Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
971/19.3T8PVZ.P2
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOÃO VENADE
Descritores: COMUNHÃO DE ADQUIRIDOS
BENS PRÓPRIOS
BENS ADQUIRIDOS NA CONSTÂNCIA DO CASAMENTO
NULIDADES DA SENTENÇA
ADMISSÃO DE DOCUMENTOS
Nº do Documento: RP20230615971/19.3T8PVZ.P2
Data do Acordão: 06/15/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ALTERADA
Indicações Eventuais: 3. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Não ocorre nulidade da sentença, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, d), do C. P. C., por omissão na pronúncia sobre determinada questão (admissão de documento) se, não tendo havido expressa admissão do documento, o tribunal apreciou e valorou o seu conteúdo, assim tendo implicitamente admitido o mesmo.
II - Igualmente não existe nulidade de sentença por oposição entre os seus fundamentos e a decisão (artigo 615.º, n.º 1, c), do C. P. C.) se se apura que determinado bem foi adquirido por um cônjuge com dinheiro que lhe pertence e depois, na decisão, por se seguir um determinado entendimento jurídico, se conclui que o bem não é próprio desse mesmo cônjuge.
III - A prova de que um bem, adquirido na constância de um casamento, contraído em comunhão de adquiridos, o foi com dinheiro pertencente em exclusivo a um dos cônjuges, não havendo interesses de terceiros, pode ser feita por qualquer modo.
III.I - Provada essa proveniência de dinheiro como pertencente em exclusivo a um dos cônjuges, o bem adquirido é um bem próprio desse cônjuge.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: 971/19.3T8PVZ.P2

João Venade.
Isabel Rebelo Ferreira.
Aristides Rodrigues de Almeida.

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1). Relatório.
AA, residente em ..., Toronto, Ontário, Canadá, com residência em Portugal na Rua ..., ..., Póvoa de Varzim, propôs contra
BB, residente em ..., Toronto, Ontário, Canadá, e com residência em Portugal na Rua ..., ..., Esposende,
Ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, alegando em síntese que:
- casou com a Ré, em segundas núpcias, em 27/08/2010, sem convenção antenupcial;
- em .../.../2017 o casamento foi dissolvido por divórcio;
- na constância do matrimónio, foram onerosamente adquiridos quatro imóveis - artigos ..., ..., Póvoa de Varzim (E), artigo ...78.º rústico, ..., Póvoa de Varzim, ... (AM), Póvoa de Varzim, ... e ..., concelho da Póvoa de Varzim e ... (AP), Póvoa de Varzim, ... e ..., concelho da Póvoa de Varzim;
- todos esses imóveis foram adquiridos com dinheiro do Autor já existente no seu segundo casamento;
- a Ré não teve qualquer participação financeira nas mencionadas aquisições;
- assim, nos termos do artigo 1723.º, do C. C., esse imóveis são bens próprios devendo ser excluídos da comunhão.
Termina pedindo que:
- se reconheça e declare que os imóveis acima indicados são bens próprios do Autor, excluídos do acervo patrimonial de comunhão do extinto casal formado por Autor e Ré;
- a Ré seja condenada a reconhecer a propriedade exclusiva do Autor sobre esses bens e seja condenada a abster-se de qualquer conduta que viole ou perturbe o exercício do referido direito de propriedade do Autor.
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Citada, contestou a Ré, alegando em síntese,
- na sentença de divórcio não foi fixada qualquer data relativa à separação de facto do Autor e da Ré pelo que, para efeitos patrimoniais, a data a considerar na partilha do património comum do extinto casal é a data da referida sentença (.../.../2017);
- grande parte do dinheiro auferido por ambos os membros do extinto casal foi investido na aquisição dos imóveis identificados nos autos;
- isso mesmo resultou provado no âmbito do processo de inventário n.º ...7, destinado à partilha do património comum do casal, que corre termos em cartório notarial;
- o Autor, ali cabeça-de-casal, apresentou relação de bens onde não relacionou aqueles bens, tendo havido reclamação pela Ré no sentido de serem aditados os mesmos;
- produzida prova, a notária, por despacho de 03/03/2019, julgou que não foi feita prova de que os supra mencionados bens imóveis foram adquiridos com dinheiro próprio do cabeça de casal e que, portanto, os mesmos, pertencem ao património comum do extinto casal;
- esse despacho não foi impugnado;
- o Autor manifestou aceitação da decisão por ter comparecido numa conferência preparatória;
- assim, a conduta do Autor constitui abuso de direito;
- o n.º 1 do artigo 17.º do Regime Jurídico do Processo de Inventário determina que se consideram definitivamente resolvidas as questões que, no inventário, sejam decididas no confronto do cabeça de casal ou dos demais interessados a que alude o artigo 4.º, desde que tenham sido regularmente admitidos a intervir no procedimento que precede a decisão, salvo se for expressamente ressalvado o direito às ações competentes;
- existe assim caso julgado;
Termina pedindo a procedência da exceção de caso julgado e a sua absolvição de instância ou, assim não sendo, a improcedência da ação.
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Tendo sido conferida oportunidade para o efeito, respondeu o Autor mencionando que:
- a decisão do incidente de reclamação de bens não transitou em julgado pois no âmbito do processo de inventário (Lei n.º 23/2013, de 05/03) a regra é a de que cabe recurso da sentença homologatória da partilha, devendo as decisões interlocutórias proferidas no âmbito do mesmo ser impugnadas no recurso que vier a ser interposto da sentença de partilha;
- a reclamação contra a relação de bens não é um incidente processado autonomamente;
- o que resultou provado nos autos de inventário, não transitado em julgado, foi que os bens imóveis em causa foram adquiridos na constância do extinto casamento, entendendo a notária que por isso têm, sem outras considerações, de ser mencionados na relação de bens;
- a notária ainda refere que não tendo sido invocadas outras fontes de rendimento (as frações AM e BO foram arrendadas após todas as aquisições) é de aceitar que pelo menos 147 000 EUR foram empregues na compra da fração «E», sendo que o destino do valor remanescente das tornas terá que ser provado em Juízo, por requerer indagação mais alargada;
- não houve assim a definitiva resolução da questão a dirimir nos presentes autos pois uma coisa são os bens adquiridos na constância do matrimónio terem que ser relacionados no âmbito do inventário por separação de meações, outra bem diferente é saber se os mesmos bens são comuns ou próprios de um dos cônjuges;
Pugna assim pela improcedência das exceções deduzidas.
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Em 20/06/2020 é proferido despacho saneador onde se conclui pela existência da apontada litispendência, absolvendo-se a Ré da instância.
Por decisão de 19/11/2020, tal decisão foi revogada pelo Tribunal da Relação do Porto, determinando-se o prosseguimento dos autos.
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É elaborado despacho saneador, indicando-se como objeto do litígio o teor dos pedidos e um resumo do alegado na petição inicial e contestação, e como tema de prova (após se elencarem os factos assentes), a proveniência das quantias empregues no pagamento do preço dos imóveis.
