrido que “suscitar um juízo adicional sobre a situação do mesmo, enquanto insolvente”, “… pois que o pedido é oportuno e esta oportunidade legal veio suscitada pela vigência prevista na Lei n.º 9/2022, de 11 de Janeiro; pelo que nada se vislumbra que obste ao decretamento da prorrogação do período de cessão porquanto se encontra preenchidos os requisitos necessários para a satisfação dos créditos dos credores”. Não foi esse o entendimento do tribunal recorrido que defendeu que, tendo sido “proferida decisão determinando a cessação antecipada do procedimento e consequente recusa da exoneração, tendo tal decisão sido confirmada por acórdão do Tribunal da Relação do Porto … não poderá existir prorrogação do período de cessão porque o mesmo cessou por via da referida decisão. Sendo indiferente a circunstância de, na data em que o insolvente requereu a prorrogação, a decisão não ter ainda transitado em julgado, na medida em que o recurso teve apenas efeito devolutivo (artigo 14º nº 5 do CIRE)”. Cumpre decidir. (…) Podemos, pois, concluir que existem aqui dois prazos: - O prazo do requerimento de prorrogação- o requerimento deverá ser apresentado até ao final do prazo da cessão de três anos; - e o prazo da decisão do Juiz que se pronunciará sobre o requerimento de prorrogação - decisão que pode ser proferida nos dez dias subsequentes ao termo do período da cessão. Importa reverter para o caso concreto. A questão que se coloca é a de saber se aquele primeiro prazo foi cumprido pelo devedor, quando apresentou o seu requerimento em 3.5.2022 (já depois de proferida a decisão de cessação antecipada da cessão do rendimento disponível, ainda que esta não tivesse transitado em julgado). Ou seja, o que se pretende saber é se, nessa data, o prazo do período da cessão do rendimento disponível já tinha terminado ou se, não tendo transitado em julgado a decisão de cessação antecipada da cessão, se pode entender que tal prazo ainda não tinha terminado. De uma forma lógica, poder-se-á dizer que, havendo a possibilidade de a decisão de cessação antecipada ser revertida – porque ainda não era definitiva – deve-se entender que o período da cessão do rendimento disponível ainda não teria terminado naquela data em que o requerimento de prorrogação foi apresentado, devendo esse momento (termo do período da cessão do rendimento disponível), no caso concreto, coincidir com a data do trânsito em julgado da aludida decisão (de cessação antecipada). Na verdade, julgamos que será de concluir que, na data em que o devedor/recorrente apresentou o requerimento de prorrogação do prazo do período de cessão do rendimento disponível, este período ainda não se mostrava processualmente terminado (porque esse momento, como referimos, coincidiria com a data do trânsito em julgado da decisão de cessação antecipada do procedimento de exoneração). Nessa medida, julga-se que, nessa data (em que foi apresentado o requerimento), o período da cessão de rendimentos ainda não tinha cessado, pelo que o Juiz ainda poderia, nessa data, ordenar a prorrogação do período de cessão (que tem o referido limite temporal – até ao termo do aludido período da cessão de rendimentos). Aceitando que a decisão ainda não tinha transitado, veio, no entanto, o tribunal recorrido assinalar que, de qualquer forma, tendo sido atribuído efeito devolutivo ao recurso, tal impediria a admissibilidade do requerimento de prorrogação (considerando, ao que se julga, que esse efeito devolutivo implicaria a cessação antecipada imediata do período da cessão de rendimentos). Julga-se que assim não será. Como decorre do exposto, a decisão só se considera transitada em julgado quando a mesma já não é passível de qualquer recurso ordinário ou de reclamação (art. 628º do CPC), sendo certo que, no caso concreto, a decisão que determinou a cessação antecipada da cessão de rendimentos, foi objecto de impugnação recursiva, pelo que não estava transitada em julgado na data em que o requerimento foi apresentado (podendo ainda ser revertida nessa data - se tivesse sido interposto recurso -, por exemplo, no sentido de ser indeferida a cessação antecipada e de se determinar que fosse retomado o cumprimento do período de cessão de rendimentos até final do prazo). O facto de o efeito atribuído ao recurso ser devolutivo não contende com a definitividade da decisão, mas sim com a exequibilidade