Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRP000 | ||
Relator: | PAULO COSTA | ||
Descritores: | CRIME DE OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA DISPENSA DE PENA CAUSA DE EXCLUSÃO DA ILICITUDE | ||
Nº do Documento: | RP20230621937/19.3T9PRT.P1 | ||
Data do Acordão: | 06/21/2023 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | CONFERÊNCIA | ||
Decisão: | CONCEDIDO PROVIMENTO AO RECURSO INTERPOSTO PELO ARGUIDO | ||
Indicações Eventuais: | 1ª SECÇÃO | ||
Área Temática: | . | ||
Sumário: | I – A aplicação do instituto da dispensa de pena pressupõe, como o impõe o artigo 74º, nº 3 do Código Penal, que se verifiquem os requisitos contidos nas alíneas. do seu nº 1, ou seja: a) a ilicitude do facto e a culpa do agente serem diminutas, b) o dano tiver sido reparado e c) à dispensa de pena se não opuserem razões de prevenção. II – No caso vertente, em face do estado emocional da arguida (tudo ocorre no momento de chegada a casa após as cerimónias fúnebres), com invasão da sua privacidade e do seu domicílio, valores também assegurados em outros ramos do Direito, e estando perante uma situação que poderá configurar, além do mais, crime de violação de domicílio e de coação exercida para receber e assinar a notificação, estão reunidas as condições para enquadrar a ação daquela (o ato de apertar com força os braços da ofendida para que a deixassem em paz na sua casa) no artigo 31.º, nº 1, do Código Penal, excluindo a ilicitude do seu ato. | ||
Reclamações: | |||
Decisão Texto Integral: | Processo nº 937/19.3T9PRT.P1 Origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo Local Criminal do Porto - Juiz 7 Acordam, em conferência, na 1ª secção criminal do Tribunal da Relação do Porto I. Relatório No Processo Comum (Tribunal Singular) em epígrafe citado, do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo Local Criminal do Porto, Juiz 7, foi proferida Sentença nos termos da qual foi preferida a seguinte Decisão: “a) Absolver a arguida AA da prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelo artº 145º, nºs 1, al. a), e 2, este com referência ao artº 132º, nº 2, al. l), do Código Penal; b) Operando a legal convolação jurídica condenar a arguida AA pela prática, em autoria material e na forma consumada de um crime de ofensa à integridade física privilegiada p. e p. pelos artigos 143º, nº 1 e 146º, al. a) ambos do Código Penal, na pena de 60 (sessenta) dias de multa, à taxa diária de € 8 (oito euros), ou seja, na multa de € 480,00 (quatrocentos e oitenta euros). Custas: Vai a arguida condenada, nos termos dos artigos 513º e 514º, nº 1 do Código de Processo Penal, no pagamento das custas do processo, fixando-se em 2 unidades de conta a taxa de justiça, nos termos do artigo 8º, nº 5 do Regulamento das Custas Processuais e Tabela III anexa.” Inconformado, veio a arguida interpor recurso, pugnando pelo seu provimento com os fundamentos que constam da motivação, apresentando as seguintes conclusões, que se transcrevem: “1. Foi Arguida notificada da sentença proferida nos presentes Autos, através da qual foi condenada pela prática do Crime de Ofensa à Integridade Física Privilegiada, previsto e punido pelo artigo 143.º n.º 1 e 146.º alínea a) do CP, a uma pena de multa de 60 dias à diária de € 8,00, num total de 480,00 €; 2. Todavia, a Arguida não se conforma com a condenação que sofreu, legitimando pois a dedução do presente recurso; 3. Salvo o devido e merecido respeito, a sentença proferida é nula por violação flagrante dos seguintes, entre outros, preceitos legais: 32.º e 205.º da CRP; 11.º da DUDH; artigo 6.º, n.º 2, da CEDH.; 143, 145.º, 146.º do CP; 127.º, 347.º, 374.º e 379.º do CPP; Assim, 4. Quanto à matéria de facto dada como provada na Sentença recorrida, a Arguida propõe-se nesta Apelação a alterar a qualificação que foi dada aos factos apostos nos artigos 1. a 5. do ponto II. FUNDAMENTAÇÃO 1. Factos provados, a saber: 1. (…) com a finalidade de acompanhar o referido BB a notificá-la da caducidade do comodato, por causa da morte do cônjuge, com o consequente efeito de abandono de tal habitação; 2. Então, entre as 18 e as 18:30 horas, após a referida comunicação para efeito de notificação, a arguida AA apertou com força os braços da ofendida CC, causando-lhe dor, e um arranhão; 3. Em resultado da descrita agressão, sofreu a ofendida CC na vertente anterior do punho direito uma escoriação linear com 0,4 cm. de comprimento, que lhe determinou 3 (três), dias para a cura, sem afectação da capacidade de trabalho geral e profissional; 4. A arguida AA agiu deliberada, livre e conscientemente, dominada por desespero, e sabia que ofendia a CC na sua integridade física, como foi o caso, o que quis; 5. Mais sabia que a sua conduta é proibida e punida por lei. 5. Defendendo pois a Arguida que tais factos devem passar para o elenco dos FACTOS NÃO PROVADOS, porquanto se considera que nenhuma prova foi feita para que tivessem merecido essa valorização, através da qual foi Arguida condenada; 6. Impondo-se pois uma alteração na matéria de facto dado como provada/não provada; 7. O Tribunal na Primeira Instância formou todo o seu juízo de convicção quanto à decisão sobre a matéria de facto, pelo valor que atribuiu às Declarações da Arguida, das Testemunhas por esta arroladas, mas também, se bem que noutra medida, as declarações da Ofendida ainda Testemunha BB, e ainda no Relatório Pericial; 8. Sendo que, quanto à contextualização dos factos, foi atendida toda a defesa, fossem as declarações da Arguida que se adjectivaram de “credível e coerente”, quer a prova Testemunhal por si carreada para os autos, a qual foi digna da qualificação de “pessoas isentas” cfr. 2.º e 5.º parágrafo da página 6 da Sentença; 9. Já no tocante aos factos da acusação, ou seja, não que importa concretamente aos ilícitos criminais em discussão, e que levaram à condenação da Arguida, foram tomadas em linha de conta as declarações da Queixosa CC e da Testemunha BB, bem ainda o Relatório Pericial; 10. Todavia, estes últimos, cremos veemente, e salvo devido respeito, que não merecem a valoração e a apreciação aposta na convicção da Sentença; 11. E, portanto, propõe-se a aqui Recorrente a demonstrar que andou mal o Tribunal a quo ao ter fundamentado como fundamentou a sua convicção, e consequentemente, ao dar como provados os factos da acusação; 12. É que, desde logo, as declarações prestadas pela Ofendida CC e pela Testemunha BB foram notoriamente contraditórias quando conciliadas umas com a outras, e ainda quando confrontadas com mais prova dos Autos, bem como proferiram ambos discursos vagos, imprecisos, caracterizados por frequentes respostas de “não sei” e/ou “não me lembro”, todo conforme acima melhor percepcionado nas Alegações com a transcrição dos referidos depoimentos; 13. Iniciemos pois por abordar as dissonâncias de declarações entre um e outro; 14. Antes de mais, temos que ter em atenção, que a Ofendida era Colega de Trabalho da Testemunha BB trabalhando ambos no mesmo escritório de Solicitadores e Agentes de Execução, sito em ... – Santa Maria da Feira, de onde ambos terão saído para se deslocarem para casa da Arguida; 15. Ora, desde logo, estiveram em compatibilizados quando referiram se sabiam ou não o contexto em que iriam tentar fazer a notificação, bem ainda o teor da respectiva notificação; 16. É que, a esse respeito, referiu a Ofendida CC que “estava a cumprir e não sabia muito bem a situação ali em causa.”, e que só se terá apercebido da contextualização quando lá chegou, dizendo “só nos apercebemos quando a senhora também diz que não era o dia” – Cfr gravação do respectivo Depoimento aos 05m14s e aos 11m50s; 17. No entanto, a Testemunha BB afirmou peremptoriamente que “Nós sabíamos para o que íamos” – Cfr gravação do respectivo Depoimento aos 02m31s; Usando, como se vê, a expressão no plural, querendo dizer que ele e a Ofendida sabiam exactamente para o que iam; 18. Mas dizendo a esta testemunha que “Com todo o respeito, era naquele dia, à hora que fosse, tínhamos de fazer a notificação.” Cfr gravação do respectivo Depoimento aos 04m48s; 19. E vejamos, de facto, o mais lógico, segundo as regras normais da experiência, era que ambos soubessem exactamente o que fazer, não só pelas funções que desempenhavam, mas também porque eram Colegas de Trabalho isso deveria ter