Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
145/14.0TAPFR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MOREIRA RAMOS
Descritores: CRIME DE DESVIO DE SUBVENÇÃO
SUBSÍDIO OU CRÉDITO BONIFICADO
CRIME DE PECULATO DE USO
RELAÇÃO DE ESPECIALIDADE
TITULARES DE CARGO POLÍTICO
TITULARES DE ORGÃO
PRESIDENTE DE CÂMARA
Nº do Documento: RP20230614145/14.0TAPFR.P1
Data do Acordão: 06/14/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL (CONFERÊNCIA)
Decisão: INDEFERIDA A RECLAMAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO
Indicações Eventuais: 4. ª SECÇÃO CRIMINAL
Área Temática: .
Sumário: I – A lei nº 34/87, de 16/07, ao prever e punir os crimes da responsabilidade de titulares de cargos políticos ou de altos cargos públicos, estabelece uma relação de especialidade relativamente a outros preceitos legais, constantes de legislação diversa, nomeadamente do dec-lei nº 28/84, de 20/01, e que prevejam condutas típicas semelhantes às vertidas naquela lei
II – Assim sendo, um presidente de determinada câmara municipal que ordene que fundos comunitários recebidos do FEDER fossem transferidos para a conta geral do município e foram depois utilizados para o pagamento de despesas públicas do município, diversas daqueles para as quais esses fundos comunitários haviam sido conduzidos, comete o crime de peculato de uso previsto no artigo 21º, nº 2 da referida lei 34/87, de 16/07, e não o crime de desvio de subvenção, subsídio ou crédito bonificado prevista no artigo 37º do referido dec-lei nº 28/84, de 20/01.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 145/14.0 TAPFR.P1


Acordam, em conferência, na 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:

I – RELATÓRIO:

Inconformado com a decisão instrutória proferida em 25/02/2022, na qual se decidiu não pronunciar o arguido AA pelos factos e imputação jurídica constantes da acusação pública contra ele dirigida e que consubstanciavam a alegada prática de um crime de desvio de subvenção, subsídio ou crédito bonificado, dele veio o Ministério Público veio interpor recurso nos termos constantes dos autos e aqui tidos como renovados, resultando das aportadas conclusões que, para além de arguir a nulidade de tal decisão por não enumerar os factos tidos como indiciados e não indiciados, pugnava pela sua revogação e substituição por outra que, dando por suficientemente indiciados todos os factos alegados na acusação, por eles pronunciasse o arguido, recurso que foi alvo de decisão sumária proferida pelo relator em 10/05/2023 e no âmbito da qual foi decidido, na confirmação da subsunção jurídica constante da decisão recorrida, manter a declarada prescrição do procedimento criminal, embora nos moldes ali descritos, e, por via disso, considerar prejudicadas as demais questões versadas no recurso.

Não se conformando, o Ministério Público veio agora reclamar para a conferência de tal decisão sumária, alegando, para tanto, e em síntese, que nenhum dos tipos legais de crime em referência se revela como tipo fundamental relativamente ao outro, pois nenhum deles contém todos os elementos do outro, pelo que, a equacionar o caso em apreço num contexto de especialidade, sempre haveria de concluir-se que o único tipo legal de crime que corresponde ao sentido criminal do comportamento descrito na acusação é o de desvio de subvenção, subsídio ou crédito bonificado, pelo qual defende tem o arguido de ser pronunciado.

Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre, agora decidir, pois que nada obsta a tal.

II – FUNDAMENTAÇÃO:

Para que se entenda, atenta a remissão operada na decisão sumária ora questionada, e no que ora importa reter, a decisão instrutória recorrida é do teor seguinte (transcrição):