imediata da decisão recorrida. Se ao recurso for atribuído efeito devolutivo, a decisão é imediatamente exequível, ou seja, a decisão recorrida valerá, enquanto título executivo até ao seu trânsito em julgado. A decisão proferida, pendente de recurso interposto, ao qual é atribuído o efeito devolutivo, é, assim, imediatamente exequível, tudo se passando no processo, quer a nível do seu andamento, quer ao nível da eficácia do que foi determinado, como se nenhuma impugnação tivesse existido. Mas isso não significa que a decisão não possa ser revertida em sede de recurso. Evidentemente que, quando tal suceda, o efeito devolutivo pode ter consequências perversas de produzir um volte face nas situações jurídicas constituídas: o que é agora determinado, poderá ser alterado por via do resultado final da decisão proferida em sede recursiva, pois atribui-se ao Tribunal hierarquicamente superior o poder de rever a decisão com o objectivo de a confirmar ou revogar, devolvendo-se-lhe o conhecimento da questão. Por assim ser, na data em que o requerimento de prorrogação foi apresentado, nunca se poderia ter como transitada em julgado aquela decisão de cessação antecipada da cessão de rendimentos, pois que, ainda que a esse recurso tivesse sido atribuído efeito devolutivo, no caso de revogação da decisão, teriam os actos processuais praticados (que estivessem na sua dependência), na sequência da eventual decisão (que podia ainda ser…) revogada, que ser anulados (tal como sucede, por exemplo, quando se julga procedente um recurso interlocutório e tal decisão têm o efeito de prejudicar a sentença, entretanto, proferida). Nesta conformidade, tendo em consideração o exposto, considerando que, na data em que o requerimento de prorrogação foi apresentado pelo devedor/recorrente, a decisão de cessação antecipada da cessão do rendimento disponível, ainda não tinha transitado em julgado, julgamos, assim, que o aludido período da cessão de rendimentos ainda não se mostrava processualmente terminado (porque esse momento, como referimos, coincidiria com a data do trânsito em julgado da decisão de cessação antecipada da cessão de rendimentos). Cumpre ainda referir que o facto de o recorrente não ter, entretanto, interposto recurso do Acórdão da Relação do Porto, não torna inútil o seu recurso, pois que, não tendo a decisão recorrida uma função instrumental em relação àquela decisão final, verifica-se a existência de um interesse efectivo e objectivo do recorrente em impugnar autonomamente a decisão recorrida. Pelo exposto, decide-se julgar procedente o recurso e, em consequência, admitir liminarmente o requerimento de prorrogação do período de cessão de rendimentos formulado pelo devedor/recorrente (por estarem reunidos todos os pressupostos legais previstos no art. 242-A do CIRE), devendo o tribunal recorrido dar cumprimento ao disposto no nº 3 do citado art. (princípio do contraditório) e, de seguida, proferir decisão sobre o requerimento de prorrogação apresentado pelo devedor, tendo em conta o critério aí mencionado (“decretar a prorrogação apenas se concluir pela existência de probabilidade séria de cumprimento, pelo devedor, das obrigações a que se refere o n.º 1, no período adicional”)” Acontece que este acórdão de 22.11.2022, não tendo sido impugnado, transitou em julgado, mostrando-se muito claro na sua decisão de admitir liminarmente o requerimento de prorrogação do período de cessão formulado pelo insolvente AA ao abrigo do art. 242º-A do CIRE. A argumentação, largamente transcrita, é extensa e detalhada e teve em atenção os elementos que aqui conflituam – a entrada em vigor no dia 11.4.2022 do art. 242º-A do CIRE onde se prevê a possibilidade de prorrogação do período de cessão; o acórdão proferido pela Relação do Porto em 21.4.2022 no qual não se teve em conta esta nova disposição legal já então em vigor; o requerimento apresentado pelo insolvente em 3.5.2022 com vista a obter a prorrogação – tendo concluído no sentido da admissão liminar deste requerimento de 3.5.2022. Impende sobre os tribunais inferiores um dever de acatamento das decisões proferidas em via de recurso pelos tribunais superiores, o que resulta do disposto no art. 4º, nº 1 da Lei de Organização do Sistema Judiciário [LOSJ] onde preceitua que «os juízes julgam apenas segundo a Constituição e a lei e não estão sujeitos a quaisquer ordens ou instruções, salvo o dever de acatamento das decisões proferidas em via de recurso por tribunais superiores.» Por seu turno, no art. 152º, nº 1 do Cód. de Proc. Civil diz-se que «os juízes têm o dever de administrar justiça, proferindo despacho ou sentença sobre as matérias pendentes e cumprindo, nos termos da lei, as decisões dos tribunais superiores.»