Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
6640/19.7T8VNG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: PAULA LEAL DE CARVALHO
Descritores: PRINCÍPIO DA LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
ACIDENTE DE TRABALHO
REPARAÇÃO
TEORIA DO RISCO DE AUTORIDADE
SERVIÇOS CONSENTIDOS PELO EMPREGADOR
Nº do Documento: RP202306056640/19.7T8VNG.P1
Data do Acordão: 06/05/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: RECURSO IMPROCEDENTE; CONFIRMADA A SENTENÇA
Indicações Eventuais: 4.ª SECÇÃO SOCIAL
Área Temática: .
Sumário: I - A menos que a força probatória da prova tenha natureza vinculativa, vigora o princípio da livre apreciação da prova, segundo a qual o juiz aprecia livremente a prova de acordo com a sua prudente convicção (art. 607º, nº 5, do CPC), o que, porém, não se confunde com a arbitrariedade dessa apreciação. Com efeito, a convicção há-de formar-se, não com base num simples ou insustentado convencimento, mas sim, e em síntese, com base num juízo crítico com respaldo na globalidade prova que haja sido produzida, bem como nas regras da experiência, da lógica, da razoabilidade, do senso comum, da normalidade das “coisas”.
II - A reparação infortunísica assenta na teoria do risco de autoridade, de acordo com a qual nela estão incluídos, não apenas os acidentes diretamente ocasionados por facto próprio, inerente ou típico do exercício das tarefas que se enquadram nas funções que constituem a atividade do trabalhador ou a este cometidas expressamente pelo empregador, mas também aquelas que sejam por ele consentidas ou espontaneamente prestadas de que possa resultar proveito económico para o empregador.
III - Consubstancia, nos termos do art. al. h) do nº 1 do art. 9º, da LAT, acidente de trabalho o acidente de viação ocorrido quando o A., regressando do seu local de trabalho à sua residência, fez um desvio ao percurso para se encontrar com um seu colega de trabalho, próximo da residência deste, a fim de proceder à entrega das chaves da Estação a esse seu colega, que delas ia necessitar no dia seguinte, para abrir a Estação, em cumprimento de solicitação feita pelo seu superior hierárquico.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Procº nº 6640/19.7T8VNG.P1

Relator: Paula Leal de Carvalho (Reg. nº 1331)
Adjuntos: Des. Rui Penha
Des. Jerónimo Freitas



Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação do Porto:

I. Relatório

AA intentou a presente ação declarativa de condenação, com processo especial de acidente de trabalho, contra A..., S.A., pedindo a condenação desta no pagamento do capital de remição de uma pensão anual e vitalícia, bem como no pagamento de indemnização por I.T.A. e das despesas de transporte.
Alegou, para tanto e em síntese, que no dia 20 de maio de 2019, no percurso do seu trabalho para casa, efetuou um desvio para entregar a chave do local de trabalho a um seu colega, altura em que o veículo motorizado em que seguia foi abalroado, na sua faixa de rodagem, por um outro, na sequência do que ficou a padecer de uma I.P.P. de 13,23%.

O Instituto da Segurança Social, i.p. deduziu pedido de reembolso de subsídio de doença, ao abrigo do disposto no art.º 1 º do D.L. n.º 59/89, de 22/02, e no art.º 7.º do D.L. n.º 28/2004, de 4 de Fevereiro, contra A... SA, pedindo a condenação desta a pagar-lhe a quantia de € 6.078,16, acrescida de juros de mora à taxa legal.

A R. contestou a ação, considerando, em síntese e para aquilo que aqui diretamente interessa, que o evento em questão, pelas razões que invoca, não deve ser qualificado como acidente de trabalho, concluindo pela improcedência da ação .
Contestou, também, o pedido de reembolso formulado pelo ISS,IP, no essencial nos termos e pelos fundamentos constantes da contestação à ação, referindo ainda que, a ser julgado procedente o pedido de reembolso do ISS assim como as pretensões do A., sempre terá de se descontar às prestações e pensões que venham a ser arbitradas a este último, tudo aquilo em que se julgue ter o ISS ficado sub-rogado e em que, consequentemente, se condene a R. Seguradora ao seu reembolso.