«A defesa do requerente da presente instrução sustenta desde logo que os factos imputados ao arguido não podem ser subsumidos à previsão do art.º 37.º do DL 28/84, de 20.JAN.
Neste particular, não pode deixar de se convergir com essa asserção, pois que esse preceito legal – ainda que genérico quanto ao perímetro subjectivo: “Quem utilizar prestações obtidas a título de subvenção ou subsídio…” tanto pode abranger particulares como entes públicos – não pode deixar de ser interpretado à luz do que se refere n.º 6, al. l) do respectivo preâmbulo, quando esclarece a “…necessidade de proteger o interesse da correta aplicação de dinheiros públicos nas atividades produtivas…”, o que não é o caso dos autos; acresce que o art.º 21.º do referido diploma legal (que define o que deve entender-se por subsídio ou subvenção) expressamente faz referência a “empresa ou unidade produtiva”, o que parece excluir as atribuições de dinheiros públicos a autarquias, como é o caso dos municípios.
Daí que estando em causa nos autos prestações pecuniárias traduzidas em comparticipação de despesas ou adiantamento de despesas ao município de Paços de Ferreira (e já não a atribuição de dinheiros públicos a empresa ou a unidade produtiva), a conduta do arguido vertida na acusação (recorde-se: verbas recebidas através do QREN – Norte e que se destinavam em exclusivo para o pagamento de obras realizadas através de fundos europeus, mas foram canalizadas por ordem do arguido para a conta geral do município de Paços de Ferreira e aí diluídos, assim se inviabilizando que se efectuasse o pagamento dos montantes a que se destinavam) fica fora do perímetro da previsão daquele art.º 37.º do DL 28/84, de 20.JAN.
Conforme sustenta a defesa o arguido, os factos que lhe são verberados nessa acusação seriam subsumíveis à previsão do art.º 21.º, n.º 2 da Lei 34/87, de 16.JUL, ou seja, “O titular de cargo político que der a dinheiro público um destino para uso público diferente daquele a que estiver legalmente afectado…”.
Com efeito, o referido diploma legal - ao prever e punir os crimes da responsabilidade de titulares de cargos políticos ou de altos cargos públicos – estabelece uma relação de especialidade relativamente a outros preceitos legais, constantes de legislação diversa (nomeadamente o referido DL 28/84) e que prevejam condutas típicas semelhantes às vertidas na Lei 34/87; contudo, considerando a qualidade de titular de cargo político (em que se inscreve, entre outros, o de membro de órgão representativo de autarquia local: art.º 3.º, n.º 1, al. i) desse diploma legal), as condutas que, ainda que previstas em legislação diversa, sejam praticadas por esses titulares, acham-se abrangidas pela previsão dos correspondentes crimes previstos nessa Lei 34/87.
É justamente o caso dos autos: o arguido é acusado de ter ordenado que os fundos comunitários recebidos do FEDER fossem transferidos para a conta geral do município do qual era presidente da câmara municipal; se esses fundos foram depois utilizados para o pagamento de despesas públicas do município (diversas daqueles para as quais esses fundos comunitários haviam sido conduzidos) o crime por ele cometido será efectivamente aquele previsto no art.º 21.º, n.º 2 da Lei 34/87, de 16.JUL.
Ora, conforme foi justamente assinalado pela defesa do requerente da instrução, no despacho de arquivamento do M. Público se verteu que “Ora, da análise do inquérito que antecede resulta que o arguido foi constituído como tal em 18 de Outubro de 2017 e desde essa data até ao presente momento não ocorreu qualquer outra causa de interrupção ou de suspensão da prescrição do procedimento criminal.
Acresce que, mercê do comando previsto no n.º 3 do art. 121.º do Código de Processo Penal, o prazo de prescrição ocorre sempre quando nos casos de ocorrência de uma causa de interrupção - tiver decorrido o prazo normal de prescrição acrescido de metade.
In casu verifica-se que o prazo de prescrição era de 5 (cinco) anos art. 118.º, n.º 1, al. c) do Código Penal. E verifica-se que o início do prazo pescricional se situa em 31 de Dezembro de 2012.
Ora, considerando a data da prática dos factos e aquela em que ocorreu a constituição como arguido, conclui-se que decorreu o prazo normal de prescrição, acrescido de metade desse prazo, ou seja, a prescrição do procedimento criminal ocorreu em 30 de Junho de 2020.”.
Por isso, a pronúncia do arguido pelo referido crime de peculato de uso não pode ter lugar por via dessa prescrição».

Percebido o enquadramento, cremos que nenhuma razão assiste ao reclamante, conforme decorre, linearmente, da decisão ora sob censura, que, por economia, e no que aqui importa, se transcreve:

«O Ministério Público acusou o arguido imputando-lhe a prática, em autoria material, de um crime de desvio de subvenção, subsídio ou crédito bonificado, p. e p. pelo artigo 37º, nºs. 1 e 3 do Decreto-Lei nº 28/84, de 20/01 e pelo artigo 202º, al. b) do Código Penal, aplicável “ex vi” artigo 1º, nº 1 do referido Decreto-Lei.
Estavam em causa, indiciariamente, verbas recebidas através do QREN–Norte e que se destinavam em exclusivo ao pagamento de obras realizadas através de fundos europeus, mas foram canalizadas, por ordem do arguido, para a conta geral do município de Paços de Ferreira e aí diluídos, assim se inviabilizando que se efectuasse o pagamento dos montantes a que se destinavam.
Segundo a acusação, apoiada em suporte documental, tais verbas foram adiantadas ao Município entre 18/10/2013 e 23/10/2013, no montante global de setecentos e quarenta e sete mil, quinhentos e vinte e um euros e cinquenta e nove cêntimos, e as ordens de transferência das mesmas por parte do arguido ocorreram em 22/10/2013 e 23/10/2013.
Perante tal factualidade, aderimos à qualificação jurídica contida na decisão ora recorrida, pelos fundamentos que dela constam e que, por economia, aqui temos como renovados, daí derivando que os indiciados factos imputados ao arguido seriam subsumíveis à previsão do artigo 21º, nº 2 da Lei nº 34/87, de 16/07, onde se estipula, na versão coeva dos factos, ou seja, a decorrente da lei nº 34/87, de 16/07[1], que O titular de cargo político que der a dinheiro público um destino para uso público diferente daquele a que estiver legalmente afectado será punido com prisão até dezoito meses ou multa de 20 a 50 dias”, esta, como ali se anota também, lei especial em relação às demais que prevejam condutas típicas semelhantes as vertidas naquele diploma, incluindo as contidas no referido Dec-lei nº 28/84.
Aqui chegados, resta analisar a questão da prescrição.
Em função da pena abstracta prevista naquele normativo, o prazo de prescrição do procedimento criminal é de cinco anos (cfr. artigo 118º, nº 1, al. c) do Código Penal[2]).
Ora, o prazo de prescricão iniciou-se em 23/10/2013, data em que foi dada a última ordem de transferência, e não em 31/12/2012 conforme se refere na decisão recorrida, pois essa data respeitava a situação diversa e sobre a qual o Ministério Público se pronunciou, previamente à acusação deduzida, determinando o arquivamento dos autos mercê da prescrição ocorrida em 30/06/2020.
Assim sendo, e considerando a disciplina previstas no nº 3 do artigo 121º do Código Penal no sentido de que “…a prescrição do procedimento criminal tem sempre lugar quando, desde o seu início e ressalvado o tempo de suspensão, tiver decorrido o prazo normal de prescrição acrescido de metade”, o prazo de prescrição do procedimento criminal ocorreu em 23/04/2021, pois que, independentemente das causas de interrupção, ou seja, a constituição de arguido, que teve lugar em 18/10/2017, e a notificação da acusação, que, tendo sido deduzida em 30/09/2021, nos remete logicamente para data posterior a da sua notificação – cfr. artigo 121º, nº 1, als. a) e b), do Código Penal –, logo, não havia ainda qualquer período de suspensão aqui interferente e que, caso existisse, implicaria que tal prazo máximo de prescrição ainda não tivesse ocorrido (cfr. artigo 120º, nºs. 1, al. b) e 2 do Código Penal).
Resta, pois, na confirmação da subsunção jurídica constante da decisão recorrida, manter a declarada prescrição do procedimento criminal, embora nos moldes acima descritos, e, por via disso, considerar prejudicadas as demais questões versadas no recurso».
Daqui flui que a alegada existência de concurso de crimes, algo incompreendida, diga-se de passagem, e a depois sustentada primazia, num contexto de especialidade, de que o único tipo legal de crime que corresponde ao sentido criminal do comportamento descrito na acusação é o de desvio de subvenção, subsídio ou crédito bonificado, é perfeitamente contrariada pela argumentação contida na decisão ora reclamada, para cuja leitura, por economia, se remete, pelo que, e sem necessidade doutros considerandos, resta concluir que se impõe pura e simplesmente confirmar o decidido sumariamente, com o inerente indeferimento da presente reclamação.
*
Sem tributação, atenta a legal isenção do recorrente (cfr. artigos 522º, nº 1 do Código de Processo Penal).
*

III – DISPOSITIVO:

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam em conferência os juízes desta Relação em indeferir a reclamação deduzida pelo recorrente Ministério Público, confirmando o decidido sumariamente.

Sem tributação.

Notifique.
*
Porto, 14/06/2023[3].

Moreira Ramos
Maria Deolinda Dionísio
Jorge Langweg
____________
[1] Pois a versão actual foi introduzida pela lei nº 30/2015, de 22/04, logo, posterior à data dos indiciados factos, embora a única diferença resulte da moldura ali prevista, agora de prisão até 2 anos ou multa até 240 dias.
[2] Uma vez que não encaixa na previsão contida no seu nº 1, al. a), iii) daquele preceito.
[3] Texto composto e revisto pelo relator (artigo 94º, nº2, do Código de Processo Penal)