motivado tema de conversa, até porque o assunto em questão e a sua contextualização, não é assim tão comum; 20. Iguais divergências, ocorreram no tocante ao tipo e teor de notificação prepararam para fazer, que nem um nem outro souberam explicar exactamente o que visava nem o que era; 21. A Queixosa referiu “não sei se era um contrato ou algo do género, de um fim de um contrato. Sei que era uma notificação judicial avulsa” - Cfr gravação do respectivo Depoimento aos 03m11s; 22. Ora tendo em atenção que este foi um dia peculiar para todos, mas para a Queixosa em particular, não se consegue perceber que a mesma se tenha esquecido daquilo que a levou a casa da Arguida, tanto mais que visava ser Testemunha da referida notificação; 23. Ora, se para a Queixosa iriam fazer uma notificação judicial avulsa, já para a Testemunha BB tratar-se-ia de um arresto, tendo dito que “penso que era por causa de um arresto (…), já não me lembro muito bem.” – Cfr. gravação do respectivo Depoimento aos 08m48s; 24. Também no que concerne a primeira posição da Arguida quanto à interpelação para a notificação, tiveram mais uma vez discursos desconexos; 25. A Ofendida referindo que a Arguida “ao início disse que não assinava” - Cfr gravação do respectivo Depoimento aos 04m38s; enquanto que a Testemunha BB afirmou sem dúvidas, mais que uma vez, que “de imediato se recusou” - Cfr gravação do respectivo Depoimento aos 03m50s; 26. Acresce ainda que faltou à verdade a Testemunha BB quando referiu que não estava presente - Cfr gravação do respectivo Depoimento aos 16m30s - quando a polícia chegou, uma vez que decorre do Auto de Ocorrência que estavam presentes, e além disso foram inclusivamente identificados – Cfr. Ofício, de 09/08/2022, com a referência Citius n.º 33020938; mas também pelas próprias declarações do Agente da PSP, a Testemunha DD, que afirmou que o Sr. BB e CC se encontravam no local - Cfr gravação do respectivo Depoimento aos 01m27s; 27. Não se entende a motivação, mas não nos parece ser um facto digno se apagar da memória, tanto mais tendo em atenção o tipo de intervenção que visava e a especificidade da causa; 28. Além das acima patenteadas discrepâncias registadas, voltaram a divergir no que toca ao momento concreto em que terão presumidamente ocorridos ilícitos criminais; 29. É que, se Ofendida afiançou o que a Testemunha BB, no preciso momento da alegada prática do acto, “estava virado de costas” e voltou a frisá-lo momentos depois, esclarecendo que ele estava ao telefone – Cfr gravação do respectivo Depoimento aos 10m51s e aos 22m31s; por sua vez o referido BB aludiu que isso “Disse ela, mas eu não digo isso” – Cfr. gravação do respectivo Depoimento aos 17m06s; 30. E outras tantas questões se levantaram, que suscitam sérias dúvidas quanto à veracidade dos depoimentos destas duas Testemunhas, nomeadamente, a questão de que a Arguida terá ofendido a Queixosa com as unhas, sendo que, a primeira frisou que andava sempre com elas “super rentinhas.”, tendo em atenção os cuidados que tinha que prestar ao seu Marido, falecido na véspera dos factos em causa nos Autos; além disso, na questão de que asseverou a Ofendida que, contrariamente inclusive ao que se encontra provado nos Autos, que a abordagem do seu Colega BB foi feita de forma serena e em tom suave; 31. É um facto que a Arguida disse não se lembrar de ter apertado os braços a uma quadra de alguma forma a Ofendida, mas disse-o de uma forma desprendida e inocente, que só demonstra a fragilidade e a personalidade da Arguida, que equaciona situações que lhe colocam e evita acusar outrem de mentir, quando ela própria reconhece que estava a passar uma dolorosa fase, de luto de alguém próximo, de quem era cuidadora a tempo inteiro, e que sabe que, por vezes, o ser humano nem sempre se comporta como devia, e quando a dor é tão profunda faz apagar certas coisas da memória, como modo de proteger-se; 32. E, por isso, unicamente a Arguida não negou, porque não pode negar aquilo que não se lembra, e, portanto, não sabe, e, como tal, não pode negá-lo; 33. Aliás isso é momento algum pode prejudicar arguida ou implicar a sua condenação; 34. Como se evidencia da Sentença em recurso, na parte não recorrida, é evidente o cenário dantesco, que foi criado propositadamente, para prejudicar e cercar a Arguida, impelindo a assinar algo que não queria e que nem estava em condições de receber; 35. Acresce ainda que, resulta da conjugação dos vários depoimentos, que os factos que constam na Acusação e pelos quais foi a Arguida condenada, terão ocorrido no corredor, fora do apartamento onde a Arguida vivia; 36. Ora, nesse momento, a polícia já se encontrava no local, e foi esta solicitou a Arguida, por estar em menor número e ser mais ágil de controlar a situação, que esta se ausentasse no seu apartamento deslocando-a para o exterior do mesmo, tendo aí ficado sempre acompanhada de um Agente da PSP; 37. Ora, nem do Auto de Ocorrência nem o próprio Agente da PSP que prestou declarações nos Autos, decorre tenha havido qualquer tipo de altercação ou qualquer tipo de ilícito criminal, o que a suceder-se teria de constar na própria participação em elaborada, que não aconteceu!!! 38. E, portanto, as declarações da Ofendida e de BB não podem e depois colher nem ser valoradas em sentido de fundamentar a acusação e a condenação; 39. Além de todo mais, frise-se também aqui, que tendo a própria Polícia solicitado à Arguida para sair do seu apartamento, a ofendida e a testemunha BB não se inibiram de continuar a perseguir a arguida pressionando a assinar aquilo que já tinha dito que não queria assinar; 40. Resulta pois de tudo o quanto disposto que, submeter a Arguida a um processo-crime no contexto acima descrito, é, antes de tudo o demais, um desvalor pelo próximo, pelos valores e bons princípios; Não havia necessidade de o fazer em momento algum, mas jamais no dia em que o fizeram; 41. Afiançaram ainda, nomeadamente, a Mãe e a Irmã da Arguida, que aquela não é pessoa de usar da violência, sendo inclusivamente uma pessoa que acolhe os bons princípios morais e éticos, sendo religiosa católica; 42. A par de todo isto, o Relatório Pericial ficou também descredibilizado em função das declarações já acima aqui vistas de CC e de BB, havendo ali lesões que nunca foram apontadas pela Ofendida, a saber uma queimadura na mão direita, sendo que inclusivamente os factos de que a Arguida é acusada não são compatíveis com essa lesão; sendo que o exame foi realizado no dia seguinte e desconhece o que se passou entre a data efectiva apontada como a da prática das alegadas ofensas e o momento em que foi examinada pelo Instituto de Medicina Legal; 43. Retirando a queimadura, resta-nos uma mera e simples escoriação de 0.4 cm, aquilo que de facto é uma bagatela, sem qualquer relevância, quase que invisível e que pode acontecer sem qualquer intenção de ferir ou ofender o corpo, como decorre da experiência normal e comum; 44. E este elemento subjetivo do tipo legal de crime ficou também por provar pois que a acusação não logrou fazê-lo; 45. Em conclusão, não podia o Tribunal de Primeira Instância se ter convencido da prática dos ilícitos criminais pela Arguida, com base nas declarações de CC e de BB, nem com base no Relatório Pericial, atentas as evidentes contradições quando confrontados esses meios de prova, bem ainda o seu teor oco e lacunoso, evidenciados também quando confrontados com a demais prova Testemunhal produzida nos Autos e ainda com Auto de Ocorrência, realizado pela PSP; 46. E como tal impunha-se a absolvição da Arguida o que agora se requer, para todos e devidos efeitos legais, revogando a sentença em recurso; 47. Quanto mais não seja por aplicação do princípio in dubio pro reo, em face de se ter evidentemente criado dúvida, mais que razoável, acerca dos acontecimentos que vinham apostos na acusação e os moldes em que os mesmos terão ocorrido; 48. Caso assim não se entenda, o que se coloca meramente por hipótese académica, e entendendo verificar-se os factos ilícitos, sempre deveria a Arguida ser dispensada de pena, ao abrigo no disposto no artigo 143.º n.º 3 alínea b) do CP; 49. Termos em que, a Sentença ora recorrida é nula por falta de fundamentação, ao abrigo do disposto no artigo 379.