Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
276/16.1T8ETR-D.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOAQUIM MOURA
Descritores: REGULAÇÃO DO EXERCÍCIO DAS RESPONSABILIDADES PARENTAIS
GUARDA CONJUNTA
RESIDÊNCIAS ALTERNADAS
Nº do Documento: RP20230626276/16.1T8ETR-D.P1
Data do Acordão: 06/26/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – Com as alterações introduzidas no artigo 1906.º do Código Civil pela Lei n.º 65/2020, de 4 de Novembro, a lei passou a consagrar a residência alternada do filho menor com cada um dos progenitores sem vida em comum como solução preferencial;
II – Pretendendo o progenitor requerente a guarda conjunta com residência alternada e tendo, para tanto, alegado, além do mais, que tem com o filho um vínculo afectivo muito forte e é desejo mútuo de ambos o reforço desses laços, que passa por uma convivência mais estável e duradoura, não pode considerar-se o pedido infundado, ou desnecessária a alteração, e não deve determinar-se o imediato arquivamento do processo.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 276/16.1T8ETR-D.P1
Comarca de Aveiro
Juízo de Família e Menores de Estarreja

Acordam na 5.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto

IRelatório
AA, devidamente identificados nos autos, veio, por apenso aos autos de regulação do exercício das responsabilidades parentais que, sob o n.º 276/16.1T8ETR, correm termos pelo Juízo de Família e Menores de Estarreja, Comarca de Aveiro, requerer «Nova Regulação das Responsabilidades Parentais quanto ao menor BB», para o que alegou o seguinte (síntese):
No identificado processo, por sentença de 09.11.2017, que homologou acordo entre os progenitores, foram reguladas as responsabilidades parentais relativamente ao menor, seu filho e de CC, o qual ficou a residir habitualmente com a mãe, situação que, na altura, era a que melhor acautelava os seus interesses, atenta a sua idade (nasceu a .../.../2016).
Com vista a uma maior aproximação do BB ao pai e para que pudesse acompanhar o seu crescimento, ao regime fixado foram sendo introduzidas alterações, designadamente quanto ao regime de visitas.
O BB já completou 5 anos de idade e manifesta «um vínculo afetivo muito próximo» com o requerente e existe desejo mútuo de reforço desses laços através de uma vivência mais estável.
É do «superior interesse» do BB o direito a também viver com o pai, porque só favorece o seu desenvolvimento afetivo de forma sã e equilibrada, o que passa pela «fixação de um direito de guarda conjunta, com residência alternada dos dois progenitores, com períodos alternados de oito dias, ou seja, de Domingo a Domingo.
É o que por esta via requer, ao abrigo do disposto no artigo 1906.º, n.º 6 do Código Civil.
Citada, a requerida CC apresentou extensa alegação, em que além de contestar que estejam reunidos os pressupostos para a alteração do regime previstos no artigo 42.º do RGPTC, declara opor-se à pretensão do requerente, com os fundamentos que podemos sintetizar assim:
- não ocorreram, nem o requerente invoca, quaisquer circunstâncias supervenientes e de relevo que tornem necessário alterar a residência do menor e o regime estabelecido;
- tanto mais quando existe um quadro factual de conflito latente entre os progenitores, que torna desaconselhável fixar um regime de residência alternada ou de guarda partilhada;
- o regime actual, fixado no final de 2020, acautela o desenvolvimento de uma relação próxima do BB com o seu progenitor e que também tem em consideração o bem estar e o desenvolvimento físico e psicológico e emocional do menor, pois este não passa mais de dois dias seguidos sem o ver, à excepção do fim de semana que passa com a mãe;
- Setembro de 2019, quando se iniciou a fase de alargamento do regime de visitas, coincide com a pior fase comportamental do BB;
- sempre que o menor fica com o pai mais dias do que o habitual, a estabilidade que as rotinas diárias proporcionam desaparece, precisamente por só ter 5 anos de idade;
- a alteração para um regime de guarda conjunta, com residência alternada, importa para o BB ficar privado de ter actividades extracurriculares (desporto e/ou aulas de música);
- a requerida tem sido a sua principal cuidadora, o menor está inserido num ambiente familiar estável, que lhe transmite segurança e estabilidade emocional essencial ao seu desenvolvimento intelectual e afetivo e é do interesse do BB que esse ambiente se mantenha, o que não acontecerá com a guarda partilhada.