[1] Neste contexto, cremos terem sido desnecessárias as largas considerações que foram feitas pelo Mmº Juiz “a quo” na decisão recorrida a propósito do caso julgado que se teria formado relativamente à decisão de 19.1.2022 e ao posterior acórdão de 21.4.2022, mesmo que este as conexione com a decisão a tomar quanto ao pedido de prorrogação do período de cessão apresentado pelo insolvente AA. Aliás, o acórdão de 22.11.2022 é bem explícito quando, depois da admissão liminar e do indispensável cumprimento do princípio do contraditório, determina que a 1ª Instância profira decisão sobre o requerimento de prorrogação apresentado pelo devedor, tendo em conta o critério mencionado no art. 242º-A, nº 3 do CIRE - “decretar a prorrogação apenas se concluir pela existência de probabilidade séria de cumprimento, pelo devedor, das obrigações a que se refere o n.º 1, no período adicional”. Era a isso que o Mmº Juiz “a quo” se deveria ter cingido, evitando o extenso excurso sobre a questão do caso julgado, que evidencia, acima de tudo, o seu descontentamento em relação ao acórdão proferido em 22.11.2022, até porque, mesmo considerando desacertado o decidido pela Relação, não poderia deixar de o cumprir, como, de resto, até cumpriu, embora sempre vincando a inutilidade do que fora ordenado à 1ª Instância.[2] * II - O pedido de prorrogação do período de cessão formulado ao abrigo do art. 242º-A do CIRE.1. O art. 242º-A, aditado ao CIRE pela Lei nº 9/2022, de 11.1., com a epígrafe “Prorrogação do período de cessão”, estatui o seguinte: «1 - Sem prejuízo do disposto na segunda parte do n.º 3 do artigo 243.º, o juiz pode prorrogar o período de cessão, até ao máximo de três anos, antes de terminado aquele período e por uma única vez, mediante requerimento fundamentado: a) Do devedor; b) De algum credor da insolvência; c) Do administrador da insolvência, se este ainda estiver em funções; ou d) Do fiduciário que tenha sido incumbido de fiscalizar o cumprimento das obrigações do devedor, caso este tenha violado alguma das obrigações que lhe são impostas pelo artigo 239.º, prejudicando por esse facto a satisfação dos créditos sobre a insolvência. 2 - O requerimento apenas pode ser apresentado dentro dos seis meses seguintes à data em que o requerente teve ou poderia ter tido conhecimento dos fundamentos invocados, sendo oferecida logo a respetiva prova. 3 - O juiz deve ouvir o devedor, o fiduciário e os credores da insolvência antes de decidir a questão, e decretar a prorrogação apenas se concluir pela existência de probabilidade séria de cumprimento, pelo devedor, das obrigações a que se refere o n.º 1, no período adicional”. Com esta prorrogação o que se pretende evitar é que, ao fim de três anos de sacrifícios do devedor, exista uma provável decisão de recusa de exoneração do passivo restante, permitindo-se através desta via que um período adicional de esforço da parte do devedor possa levar à desejada exoneração.[3] Discorrendo sobre as razões que poderão levar o próprio devedor a requerer a prorrogação do período de cessão escreve o seguinte MARIA DE FÁTIMA RIBEIRO (in “A exoneração do passivo restante e a Lei n.º 9/2022 – alterações de regime, problemas resolvidos, problemas criados e problemas ignorados”, Revista de Direito Comercial”, pág. 1383, disponível in revistadedireitocomercial.com): “…se o devedor puder antecipar que, tendo em conta aquela que foi a sua actuação durante o período de cessão, constarão do processo elementos que, com grande probabilidade, levarão à recusa da exoneração, pode ter todo o interesse em, antecipando-se a uma decisão com tal teor, requerer a prorrogação do período de cessão para, desta feita, tudo fazer para que lhe seja concedida a exoneração. A fundamentação do requerimento passará então, necessariamente, pelo reconhecimento da desconformidade do seu comportamento com aquele que lhe era exigido e a que ele se comprometeu expressamente no pedido de exoneração, nos termos do n.º 3 do artigo 236.