Realizou-se audiência de julgamento, tendo sido proferida sentença a julgar totalmente improcedente a ação.
Inconformado, recorre o Autor, formulando as seguintes conclusões:
«A. A imposição da fundamentação das decisões está consagrada no artigo 205.º da Constituição da República Portuguesa e no artigo 154.º do Código de Processo Civil, constituindo o princípio da motivação das decisões judiciais uma das garantias fundamentais do cidadão no Estado de Direito.
B. Conforme estatui o artigo 607.º, n.º 4 do CPC, a sentença deve conter a motivação da decisão de facto, com exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal e fundamentar tal decisão, sendo que o artigo 615º do CPC elenca as acusas da nulidade da mesma sentença.
C. Na verdade, a Julgadora “a quo” ao não se pronunciar (aceitação ou rejeição) sobre o requerimento apresentado pelo Requerente nos autos aos 13 de Dezembro de 2022, com a referência Citius 44144279, o qual recebeu do mandatário da Ré a devido resposta, aos 14/12/2022, referência Citius 44152230, pugnando pelo seu indeferimento, documento tido pelo Autor entende como essencial e fundamental para uma boa decisão da causa, e motivando, parcelarmente a sentença que ora se sindica, feriu de nulidade a mesma, ao abrigo do disposto na alínea d) do n.º 1 do artigo 615º do CPC, o que se invoca para todos os efeitos legais.
D. E de novo, ao existir clara contradição entre os factos dados como provados nos números 3, 14, 15 e 16 dos factos provados, dos quais resulta que o imóvel (FRAÇÃO E, T4, sito na ..., concelho da Póvoa de Varzim) foi adquirido pelo valor de 147.000,00€ que não foi colocado em crise, e que tal valor de compra foi pago unicamente com montante de tornas recebido pelo Autor resultante de divórcio anterior, ou seja, valor existente na esfera jurídica do Autor bem antes do novo casamento com a aqui Ré, entretanto dissolvido (tudo que resulta claramente dos factos provados números 14, 15 e 16), não poderia a Julgadora decidir senão que tal bem tinha que ser considerado bem próprio do Autor, tal qual resulta do Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 12/2015, proferido em 02 de Julho de 2015, conjugado com o artigo 1723º, n.º 1, alínea c) do CC. E não o fazendo, tornou a ferir a sentença ora sindicada de nulidade, ao abrigo do disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo 615º do CPC.
SEM PRESCINDIR,
E. E no que tange à alteração dos factos dados como não provados para provados, nomeadamente o elencado na alínea g), ou seja, deverá face à prova testemunhal e documental carreada para os autos ser dado como provado que “A totalidade dos preços dos imóveis identificados em 5) foram liquidados com dinheiros próprios do Autor, os quais estavam depositados na conta identificada em 17)”
F. E bastará atentarmos nas declarações, quer do Autor, quer ainda nos depoimentos das testemunhas CC e DD, para percebermos a motivação do pretendido pelo ora Autor Recorrente e ainda da consonância de todos eles na confirmação do apartamento e garagem identificados não n.º 5 dos factos Provados terem sido adquiridos com dinheiro próprio do Autor, adquirido antes do seu 2º casamento com a ora Ré.
G. Reiteramos e atente-se as declarações de parte do Autor, AA, referindo expressamente os seus bens próprios, indicando a forma de aquisição da compra da casa da ... (verba 3 dos Factos Provados), bem como identifica claramente a aquisição do apartamento e garagem (verba 5 dos factos Provados), referindo que estes da verba 5 encontravam-se titulados em nome da sua irmã EE, tendo este somente servido de “testa de ferro” do Autor, numa fase em que se encontrava separado da 1ª esposa, mas com o divórcio ainda não realizado, sendo que os valores que serviram de liquidação do empréstimo, encontravam-se também na conta da referida EE e haviam sido depositados antes do casamento do Recorrente com a ora Ré, tudo conforme resulta evidenciado nas seguintes passagens:
Minuto 01:12 ao minuto 03:00
Minuto 05:50 ao minuto 09:00
Minuto 28:20 ao minuto 30:10
H) Mais, se de igual modo, atentarmos nas declarações da testemunha CC, percebermos claramente que este testemunhou diretamente os factos invocados pelo Autor, afirmando convictamente que a sua esposa, irmã do Autor Recorrente, com a sua conivência, serviram de “testas de ferro” para que o Autor comprasse o apartamento e garagem referidos nas alíneas a) e b) do número 5 dos factos assentes, bem como para receber em suas contas dinheiro que o Recorrente enviava do Canadá, tudo na fase em que o Autor se encontra separado da 1ª mulher e ainda não obterá o divórcio da mesma, pelo que concluiu, e não o podia fazer de outra forma, que o referido apartamento e garagem foram pagos com dinheiros do Autor e a sua aquisição foi realizada antes do 2º casamento.
I) Testemunhou ainda que os dois imóveis (apartamento e garagem) ficaram titulados por escritura pública em seu nome e da sua mulher, EE, irmã do Autor Recorrente, afirmando que todos os impostos das duas frações eram pagos pelo Autor Recorrente, com início bem anterior ao seu casamento com a ora Ré.
J) E tal depoimento pode ser devidamente verificado na gravação do seu depoimento, (vide passagens) Minuto 05:00 ao minuto 11:30
Minuto 12:40 ao minuto 15:10
K) Por fim, MERITÍSSIMOS DESEMBARGADORES, atentemos ainda nas declarações da testemunha DD, sendo que este referencia neste seu depoimento que seu Pai era emigrante no Canadá, há mais de 30 anos, e que quando vinha a Portugal, após a separação da sua mãe, 1ª esposa do Autor Recorrente, este habitava sempre no apartamento da Póvoa de Varzim, utilizando a garagem do mesmo, correspondendo estas frações às identificadas nas alíneas a) e b) do n.º 5 dos factos Provados.
L) Mais testemunhou que embora tais frações estivessem em nome da Tia EE, as mesmas eram propriedade do Pai, ora Autor, sendo o pai que pagava o condomínio e todos os demais impostos das duas frações, testemunhando ainda que o pai colocara em nome da irmã, sua Tia EE, os valores que tinha dividido com a sua mãe, 1ª esposa do Autor, quando estes dividiram o dinheiro, bem antes da divisão do património de bens imóveis, pelos quais recebeu tornas no valor de 164.000,00€
M) Mais, testemunhou ainda que, a quando da “escritura de passagem da sua Tia EE e CC para o seu pai, das duas frações, o empréstimo foi pago pela Tia com o dinheiro que o pai tinha na conta da mesma proveniente da divisão de tais montantes com a sua mãe, 1ª esposa do Autor, ou seja, que tudo foi liquidado com montantes próprios do Autor e nunca provindos do 2º casamento com a ora Ré Recorrida.