Em 23.06.2021, o Ministério Público expressou a sua concordância com o alegado pela requerida, nã0 vislumbrando «razões relevantes para a pretendida alteração ou que da mesma resulte benefício para a criança, sendo que o regime em vigor acautela devidamente os interesses desta», sublinhando, ainda, que o menor «está prestes a ingressar na escolaridade obrigatória necessitando de estabilidade e descanso que as conduções entre as duas localidades de residência dos progenitores não permitiriam», pelo que se pronunciou pelo indeferimento da alteração requerida.
Em 26.10.2021, foi proferida a seguinte decisão (reprodução integral):
«AA veio instaurar a presente acção de alteração da regulação das responsabilidades parentais contra CC, relativamente ao filho menor de ambos, BB, nascido a .../.../2016, pretendendo ver alterado o acordo de regulação do exercício das responsabilidades parentais homologado nos autos, requerendo a fixação de regime de residência alternada.
Alega, para tanto, que o menor tem na actualidade 5 anos de idade e que o regime anteriormente acordado entre os progenitores teve por pressuposto a pouca idade do filho e o facto de o menor ainda se encontrar a ser amamentado, entendendo o requerente que o regime agora proposto é o mais adequado ao superior interesse do filho, que apresenta consigo uma vinculação afectiva muito próxima e evidente cumplicidade.
A requerida progenitora veio apresentar oposição à alteração de regime, entendendo não estarem reunidos os pressupostos legais que possam fundamentar a alteração pretendida.
Também o Ministério Público, na sua douta promoção de 23/06/2021, promoveu o indeferimento liminar do requerimento apresentado, entendendo que o regime em vigor acautela os interesses da criança.
Devidamente notificadas as partes da posição assumida pelo Ministério Público, a requerida manifestou concordância, em consonância com a posição já assumida nos autos e o requerente pugnou pelo prosseguimento dos autos, fundamentando a sua pretensão com o superior interesse do menor (cfr. requerimento de 07/07/2021).
Cumpre apreciar se os autos devem prosseguir, atento o estatuído no artigo 42.º, n.ºs 1 e 4, do RGPTC, afigurando-se-nos, no caso, que o pedido apresentado é manifestamente infundado.
Com efeito, dispõe o artigo 42.º, n.º 4, do RGPTC que: “(…) o juiz, se considerar o pedido infundado, ou desnecessária a alteração, manda arquivar o processo, condenando em custas o requerente”.
No caso dos autos, verifica-se que a regulação do exercício das responsabilidades parentais relativamente ao menor BB foi realizada por acordo entre os progenitores, devidamente homologado por decisão proferida em 09/11/2017.
Nesse acordo ficaram vertidas as vontades das partes, ambas cientes de que nesse acordo – devidamente homologado – ficaram reguladas as responsabilidades parentais relativamente ao filho de ambos, inexistindo qualquer correspondência de que tinha como pressuposto a pouca idade do menor ou o facto de se encontrar a ser amamentado.
Alega o requerente que o crescimento da criança e a vinculação que o filho apresenta consigo justifica a alteração do regime nos termos propostos no requerimento inicial, por ser o mais adequado ao superior interesse do filho. Cremos, todavia, salvo o devido respeito, que tal invocação não tem qualquer concretização que permita descortinar que assim seja, sendo que o superior interesse da criança tem de se suportar em factos reais da vida do menor, que permitam ser devidamente apreciados pelo Tribunal, para que possa concluir-se pela viabilidade da pretensão, o que, no caso dos autos, não tem qualquer concretização fáctica, pelo que se impõe concluir pela irrazoabilidade dos fundamentos do pedido, não resultando alegada qualquer factualidade superveniente que determine a alteração do regime em vigor (com efeito, da petição inicial não resulta que tenha ocorrido qualquer alteração da vinculação da criança quer com o pai, quer com a mãe e, por outro lado, inexiste qualquer factualidade que possa ser sujeita a apreciação por parte do Tribunal e que permita suportar que a mudança de regime será o mais adequado para acautelar o superior interesse da criança).