Elaborado despacho saneador, com seleção da matéria de facto assente, com indicação do objeto do litígio e temas da prova, determinada a abertura de apenso para fixação da incapacidade e realizada a audiência de julgamento, foi proferida sentença que decidiu nos seguintes termos:
“I. Declaro que o sinistrado AA, por força do acidente sofrido, ficou afetado de I.P.P. de 5,96% (cinco vírgula noventa e seis por cento) a partir de 21 de novembro de 2019;
II. Condeno a R., A..., S.A., a pagar ao sinistrado o capital de remição de uma pensão anual e vitalícia no montante de €942,64 (novecentos e quarenta e dois euros e sessenta e quatro cêntimos) a partir de 21 de novembro de 2019;
III. Mais condeno a R. a pagar ao sinistrado a quantia global de €7.016 (sete mil e dezasseis euros) a título de diferença de indemnização por incapacidades temporárias;
IV. Ainda condeno a R. a pagar ao Instituto da Segurança Social, I.P. o montante pago por este ao sinistrado, a título de subsídio de doença e no período compreendido entre 17 de julho de 2019 e 20 de novembro de 2019, a determinar em sede de liquidação de sentença;
V. Finalmente, condeno a R. nas custas do processo.
Fixo o valor da ação em €6.011,36, acrescido do capital de remição (art.º 120.º do C. P. Trabalho).”

O A., aos 23.06.2022, apresentou requerimento solicitando a retificação do valor da ação, considerando dever o mesmo ser fixado em 19.451,31€, acrescido da “quantia devida pela Ré Seguradora ao Instituto da Segurança Social IP, a determinar em sede de liquidação de sentença.”

Inconformada com a sentença, a Ré recorreu, tendo formulado as seguintes conclusões:
“1. Ocorreu um erro na decisão da matéria de facto, ao dar como provado na resposta ao ponto 11) que Tal desvio foi efetuado a fim de proceder à entrega das chaves da Estação ao seu colega BB, que delas ia necessitar no dia seguinte, para abrir a estação, em cumprimento de solicitação do seu superior hierárquico
2. Este ponto deve transitar para os factos NÃO PROVADOS
3. Em sentido contrário, deve dar-se como PROVADO que O encontro no dia 20 de maio de 2019 entre o A. e o referido colega BB no snackbar “B...”, sito na Rua ..., em ..., tenha ocorrido apenas para o A. se encontrar e conviver com tal colega.
4. Os meios de prova que sustentam tais pretensões são as declarações escritas da testemunha falecida BB, a fls 136 e 136 v dos autos, assim como as declarações escritas do próprio Apelado juntas fls., na audiência de julgamento, nas quais até explica o percurso que fez para não pagar portagens e diz que foi ter com o seu amigo e falecido BB para conviver, como usualmente.
5. Impõem ainda tais alterações os excertos dos depoimentos do Apelado, das testemunhas CC, DD assinalados no corpo destas alegações.
6. Assim sendo, ocorrendo o acidente apenas no âmbito de uma deslocação após um encontro meramente pessoal, não estamos seguramente perante um acidente de trabalho – ocorreu fora do tempo e local de trabalho e não tem com o mesmo qualquer relação.
7. Conclusão que se impõe de todo o modo, mesmo que não se altere a decisão sobre a matéria de facto pretendida.
8. É que, ao contrário do referido, aquilo que foi pedido ao Apelado nunca pode considerar-se como um serviço mas apenas e tão só um mero favor pessoal, absolutamente estranho à entidade patronal e seu processo produtivo.
9. E para cuja execução o Apelado foi totalmente livre, não estando sob a sua autoridade e direção.
10. Ao decidir diferentemente o Mmo. Juiz a quo interpretou erradamente e com isso violou o Art. 9º nº 1 al h) da lei 98/2009.
Nestes termos, nos mais de Direito e sempre com o mui Douto suprimento de V. Exas., deve a Douta Sentença proferida ser revogada e substituída por outra que, julgando procedente o presente recurso, declare não ser possível qualificar a matéria de facto apurada como um acidente de trabalho e, consequentemente, absolvendo a Apelante de todos os pedidos contra si formulados, (…)”