N) Deste modo, e face a tais testemunhos e demais prova documental, não deveria ter deixado quaisquer dúvidas à Meritíssima Julgadora, da propriedade das duas frações identificadas no n.º 5 dos factos provados serem única propriedade do Autor, por terem sido adquiridas por dinheiro adquirido antes do vínculo conjugal entre Autor e ora Ré.
O) Assim, concluindo, deverá ser alterado o facto dado como não provado na alínea g), alterando nos seguintes termos: g) A totalidade dos preços dos imóveis identificados em 5) foram liquidados com dinheiros próprios do Autor, os quais estavam depositados na conta identificada em 17;
P) Mais, face aos factos dados como provados atentarmos nos números 3, 14, 15 e 16 dos factos provados da sentença recorrida, resulta que o imóvel (FRAÇÃO E, T4, sito na ..., concelho da Póvoa de Varzim) foi adquirido pelo valor de 147.000,00€, valor que não foi colocado em crise. E tal valor de compra, também como bem consta da douta sentença, foi pago unicamente com montante de tornas recebido pelo Autor resultante de divórcio anterior, ou seja, valor existente na esfera jurídica do Autor bem antes do novo casamento com a aqui Ré, entretanto dissolvido (tudo que resulta claramente dos factos provados números 14, 15 e 16).
Q) A sentença “a quo” violou assim o previsto no artigo 615º do CPC, e ainda fez errada interpretação do artigo 1723º, n.º 1, alínea c) do CC, já que em consequência.
R) Concludentemente, face à alteração da matéria de facto ora pretendida: g) A totalidade dos preços dos imóveis identificados em 5) foram liquidados com dinheiros próprios do Autor, os quais estavam depositados na conta identificada em 17, e ainda à matéria dada como provada nos autos, com a qual se concorda (números 3, 14, 15 e 16 dos factos provados) impõe-se revogar a decisão recorrida e ser reconhecido como pertencendo ao Autor e não à comunhão conjugal os imóveis identificados nos números 3 e 5 dos factos provados, o primeiro porque adquirido pelo valor de 147.000,00€, valor devidamente aceite como pertencendo unicamente ao Autor, por direito anterior ao casamento, e o da verba n.º 5 por resultar da matéria de facto que se pretende alterar.».
Termina pedindo a revogação da decisão recorrida.
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A recorrida apresentou contra-alegações, pugnando pela manutenção do decidido.
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As questões a decidir são:
- nulidades da sentença por falta de prolação de despacho de admissão de documento e ponderação do mesmo e por a decisão contrariar os fundamentos da mesma;
- apreciação da matéria de facto respeitante à prova de aquisição de imóveis, no decurso do casamento entre Autor e Ré, com dinheiro pertencente ao primeiro;
- consequência jurídica da prova de que determinado bem foi adquirido com dinheiro pertencente ao Autor – qualificação como bem próprio ou determinação de que esse valor será compensado na partilha -.
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2). Fundamentação.
2.1). Resultaram provados os seguintes factos:
«1. O Autor e a Ré casaram na Conservatória de Registo Civil de Esposende em 27 de Agosto de 2010, sem convenção antenupcial [alínea A) do despacho em referência e documento de fls. 9 e 10].
2. Por sentença proferida pelo Tribunal de Família e Menores do Tribunal Judicial da Comarca do Porto a 4 de Abril de 2017, transitada em julgado na mesma data, o casamento identificado em 1) foi dissolvido por divórcio [alínea B) do despacho em referência e documento de fls. 9 e 10].
3. Por escritura pública celebrada a 16 de Outubro de 2012, no Cartório Notarial da Dr.ª FF, sito na Praça ..., Póvoa de Varzim, GG e mulher HH declararam vender, pelo preço de €147.000, ao Autor e à Ré que declararam aceitar, a fração autónoma identificada pela letra “E”, correspondente a habitação tipo T4, com entrada pela Rua ..., de cave, rés-do-chão e andar, fazendo parte do prédio em regime de propriedade horizontal descrito na Conservatória do Registo Predial da Póvoa de Varzim sob o nº ...55/... e inscrito na matriz sob o artigo ...50 [alínea C) do despacho em referência e documento de fls. 10 vº a 12 vº].
4. A fração identificada em 3) encontra-se registada a favor do Autor e da Ré pela Ap. ...53 de 16 de Outubro de 2012 [alínea D) do despacho em referência e documento de fls. 13].
5. Por documento particular autenticado em 10 de Outubro de 2014, II, na qualidade de procurador de EE e marido CC, declarou, em nome dos seus representados, vender, livre de ónus e encargos, ao Autor, que declarou aceitar, pelo preço global de €99.000, sendo €90.000 e €9.000, respetivamente, já recebido:
a) a fração autónoma designada pelas letras “AM”, correspondente a habitação, tipo T3, sita no 4º andar, segundo bloco, com terraço
b) a fração autónoma designada pelas letras “BP”, correspondente a uma garagem identificada pelo nº 20, sita na cave, fazendo parte do prédio constituído no regime de propriedade horizontal descrito na Conservatória do Registo Predial da Póvoa de Varzim sob o nº ...52/Póvoa de Varzim, inscrito na matriz sob o artigo ...78 da União de Freguesias ..., ... e ... [alínea E) do despacho em referência e documento de fls. 16 a 19].
6. As frações identificadas em 5) encontram-se registadas pela Ap. ...83 de 14 de Outubro de 2014, em nome do Autor no estado de casado com a Ré, no regime de comunhão de adquiridos [alínea F) do despacho em referência e documento de fls. 19 vº e 21].
7. Existe um prédio rústico denominado “Bouça ...” com a área de 440 m2, composto de terra de ..., a confrontar de norte, poente e sul com JJ e nascente com caminho público descrito na Conservatória de Registo Predial de Póvoa de Varzim sob o nº ...22-... [alínea G) do despacho em referência e documento de fls. 91].
8. O prédio identificado em 7) encontra-se registado a favor da Ré, no estado de casada com o Autor, no regime de comunhão de adquiridos, com menção de compra a KK [alínea H) do despacho em referência e documento de fls. 91].
9. Por documento particular autenticado em 21 de Janeiro de 2014, a Ré, por si e na qualidade de procuradora de KK, com procuração com poderes irrevogáveis elaborada a 18 de Março de 2011, consentindo fazer negócio consigo mesma, declarou comprar ao seu representado e aceitar, pelo preço de €700, já entregue e recebido, livre de ónus e encargos, o prédio identificado em 7), inscrito na matriz sob o artigo ...78, da freguesia ..., concelho da Póvoa de Varzim, omisso na Conservatória de Registo Predial da Póvoa de Varzim, o qual viera à posse do vendedor através de escritura de doação e partilha em vida elaborada a 21 de Janeiro de 1972 no Cartório Notarial da Póvoa de Varzim, no Livro ...2 fls. 44 e seguintes [resposta ao artigo 22º da petição inicial].