º do CPP, não tendo o Tribunal de Instância Inferior adoptado um juízo valorativo justo, equitativo, objectivo e fundamentado, segundo as regras da experiência normal e comum; 50. Devia pois ter se convencido da forma como acima se expôs, não podendo valorar positivamente, para efeitos de condenação, quer as declarações da Ofendida, quer da Testemunha BB, quer as conclusões extraídas do próprio Relatório Pericial; 51. A valorar teria sempre que valorar negativamente, dadas as contradições, imprecisões e o seu teor vago!! 52. In limine, a deveria o Tribunal a quo ter-se decidido pelo Princípio da Presunção da Inocência - artigo 32.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, no artigo 11.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem e no artigo 6.º, n.º 2, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.” Admitido o recurso, veio o Ministério Público responder, concluindo que a sentença recorrida, não é passível de censura, devendo o recurso ser julgado improcedente e mantida nos seus precisos termos. Nesta Relação, a Ex.mª Senhora Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer, não acompanhando a resposta do MP na 1ª instância e pugnando no sentido de que o recurso interposto pelo arguido merece provimento, quer quanto à impugnação da matéria de facto, quer relativamente à falta de fundamentação. Não houve resposta ao parecer. Realizado o exame preliminar, e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência. Nada obsta ao conhecimento do mérito. II. Fundamentação O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar (Cf. Prof. Germano Marques da Silva, "Curso de Processo Penal" III, 2ª ed., pág. 335 e jurisprudência uniforme do STJ (cf. Ac. STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, p. 196 e jurisprudência ali citada), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, nomeadamente os vícios indicados no art. 410º nº 2 do CPP. In casu, o recurso, delimitado pelas conclusões da respetiva motivação, tem por objecto as questões seguintes: -Falta de fundamentação; - Erro de julgamento com violação do princípio da livre apreciação da prova; -In dubio pro reo; - Qualificação jurídica dos factos atinente a eventual dispensa da pena com recurso ao instituto da retorsão; II.2. A decisão recorrida Importa agora apreciar as restantes questões tendo presente o teor da decisão recorrida e os factos que dela constam, e respectiva motivação e que se transcrevem: “1. Factos provados Da acusação: 1. No dia 3 de Setembro de 2019, a ofendida CC, no exercício das suas funções de funcionária administrativa de solicitador e agente de execução, acompanhada por BB, dirigiu-se à então residência da arguida AA, situada na Rua ..., ..., 5º-C, no Porto, com a finalidade de acompanhar o referido BB a notificá-la da caducidade do comodato, por causa da morte do cônjuge, com o consequente efeito de abandono de tal habitação; 2. Então, entre as 18 e as 18:30 horas, após a referida comunicação para efeito de notificação, a arguida AA apertou com força os braços da ofendida CC, causando-lhe dor, e um arranhão; 3. Em resultado da descrita agressão, sofreu a ofendida CC na vertente anterior do punho direito uma escoriação linear com 0,4 cm. de comprimento, que lhe determinou 3 (três), dias para a cura, sem afectação da capacidade de trabalho geral e profissional; 4. A arguida AA agiu deliberada, livre e conscientemente, dominada por desespero, e sabia que ofendia a CC na sua integridade física, como foi o caso, o que quis; 5. Mais sabia que a sua conduta é proibida e punida por lei. Da contestação: 6. O falecido marido da arguida, EE, padecia de Esclerose Lateral Amiotrófica, e faleceu no dia 2 de Setembro de 2019; 7. A arguida havia dedicado os seus últimos 3 (três) anos a cuidar do seu marido, em face do carácter degenerativo e galopante da doença; 8. No dia 03/09/2019, após as cerimónias fúnebres do marido da arguida, a sua cunhada FF abeirou-se da arguida, transmitindo-lhe que o seu filho não se encontrava a sentir-se bem, se não se importava de lhe dar a chave da sua casa para que lá se pudessem recolher, ao que a arguida anuiu, entregando as chaves de casa; 9. Concretamente de um apartamento sito na Rua ..., ..., 5º C, ..., no Porto, no qual a arguida e falecido marido moravam há mais de 10 (dez) anos após terem contraído casamento, sendo o mesmo propriedade dos pais do falecido marido; 10. Já depois das exéquias, a arguida foi para casa, e quando lá chegou, a cunhada aproximou-se e referiu que tinham de falar, tendo ambas se deslocado a um quarto da casa; 11. Nessa conversa, a cunhada da arguida referiu que tinham contratado um escritório de Advogados para tratarem de uns assuntos e que os mesmos vinham falar com a mesma, o que gerou uma discussão entre ambas; 12. Afirmando a Arguida que não era dia nem hora, saiu do quarto deparando-se com cerca de 7 pessoas desconhecidas na sua sala, que ali entraram sem a sua autorização; 13. Tais pessoas, que a Arguida julga tratarem-se, entre outros, de Advogados, Advogados Estagiários e Oficial de Justiça encontravam-se na sala, e rapidamente a interpelaram, com vários documentos que possuíam, e diziam que a mesma tinha que deles tomar conhecimento e assinar; 14. E faziam-no em tom alto, elevado, exaltado e agressivo, 15. Ali se gerando um desentendimento, acabando por ser chamada a P.S.P. ao local; 16. Enquanto ainda lá se encontrava a Polícia, chegou ainda uma Sra. que se intitulou Notária, do 1.º Cartório da Boavista – Dra. GG, que entregou uns documentos e abandonou de imediato o local; 17. Ora, com o desenrolar de toda esta situação, a arguida apercebeu-se que a deslocação de todas estas pessoas a sua casa foi previamente preparada pela família do seu falecido marido, o que a deixou muito alterada e abalada em face da circunstância de ter acabado de participar nas cerimónias fúnebres do seu marido, e de estar na iminência de ter de abandonar a casa de imediato; 18. A arguida estava sob profundo luto, desgastada e sob intenso stresse emocional, psíquico e físico. Mais se provou que: 19. Do certificado do registo criminal da arguida nada consta; 20. A arguida vive na companhia da sua mãe e exerce a actividade profissional de assistente técnica e aufere o vencimento de € 809. É licenciada em educação de adultos e interesses comunitários. 2. Factos não provados Com relevância para a discussão da causa não se provou: Da acusação: 1. Que a ofendida se deslocou à residência da arguida AA com a finalidade de a notificar da caducidade do comodato, por causa da morte do cônjuge, com o consequente efeito de abandono de tal habitação; 2. Que a arguida sabia que CC tinha a qualidade de agente de execução, e que ali se deslocou por causa do exercício de tais funções. * A demais matéria vertida na contestação, não foi tida em conta (e por isso não consta da fundamentação de facto) por conter meros juízos conclusivos, considerações genéricas ou matéria de direito, ou por não terem qualquer relevância para a decisão da causa (sendo certo que a lei apenas exige que devam constar da sentença os factos com relevo para a decisão da causa e só estes, devendo proceder-se se necessário ao aparo do que porventura em contrário e com carácter supérfluo provenha das referidas peças processuais de que aquela não é nem pode ser mera serventuária – cfr: a este propósito Ac. do STJ de 2 de Junho de 2005, proc. 05P1441, dgsi). 