Não foram apresentadas contra-alegações.

Por despacho da 1ª instância de 01.09.2022 foi à ação fixado o valor de “€19.451,31 (art.º 120.º n.º 1 do C. P. do Trabalho)”

Na sequência dos despachos da ora relatora de 22.10.2022 e da informação/requerimento da Ré de 25.10.2 e 02.11.2022, foi, por despacho daquela, determinada a baixa dos autos à 1ª instância, para fixação do efeito do recurso, na sequência do que, por despacho desta de 25.01.2023, foi ao recurso fixado efeito suspensivo.

O Exmº Sr. Procurador Geral Adjunto emitiu douto parecer no sentido, em síntese:
- de não ter existido erro na apreciação da prova e, por consequência, da improcedência da impugnação da decisão da matéria de facto, referindo, para além do mais, que:
“(…).
Mas, antes de mais, diga-se que a prova tem de ser feita em audiência, perante o juiz, e sobretudo as testemunhas ou peritos têm de depor perante o juiz com as demais formalidades que a lei processual exige.
Para além disso, não disseram as testemunhas que o Autor não tenha ido entregar as chaves da Estação ao colega, o que dizem é que tal facto não foi referido.
E o mesmo se repete em julgamento.
- Da improcedência do recurso, referindo o seguinte:
“3. Entende a Recorrente, porém, que mesmo não se alterando a matéria de facto, não é possível qualificar a matéria de facto apurada como um acidente de trabalho.
Entendendo-se de modo diferente, diga-se que “o artigo 9º da LAT estende o conceito de acidente de trabalho, definido no art.º 8º, e o regime de reparação a outras situações considerando-as também acidente de trabalho como (i)o chamado acidente de trajecto, ou acidente in itinere, e ainda (ii)a outras situações.
O acidente in itinere vem previsto no art.º 9º, n.º 1, al. a, 2, 3 e 4 da LAT.
As outras situações vêm previstas no art.º 9º, n.º 1, als. b), c), d), e), f), g) e h), da LAT,
E, considera-se acidente de trabalho, o ocorrido “Fora do local ou tempo de trabalho, quando verificado na execução de serviços determinados pelo empregador ou por ele consentidos” – al. h) do n.º 1 do art.º 9º, da LAT – sendo com base neste precito que o acidente foi considerado acidente de trabalho, pela douta sentença.
Neste caso ressaltam as relações de subordinação e dependência para com a entidade empregadora como base da existência de acidente de trabalho e da teoria do risco de autoridade, pois ocorrem em locais considerados de trabalho ou em cumprimento de ordens da entidade empregadora ou execução de serviços por ela consentidos.
Neste caso, o Recorrido levou as chaves da Estação ao colega de trabalho que delas ia precisar no dia seguinte para não haver transtornos na abertura da Estação, cumprindo ordens do Superior hierárquico ou por solicitação deste, como se deu como provado no ponto 11: “Tal desvio foi efetuado a fim de proceder à entrega das chaves da Estação ao seu colega BB, que delas ia necessitar no dia seguinte, para abrir a estação, em cumprimento de solicitação do seu superior hierárquico, DD;”
O acidente sofrido nestas circunstâncias tem de ser considerado acidente de trabalho.
Mas mesmo que fosse apenas, como refere a Recorrente, que “aquilo que foi pedido ao Apelado nunca pode considerar-se como um serviço mas apenas e tão só um mero favor pessoal”, … “e não tem com o mesmo qualquer relação”, se pedido pelo Superior hierárquico põe o Apelado na “obrigação” de satisfazer tal pedido, sem que seja censurável quer o pedido do superior hierárquico, quer a execução desse pedido pelo Recorrido.
É que, o colega que se esqueceu das chaves ia precisar delas para abrir a Estação como se disse, não o podendo fazer se as não tivesse.
Há neste caso, ou pode haver um beneficio/proveito económico, para a Entidade Empregadora, que pode ver aberta a Estação, sem transtornos ou atrasos, que podiam acontecer não tendo o trabalhador as chaves á mão.
Por fim, diferentemente do que refere a Recorrente, entende-se que o acidente não tem que ter uma relação com o “processo produtivo”, muito menos directa e imediata.
Ao acidente basta que tenha uma relação com o trabalho.
E, neste caso, cremos não haver dúvidas que tem uma relação com o trabalho, mesmo sendo um favor pessoal é feito a um colega de trabalho por causa do trabalho, o mesmo é dizer para que este possa cumprir a obrigação laboral de abrir a Estação à hora certa, sem transtornos.
Por todo o exposto entende-se que, salvo sempre melhor opinião, que a douta sentença recorrida, por não merecer qualquer censura, deve ser confirmada.
Assim a ela aderimos, concluindo pela improcedência do recurso.”