10. A Ré requereu inventário que corre termos no Cartório Notarial da Dr.ª FF, sito na Praça ..., rés-do-chão, Póvoa de Varzim, sob o nº ... no qual o Autor desempenha as funções de cabeça de casal [alínea I) do despacho em referência e documento de fls. 46 a 74].
11. Na sequência da relação de bens apresentada pelo Autor, a Ré reclamou invocando a omissão, entre outros, dos imóveis identificados em 3), 5) e 7) [alínea J) do despacho em referência e documento de fls. 46 a 74].
12. O Autor respondeu que os imóveis foram adquiridos com dinheiro anterior ao casamento [alínea K) do despacho em referência e documento de fls. 46 a 74].
13. Após produção de prova, em 3 de Março de 2019, a Exmª Notária proferiu decisão concluindo “(…) no doc 1 junto à resposta do interessado datada de 4 de Junho, que consiste no extrato bancário da conta ...23 vê-se o seguinte:
a) em 10 de Outubro de 2012 foi lançado um crédito no valor de €164.000;
b) em 16 de Outubro de 2012, data da escritura da fração E, foi lançado um débito de €147.000;
c) ora, os valores correspondem, €164.000 ao valor do cheque [nº ...99] (…) e €147.000 ao valor do preço pago aos vendedores na escritura de aquisição da fração E.
Chega-se assim à mesma conclusão, de €147.000 de tornas recebidas pelo interessado terem sido empregues na fração E.
O destino do valor remanescente das tornas terá que ser provado em Juízo, por requerer indagação mais alargada” [alínea L) do despacho em referência e documento de fls. 46 a 74].
14. Em .../.../2012 no âmbito da partilha do primeiro casamento do Autor, este recebeu, a título de tornas, o montante de €180.000 [resposta ao artigo 8º da petição inicial].
15. Do valor referido em 14), em 10 de Outubro de 2012, o Autor depositou a quantia de €164.000 na conta solidária, onde também a Ré figurava como titular, nº ...23, sediada no Banco 1... [resposta aos artigos 9º da petição inicial e 8º da contestação].
16. Do valor referido em 15) o Autor utilizou o montante de €147.000 para pagamento do preço aludido em 3) através da emissão de cheque bancário debitado na aludida conta [resposta aos artigos 8º, 12º, 13º da petição inicial].
17. A conta identificada em 15) foi aprovisionada com a transferências dos seguintes montantes, provenientes do Canadá:
a) em 15 de Junho de 2010, €6.441,62;
b) em 17 de Agosto de 2010, €3.000;
c) em 30 de Novembro de 2010, €7.364,31;
d) em 20 de Dezembro de 2010, €2.500;
e) em 2 de Julho de 2012, €25.000;
g) em 20 de Novembro de 2012, €1.150;
h) em 23 de Setembro de 2014, €41.000 [resposta ao artigo 17º da petição inicial].
18. As frações identificadas em 5) encontravam-se oneradas com hipoteca voluntária constituída a favor do Banco 1..., S.A. registada pela Ap. ...99 de 6 de Abril de 2010 [resposta ao artigo 16º da petição inicial].
19. Em 26 de Setembro de 2014 o Banco identificado em 18) emitiu declaração de distrate da hipoteca [resposta ao artigo 16º da petição inicial].
20. Na data referida em 5) foi emitido cheque bancário no montante de €89.571,32 que movimentou a débito a conta identificada em 17), destinado a amortizar por completo o financiamento contraído, no interesse do Autor, em nome dos vendedores [resposta ao artigo 16º da petição inicial].
21. A Ré sabia da proveniência do montante referido em 16) [resposta ao artigo 21º da petição inicial].
22. No período compreendido entre as datas referidas em 1) e 2) Autor e Ré trabalharam no Canadá [resposta ao artigo 10º da contestação].
23. A Ré trabalhou como ama auferindo quantia não concretamente apurada [resposta ao artigo 11º da contestação].
24. O Autor recebia uma pensão mensal e trabalhava na construção civil, auferindo, respetivamente, as quantias semanais de 1.500 e 1.200 dólares canadianos [resposta ao artigo 12º da contestação].».
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E resultaram não provados:
a) o prédio identificado em 7) e 9) foi adquirido com o valor referido em 15);
b) o preço do prédio identificado em 7) e 9) foi de €2.500;
c) o valor referido em b) foi pago através do cheque nº ...91 descontado sobre a conta identificada em 17);
d) a Ré não fez qualquer participação financeira para a aquisição referida em 7);
e) a Ré não tinha património que lhe permitisse pagar fosse o que fosse;
f) o Autor remeteu para a conta os montantes identificados em 17) c) a h), que eram seus e anteriores ao seu segundo casamento;
g) a totalidade dos preços dos imóveis identificados em 5) e 9) foram liquidados com dinheiros próprios do Autor, os quais estavam depositados na conta identificada em 17);
h) nos momentos referidos em 3) e 9) não foi feita a declaração da proveniência do dinheiro para pagamento do preço por desconhecimento que poderia/deveria ser feita;
i) a ausência da Ré no negócio referido em 5) justifica-se por caber ao Autor a liderança das decisões patrimoniais e autonomia que radica na movimentação de capitais próprios;
j) a Ré trabalhava como empregada de limpeza;
k) a Ré auferia em média semanal 800 dólares canadianos ou cerca de €2.200/mês;
l) o casal, em média, recebia por mês €6.650 ou €79.800/ano;
m) no período referido em 22) o casal auferiu o montante global de, pelo menos, €532.000.».
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2.2). Do mérito do recurso.
A). Da nulidade da sentença por falta de prolação de despacho de admissão de documento.
O recorrente entende que a sentença é nula por o tribunal não ter proferido despacho a admitir a junção de documento efetuada em 13/12/2022, nulidade essa que existirá atento o disposto no artigo 615.º, n.º 1, d), do C. P. C. – pensamos que se apontando ao tribunal que omitiu o conhecimento de uma questão – falta de pronúncia sobre a admissão daquele documento -.
E assim seria se não tivesse sido admitido, de todo, o documento (veja-se Miguel Teixeira de Sousa, blogue do IPPC, 21/09/2021, in https://blogippc.blogspot.com, Ac. R. C. de 08/07/2021, rel. Moreira do Carmo, www.dgsi.pt). Não tendo sido antes proferido tal despacho, teria a sentença de mencionar se era ou não admitido.
No entanto, apesar de não ter havido expressa admissão do documento, tal como mencionado pelo tribunal recorrido,[1] houve uma admissão implícita pois o tribunal pronunciou-se sobre o teor do documento e valorou-o (página 10 da sentença) o que demonstra que aprovou a junção do documento e atentou no mesmo.