Face ao que se deixa exposto, atendendo a que nenhuma circunstância superveniente foi alegada que permita fundamentar a alteração pretendida, é forçoso concluir inexistir qualquer alteração de circunstâncias supervenientes, sendo manifesta a irrazoabilidade do pedido formulado.
Assim, nos termos do disposto no artigo 42.º, n.º 4, do RGPTC, julga-se o pedido de alteração do exercício das responsabilidades parentais apresentado pelo progenitor manifestamente improcedente e infundado, determinando-se o arquivamento dos autos.
Custas a cargo do requerente, fixando-se o valor da acção em € 30.000,01.»
Inconformado com o decidido, em 18.11.2021, o requerente interpôs recurso de apelação, com os fundamentos explanados na respectiva alegação, que condensou nas seguintes conclusões[1]:
1 – A sentença em apreço que determinou o arquivamento dos autos, considerando que o pedido de guarda conjunta com residência alternada do menor BB é irrazoável e manifestamente infundado, por não terem sido alegas circunstâncias supervenientes que o justificasse, não atendeu à nova redação dada ao artigo 1906º, nº 6 do Código Civil que veio trazer novas conceções no sentido da consensualização da doutrina jurisprudencial quanto à admissibilidade da fixação da residência alternada.
2 - Esta alteração veio acrescentar o previsto no nº 6 do artigo 1906º do CC que estabelece o exercício das responsabilidades parentais definindo que “quando corresponder ao superior interesse da criança e ponderadas todas as circunstâncias relevantes, o tribunal pode determinar a residência alternada do filho com cada um dos progenitores, independentemente de mútuo acordo nesse sentido e sem prejuízo da fixação da prestação de alimentos»
4 - E, veio acrescentar o nº 9 que determina que o “Tribunal procede à audição da criança, nos termos previstos nos artigos 4º e 5º do RGPTC.
5 - Com esta alteração legislativa pode ser determinada a residência alternada das crianças sempre que isso corresponda ao superior interesse do menor, independentemente, de haver mútuo acordo entre os progenitores, ponderadas todas as circunstâncias relevantes e procedendo-se à audição da criança.
6 - Não estão em causa, circunstâncias supervenientes, mas sim circunstâncias relevantes que vão ao encontro do superior interesse do menor, sendo que a residência alternada é a que se encontra mais próxima da vivência em comum entre os progenitores e filhos e melhor promove as vantagens daí resultantes para a criação, desenvolvimento e solidariedade dos vínculos afetivos próprios da filiação. Neste sentido, Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa, de 02-06.2020, Processo 6334/16.5T8LRS-A-2, in www.dgsi.pt.
7 – O regime anteriormente vigente, foi inicialmente fixado tendo em conta a pouca idade do menor, que ao tempo em que foi requerido, contava poucos meses de idade não se opondo o requerente que o mesmo ficasse a residir com a mãe, ciente da jurisprudencial e doutrinal maioritária, que impunha não só o acordo dos progenitores e a falta de conflitos, como dava prevalência à figura materna entendendo, igualmente, o requerente que ao tempo e tal correspondia ao superior interesse do menor.
8 -Independentemente do regime mais alargado de convívios que veio a ser fixado, o certo é que, o menor continua a residir com a mãe, mantendo o foco centrado na figura materna e com uma maior distância face à figura paterna.
9 - Entretanto, o menor BB já completou em março passado 5 anos de idade e manifesta com o requerente, um vínculo afetivo muito próximo, existindo entre ambos uma evidente cumplicidade e desejo de reforço desses laços através de uma vivência mais estável.