Não foram apresentadas respostas ao parecer.

Colheram-se os vistos legais.
***

II. Decisão da matéria de facto proferida pela 1ª instância:

Na 1ª instância foi proferida a seguinte decisão da matéria de facto:
“Os factos provados:
Atenta a prova produzida, está assente o seguinte:
1) O A. nasceu no dia .../.../1967;
2) O A., à data de 20 de maio de 2019, exercia funções de operador de manobras sob as ordens, direção e fiscalização de Infraestruturas de Portugal, S.A., auferindo a retribuição mensal de €889,16 x 14 meses, acrescida da quantia de €7,50 x 242 dias de subsídio de alimentação, e ainda do montante de €694,27 x 12 meses de outras remunerações, totalizando o valor anual de €22.594,48;
3) A Infraestruturas de Portugal, S.A., tinha a sua responsabilidade infortunística por danos emergentes de acidente de trabalho sofridos pelo A. transferida para a R. seguradora pelo valor da retribuição anual de €22.594,48, através do contrato de seguro titulado pela apólice n.º ...80;
4) No dia 20 de maio de 2019 o local de trabalho do A. ao serviço da Infraestruturas de Portugal, S.A. situava-se em ..., estação da C.P., e a residência do A. situava-se na Rua ..., em Vila Nova de Gaia;
5) No dia 20 de maio de 2019, quando o A. tripulava o seu veículo motorizado na Rua ..., em Gondomar, ocorreu um embate com o veículo ligeiro de matrícula ..-OL-..;
6) A R. seguradora liquidou ao A., a título de indemnizações salariais, a quantia de €1.021,10;
7) A R. seguradora recusou a responsabilidade pela reparação do presente sinistro, frustrando-se a tentativa de conciliação;
8) Conforme certidão emitida pelo Instituto da Segurança Social, I.P., datada de 5 de maio de 2021, foi concedido ao A. pela Segurança Social, a título de subsídio de doença, o quantitativo de €6.078,16, correspondente ao período decorrido de 2019-07-17 a 2020-01-19, sendo o valor do último subsídio diário de €35,83;
9) O A. efetuou deslocações ao INMLCF para efeitos da realização do relatório de perícia de avaliação do dano corporal e ao tribunal para a realização da tentativa de conciliação;
10) No dia 20 de maio de 2019, cerca das 16h20m, após o seu turno de serviço, quando o A., tripulando o seu veículo motorizado, efetuava o trajeto do local de trabalho em ..., estação da C.P., para a sua residência na Rua ..., em Vila Nova de Gaia, efetuou um desvio a este percurso;
11) Tal desvio foi efetuado a fim de proceder à entrega das chaves da Estação ao seu colega BB, que delas ia necessitar no dia seguinte, para abrir a estação, em cumprimento de solicitação do seu superior hierárquico, DD;
12) Na data mencionada em 5) o A. e BB eram amigos;
13) O A. e o referido colega BB encontraram-se no snack-bar “B...”, sito na Rua ..., em ..., próximo da residência do segundo;
14) Entretanto o A. reiniciou o percurso para a sua residência, e quando ainda estava a circular na referida Rua ..., ocorreu o embate mencionado em 5);
15) Tal embate ocorreu em virtude da entrada inopinada de um jipe que transitava na faixa contrária, e ao aproximar-se do eixo da via para estacionar no parque do Lidl, embateu no A., que seguia na sua faixa de rodagem, projetando-o para o solo;
16) Em consequência de tal embate o A. sofreu traumatismo do membro inferior esquerdo, apresentando rigidez;
17) As lesões referidas em 16) determinaram ao A. um período de incapacidade para o trabalho, tendo tal situação determinado o vertido em 8);
18) A Rua ..., em ..., Gondomar, dista cerca de vinte quilómetros da rua em que reside o A.;
19) Por força do descrito evento o A. ficou afetado de I.T.A. desde 21 de maio de 2019 até 20 de outubro de 2019, de I.T.P. de 30% desde 21 de outubro de 2019 até 20 de novembro de 2019, e de I.P.P. de 5,96% a partir de 21 de novembro de 2019.