º.” Prosseguindo, importará referir que o mecanismo da prorrogação não poderá ser equacionado à margem do princípio da boa-fé, o que significará que o juiz deve recusar a prorrogação se concluir que o devedor está a usar dessa faculdade que lhe é conferida por lei de forma abusiva – art. 334º do Cód. Civil.[4] De qualquer modo, para que a decisão de prorrogação seja tomada terá que concluir pela existência de uma probabilidade séria de cumprimento, por parte do devedor, das obrigações a que se refere o art. 239º do CIRE.[5] Daqui decorre que o quadro que se apresenta ao julgador deverá fazer antever não uma probabilidade qualquer, mas sim uma probabilidade séria de, nesse período alargado, o devedor vir a cumprir as obrigações a que se sujeitou inicialmente para obter a exoneração. Impõe-se que os elementos constantes do processo criem no julgador a convicção de que o devedor derradeiramente vai cumprir.[6] 2. De regresso ao caso dos autos, na parte que efetivamente cabia à apreciação do Mmº Juiz “a quo”, de acordo com o determinado pela Relação do Porto no seu acórdão de 22.11.2022, e que se circunscrevia, após cumprimento do contraditório, à decisão sobre o requerimento de prorrogação do período de cessão apresentado pelo devedor, tendo em conta o critério mencionado no art. 242º-A, nº 3 do CIRE, decidiu-se aquele pela sua improcedência. Fundamentou-a pela seguinte forma: “Nos termos do disposto no artigo 242º-A do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (na redacção introduzida pela Lei nº 9/2022 de 11 de Janeiro) o juiz pode prorrogar o período de cessão, até ao máximo de três anos, antes de terminado aquele período e por uma única vez, mediante requerimento fundamentado das pessoas ali elencadas, apresentado nos prazos ali previstos, caso o devedor tenha violado alguma das obrigações que lhe são impostas pelo artigo 239.º, prejudicando por esse facto a satisfação dos créditos sobre a insolvência. Depois de ouvir o devedor, o fiduciário e os credores da insolvência, o juiz poderá então decretar a prorrogação apenas se concluir pela existência de probabilidade séria de cumprimento, pelo devedor, das referidas obrigações no período adicional. No requerimento apresentado em 03/05/2022, o insolvente AA veio alegar que o incumprimento se deveu, essencialmente, à situação de saúde dos insolventes e ao apoio prestado à progenitora da insolvente mulher, a qual, entre outras situações, teve que disponibilizar tempo para a acompanhar a mesma, com a consequente perda de remuneração. Tendo declarado como forma de demonstrar boa-fé e vontade de cumprir, juntar comprovativo de entrega à fidúcia da quantia de €500,00. Desde logo, cumpre relevar que, conforme resulta da decisão proferida nestes autos em 17/06/2021, também transitada em julgado (o que assumimos terá alguma validade) indeferiu-se a pretensão dos insolventes quanto à alteração do sustento mínimo fixado, tendo como fundamento as despesas agravadas pelo apoio à mãe da insolvente. Mas nem sequer é isso que é agora alegado. O que é alegado é que o apoio à mãe da insolvente a privou de rendimento. Mas não foi essa causa do incumprimento constatado. O que se constatou, como resulta da decisão que recusou a exoneração (transitada em julgado), foi que existiam valores em divida no montante total de €31.584,27 (tendo o insolvente reconhecido estar em dívida pelo menos o valor de €27.275,14), sem que os insolventes tivessem procedido à entrega de qualquer quantia. Sem que os devedores agora também expliquem que concretos fundamentos levarão a concluir ser expectável o cumprimento das obrigações no período de uma eventual prorrogação (caso fosse possível), na medida em que não justificam porque é que antes nada entregaram e agora poderiam passar a entregar e nem sequer referiram que montantes iriam entregar de harmonia com os seus rendimentos actuais (sendo certo que à razão de €500,00 mensais apenas se atingiria o montante de €18.000,00 nos três anos em causa). Para concluir que, mesmo que fosse legalmente possível, sempre caberia indeferir o pedido de prorrogação, por não se poder concluir, face ao alegado, pela existência de probabilidade séria de cumprimento, pelos devedores, das referidas obrigações no período adicional. Tudo razões a determinar a improcedência do pedido de prorrogação formulado pelo insolvente AA, ao qual agora aderiu a insolvente