10 - O BB revela estar vinculado de forma igual, embora diferente, a cada um dos seus progenitores.
11- Está bem quando está com o pai e está bem quando está com a mãe.
12 - O que demonstra que quer o pai, quer a mãe, e não obstante algumas divergências entre si, têm conseguido agir sempre em prol das necessidades do BB, estando à margem dessas divergências.
13 - Aliás, ainda muito recentemente o BB passou uma semana na altura da Páscoa com o pai, assim como tem passado uma semana de férias de Verão também com o pai, o que acontece de forma natural, sem qualquer problema de adaptação a um maior tempo de permanência com o pai.
14 - O BB é uma criança feliz, bem-disposta e revela afeto e carinho em relação a ambos os pais.
15 - Sendo do superior interesse do BB o direito a também viver com o pai, porque só favorece o seu desenvolvimento afetivo de forma sã e equilibrada
16 – Estas foram as circunstâncias relevantes alegadas pelo requerente, enquanto pai, para justificar o seu pedido de guarda conjunta, com residência alternada dos dois progenitores, com períodos alternados de oito dias, ou seja, de Domingo a Domingo.
17 – Pois que, só a residência alternada irá de encontro ao superior interesse do menor e fará com que a distância paternal se elimine, passando o menor a ter ambas as figuras, materna e paterna, como centrais na sua vida.
18 – Mas que a Mma Juiz a quo sufragando o entendimento da Senhora Procuradora, entendeu ser um pedido irrazoável, manifestamente improcedente e infundado como expressamente consta da sentença, por entender não terem sido alegadas circunstâncias supervenientes.
19 – Atendo-se unicamente à redação do nº 1 do artigo 42º do RGPTC que não foi alterado no que diz respeito às circunstâncias relevantes e não supervenientes, decorrente da nova redação do artigo 1906º do Código Civil, sendo que, a Lei se sobrepõe ao Regulamento.
20 – A sentença revisenda ao determinar o arquivamento dos autos é, quiçá, preconceituosa e discriminatória e concretizada ao arrepio quer do critério legal de facilitação do convívio do menor com ambos os progenitores quer do mandato atribuído pela Lei ao Tribunal para avaliar efetivamente e em concreto os interesses do menor em causa.
21 – Para além disso, estamos na presença de um processo de jurisdição voluntária nos termos do disposto no artigo 988º do CPC o qual permite a alteração das anteriores resoluções quando está em causa “…outro motivo ponderoso”, cfr segunda parte do nº 1. E outro motivo ponderoso tal como alegou o requerente é o superior interesse do menor BB.
22 – A sentença revisenda, fez uma incorreta interpretação e aplicação da lei, nomeadamente, do artigo 1906º, nºs 6 e 9 do Código Civil, e artigo 42º do RGPTC e artigo 988º do CPC,
23 – Impondo-se, deste modo a sua revogação e ordenando-se o prosseguimento dos autos com observância do disposto nos artigos 35º a 40º do RGPTC e o disposto no nº 4º e 5º do RGPTC, em cumprimento do disposto no nº 9 do artigo 1906º do Código Civil»
Quer a requerida, quer a digna Magistrada do Ministério Público contra-alegaram, pugnando pela confirmação do decidido.
O recurso foi admitido (com subida imediata, nos próprios autos do apenso e com efeito devolutivo) por despacho de 20.12.2021[2].
Dispensados os vistos, cumpre apreciar e decidir.

Objecto do recurso
São as conclusões que o recorrente extrai da sua alegação, onde sintetiza os fundamentos do pedido, que recortam o thema decidendum (cfr. artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil) e, portanto, definem o âmbito objectivo do recurso, assim se fixando os limites do horizonte cognitivo do tribunal de recurso. Isto, naturalmente, sem prejuízo da apreciação de outras questões de conhecimento oficioso (uma vez cumprido o disposto no artigo 3.º, n.º 3 do mesmo compêndio normativo).