Os factos não provados:
Com relevo para a decisão da causa nada mais foi dado como provado, designadamente que:
a) O A., quando efetuou o desvio a que se aludiu em 10), tenha saído no Mercado Abastecedor;
b) O encontro referido em 13) não haja demorado mais do que dez minutos, uma vez que o colega BB já se encontrava a aguardar a chegada do A.;
c) Em consequência do referenciado embate o A. tenha sofrido traumatismo do crânio com perda de consciência e apresente marcha claudicante;
d) O encontro no dia 20 de maio de 2019 entre o A. e o referido colega BB no snack-bar “B...”, sito na Rua ..., em ..., tenha ocorrido apenas para o A. se encontrar e conviver com tal colega;
e) O referido colega do A., BB, não fosse trabalhar no dia seguinte;
f) Sejam instruções claras da CP que os seus colaboradores não podem circular nem levar para casa chaves essenciais ao serviço, como sejam chaves das estações.”
***

III. Objeto do recurso

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente, não sendo lícito ao tribunal ad quem conhecer de matérias nelas não incluídas, salvo porém as matérias que sejam de conhecimento oficioso, (arts. 635, nº 4, e 639º, nº 1, do CPC aprovado pela Lei 41/2013, de 26.06, aplicável ex vi do art. 1º, nº 2, al. a), do CPT aprovado pelo DL 295/2009, de 13.10, alterado, designadamente, pela Lei 107/2019).
Assim, são as seguintes as questões suscitadas pelo Recorrente:
- Impugnação da decisão da matéria de facto;
- Se o acidente de que foi vítima o A. não consubstancia acidente de trabalho.
***
IV. Fundamentação

1. Da impugnação da decisão da matéria de facto

A Recorrente impugna o nº 11 dos factos provados, pretendendo que seja dado como não provado, e, bem assim, a al. d) dos factos não provados, que pretende que seja dado como provado.
Sustenta as alterações nas declarações escritas a si, Recorrente (rectius, ao perito averiguador, CC), prestadas pelo A. e por BB, este entretanto falecido, bem como no depoimento do A. prestado em julgamento e nos depoimentos das testemunhas CC e DD, mais dizendo que a versão constante do nº 11 não consta da participação que a entidade patronal – Infraestruturas de Portugal – remeteu à R. Seguradora e que também não consta da própria participação com que o sinistrado dá início ao processo especial de AT, tendo transcrito excertos dos depoimentos, com indicação do tempo da gravação dos mesmos.
A Recorrente deu cumprimento ao disposto no art. 640º, nºs 1, als. a), b) e c), e 2, al. a), do CPC.