A falta de expressa admissão é compensada pela admissão implícita; se o tribunal não se tivesse pronunciado sobre o teor do documento, desconhecendo-se se não o tinha ponderado por não o entender relevante ou porque não tinha sido admitido, então a nulidade por omissão confirmava-se; mas tal, face à atuação do tribunal, acabou por não suceder.
No fundo, o tribunal realiza a atividade que o recorrente pretende: a admissão do documento e a sua valoração; se esta foi aquela que o recorrente entende que deveria ter sido efetuada é outra situação que infra será analisada.
Improcede assim esta argumentação.
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B). Dos factos provados 3, 14 a 16 e nulidade da sentença por preenchimento do disposto no artigo 615.º, n.º 1, c), do C. P. C..
Nos factos em causa menciona-se, em síntese, o seguinte:
3. aquisição, em 16/10/2012, por Autor e Ré, de fração autónoma «E», sito na Rua ..., Póvoa de Varzim;
14. recebimento pelo Autor, em 27/09/2012, no âmbito da partilha de bens do primeiro de 180.000 EUR a título de tornas;
15. desse valor, o Autor depositou, em 10/10/2012, 164.000 EUR, em conta solidária, onde também a Ré figurava como titular
16. e desse valor depositado, o Autor utilizou 147.000 EUR para pagar o preço de aquisição da fração referida no ponto 3.
Como o tribunal decidiu que o pedido do Autor de que se declarasse que aquela fração era um bem próprio, nos termos do artigo 1722.º, n.º 1, c), do C. C. era improcedente, apesar de resultar provado que o bem tinha sido adquirido pelo Autor/recorrente com dinheiro que lhe adveio de uma partilha de bens subsequente a divórcio, julgamos que o Autor/recorrente alega que existe oposição entre a decisão e o fundamento da mesma.
No despacho de admissão de recurso, o tribunal recorrido afirma que inexiste tal nulidade pois o que sucedeu foi que, por força da sua posição jurídica sobre esse tema, entendeu que o bem não era próprio (como se menciona na decisão recorrida, entendeu que o bem não podia ser considerado próprio, tendo antes existir uma compensação, a título de tornas, na partilha a efetuar por extinção do casamento celebrado com a Ré).
Concordamos com o tribunal recorrido quando afirma que não ocorre a apontada nulidade. Na verdade, dos factos em causa somente ressalta a celebração de um contrato de compra e venda (3), recebimento pelo Autor de uma quantia a título de tornas em sede de partilha (14), depósito de parte desse valor em conta bancária titulada por recorrente e recorrida (15) e uso deste último para aquisição do imóvel (16).
E na decisão entende-se que tal prova «não implica o reconhecimento do direito de propriedade exclusivo do Autor como bem próprio em sub-rogação real indireta, mas tão só a qualidade de credor do património comum no montante de € 147.000, dissolvido que se encontra o casamento desde 4 de Abril de 2017, já que a fração em causa foi adquirida com parte do produto da partilha posterior de património ilíquido sem que tivesse ficado a constar da escritura ou de qualquer outro documento equivalente tal proveniência.» Menciona-se ainda que «sendo o pedido formulado pelo Autor no sentido de ser reconhecido tal imóvel como bem próprio, atenta a proibição contida no artigo 609º nº 1 do Código de Processo Civil, está o Tribunal impedido de extrair as consequências da solução que adotou.».
Ou seja, o tribunal segue uma fundamentação que confere uma análise jurídica diferente daquela que o recorrente entende ser a correta, mas não resulta dos factos ou de qualquer parte da sentença que a decisão do tribunal se encaminhava para se considerar o bem como próprio e depois se acabe por decidir que não o é. O tribunal apenas analisa os factos e conclui, por uma vez, que não pode decidir que o bem é próprio nem que o Autor/recorrente é credor do património comum, e logicamente, decide pela improcedência do pedido.
Como referem Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, 2.º, 3.ª, páginas 736 e 737, a oposição entre fundamentos e decisão «não se confunde com o erro na subsunção dos factos à norma jurídica ou, muito menos, com o erro na interpretação desta: quando, embora o juiz entende que dos factos apurados resulta determinada consequência jurídica e este seu entendimento é expresso na fundamentação, ou dela decorre, encontramo-nos perante o erro de julgamento e não perante oposição geradora de nulidade; mas já quando o raciocínio expresso na fundamentação aponta para determinada consequência jurídica e na conclusão é tirada outra consequência, ainda que esta seja a juridicamente correta, a nulidade verifica-se.».
Como vimos, é a primeira situação referida nesta citação que pode ocorrer se se entender que os factos não permitem aquela conclusão jurídica, mas não a segunda pois nunca se elaborou um raciocínio que se possa considerar enganador.
Improcede assim esta argumentação.
*
C). Impugnação da matéria de facto.
Alínea g), dos factos não provados, que tem o seguinte teor:
A totalidade dos preços dos imóveis identificados em 5) e 9) foram liquidados com dinheiros próprios do Autor, os quais estavam depositados na conta identificada em 17).
Para nós, é algo patente que este facto está eivado de um juízo conclusivo pois ao mencionar-se que o preço de aquisição dos imóveis foi efetuado com dinheiro próprio do Autor está a elaborar-se um raciocínio que implica necessariamente uma análise jurídica: a classificação de um bem do Autor (dinheiro) como comum ou próprio pois tal depende do respetivo regime de bens em que o casamento foi celebrado.
No entanto, como se depreende que o que se quer retratar é a proveniência do dinheiro de aquisição dos bens em causa nos autos, aquele juízo conclusivo poderia ser retificado se a prova fornecesse elementos para tal (descriminando a origem do dinheiro que teria servido para adquirir os bens).
Vejamos então se os argumentos alegados pelo recorrente permitem essa alteração/retificação.
Os imóveis em causa são:
- fração autónoma «E», sito na Rua ..., Póvoa de Varzim, acima indicada;
- frações autónomas «AM» e «BP», do prédio constituído no regime de propriedade horizontal sob o nº ...52/Póvoa de Varzim;
- prédio rústico denominado Bouça ..., descrito na C. R. P. de Póvoa de Varzim sob o nº ...22-....
Em relação ao primeiro já vimos que se apurou que o mesmo foi adquirido com dinheiro que o Autor recebeu a título de tornas em partilha por dissolução de anterior casamento que tinha celebrado (factos provados 3, 14 a 16). Por isso, aquela conclusão de que não houve prova que todos os bens em causa, referidos em 5) e 9) não é alterada pois não se está a referir ao bem mencionado em 3).
No que respeita aos outros bens e que é a substância da impugnação, pensamos que não há razão para alterar o decidido.
Na verdade, o recorrente tinha de demonstrar que a presumida aquisição pelos dois membros do casal dos bens em causa (adquiridos na constância do casamento celebrado com a Ré/recorrida) tinha acabado por o ser só por si por ter sido efetuada com dinheiro que lhe pertencia em exclusivo – artigos 1724.º e 344.º, n.º 1, do C. C. -.