3. Convicção do tribunal A convicção do tribunal fundou-se no conjunto da prova produzida em julgamento, a qual se encontra integralmente documentada e valorada segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador, nos termos do artigo 127º do Código de Processo Penal. A arguida prestou declarações, explicando de forma credível e coerente todas as circunstâncias que antecederam os factos de que vem acusada, nomeadamente a abordagem que foi feita pela sua cunhada FF e que permitiu o acesso ao apartamento onde residia, e como se deparou com a presença de cerca de 7 pessoas na sua sala. Resultou ainda das declarações da arguida, da sua irmã HH, do ex-companheiro da sua irmã, II, da sua mãe JJ e ainda das vizinhas KK e LL que no interior do apartamento, bem como no seu exterior, se gerou um ambiente hostil à arguida, em que indiferentes ao momento pessoal que a mesma vivia, por nesse dia ter sido o funeral do seu marido, falecido na véspera, surgiram diversas pessoas, sendo que um senhor que se intitulava oficial de justiça e passava um cartão em frente do rosto da arguida, afirmava que a mesma tinha de assinar uns papéis. Porque a arguida afirmou que pretendia consultar ou aguardar a chegada de um Advogado, e depois passou a afirmar que não recebia a notificação, o ambiente tornou-se ainda mais tenso, com o funcionário forense BB, que à data trabalhava para os Agentes de Execução MM e NN, a solicitar instruções telefónicas ao Agente de Execução que lhe afirmava que a notificação tinha de ser efectuada nesse mesmo dia. A vizinhas da arguida, pessoas isentas, descreveram a situação que presenciaram, com a arguida “perdida”, desnorteada”, “só chorava e gritava” nas expressões utilizadas por ambas, concretizando a testemunha KK que viu inclusivamente a ser “tapada” a entrada no apartamento por várias pessoas, e que foi a própria, que conta já com 78 anos de idade, que de alguma forma se impôs ao acompanhar a arguida a entrar no apartamento, pois no decurso da altercação a arguida tinha vindo para o patamar do prédio. Foi neste ambiente e circunstancialismo que a arguida, agarrou a ofendida pelos braços e a abanou, bem como a arranhou com as unhas, do que a arguida afirma não se lembrar, mas também não o nega. Esta mesma agressão foi confirmada e presenciada pela testemunha BB e é corroborada pelo teor do relatório pericial de fls. 10 a 12. Relativamente à qualidade em que estas duas testemunhas ali se encontravam resultou do seu depoimento que ali se dirigiram, o BB, na qualidade de funcionário forense, devidamente munido do seu cartão profissional, e a ofendida CC, como funcionária administrativa, ambos do escritório dos Agentes de Execução MM e NN, sendo ao BB que cabia executar a diligência de notificação à arguida, ao que recorda que seria para abandonar a casa. BB explicou que a CC apenas o acompanhou. Ao que a própria afirmou apenas ali se encontrava para testemunhar a notificação. BB referiu que estavam dois advogados a acompanhá-los que representavam a família dos proprietários do apartamento e ao que recorda a porta do apartamento foi aberta por uma irmã do falecido. Relativamente à situação pessoal da arguida o tribunal valorou as suas próprias declarações, bem como se atendeu ainda ao teor do certificado do registo criminal junto a fls. 197 vº e do qual nada consta.” II.2. Do Recurso Da falta de fundamentação. Por uma questão de precedência lógica das questões colocadas, iniciaremos pela apreciação da nulidade da sentença por violação do disposto no art. 379.º, n.º 1, als. a), do CPPenal. Invoca o recorrente que a sentença se encontra desprovida de fundamentação nos termos do n.º 2 do art. 374.º do CPPenal e do art. 205.º da Constituição da República Portuguesa, padecendo de nulidade ao abrigo do disposto na al. a) do n.º 1 do art. 379.º, também do CPPenal. Afirma que o Tribunal a quo não cumpriu o exame crítico das provas que serviram para formar a sua convicção, o qual não se pode traduzir numa convicção subjetiva. O Recorrente não se conforma com a genérica e liminar valorização da prova, que ficou muito aquém do que resulta da prova por si elencada. Pelo que deve-se concluir pela nulidade de valoração realizadas pelo tribunal a quo sobre as provas apresentadas. Dispõe o n.º 2 do art. 374.º do CPPenal, sob a epígrafe “Requisitos da sentença” que «Ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.» Por seu turno determina o art. 379.º, n.º 1, al. a), do CPPenal que: «1 - É nula a sentença: a) Que não contiver as menções referidas no n.º 2 e na alínea b) do n.º 3 do artigo 374.º ou, em processo sumário ou abreviado, não contiver a decisão condenatória ou absolutória ou as menções referidas nas alíneas a) a d) do n.º 1 do artigo 389.º-A e 391.º-F». A simples leitura do primeiro dos preceitos citado evidencia que a fundamentação de facto e de direito não tem de ser exaustiva, isto é, não tem de fazer alusão particularizada e pormenorizada a todos factos e sua interligação com as provas produzidas, antes satisfazendo-se a exigência de fundamentação com uma exposição concisa, ainda que tanto quanto possível completa, que deve conter a indicação e o exame crítico das provas que sustentaram a convicção do Tribunal. E só na falta destas menções se pode concluir pela nulidade da decisão, como resulta do texto do segundo dos preceitos aqui reproduzidos. Neste sentido, veja-se o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28-01-2018[1], segundo o qual: «I - A necessidade de fundamentação da sentença condenatória, nos termos dos artigos 374.º e 375.º do CPP, que concretizam requisitos específicos relativamente ao regime geral estabelecido no artigo 97.º, n.º 5, do CPP, decorre directamente do art. 205.º, n.º 1, da CRP. A fundamentação das decisões dos tribunais, constituindo um princípio de boa administração da justiça num Estado de Direito, representa um dos aspectos do direito a um processo equitativo protegido pela Convenção Europeia dos Direitos Humanos. II - O dever de fundamentação satisfaz-se com a exposição concisa, mas, tanto quanto possível, completa dos motivos de facto que fundamentam a convicção do tribunal, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar tal convicção, não sendo exigível uma indicação das provas que, com especificada referência a cada um dos factos, justificam que cada um deles seja considerado provado ou não provado. III - A falta de fundamentação implica a inexistência dos fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão e só a falta absoluta de fundamentação determina a sua nulidade.» E ainda o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 08-01-2014[2] que, quanto ao dever de fundamentação, explanou o seguinte: «XI - O dever de fundamentação da decisão traduz-se em assumir uma síntese intelectualmente honesta e suficientemente expressiva do resultado do exame contraditório sobre as distintas fontes de prova. O juiz examina a prova e depois manifesta uma opção de sentido e valor e essa tarefa não o dispensa de, ao fixar os seus elementos de convicção, o fazer de forma clara, numa exposição das razões de facto e de direito da sua decisão (art. 374.º, n.º 2, do CPP).» Esta análise, que se impõe que o julgador verta na sua decisão, permite aos destinatários da mesma acompanhar o processo lógico-valorativo da formação da convicção do Tribunal, verificar da legalidade da decisão face às regras de apreciação da prova – como o princípio in dubio pro reo, as regras da experiência comum, as proibições de prova, o valor da prova pericial, o grau de convicção exigível e a presunção de inocência – e, pretendendo, impugná-la especificadamente quanto aos pontos considerados mal julgados, possibilitando ainda ao Tribunal de recurso uma mais clara e efetiva reponderação da decisão da 1.ª Instância. Como bem se definiu no acórdão desta Relação do Porto de 09-12-2015[3]: «I - A fundamentação, na sua projecção exterior, funciona como condição de legitimação externa da decisão pela possibilidade que permite da verificação dos pressupostos, critérios, juízos de racionalidade e de valor e motivos que determinaram a decisão, e na perspectiva intraprocessual, está ordenada à realização da finalidade de reapreciação das decisões dentro do sistema de recursos. II – O exame crítico da prova consiste na enumeração das razões de ciência reveladas ou extraídas das provas administradas, a razão de determinada opção relevante por um ou outro dos meios de prova, os motivos da credibilidade dos depoimentos, o valor de documentos e exames, que o tribunal privilegiou na formação da convicção, em ordem a que os destinatários fiquem cientes da lógica do raciocínio seguido pelo tribunal e das razões da sua convicção. III – A razão de ser da exigência da exposição, dos meios de prova, é não só permitir o exame do processo lógico ou racional que subjaz à formação da convicção do julgador, mas também assegurar a inexistência de violação do princípio da inadmissibilidade das proibições de prova.» Ora, percorrendo o texto da sentença recorrida não encontramos nele qualquer falha que corresponda à nulidade invocada, posto que o Tribunal a quo fez a descrição exigida pelo art. 374.º, n.