A requerida, logo na sua alegação inicial, suscitou, como “questão prévia”, a inadmissibilidade da alteração da regulação das responsabilidades parentais. No que, aliás, foi secundada pelo Ministério Público.
Em sede de recurso, reafirma o seu ponto de vista, alegando que não se verifica nenhum dos pressupostos de que a lei (artigo 42.º, n.º 1, do RGPTC) faz depender o pedido de alteração.
Essa é a questão a apreciar, uma vez que a posição da requerida foi, lestamente, acolhida pelo tribunal: se se justifica o arquivamento imediato por manifesta falta de fundamento do pedido.
Importa sublinhar este ponto: não se trata aqui de apreciar e decidir se é de alterar o regime em vigor e aplicar a guarda partilhada com residência alternada, mas se era de excluir, liminarmente, essa possibilidade.

IIFundamentação
1. Fundamentos de facto
Os factos e as vicissitudes processuais a ter em conta para o julgamento do recurso são os constantes do antecedente relatório.
2. Fundamentos de direito
Entrando na apreciação da questão de direito submetida à apreciação deste tribunal de recurso, convém começar por lembrar que os processos tutelares cíveis são processos de jurisdição voluntária (artigo 12.º do RGPTC) e um dos princípios característicos destes processos, que a lei expressamente consagra, é o de que as decisões neles proferidas não formam caso julgado[3], pois podem ser alteradas em qualquer altura se ocorrerem circunstâncias supervenientes que justifiquem a alteração (cfr. artigos 988.º, n.º 1, do Cód. Proc. Civil e 42.º, n.º 1, do RGPTC), quer a superveniência seja objectiva, isto é, tenham os factos ocorrido posteriormente à decisão, quer seja subjectiva, ou seja, quando os factos são anteriores à decisão mas não tenham sido alegados por não serem conhecidos por quem tinha interesse na alegação.
No processo de regulação do exercício das responsabilidades parentais, o regime inicialmente fixado por acordo ou por decisão do tribunal pode ser alterado sempre que (citado artigo 42.º, n.º 1):
- haja incumprimentos de ambos os progenitores ou
- circunstâncias supervenientes tornem necessária a alteração.
O requerente invocou um conjunto de circunstâncias que, na sua perspectiva, justificam a alteração para um regime de guarda conjunta com residência alternada.
Porém, a sua pretensão não passou da fase inicial porque foi determinado o imediato arquivamento do processo por se ter considerado que eram irrazoáveis os fundamentos do pedido, juízo negativo que está assim justificado:
- do requerimento inicial não resulta que tenha ocorrido «qualquer alteração da vinculação da criança quer com o pai, quer com a mãe»; e
- inexiste qualquer factualidade que possa ser sujeita a apreciação por parte do Tribunal e que permita suportar que a mudança de regime será o mais adequado para acautelar o superior interesse da criança.
Importa começar por lembrar que, quando foi regulado o exercício das responsabilidades parentais (em 09.11.2017), o menor BB ainda estava longe de completar dois anos de idade e, estando a ser amamentado, como sensatamente refere o recorrente, nem sequer seria de equacionar outra hipótese que não fosse confiá-lo à guarda única da progenitora.
Em Dezembro de 2020, o regime foi alterado, alteração que se centrou no regime de visitas, permitindo que houvesse maior convivência entre pai e filho ou, como alegou o requerente, «com vista a uma maior aproximação do BB ao pai» e que a este fosse possível acompanhar mais de perto o seu desenvolvimento.
Justifica-se que se altere, novamente, o regime no sentido de uma, ainda, maior convivência entre pai e filho e que só a guarda partilhada proporcionará?
Não deve ser sobrevalorizada a circunstância de o pedido ter sido formulado poucos meses depois dessa alteração, até porque a necessidade ou conveniência de uma nova alteração pode ter surgido como consequência dessa mais intensa convivência.