Ora, apesar do esforço do recorrente, pensamos que não conseguiu demonstrá-lo. É insuficiente para tal comprovar que numa conta solidária (marido e mulher) foram efetuados depósitos de quantias e que depois tais valores serviriam para adquirir os bens; é preciso demonstrar que tais valores provinham de atividades que fariam com que esses valores tinham de ser considerados bens próprios dos recorrentes (como sucedeu com a aquisição do imóvel referido no ponto 3).
Sabemos, como mencionado na decisão recorrida, que em relação às frações «AM» e «BP» - habitação e garagem, respetivamente -, houve o levantamento de quantias depositadas em conta para amortização de um empréstimo que visava a aquisição dos imóveis, sendo que o pagamento por Autor e, presumidamente, Ré, desse valor entroncaria numa outra situação:
- formalmente adquiridos em 10/10/2014 (facto provado 5), os bens teriam sido efetivamente adquiridos pelo Autor/recorrente em 2010, através da interposição da sua irmã e cunhado que declararam que eram eles que tinham adquirido os bens para si (EE e CC, este último com a qualidade de testemunha nos autos e que assim o referiu, como o fez o próprio Autor). Daí que, quando em 2014 o Autor e mulher declararam adquirir o bem, no fundo, estariam apenas a formalizar a compra que tinha sucedido anteriormente, sendo o preço a pagar não a entrega de dinheiro em troca da entrega dos bens, mas o pagamento do empréstimo que permitiu a extinção da hipoteca que incidia sobre os imóveis, desde 06/04/2010.
A data de constituição da hipoteca e respetivo distrate é referido no contrato de compra e venda, constante do documento n.º ..., junto com a petição inicial.
Sucede que, desde logo, na petição inicial o Autor não alega esta suposta simulação contratual que, a provar-se, poderia conduzir também à prova de que o bem tinha sido efetivamente adquirido pelo Autor ainda antes de ter casado com a Ré (casamento ocorrido em agosto de 2010). Na verdade, o Autor teria, simuladamente, obtido um empréstimo bancário em nome da sua irmã e cunhado, que assim entregava, formalmente o dinheiro emprestado a estes últimos mas, na realidade, a entidade bancária disponibilizava-o ao Autor e este, na posse real do dinheiro (e sua pertença – artigo 1144.º, do C. C.), teria pago o preço ao vendedor (que não sabemos quem terá sido). O empréstimo, em nome da sua irmã e cunhado, iria sendo pago pelo Autor à mesma irmã que, em 2014, seria integralmente pago.
Este terá sido o enquadramento mencionado em julgamento mas, repete-se, não foi matéria alegada nos autos pelo que, sendo factualidade que seria essencial para a prova de uma nova perspetiva da aquisição, diferente da simples alegação feita na petição inicial de que o imóvel foi adquirido em 2014 com dinheiro do Autor, não pode ser elencada nos factos, como corretamente não foi.
O que se tem então é, por um lado, a alegação de uma única compra e venda efetuada em 2014 e, em julgamento, a alegação de três negócios simulados (primeira compra e venda, empréstimo bancário e segunda compra e venda) para se procurar demonstrar a propriedade dos referidos imóveis somente e nome do recorrente.
Mesmo que se pudesse concluir que tinham ocorrido aquelas simulações contratuais, as mesmas não podiam ser elencadas nos factos, podendo eventualmente servir para reforçar ou descredibilizar a versão alegada. Mas, na nossa visão, com a prova produzida, não só não é possível concluir que aquelas simulações sucederam como não se consegue descortinar, com segurança, que o dinheiro alegadamente usado para pagar o empréstimo só pertencia ao recorrente.
Por um lado, para se considerar que o recorrente, em abril de 2010 tinha adquirido o imóvel, tínhamos que conhecer os contornos do empréstimo bancário, com audição de alguém com responsabilidade na sua concessão, que confirmasse a quem tinha sido efetivamente entregue a quantia mutuada; tal prova não foi efetuada.
Depois, por outro lado, a simulação surge relatada pelo próprio (só na fase de julgamento) e pelo seu cunhado, possível interveniente na mesma simulação pelo que, nos termos do artigo 394.º, do C. C., só se existisse um princípio de prova escrita que indiciasse o acordo simulatório é que o deposto por esta testemunha podia ser valorado.
Mas essa prova escrita não existe – não temos qualquer documento de onde se possa retirar que a primeira compra foi simulada – depósito de pagamento da quantia devida pelo empréstimo em conta da irmã/cunhado do Autor, com saída de dinheiro de conta do mesmo Autor, documento bancário de onde se retirasse que as condições necessárias para a obtenção de empréstimo eram as detidas pelo Autor, documento de pagamento do distrate da hipoteca em 2014 de onde resultasse a propriedade desse dinheiro, … -.
Assim, não só por estarem em causa declarações do próprio Autor (favoráveis a si próprio nesta versão) e de um alegado simulador e as mesmas poderem merecer reservas fortes sobre a sua veracidade (tanto mais que não terão servido para o Autor sustentar a sua versão numa petição inicial) mas também por não poderem servir para provar um acordo simulatório, as mesmas não podem ter uma valoração positiva.
E sobre a propriedade do dinheiro usado para pagar o preço de aquisição dos imóveis, o tribunal recorrido tem razão ao mencionar que, ocorrendo em 2014, num casamento celebrado em comunhão de adquiridos, não comunicando per si os extratos a origem do dinheiro que aí é depositado, ter-se-ia se buscar noutra prova a origem de tal dinheiro.
As declarações do Autor, no caso, não podem ser suficientes para tal pois assim estaria encontrada a forma de bastar o próprio para se demonstrar a matéria dos autos. Já nos pronunciamos anteriormente de noutra decisão sobre a ponderação das declarações de parte, no fundo, atribuindo-lhe um valor probatório que não tem de ser diminuído à partida, face à subjetividade que estará presente na sua produção, mas que têm que ser ponderados com cautela, a maior parte das vezes com necessidade de apoio noutro tipo de prova.
Na situação em análise, apenas temos a versão do Autor a afirmar que só ele auferia rendimentos, pouco trabalhando a Ré, referindo que os valores que serviram para pagar eram suas poupanças; contrapôs a Ré, alegando recebimento de dinheiro de seu pai e mencionando rendimentos com atividade a tomar conta de crianças e como empregada de limpeza, sendo que acaba por afirmar que desconhece os contornos do empréstimo para aquisição dos dois bens imóveis em causa.
Não é pela prova da Ré que temos dúvidas sobre a propriedade do dinheiro (também o depoimento da sua irmã, LL, em nada contribui para esclarecer aquele direito pois limitou-se a referir que a Ré tinha dinheiro dado pelo pai – de cuja entrega não existe a mínima prova -, e que compraram o apartamento à irmã do Autor, nada revelando saber sobre o que poderia estar por detrás desse negócio); mas será antes por o Autor não ter conseguido afastar a presunção de que um bem adquirido na constância de um casamento celebrado em comunhão de adquiridos é-o pelo casal (citado artigo 1724.º, do C. C.).