º 2, do CPPenal, que é absolutamente percetível, fixando os factos, elencando as provas e fazendo recair sobre as mesmas um juízo crítico objetivado que o levou a valorizar umas em detrimento de outras, nenhuma censura respeitante ao formalismo da fundamentação merecendo, pois, tal decisão. Improcede, pois, este segmento do recurso. Da violação do princípio in dubio pro reo. Encontrando-se a decisão de facto fundamentada de forma coerente, e de cuja leitura é possível reconstituir a trajetória lógica seguida na decisão recorrida e que permitiu chegar às conclusões que dela constam, resta concluir que não existiu qualquer violação do princípio referente à prova, concretamente o in dúbio pro reo. Este princípio estabelece que a dúvida sobre um facto deve ser sempre resolvida a favor do arguido. Trata-se, aliás, de um princípio conexo com o da presunção de inocência do arguido, ou, inclusivamente, de uma outra vertente do mesmo. No âmbito penal a imputação de uma alegada violação do princípio in dúbio pro reo, cinge-se a um problema de impugnação da decisão sobre a matéria de facto, constituindo um limite normativo do princípio da livre apreciação da prova, na medida em que impõe a orientação vinculativa de que, após a produção da prova, o tribunal terá de decidir a favor do arguido, perante a persistência de uma dúvida razoável, ou seja, quando o tribunal não tiver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa. Deste modo, a alegação da violação desse princípio suscita a necessidade de, no recurso, ser demonstrada a carência de prova de que os factos imputados ao arguido foram por este protagonizados ou de que se verificou qualquer circunstância que a lei faz depender a punibilidade do mesmo. Ora, como supra explanado o tribunal não teve qualquer dúvida sobre os factos decisivos e que determinaram a condenação da arguida. No caso vertente, tal princípio só teria sido violado se, da prova produzida e documentada resultasse que ao condenar a arguida com base em tal prova, o juiz tivesse contrariado as regras da experiência comum ou atropelasse a lógica intrínseca dos fenómenos da vida, caso em que, ao contrário do decidido, deveria ter chegado a um estado de dúvida insanável e, por isso, deveria ter decidido a favor das arguidas/recorrentes. Ora, o tribunal recorrido sustentou a sua convicção nos depoimentos que considerou credíveis em conjugação com os documentos juntos aos autos, confirmando a matéria de facto constante da acusação e dada como provada, sem qualquer dúvida. Lendo a motivação da matéria de facto constante da sentença recorrida dela decorre que o tribunal a quo, em plena usufruição dos princípios da oralidade e da imediação da prova que teve perante si, em sede de audiência de julgamento, formulou a sua convicção relativamente à matéria de facto com respeito pelos princípios que disciplinam a prova (máxime, segundo o disposto no artigo 127º do Código de Processo Penal) e sem que tenham subsistido dúvidas quanto à autoria dos factos submetidos à sua apreciação, à forma do cometimento dos mesmos, bem como às finalidades pretendidas com o cometimento dos mesmos, não se descortinando, em lado algum, que tivesse valorado a prova de forma arbitrária ou com dúvidas. Bem pelo contrário, a motivação da matéria de facto denuncia uma tomada de posição clara e inequívoca relativamente aos factos imputados à recorrente, indicando exaustivamente as razões que fundaram a convicção do tribunal para o assentamento, pela positiva, da materialidade que deu como provada. Perante esta decisão, tomada com toda a segurança, não tem sentido invocar a violação do princípio in dúbio pro reo, que só opera quando, produzida toda a prova, o tribunal mantiver dúvidas sobre a prática, pelo arguido, de factos que lhe sejam desfavoráveis. Esta dúvida é que imporia ao julgador que decidisse de modo a favorecer as arguidas recorrentes. Não tendo o tribunal a quo evidenciado quaisquer dúvidas sobre a prática dos factos desfavoráveis ao arguido e que vieram a ser dados como provados, não há lugar à aplicação de um tal princípio. Em suma, pode-se dizer o que está verdadeira e unicamente em causa no recurso é que a recorrente não se conforma com a circunstância de a sua posição sobre a matéria de facto não ter sido acolhida no julgamento proferido pela 1ª instância, aí fazendo radicar os aludidos vícios que apontam à decisão recorrida. Concluindo, nada há a apontar à decisão que foi tomada com base na prova testemunhal produzida, prova à qual o tribunal conferiu credibilidade, porquanto desta resulta diretamente, e com certeza, que a arguida praticou os factos de que vinha acusado, não existindo qualquer violação do princípio in dúbio pro reo. Do erro de julgamento com violação do princípio da livre apreciação da prova. Alega o recorrente que o Tribunal “a quo” terá efectuado uma incorrecta apreciação da prova, e concretamente: Na matéria plasmada nos pontos 1, a partir de “com a finalidade de acompanhar”, 2, 3, 4, 5 dos factos considerados provados, a qual não é condizente com a prova produzida em sede de julgamento. A impugnação da matéria de facto em sede de recurso para o Tribunal da Relação pode ser feita por invocação dos vícios decisórios do art. 410.º, n.º 2, do CPP, sindicando, dessa forma, as anomalias ou disfunções emergentes do texto da decisão, e uma outra, mais ampla e abrangente – porque não confinada ao texto da decisão –, com base nos elementos de documentação da prova produzida em julgamento, permitindo um efetivo grau de recurso em matéria de facto, mas impondo, na sua adoção, a observância das formalidades previstas no artigo 412º, nº3 e nº 4, do CPP (erro de julgamento em matéria de facto). O Acórdão do STJ de 12-06-2008, Proc. nº 07P4375 (in www.dgsi.pt), sublinha que, a sindicância da matéria de facto, na impugnação ampla, ainda que se debruçando sobre a prova produzida em audiência de julgamento, sofre quatro tipos de limitações: 1- a que decorre da necessidade de observância pelo recorrente do mencionado ónus de especificação, pelo que a reapreciação é restrita aos concretos pontos de facto que o recorrente entende incorrectamente julgados e às concretas razões de discordância, sendo necessário que se especifiquem as provas que imponham decisão diversa da recorrida e não apenas a permitam; 2- a que decorre da natural falta de oralidade e de imediação com as provas produzidas em audiência, circunscrevendo-se o «contacto» com as provas ao que consta das gravações; 3- a que resulta da circunstância de a reponderação de facto pela Relação não constituir um segundo/novo julgamento, cingindo-se a uma intervenção cirúrgica, restrita à indagação ponto por ponto, da existência ou não dos concretos erros de julgamento de facto apontados pelo recorrente, procedendo á sua correcção se for caso disso; 4- a que tem a ver com o facto de ao tribunal de 2ª instância, no recurso da matéria de facto, só ser possível alterar o decidido pela 1ª instância se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida (al. b), do nº 3, do citado artº 412º). E, “As provas que impõem decisão diversa são as provas relevantes e decisivas que não foram analisadas e apreciadas, ou, as que, tendo-o sido, ponham em causa ou contradigam o entendimento plasmado na decisão recorrida” (sublinhado nosso), este é o entendimento que vem defendido no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 1.04.2008, www.dgsi.pt, e que sufragamos. Ora, da motivação e conclusões do recorrente resulta que este não cumpre o ónus de especificação, previsto no artigo 412º, nº 3 e 4 do CPP. Ou seja, apesar de indicar os factos que considera incorrectamente julgados, que faz indicando os números e alíneas dos pontos dos factos efetuando transcrições de depoimentos, a recorrente embora especificando os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, não especifica as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida, por referência ao consignado na ata, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 364.