Mas o que o recorrente pretende é, está bem de ver, uma alteração substancial, profunda, pois traduz-se em passar da guarda unilateral da mãe para a guarda partilhada, com residência alternada do menor em casa de cada um dos progenitores.
Ninguém contesta que, salvo situações excepcionais, é necessária e positiva a manutenção do envolvimento activo de ambos os progenitores no acompanhamento do desenvolvimento da criança, apesar da ruptura (ou inexistência) de vida em comum, revelando-se errada e ultrapassada a ideia de que a mãe é sempre a única “figura de referência” no processo de crescimento do(s) filho(s).
Suscitava polémica a questão dos termos em que devia concretizar-se esse envolvimento. Mais exactamente, discutia-se a admissibilidade, face ao quadro normativo então vigente, da guarda alternada, com residência também alternada.
Não suscitava já qualquer reserva o entendimento de que, havendo acordo dos progenitores e sendo a solução que melhor acautelava os superiores interesses da criança, nada obstava a que se fixasse esse regime em caso de rompimento da vida em comum pelos progenitores.
O âmago da discussão estava nos termos em que a fixação da residência alternada da criança era admissível, mais precisamente, a questão estava em saber se para se estabelecer esse regime era imperioso o acordo dos progenitores e a inexistência de conflituosidade entre eles, como defendia uma corrente doutrinária[4], com eco na jurisprudência[5], que buscava na letra da lei (n.os 3 e 5 do artigo 1906.º do Código Civil) a sua base de sustentação.
Contrariando esse entendimento, três estudos publicados em 2017 e 2018 [um, de Pedro Raposo de Figueiredo, “A residência alternada no quadro do actual regime de exercício das responsabilidades parentais – A questão (pendente) do acordo dos progenitores”, in Revista “JULGAR” n.º 33, Set./Dez. de 2017, págs. 89 e segs., outro, de André Lamas Leite – “O artigo 1906.º do Código Civil e a (in)admissibilidade do regime de guarda (e residência) alternada dos menores” in Revista do Ministério Público n.º 151, Jul/Set. de 2017, págs. 123 e segs., e o terceiro de Ricardo Jorge Bragança de Matos – «A “presunção jurídica de residência alternada” e a tutela do superior interesse da criança» in Revista do Ministério Público n.º 156, Out/Dez. de 2018, págs. 123 e segs.) convergiam na conclusão de que, mesmo sem o consenso entre os progenitores, nada obstava a que o tribunal decidisse a favor da guarda alternada, com residência alternada.
Na jurisprudência, apesar de prevalecer o entendimento contrário, começava a impor-se a orientação no sentido da dispensa do consenso dos progenitores[6].
Essa controvérsia foi ultrapassado com as alterações introduzidas no artigo 1906.º do Código Civil pela Lei n.º 65/2020, de 4 de Novembro, que consagrou a residência alternada do menor como solução preferencial, ao estabelecer no n.º 6 da actual versão que «Quando corresponder ao superior interesse da criança e ponderadas todas as circunstâncias relevantes, o tribunal pode determinar a residência alternada do filho com cada um dos progenitores, independentemente de mútuo acordo nesse sentido e sem prejuízo da fixação da prestação de alimentos
O ponto essencial está, então, na definição da solução que melhor acautela o interesse da criança, se pode dizer-se que a solução da residência alternada é a mais conveniente no processo de construção da personalidade da criança e no seu desenvolvimento harmonioso.
A decisão recorrida nem sequer permitiu que no processo se debatesse essa questão, ao considerar-se irrazoáveis os fundamentos invocados pelo requerente (embora, logo de seguida, se corrigisse dizendo que nada de concreto fora alegado).
A idade da criança tem servido de argumento para defender a inadequação da guarda alternada, propugnando-se até o estabelecimento de limites mínimos, fora dos quais esse regime não seria admissível[7]. Entendimento que segue na esteira das teses de Maria Clara Sottomayor, segundo a qual «a guarda partilhada é desaconselhada para crianças até aos 10 anos, sobretudo nos primeiros 4 anos de vida», para o que invoca “a investigação científica» (Código Civil Anotado, Livro IV, Direito da Família, Almedina, 2020, anotação ao artigo 1906.º, pág. 925).