Como se defende na decisão recorrida, «a emissão de um cheque bancário no valor de €89.571,32 em 10 de Outubro de 2014: considerando a proximidade da data da autenticação do documento particular identificado no ponto 5) da fundamentação de facto, bem como a existência de hipoteca constituída em Abril de 2010 e o conteúdo do depoimento da testemunha CC, em nome de quem, juntamente com a esposa EE, foi constituído o financiamento para a respetiva aquisição, aquele montante será correspondente ao valor em dívida do financiamento, surgindo reforçada a ideia do pagamento das prestações de amortização na pendência do casamento, … mas não existe evidência que os valores que aprovisionaram a conta no antecedente dia 7 através da liquidação de três depósitos especiais nos montantes de €1.016,32, €23.139,03, €27.000 e uma aplicação denominada “poupança reforço prestige” no montante de €10.010,53 fossem exclusivamente do Autor…», tendo ainda o tribunal atendido na referida presunção de comunhão.
Assim, também concordamos que, quanto a estes dois imóveis, não há prova que tenham sido adquiridos com dinheiro exclusivamente pertencente ao Autor.
No que respeita ao prédio rústico, essa prova também inexistiu. O recorrente alegou na petição inicial que a sua aquisição, datada de 22/01/2014, ou seja, em plena vigência do casamento – documento n.º 5 junto a petição inicial e documento junto em 19/02/2021) foi paga através de um determinado cheque (n.º …...91) no valor de 2.500 EUR, mas em julgamento referiu que foi em dinheiro, «cash», que previamente levantou por ser assim que os vendedores queriam.
Não foi produzida qualquer prova sobre a origem do dinheiro – sejam os 700 EUR como declarado ou os 2.500 EUR como referido pelo Autor-; o referido cheque de 2.500 EUR data de 2012, desconhecendo-se à ordem de quem foi emitido pois não está nos autos, enquanto a compra é de 17/10/2014 (documento n.º 14) e a procuração do vendedor a favor da Ré é de 18/02/2011 (mesmo documento junto em 19/02/2021).
Temos valores discordantes, com datas de alegado pagamento de preço diferentes quer da contratualização do negócio quer da emissão de procuração pelo vendedor (mesmo que se aceite o que o tribunal recorrido sugere, que já estivesse em 2011 a compra e venda efetuada e paga, a transação datava de um ano antes da emissão do levantamento do cheque).
Por fim, o documento junto em 13/12/2022 (implicitamente admitido como acima mencionado, referente à partilha de bens do ex-casal formado por recorrente e recorrida, no Canadá) não esclarece nem quem era o dono do dinheiro com que os bens sitos no Canadá foram adquiridos, como menciona o tribunal recorrido, nem qual a origem da propriedade dos bens em causa nos autos, sitos em Portugal.
Por isso, também não nos convencemos de que tenha havido prova sobre a aquisição do prédio rústico com dinheiro exclusivamente pertencente ao recorrente.
Improcede assim a argumentação do recorrente sobre a alteração desta factualidade.
*
D). Da análise jurídica.
Na presente ação, a finalidade principal pretendida pelo Autor/recorrente era a de que fosse declarado que determinados bens, adquiridos na constância do casamento que celebrou com a Ré/recorrida, eram seus bens próprios por terem sido adquiridos com dinheiro que lhe pertencia em exclusivo.
O referido casamento foi celebrado no regime de comunhão de adquiridos (facto 1 e artigo 1717.º, do C. C.). Como tal, fazem parte da comunhão conjugal os bens adquiridos pelos cônjuges na constância do matrimónio, que não sejam excetuados por lei (artigo 1724.º, b), do C. C.). Entre essas exceções encontra a prevista no artigo 1722.º, n.º 1, c), do C. C. que determina que são bens próprios do cônjuge aqueles adquiridos na constância do matrimónio por virtude de direito próprio anterior.
O n.º 2, alínea a), do mesmo artigo, dispõe que «consideram-se, entre outros, adquiridos por virtude de direito próprio anterior, sem prejuízo da compensação eventualmente devida ao património comum, os bens adquiridos em consequência de direitos anteriores ao casamento sobre patrimónios ilíquidos partilhados depois dele.».
Por fim, continuam a ser bens próprios aqueles bens que, adquiridos na constância do casamento, o foram com dinheiro ou valores próprios de um dos cônjuges, desde que a proveniência do dinheiro ou valores seja devidamente mencionada no documento de aquisição, ou em documento equivalente, com intervenção de ambos os cônjuges – artigo 1723.º, c), do C. C. -.
No caso em análise, da prova resultou apenas que foi adquirido na constância do casamento (em 16/10/2012, conforme facto 3) um imóvel (referida fração E, sito na Rua ..., Póvoa de Varzim) e que o pagamento da totalidade do preço dessa aquisição foi efetuado com dinheiro que o recorrente recebeu a título de tornas, provindas da partilha de bens de um seu anterior casamento – factos 14 a 16 -.
Ou seja, em 27/09/2012 (facto 14) o recorrente recebe o valor de 180.000 EUR na sequência da divisão de bens que tinha de ser efetuada em face da dissolução de anterior (ao celebrado com a Ré) casamento que tinha celebrado. Efetuou-se assim a partilha de bens em que «somente» se concretiza como devem ser repartidos os bens já pertencentes, em comum, aos membros do ex-casal, definindo-se depois se se recebe um bem em concreto ou o seu respetivo valor.
Recebido este valor, o mesmo integra-se no património próprio do agora cônjuge no âmbito de outro casamento, mesmo que tal integração ocorra na pendência deste último casamento. A propriedade daquele valor advinha já antes da celebração deste novo casamento e antes da partilha que, como já dissemos, apenas é uma «concretização do direito anterior que não acrescenta nem diminui a posição jurídica que o titular já detinha. Assim, o bem em concreto que aparece de novo, depois do casamento, não é mais do que uma representação do valor que já estava no património do cônjuge adquirente antes do casamento e que, portanto, deve continuar no seu património exclusivo» - Francisco Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, Curso de Direito de Família, I, 4.ª páginas 513 e 514 -.
Por isso, aquele valor recebido a título de tornas, nos termos do artigo 1722.º, n.º 1, c e n.º 2, a), do C. C., era um bem próprio do recorrente. Depois este valor é usado, em parte (147.000 EUR) para aquisição, na pendência do casamento entre recorrente e recorrida, do indicado imóvel. E, mesmo sem se ter efetuado a declaração de proveniência do dinheiro no momento da aquisição (efetuada pelos dois cônjuges), o tribunal entendeu que o bem não era próprio do recorrente, ficando antes este com um crédito sobre o património comum.