1.1. Do nº 11 dos factos provados, que a Recorrente pretende que seja dado como não provado, consta que: “11) Tal desvio foi efetuado a fim de proceder à entrega das chaves da Estação ao seu colega BB, que delas ia necessitar no dia seguinte, para abrir a estação, em cumprimento de solicitação do seu superior hierárquico, DD”
Da al. d) dos factos não provados, que a Recorrente pretende que seja dado como provado, consta que “O encontro no dia 20 de maio de 2019 entre o A. e o referido colega BB no snackbar “B...”, sito na Rua ..., em ..., tenha ocorrido apenas para o A. se encontrar e conviver com tal colega.”

Da fundamentação da decisão da matéria de facto consta o seguinte:
“As testemunhas DD e EE, colegas de trabalho do A. na estação de caminho de ferro de ..., foram perentórias e unânimes em afirmar que o sinistrado, trabalhando naquela estação de caminho de ferro e residindo em Vila Nova de Gaia, ao regressar, após o seu turno, para a sua residência, efetuou um desvio no seu percurso por forma a proceder à entrega da chave da estação, pertença do seu colega BB, residente em ..., uma vez que este se havia esquecido da mesma naquele local de trabalho.
Àquele propósito, a R. seguradora veio alegar que tal entrega da chave da estação de ... a BB por banda do A. não ocorreu, desde logo porque este último trabalhador das Infraestruturas de Portugal, I.P. não ia trabalhar no dia seguinte. No entanto, esta alegação foi frontalmente contrariada pelos depoimentos das supra identificadas testemunhas, bem como pelo teor do documento junto aos autos a fls. 134, dimanado daquele Instituto Público, do qual se retira que no dia 21 de maio de 2019 (uma terça-feira) o operador de manobras BB estava escalado para cumprir o turno com início às 8h30min, precisamente a hora de abertura da estação, nos dias úteis da semana, conforme se extrai do documento de fls. 133 e 133 v.º dos presentes autos.
Esgrime igualmente a R. com a desnecessidade de entrega das chaves da estação a BB no dia 20 de maio de 2019, porquanto, conforme referiram as testemunhas DD e EE, cada turno na estação de caminho de ferro de ... é constituído por dois elementos (um chefe e um manobrador), sendo que ambos têm em seu poder um exemplar das ditas chaves. No entanto e conforme elucidaram as mesmas testemunhas, existe o risco de um dos elementos integrantes do turno não comparecer ao serviço, razão pela qual o outro elemento tem obrigatoriamente de ter consigo as chaves que permitem aceder ao interior da estação de caminho de ferro. Sem descurar que, conforme igualmente explicaram as ditas testemunhas, bem podia suceder que BB – que, repete-se, iria iniciar o seu turno às 8h30min do dia seguinte ao do evento lesivo que aqui se discute – quisesse já ir dormir de véspera num dos quartos para o pessoal de que está dotada a estação de caminho de ferro de ..., como, de resto, muitas vezes sucedia, quer porque inexiste comboio que parta ou passe pelo Grande Porto e que permita estar antes das 8h30min ou a esta hora naquela estação, quer por forma a permitir que o funcionário não tenha de se levantar tão cedo para se apresentar ao trabalho.
A acrescer e ainda quanto àquela concreta questão factual, temos que a testemunha CC, o perito averiguador do sinistro em apreço, referiu que quer BB quer o próprio sinistrado, quando foram ouvidos por si em sede de processo de averiguações, nunca fizeram qualquer referência à alegada entrega das chaves da estação de caminhos de ferro de ... do segundo ao primeiro, o que é confirmado pela leitura dos depoimentos colhidos no âmbito daquele processo interno e que se mostram a fls. 116 e 116 v.º e 154 a 154 dos presentes autos. Não obstante, esta circunstância não é de molde a abalar a credibilidade dos depoimentos das restantes testemunhas. Realmente e sem pôr em causa a idoneidade profissional do Sr. Perito averiguador, o certo é que se desconhece a forma como tais depoimentos/declarações foram colhidos e prestados, falhando, para o tribunal, o princípio básico da imediatividade ou da imediação.
O A., no respetivo depoimento de parte, confessou a matéria factual vertida no n.º 12).
A R. não pôs em causa a facticidade inserta em 13); o que coloca em questão é que o A. e BB se hajam encontrado no estabelecimento de restauração em apreço para algo mais que não fosse conviver socialmente. Quanto a esta concreta questão, remetemos para as considerações já a propósito tecidas anteriormente.
(…)
Relativamente à restante matéria de facto, a mesma foi tida como não provada face, para além de tudo quanto já se deixou ínsito, à total ausência de prova que a tenha permitido sustentar. A este nível, cumpre acrescentar que da leitura da informação prestada aos autos pelas Infraestruturas de Portugal, I.P. de fls. 132 e 132 v.º não se retira que os colaboradores desta estejam impedidos de levarem consigo as chaves das estações de caminho de ferro nas quais laboram habitualmente. De facto e por um lado, no último parágrafo do ponto 4.2 daquela informação fala-se, quanto às chaves das estações de caminhos de ferro, de uma “prática”, que não se confunde com uma ordem, instrução ou determinação interna. Por outro lado, no penúltimo parágrafo do referido ponto 4.2 faz-se tão-somente referência ao envio das chaves de estações de caminhos de ferro aos trabalhadores que aí não costumam trabalhar, mas que para aí são destacados, não se aludindo à situação dos autos que é a de trabalhador afeto a uma determinada estação de caminho de ferro e que nela vai laborar.”