Outra solução que não seja a fixação de residência única resultaria na criação de uma ambivalência afectiva e de um conflito de lealdade no espírito da criança, prejudicando a consolidação de hábitos e a aquisição de padrões comportamentais e de identidade, sendo susceptível, por isso, de lhe provocar instabilidade emocional e psíquica (é esse o cerne da argumentação expendida pela requerida progenitora na sua alegação inicial, ao atribuir «a pior fase comportamental do BB» ao início da fase de alargamento do regime de visitas, sem ter em conta que é normal que uma alteração como essa, de início, cause alguma perturbação).
Não se nega que, nos primeiros anos de vida da criança, exista uma maior dependência da mãe (sobretudo quando esta amamenta o filho), mas isso não constitui razão bastante para afastar a residência alternada em caso de separação dos pais.
Aliás, existem estudos credíveis que põem em crise essa ideia da preferência maternal para crianças de tenra idade[8].
Por outro lado, em contraponto à ideia de que é de arredar a solução da residência alternada nos casos em que os progenitores têm uma relação conflituosa e não cooperante, argumenta-se que esse regime é o que melhor permite a preservação da relação da criança com ambos os pais e de estes com aquela em termos o mais aproximado possível aos existentes antes da quebra da convivência conjugal, potencia a diminuição do conflito parental e a prevenção da violência na família pela colocação dos progenitores em pé de igualdade, a repercussão, após a separação, do esquema de cuidados parentais praticado antes, a qualidade da relação progenitor-criança, potenciando, ainda, a promoção de soluções consensualizadas.
Não falta até quem defenda, não sem fundamento, que, havendo conflito entre os progenitores, a guarda exclusiva agrava-o, expondo as crianças a situações de stress e gerando sérios problemas de desenvolvimento emocional e cognitivo.
A opção pela guarda alternada, com alternância de residência do menor, exige uma relação de respeito mútuo entre os progenitores, mas não requer que haja amizade ou, sequer, harmonia entre eles.
Dito isto, é tempo de enfrentar a questão fundamental de saber se, realmente, como afirmou o tribunal, o requerimento inicial é completamente omisso quanto a factos concretos que permitam ao tribunal ajuizar se a guarda conjunta com residência alternada é a solução que melhor serve o interesse do menor, se é a mais conveniente no processo de construção da personalidade do BB e no seu desenvolvimento harmonioso.
A recorrida aplaude a decisão em crise que assim se pronunciou e, em apoio, invoca o acórdão da Relação de Lisboa de 09.09.2021 (Proc. nº 478/20.6T8PRD-B.P1), em que se escreveu que «apesar da natureza de jurisdição voluntária de tais processos, as partes não estão dispensadas de alegar os factos essenciais que fundamentam a sua pretensão».
Temos para nós que essa proposição do aresto citado é arrimo, não para a decisão recorrida, mas para decisão de sentido inverso.
Como é bem sabido, uma das características do processo de jurisdição voluntária, como é o processo tutelar cível, é a de que o princípio do inquisitório prevalece sobre o do dispositivo e por isso o âmbito de cognição do tribunal não está limitado pelo que alegam as “partes” (sobre as quais não recai propriamente um ónus de alegação), antes podendo ter em consideração outros factos (complementares, concretizadores, etc.) que advenham ao seu conhecimento em resultado de diligências probatórias da sua iniciativa.
Ora, pode dizer-se que o requerente verteu no requerimento inicial factos essenciais como suporte da sua pretensão.
Alegou que o menor BB revela, do mesmo modo, afecto e carinho pelo pai e pela mãe; sente-se bem na companhia da progenitora como na do progenitor; que estes, apesar das divergências, têm conseguido superá-las e dar primazia às necessidades do filho; tanto assim que, ainda recentemente o BB passou com o pai uma semana na época da Páscoa, tal como tem acontecido nas férias de Verão, e tudo tem acontecido de forma natural, sem qualquer problema de adaptação a um maior tempo de permanência com o pai.