Para nós, o que resulta do disposto no artigo 1723.º, c), do C. C. é que se um bem é adquirido com valor que pertence em exclusivo a um cônjuge, o bem assim adquirido é um bem próprio do mesmo cônjuge.
O que o citado (na decisão recorrida) Acórdão de Uniformização de Jurisprudência (A. U. J.) n.º 12/2015, de 02/07, D. R., I, de 13/10/2015 determinou foi que a prova da proveniência do dinheiro próprio não precisava de constar do documento de aquisição se não estivessem em causa interesses de terceiros mas somente os dos cônjuges[2].
Ora, esta questão, na apreciação jurídica, já se encontra ultrapassada pois o tribunal recorrido, ao valorar os meios de prova, entendeu que, apesar da proveniência do dinheiro não constar da escritura de compra e venda, o mesmo era um bem próprio do recorrente e que por isso tinha ocorrido a sub-rogação indireta de um bem próprio quando se comprou tal bem imóvel.
No fundo, numa situação até mais clara do que a vertida no citado A. U. J. (em que estava em causa a intervenção no contrato de aquisição de um só cônjuge), o tribunal recorrido, com recurso a outros meios de prova e numa situação em que não há notícia que haja terceiros envolvidos (credores) e em que não há outros interessados na partilha, concluiu que estavam reunidos os requisitos para o bem ser considerado como próprio do Autor.
O que sucede é que o tribunal recorrido não retira tal conclusão por ter um diverso entendimento o qual, a nosso ver, não encontra acolhimento na lei civil; esta determina que, provada a aquisição de um bem na constância de um casamento com dinheiro próprio de um dos cônjuges, o bem é próprio e não comum.
A menção ao entendimento de Rita Lobo Xavier sobre esta questão, que se pode analisar também na revista Julgar online, n.º 40 de 2020[3], prende-se com a sua visão de que, não resultando do documento aquisitivo a proveniência do dinheiro próprio do cônjuge, a consequência seria a de que o cônjuge que usou dinheiro próprio passaria a ser credor do património comum e a poder exigir a compensação no momento da partilha. É uma divergência de fundo com a solução proposta pelo referido A. U. J. mas, a nosso ver, não é aquela a seguir.
A discordância da referida Autora centra-se em que há sempre terceiros interessados pois o património comum visa também proteger os credores do casal que poderiam ver desaparecer bens com a solução ali defendida, além de que há sempre os herdeiros dos membros do casal que podem ser prejudicados com eventual manipulação dos atos de sub-rogação («O interesse dos terceiros paira sempre sobre as próprias relações intraconjugais, na partilha, mesmo que nenhuns terceiros nela tenham efetiva intervenção como «interessados diretos»).
No entanto, a lei define que os bens são próprios se forem adquiridos com dinheiro próprio de um dos cônjuges e se não estiverem efetivamente interesses de terceiros em causa quando se discute a qualidade do bem, não vemos como tal pode ser prejudicial a terceiros que não estão a ser, naquele momento, visados com o ato.
Se eventualmente se constatar que essa sub-rogação lesou direitos de terceiros, como menciona a mesma Autora (página 19 da publicação citada), podem sempre recorrer a procedimentos que visem anular essa lesão (impugnação pauliana, por exemplo).
Aliás, a declaração no título de aquisição da proveniência do dinheiro pode ela própria ser questionada, alegando-se que não foi verdadeira e que visou apenas lesar terceiros.
Por isso, o entendimento seguido no A. U. J., no caso concreto, não se nos afigura que não deva ser seguido; note-se que as críticas a tal decisão relacionam-se mais com outros aspetos: inexistência de fundamentos para ser proferido o Acórdão e este ter-se debruçado sobre uma questão que não podia pois estava em causa a celebração de um contrato por um único cônjuge em que o bem pertencia ao outro que não tinha intervindo (mesma obra de Rita Lobo Xavier e teor dos votos de vencido vertidos na mencionada decisão).
Deste modo, o bem em causa, por força da lei e por não estarem em causa interesses de terceiros, deve ser considerado bem próprio do Autor/recorrente, assim procedendo, nesta parte, o recurso.
Não há que condenar a Ré a reconhecer tal decisão pois a prolação da declaração de que o bem é próprio já inclui a obrigação de a Ré reconhecer tal decisão nem se condena a mesma Ré a ter de abster de qualquer conduta que viole ou perturbe o exercício do referido direito de propriedade do Autor pois não é alegada qualquer efetiva violação ou perigo que tal possa suceder e que tenha de ser sanada com tal decisão. Mais uma vez, ao declarar-se que o bem é próprio do Autor, à Ré já é comunicado que não pode violar esse direito sobre o imóvel, sendo assim pedidos aparentes, já contidos no primeiro pedido.
Quanto aos restantes bens, já mencionamos, e tal resulta da fundamentação de facto, que não houve prova da propriedade exclusiva do dinheiro pelo recorrente para os adquirir, pelo que se confirma a decisão recorrida nessa parte.
*
3). Decisão.
Pelo exposto, julga-se parcialmente procedente o presente recurso e, em consequência decide-se:
1). Declarar que o imóvel indicado no facto provado 3 (fração autónoma identificada pela letra “E”, correspondente a habitação tipo T4, com entrada pela Rua ..., de cave, rés-do-chão e andar, fazendo parte do prédio em regime de propriedade horizontal descrito na Conservatória do Registo Predial da Póvoa de Varzim sob o nº ...55/... e inscrito na matriz sob o artigo ...50)é bem próprio do Autor, estando excluído do acervo patrimonial de comunhão do extinto casal formado por Autor e Ré.
2). Confirmar a parte restante do decidido.

Custas do recurso a cargo de recorrente e recorrida, na proporção de ¾ e ¼, respetivamente.

Registe e notifique.

Porto, 2023/06/15.
João Venade.
Isabel Rebelo Ferreira.
Aristides Rodrigues de Almeida.
___________
[1] No despacho de admissão do recurso ao pronunciar-se sobre a nulidade.
[2] Estando em causa apenas os interesses dos cônjuges, que não os de terceiros, a omissão no título aquisitivo das menções constantes do art. 1723.º, c), do Código Civil, não impede que o cônjuge, dono exclusivo dos meios utilizados na aquisição de outros bens na constância do casamento no regime supletivo da comunhão de adquiridos, e ainda que não tenha intervindo no documento aquisitivo, prove por qualquer meio, que o bem adquirido o foi apenas com dinheiro ou seus bens próprios; feita essa prova, o bem adquirido é próprio, não integrando a comunhão conjugal.
[3] «Omissão das formalidades exigidas pela norma da alínea c) do artigo 1723.º do Código Civil para a sub-rogação real indireta de bens próprios no regime da comunhão de adquiridos: o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 12/2015 e as novas dimensões do problema.».