º, não indicando concretamente as passagens em que se funda a impugnação e que imponham versão diferente da encontrada pelo tribunal a quo, limitando-se a pôr em causa a convicção do tribunal formada nos depoimentos que indica e que pretende sejam valorados de forma diferente e tentando afetar a credibilidade da prova que sustentou a versão do tribunal. Ora, tal especificação é necessária uma vez que a reponderação de facto pela Relação não constitui um segundo/novo julgamento, cingindo-se a uma intervenção cirúrgica, restrita à indagação ponto por ponto, da existência ou não dos concretos erros de julgamento de facto apontados pelo recorrente, procedendo à sua correção que se imponha se for caso disso. Na verdade, a reapreciação é restrita aos concretos pontos de facto que o recorrente entende incorrectamente julgados e às concretas razões de discordância, sendo necessário que se especifiquem as provas que imponham decisão diversa da recorrida e não apenas a permitam. Ora, das motivações recursivas resulta que a recorrente apesar de fazer referência aos depoimentos do arguido e de algumas das testemunhas inquiridas não dá cumprimento ao dever de especificação das provas que impunham uma decisão de facto diversa da afirmada pelo tribunal (artigo 412º, nº3, do CPP). Muito embora na motivação de recurso tenha tecido considerações acerca do modo como foram valoradas quer as suas declarações, quer as declarações da ofendida, quer os depoimentos das testemunhas cujos nomes, ali indicou, o certo é que a recorrente não assinalou as concretas passagens da gravação das declarações e depoimentos dessas testemunhas que pudessem impor decisão diversa daquela a que chegou o tribunal a quo. O cumprimento destas exigências condiciona a própria possibilidade de se entender e delimitar a impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto, exigindo-se, pois, referências específicas, e não apenas uma impugnação genérica da decisão proferida em matéria de facto (cf. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 140/2004, de 10/3, disponível em www.tribunalconstitucional.pt) O que significa que a mera discordância quanto aos factos provados ou quanto aos meios de prova que o tribunal teve em consideração para formar a sua convicção quanto aos factos que considerou provados, não preenche a exigência legal da concretização dos factos e/ou da concreta indicação dos meios de prova que imponham decisão diversa quanto a cada um dos específicos factos. Na verdade, a recorrente limita-se a negar a prática dos factos e a por em causa a convicção do tribunal a quo que é diversa da sua, de que são exemplo as passagens seguintes das suas motivações recursivas: “não merecem a credibilidade que o tribunal a quo lhes conferiu”, “não faz sentido que a ofendida CC tenha negado saber o que iria fazer, em que qualidade e em que circunstâncias”, “quanto ao objeto e objetivo da notificação, ficamos sem saber qual seria.”, “a ofendida revelou discurso impreciso e vago” “estas declarações foram manifestamente interessadas”, “a ofendida CC, cremos que faltou evidentemente à verdade”, mencionando diversas contradições e discurso, questionando inclusive o relatório pericial. Do que fica exposto ressalta que o recorrente apenas pretende pôr em causa a convicção do tribunal e contrapor a sua que é diversa. Ora, a decisão recorrida estribando-se nas declarações da arguida e nos depoimentos de testemunhas cuja credibilidade atestou e prova pericial num exercício motivado com transparência e clarividência, acolheu antes a versão da ofendida, porque corroborada pelo auto de notícia de fls. 3-4, quanto à data e hora dos factos; relatório pericial de fls. 6 e ss, depoimento da arguida, ofendida e da testemunha BB, sobretudo estes, quanto ao núcleo duro dos factos tipificadores do crime em causa. Tudo o mais em que se suporta a recorrente traduz matéria acessória e pouco relevante ao tema decidendum, pormenores que sendo descritos por diversas pessoas de diferentes perspetivas e ângulos permitem interpretações diferentes dos acontecimentos sem que se lhes possa assacar consequências de maior relativamente à essência dos factos propostos a julgamento, não exigindo maior aprofundamento em termos de certezas em face da sua completa acessoriadade. Mas vejamos mais de perto. No entendimento da recorrente a ofendida e BB não merecem credibilidade, porque a ofendida sabia o que ia fazer, quando afirmou que não sabia. Ora das declarações dos dois resulta que ambos sabiam que estavam ali para notificar a arguida no dia em que o marido desta havia falecido, o que ela refere não saber muito bem era a concreta situação ali em causa. Mas sabia alguma coisa, que pelo menos estava ali para notificar a arguida num dia especial, o da morte do marido da arguida. Este tribunal dispensa-se de fazer a avaliação ética do comportamento destas duas pessoas, e de quem o mandou fazer, porque não é sua função, embora a tentação seja grande. Relativamente ao objeto e objetivo da notificação, trata-se de questão meramente acessória com nenhum relevo para o thema decidendum e mesmo aí não se pode dizer que as suas declarações tenham sido contraditórias. Delas ressalta que a testemunha BB, tinha um melhor conhecimento do que o trazia ali, ao contrário da ofendida que apenas o acompanhava e cujo papel como ressalta da prova produzida era menos ativo. Não era ela que ia proceder à notificação. Ao contrário do que a afirma a recorrente não se descortinam contradições ou estranhezas ou interesses de vinganças ou castigos, pelo menos das declarações transcritas pela própria recorrente. Diz a recorrente que também o discurso da testemunha BB se mostrou confuso e errático relativamente ao tipo de notificação. Ora os factos ocorreram em 2019, o julgamento em 2022. Decorridos três anos sobre os mesmos, estranho seria se a ofendida e testemunha se lembrassem concretamente do tipo de notificação e conteúdo concreto. Não se pode esquecer que se trata de pessoas que efetuam dezenas de trabalhos da mesma natureza. Sabem precisar que estavam ali na casa da arguida para a notificar para a mesma abandonar o imóvel, o que vai de acordo com o que diz a própria arguida. E estavam ali com dois advogados e estagiários, não pertinência se já lá estavam quando chegaram. O certo é que nenhuma confusão revelaram quanto ao cerne da questão colocada ao tribunal, ou seja, a autoria de uma agressão. Fala a recorrente na existência de contradições quanto à atitude da arguida relativamente à realização da assinatura. Mas que pertinência tem esta matéria para o thema decidendum, perguntamos nós. Porventura discute-se aqui algum tipo de coação ou falsidade de documentos? A existir alguma discrepância relativamente à decisão de assinar, tendo presente o contexto em que ocorreram os factos, não é de admirar que o discurso não esteja alinhado em tudo. O contrário é que seria estranho. De todo o modo, a testemunha BB relativamente a este trecho dos acontecimentos coincide em praticamente com tudo o que disse a ofendida e no que diz respeito à recusa em assinar de imediato, usa a expressão final “Sim, praticamente logo de imediato”, o que deixa antever que há ali um período de hesitação, que pode permitir a versão dada pela ofendida CC. Mas reafirma-se, não pode confundir-se falta de credibilidade com descrições de pormenores não coincidentes, que são normais dado o decurso do tempo. Só a concatenação do conjunto da prova permitirá depois tirar as ilações devidas. Afirma a recorrente que BB faltou à verdade quando diz que não ficou até à polícia chegar. Contudo, esta testemunha não foi perentória nessa afirmação, afirmando já não se recordar, pensando que não. Relativamente ao momento da agressão, afirma a recorrente que os seus depoimentos foram contraditórios. Não se vislumbra tal. O facto de BB se encontrar de costas quando a arguida agarrou a ofendida não significa que este em ato simultâneo não se tenha apercebido de tal e virado para ver o que estava a acontecer, quando alertado pela ofendida. A testemunha afirmou que se virou para ver o que se passava. Relativamente à marca das unhas. Como todos sabemos, tudo depende da forma como as mãos agarram os braços de alguém e basta pressionar a carne de outrem para que as unhas de quem agride tenham acesso à mesma. De todo o modo o relatório pericial estabeleceu o nexo com os eventos e uma escoriação pode ser um arranhão. A recorrente fala numa queimadura. Ora esta situação não está em causa nos autos e nem sequer é mencionada nos factos dados como provados. Aliás o relatório pericial é claro neste aspeto. Constatou a existência de uma queimadura e enquadrou-a em sequela sem relação com o evento. Relativamente ao aperto dos braços da ofendida, a própria arguida