BB.” 3. Sucede que tendo em conta os elementos constantes dos autos não vemos motivo para, nesta parte, dissentir do decidido pela 1ª Instância no sentido do indeferimento do pedido de prorrogação do período de cessão. Com efeito, no relatório apresentado em 8.9.2021 o Sr. Fiduciário informou estar em dívida o montante de 31.584, 27€, tendo este posteriormente esclarecido que ficaram por entregar 10.976,71€ no primeiro ano de cessão, 10.963,71€ no segundo ano e 9.644,30€ no terceiro ano. Confrontado com esta situação, o insolvente marido veio alegar que não procedeu à entrega daquelas quantias devido a razões relacionadas com a saúde de ambos e da progenitora da insolvente, tendo ainda acrescentado que pelas suas contas a quantia que deveria ter sido entregue à fidúcia até 31.10.2021 se circunscrevia a 27.275,14€. Entretanto, acompanhando o requerimento de 3.5.2022 no qual o insolvente marido AA pediu a prorrogação do período de cessão por mais três anos face à entrada em vigor do art. 242º-A do CIRE, aditado pela Lei nº 9/2022, de 11.1., este juntou comprovativo da realização de um depósito, em 2.5.2022, a favor da fidúcia no montante de 500,00€, tal como realizou depois, em 31.5.2022, um novo depósito a favor da fidúcia igualmente de 500,00€ e também este documentado. Porém, mesmo que os insolventes, no período adicional de cessão de três anos, entregassem à fidúcia todos os meses a importância de 500,00€, o montante assim atingido não ultrapassaria os 18.000,00€, montante que fica muito distante do valor em dívida. Para além de não serem explicados os motivos que fariam esperar que os insolventes que durante vários anos nada entregaram à fidúcia do seu rendimento disponível, incumprindo as obrigações a que estavam vinculados ao abrigo do art. 239º, nº 4 do CIRE, designadamente a resultante da sua alínea c)[7], passariam agora a entregar, no período adicional, importâncias regulares à fidúcia, sendo certo que a entrega mensal de 500,00€ nunca lhes permitiria atingir, nem perto disso, o valor em dívida. Significa isto que a probabilidade séria de cumprimento por parte dos insolventes das obrigações que sobre eles impendem nos termos do art. 239º do CIRE, no período adicional, não se configura. Deste modo, por não se verificar a situação prevista no art. 242º-A, nº 3 do CIRE, não pode ser concedida nem ao insolvente AA nem à insolvente BB, que a essa pretensão aderiu, a requerida prorrogação do período de cessão, o que importa a improcedência do recurso interposto. * Sumário (da responsabilidade do relator – art. 663º, nº 7 do Cód. de Proc. Civil):…………… …………… …………… * DECISÃONos termos expostos, acordam os juízes que constituem este Tribunal em julgar improcedente o recurso de apelação interposto pelos insolventes AA e BB e, em consequência, confirma-se a decisão recorrida. Custas, pelo seu decaimento, a cargo dos recorrentes.. Porto, 13.6.2023 Rodrigues Pires Márcia Portela João Ramos Lopes _________________ [1] Cfr., por ex., Acórdão da Relação de Évora de 31.5.2012, p. 855/11.3 TBLLE-E1, relator JOSÉ LÚCIO, disponível in www.dgsi.pt. [2] Veja-se, a este propósito, o seguinte passo da decisão agora recorrida: “Por outro lado, sem prejuízo de se considerar que a decisão a proferir quanto ao pedido de prorrogação só poderá ser no sentido do seu indeferimento, atendendo à força de caso julgado e ao que acima se expôs, sempre se dirá o seguinte.” [3] Cfr. Ac. Rel. Porto de 13.9.2022, p. 1536/18.2 T8AMT-E.P1, relatora ANA LUCINDA CABRAL, disponível in www.dgsi.pt (em que o ora relator foi adjunto). [4] Cfr. Ac. Rel. Lisboa de 12.6.2022, p. 35/13.3 TBPVC.L1-1, relatora ISABEL FONSECA, disponível in www.dgsi.pt. [5] A este propósito há a referir que o segmento “caso este tenha violado alguma das obrigações que lhe são impostas pelo artigo 239.º, prejudicando por esse facto a satisfação dos créditos sobre a insolvência” deve considerar-se como relativo ao corpo do n.º 1 do artigo 242.º-A e todas as suas alíneas, e não apenas reportado à sua alínea d), o que supõe um labor correctivo do intérprete, devido a uma deficiente redação da lei – cfr. MARIA DE FÁTIMA RIBEIRO, ob. e loc. cit. [6] Cfr, o já referido Ac. Rel. Porto de 13.9.2022. [7] Desta alínea c) resulta que durante o período de cessão o devedor fica obrigado a entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objeto de cessão. |