Mais importante ainda, entre o BB e o progenitor existe um vínculo afectivo muito forte e é desejo mútuo de ambos o reforço desses laços, que passa por uma convivência mais estável e duradoura.
São esses factos e outros, complementares e/ou concretizadores, que importa averiguar pelos meios previstos nos artigos 38.º e 39.º do RGPTC.
Como se ponderou no acórdão da Relação de Lisboa de 24.01.2017, «V - Havendo disponibilidade e condições de ordem prática e psicológica de ambos os pais, e não havendo circunstâncias concretas que o desaconselhem, a guarda/residência conjunta é o instituto com melhor aptidão para preservar as relações de afeto, proximidade e confiança que ligam o filho a ambos os pais, sem dar preferência à sua relação com um deles, em detrimento do outro, o que necessariamente concorrerá para o desenvolvimento são e equilibrado do menor e melhor viabilizará o cumprimento, por estes últimos, das responsabilidades parentais
Mas, mais que a vontade dos progenitores, é decisiva a vontade do menor e há que apurar se, realmente, ele quer partilhar a residência com o pai, se estão reunidas as condições subjectivas para que isso aconteça.
Por isso o n.º 9 do artigo 1906.º do CC manda que o tribunal proceda à audição da criança, nos termos previstos nos artigos 4.º e 5.º do RGPTC.
O BB já completou sete anos de idade e já terá capacidade suficiente para compreender o que está em causa e expressar, genuinamente, a sua vontade. Ponto é que o faça sem qualquer tipo de constrangimento.
Concluindo, ressalvado o devido respeito por opinião divergente, é nosso entendimento que o processo deve prosseguir para apurar esses factos e, na posse de todos os dados relevantes, decidir se a guarda conjunta, com residência alternada, é a solução que melhor serve o interesse do menor.

III - Dispositivo
Pelo exposto, acordam os juízes desta 5.ª Secção Judicial (3.ª Secção Cível) do Tribunal da Relação do Porto em julgar procedente a apelação de AA e, em consequência, revogar a decisão recorrida, devendo o processo prosseguir nos termos e para os efeitos previstos nos artigos 35.º a 40.º do RGPTC, na parte aplicável.
Custas do recurso a cargo da recorrida (artigo 527.º, n.os 1 e 2, do Cód. Processo Civil).
(Processado e revisto pelo primeiro signatário).

Porto, 26/6/2023
Joaquim Moura
Ana Paula Amorim
Manuel Domingos Fernandes
_______________
[1] Apesar de não ser sequencial (passa do n.º 2 para o n.º 4), mantivemos a numeração dada pelo recorrente.
[2] No entanto, sem que saiba porquê, o recurso subiu à Relação, apenas, em 02.02.2023.
[3] Têm a força própria do chamado caso julgado rebus sic stantibus.
[4] Representada, sobretudo, por Clara Sottomayor, “Entre Idealismo e Realidade: a dupla residência das crianças após o divórcio”, in Temas de Direito das Crianças, Coimbra, Almedina, 2016, págs. 69-76
[5] Cfr. acórdão da Relação de Évora de 22.03.2018, acessível in www.dgsi.pt
[6] Cfr., por todos, o Ac. TRL de 07.08.2017, relatado pelo Desembargador Pedro Martins, disponível in www.dgsi.pt.
[7] Cfr., entre outros, o acórdão da Relação de Lisboa de 12.11.2015, disponível em www.dgsi.pt
[8] É o caso do estudo de Richard Washark, citado por Pedro Raposo de Figueiredo (loc. cit., 99), em que se concluiu que as crianças de idades mais baixas (até aos 4 anos) precisam de pernoitas com ambos os progenitores quando não existe vida em comum dos progenitores.