embora não tendo admitido, não pôs de parte a sua ocorrência ao mencionar “ sei que minha família me disse porque acho que a dona CC tinha mostrado os pulsos à minha irmã que eu que lhe tinha cravado”, o que vai de encontra à versão da ofendida que afirmou ter mostrado os braços a familiares da arguida. Alega a recorrente que os factos ocorridos em discussão nestes autos, estando a PSP presente, não foram alvo de relato daquela entidade, extrapolando depois dizendo se tal foi assim é porque eles não aconteceram. Ou será porque lhe não deram relevo suficiente atendendo ao contexto da situação e ao estado da arguida? O não relato não significa não ter acontecido, apenas que na presença da PSP tal não foi constatado. Por sua vez, a não reação da ofendida perante a PSP, não quer dizer nada nem pode ser interpretado como não tendo acontecido. O momento da apresentação de uma queixa só ao ofendido pertence. O conjunto da prova e sua análise, incluindo as declarações da arguida permitiram concluir que ocorreram os factos tal como descritos na decisão a quo, como nós concluímos e sem que para ali se chegar ter sido violado qualquer bom senso ou regra da experiência. A matéria factual apurada sustenta a sua ocorrência. A recorrente atribui grande relevância a questões de pormenor, que em seu entender constituem contradições, tentando descredibilizar os testemunhos em que o tribunal se alicerçou, mas sem sucesso, na medida em que no que toca ao núcleo duro da matéria factual, o momento, local, a agressão e sua descrição e até o contexto em que ocorreram, inexistem contradições relevantes. De forma lógica, objetiva e racional, conclui-se que o tribunal decidiu de acordo com juízos de experiência comum, todo e qualquer homem médio colocado na mesma e exata posição. Verifica-se, pois, que a prova foi apreciada em respeito absoluto pelo princípio da livre apreciação da prova, “princípio atinente à prova, que determina que esta é apreciada, não de acordo com regras legais pré-estabelecidas, mas sim segundo as regras da experiência comum e de acordo com a livre convicção do juiz, uma livre convicção que não pode ser arbitrária ou subjectiva e, por isso, deve ser motivada. A motivação da convicção apresenta-se, pois, como o meio de controlo da decisão de facto, em ordem a garantir a objectividade e a genuinidade da convicção formada pelo tribunal.” (Ac. STJ de 11.07.2007, Proc. 1611/07, 3ª secção) Este princípio, estabelecido no art.127.º do CPP, assume particular relevo na fase de julgamento. Se é certo que a convicção do juiz não pode ser puramente subjetiva, imotivável e por isso, o art.374.,º n.º2, do C.P.Penal exige que a sentença contenha “uma exposição tanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto e de direito, que fundamentaram a decisão, com a indicação do exame crítico das provas que serviram para fundamentar a decisão do tribunal”, também não se pode esquecer que a decisão do juiz é sempre uma convicção pessoal, “até porque nela desempenham um papel de relevo não só a atividade cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova) e mesmo puramente emocionais” in Jorge de Figueiredo Dias, “Direito Processual Penal”, Coimbra Editora, edição 1974, pág.204. Ao princípio da livre apreciação da prova, estão intimamente associados os princípios da imediação e da oralidade. A avaliação da prova produzida em audiência não se resume ao conteúdo literal de algumas expressões usadas pelos participantes na audiência, antes pressupõe uma análise global de todas as provas à luz de critérios de experiência comum. Só essa avaliação global permite a formação de um juízo sobre a consistência de um depoimento. O julgador, beneficiando do contacto direto com a arguida, ofendida e testemunhas, ao valorar o depoimento ou partes de um depoimento em detrimento do depoimento de outros tem de atender a vários aspetos que têm a ver, designadamente, com a razão de ciência, a imparcialidade, a espontaneidade do depoimento, as hesitações, as contradições, os gestos, etc. Na decisão recorrida, face à fundamentação nela explanada, não se verifica qualquer apreciação arbitrária da prova, contrariamente ao invocado pela recorrente, mostrando-se a prova apreciada criticamente e segundo um raciocínio lógico e coerente, permitindo formar a convicção no sentido da factualidade apurada. O que a recorrente não aceita é a apreciação da prova feita pelo tribunal recorrido, pretendendo impor uma apreciação diversa dos meios de prova produzidos, designadamente questionando o valor e a credibilidade que o tribunal atribuiu aos diversos depoimentos. Do teor da decisão recorrida, concluímos que o julgador recorreu às regras de experiência e apreciou a prova de forma clara e detalhada, expondo de forma segura e assertiva as razões que fundamentaram a sua opção, e justificando os motivos que levaram a dar credibilidade aos depoimentos das testemunhas inquiridas sobre os factos. Destarte, encontrando-se a decisão de facto fundamentada de forma coerente, e de cuja leitura é possível reconstituir a trajetória lógica seguida na decisão recorrida, e que permitiu chegar às conclusões que dela constam, resta concluir que não existiu qualquer violação do princípio da livre apreciação da prova, e nem de qualquer princípio referentes à prova, concretamente o in dúbio pro reo. Este princípio, cuja violação é invocada pelo recorrente, estabelece que a dúvida sobre um facto deve ser sempre resolvida a favor do arguido. Trata-se, aliás, de um princípio conexo com o da presunção de inocência do arguido, ou, inclusivamente, de uma outra vertente do mesmo. No âmbito penal a imputação de uma alegada violação do princípio in dubio pro reo, cinge-se a um problema de impugnação da decisão sobre a matéria de facto, constituindo um limite normativo do princípio da livre apreciação da prova, na medida em que impõe a orientação vinculativa de que, após a produção da prova, o tribunal terá de decidir a favor do arguido, perante a persistência de uma dúvida razoável, ou seja, quando o tribunal não tiver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa. Deste modo, a alegação da violação desse princípio suscita a necessidade de, no recurso, ser demonstrada a carência de prova de que os factos imputados ao arguido foram por este protagonizados ou de que se verificou qualquer circunstância que a lei faz depender a punibilidade do mesmo. Ora, como supraexplanado o tribunal não teve qualquer dúvida sobre os factos decisivos e que determinaram a condenação da arguida. No caso vertente, tal princípio só teria sido violado se, da prova produzida e documentada resultasse que ao condenar a arguida com base em tal prova, o juiz tivesse contrariado as regras da experiência comum ou atropelasse a lógica intrínseca dos fenómenos da vida, caso em que, ao contrário do decidido, deveria ter chegado a um estado de dúvida insanável e, por isso, deveria ter decidido a favor do arguido. Em suma, pode-se dizer o que está verdadeira e unicamente em causa no recurso é que a recorrente não se conforma com a circunstância de a sua posição sobre a matéria de facto não ter sido acolhida no julgamento proferido pela 1ª instância, aí fazendo radicar os aludidos vícios que aponta à decisão recorrida. Na verdade, este nas motivações de recurso limita-se a pôr em causa a valoração da prova efetuada pelo tribunal a quo que contrapõe à sua, que é diferente, mas sem conseguir contrariar o valor probatório que o tribunal a quo recorrido atribuiu aos elementos de prova em que se baseou para formar a sua convicção. Concluindo, nada há a apontar à decisão que foi tomada com base na prova produzida em que se baseou, prova à qual o tribunal conferiu credibilidade, porquanto desta resulta diretamente, e com certeza, que a arguida, embora afetada por todo aquele contexto praticou os factos de que vinha acusado, não existindo qualquer violação do princípio in dubio pro reo e nem da livre apreciação da prova. Concluindo, a decisão foi tomada com base na prova produzida, à qual foi conferida credibilidade, e da qual resulta com certeza, que a arguida praticou os factos de que vinha acusada. Decisão assente em premissas que se harmonizam num raciocínio lógico e coerente, explicitados os motivos por que foram valoradas positivamente determinadas provas e desconsideradas outras, sendo perfeitamente inteligível o itinerário cognoscitivo que conduziu à convicção do julgador e os meios de prova em que foi alicerçada essa convicção, também de acordo com as regras da experiência comum, através do privilégio da imediação e da oralidade, não havendo qualquer indício de que tal prova tenha sido erradamente valorada ou interpretada, não enfermando a decisão recorrida do apontado vício. Assim, e em síntese conclusiva, naufragando todas as pretensões da recorrente e não se mostrando violados quaisquer princípios ou preceitos legais ordinários, designadamente os invocados no recurso, terá o recurso que improceder, quanto a esta parte. Do enquadramento jurídico dos factos. Subsidiariamente sustenta a recorrente que, dado o estado em que se encontrava e em que a puseram a ofendida e a testemunha BB e cujo comportamento ético nos dispensamos de comentar, deveria ser dispensada de pena. Alega que “a mesma limitava-se a praticar actos de resposta para evitar a continuidade da agressão que estava a ser vítima. É um facto que a agressão não era física mas não podemos ignorar que era notoriamente psicológica, estamos a falar de actos premeditados; com a entrada de várias pessoas desconhecidas na habitação da Arguida; sem que esta concedesse qualquer autorização para o efeito; estando ainda presentes os familiares do seu falecido Marido, em número bastante superior às apenas 2 pessoas que a Arguida tinha de suporte; tendo aqueles aguardado a saída do ex-cunhado, a pessoa que tendo formação em direito, melhor podia ajudar a Arguida naquele momento; e além disso, ter a Arguida de lidar com 2 pessoas sempre atrás de si insistentemente a dizer que tinha que assinar se não iria ser pior; acompanhando para onde quer que fosse, aos gritos e numa enorme confusão; isto tudo, não obstante, o estado de notória fragilidade física psíquica e emocional da Arguida, bem latente e visível para todos aqueles que estavam presentes.” E conclui que neste estado de ânimo, “a Arguida fê-lo numa tentativa de afastar a agressão e ofensa psicológica grave que estava a sofrer naquele momento. E, portanto, quanto mais não fosse, deveria beneficiar assim do regime instituído da retorsão, nos termos do disposto no artigo 143.º n.º 3 alínea b) do Código Penal (CP).” De facto, a arguida em profundo estado de luto, desgastada e sob intenso stress emocional psíquico e físico, reagiu apertando com força os braços da ofendida, causando-lhe dor e um arranhão. Havia de facto uma ofensa psicológica relevante em termos penais que poderia, atendendo às consequências resultantes do apertão, reduzir-lhe em muito a sua culpa, justificando a dispensa de pena prevista no art. 143º, n º 3, al.b) do C.P. Contudo, não obstante a ofendida acompanhar BB, apurou-se que quem gritava e gesticulava e pressionava era BB, não se provou que a ofendida, embora estando junto de BB, tenha atuado da mesma forma e intensidade que aquele ou sequer que se tenha dirigido à arguida nos mesmos moldes daquele no momento em que foi agarrada. Por outro lado, a aplicação do instituto da dispensa de pena pressupõe, como o impõe o artº 74º, n º 3 do CP, que se verifiquem os requisitos contidos nas als. do seu nº 1, ou seja, a) a ilicitude do facto e a culpa do agente serem diminutas, b) o dano tiver sido reparado e c) à dispensa de pena se não opuserem razões de prevenção. Se é certo que não temos dúvidas sobre o preenchimento das als. a) e c), não se verifica a ocorrência da reparação do dano. A arguida não admitiu os factos, nem pediu desculpa, reparando de alguma forma a sua atitude. Para além do mais não se pode falar aqui de alguma culpa exclusiva ou repartida da ofendida para que tenha ocorrido o comportamento adotado pela arguida, afastando a exigência da reparação, pois como acima se disse a ofendida estava apenas a acompanhar BB e não era ela claramente quem detinha o comando da situação e quem se dirigia à arguida (palavras da própria arguida) “Mais referiu, a Arguida, aqui Recorrente, que a pessoa que tinha a atitude mais agressiva e hostil, e que a confrontava mais afrontosamente, e que a perseguia, com os documentos para assinar, mas sem explicar do que é que se tratava, e lhe exibia um cartão, supostamente identificação, que lhe passava à frente dos seus olhos, consecutivamente em movimentos repetidos da direita para a esquerda e vice-versa, sem nunca parar, de forma aqui a Arguida, ou outras pessoas, conseguissem ver o que se encontrava ali escrito, era o próprio BB, limitando-se a Ofendida CC a acompanhá-lo, pouco intervindo, vejamos: (24:32) Mandatária da Arguida: Então, a D. AA posso concluir que a senhora não se lembra, mas a ter feito alguma coisa apenas afastou a senhora D. CC de estar sempre nesse incómodo, nessa coacção que lhe estava a fazer... (24:43) AA: Sim, mas quem falava era o Sr. BB, não era a D. CC (24:47) Mandatária da Arguida: Mas ela abeirou-se de si? (24:49) AA: Não, eu só me lembro de os ver a falar para mim no corredor. (24:57) Mandatária da Arguida: Continuaram depois? (24:58) AA: Sim, o Sr. BB é que insistia que tinha de assinar. E depois lembro-me de ele ter dito não quer assinar, considere-se notificada.” Contudo, tendo presente que: a) A arguida foi ludibriada e enganada com o pedido da chave pela cunhada, cuja família já tinha todo um plano arquitetado para pressionar a arguida; b) A arguida se deparou dentro de sua casa com pessoas que a invadiram sem sua autorização ou consentimento e que não tinham o direito de ali estar; c) Tais pessoas, advogados, advogados estagiários, oficial de justiça e a ofendida, rapidamente a interpelaram com vários documentos e diziam que a mesma tinha que deles tomar conhecimento e assinar, fazendo-o em tom alto, elevado, exaltado e agressivo; d) A arguida estava sob profundo luto, desgastada e sob intenso stresse emocional, psíquico e físico; e) Acabava de participar nas cerimónias fúnebres do seu marido. Entendemos que o ato de apertar com força os braços da ofendida foi de quem queria que a deixassem em paz na sua casa e que dali saíssem e não mais a incomodassem, sentimento comum ao homem médio colocado na posição da arguida. Ora, a ilicitude encerra em si uma ideia de desvalor, de desaprovação da ordem jurídica. O comportamento da arguida não pode ser valorado de forma negativa em face do contexto em que ocorreu, sendo justificado. Em face do estado emocional da arguida (tudo ocorre no momento de chegada a casa após as cerimónias fúnebres), com invasão da sua privacidade e do seu domicílio, valores também assegurados em outros ramos do direito e estando perante uma situação que poderá configurar, além do mais, crime de violação de domicílio e de coação exercida para receber e assinar a notificação, estão reunidas as condições para enquadrar a ação da arguida no art. 31º, n º 1 do C.P., excluindo a ilicitude do seu ato, enquanto causa supralegal de justificação. Assim, pese embora a conduta da arguida tenha preenchido os elementos objetivos do crime de ofensa à integridade física privilegiada, dado que atuou ao abrigo de uma causa de exclusão da ilicitude, nos termos do preceito acima mencionado, a sua conduta não lhe pode ser imputada a título de dolo, em qualquer das suas modalidades, impondo-se a sua absolvição da prática do referido crime. E nessa medida não se pode dar como provado que sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei, passando o ponto 5 dos factos provados para os factos não provados. III. Decisão Nos termos e com os fundamentos expostos, acordam os juízes que compõem a 1ª secção criminal, em conceder provimento ao recurso da arguida e em revogar a decisão recorrida, absolvendo-a da prática do crime de que vinha acusada. Sem custas pela recorrente. Sumário ……………………………… ……………………………… ……………………………… Porto, 21 de junho de 2023 Paulo Costa Nuno Pires Salpico Paula Natércia Rocha (Elaborado e revisto pelo relator - artigo 94º, n.º 2, do CPP) _________________ [1] Relatado por Lopes da Mota no âmbito do Proc. n.º 388/15.9GBABF.S1 – 3.ª Secção, acessível in www.stj.pt (Jurisprudência/Acórdãos/Sumários de Acórdãos). [2] Relatado por Armindo Monteiro no âmbito do Proc. n.º 7/10.0TELSB.L1.S1 – 3.ª Secção, acessível in www.dgsi.pt. [3] Relatado por Eduarda Lobo no âmbito do Proc. n.º 9/14.7T3ILH.P1 – 1.ª Secção, acessível in www.dgsi.pt. |