Procedeu-se à audição integral dos depoimentos prestados em audiência de julgamento: depoimento de parte do A. e depoimentos das testemunhas: DD (arrolada pelo A.), EE (arrolada pelo A.) e CC (arrolada pela Ré).

Da participação feita pelo A. em Tribunal do acidente, com o que deu início ao processo, consta que: “O requerente foi vitima de um acidente de trabalho “In Itinere” que ocorreu no dia 20/05/2019, cerca das 16H00 quando efetuava o trajeto do local de trabalho em ... (Estação da C.P) para a sua residência em ..., Vila Nova de Gaia.
Da “Participação de Sinistro” feita à Ré por esta junta na fase conciliatória do processo consta, para além de outras informações: “58. Onde ocorreu o acidente: no trajeto, no percurso habitual de ou para o local de trabalho”; “85. Descreva pormenorizadamente o acidente: O colaborador seguia na sua faixa de rodagem, quando o veículo ligeiro terceiro (..-OL-..) se atravessou à sua frente, provocando o embate”
Do exame médico singular consta que o A. refere ter sofrido um acidente de viação no trajecto (local Trabalho – casa)
Após o acidente, o A. prestou declarações à testemunha CC, perito averiguador da Ré Seguradora, as quais foram pelo A. reduzidas a escrito e juntas na audiência de julgamento, nas quais refere que a fim de evitar as SCUTS “sai da autoestrada em ..., onde retoma outra vez a Nacional 13 e saindo na estrada da
Circunvalaçáo passando Rio Tinto (...) a fim de fazer uma pequena paragem para comer uma sande e uma bebida e wc, como é hábito com o meu colega
BB na B..., retomando o meu percurso à minha residência, (...)” (declarações escritas estas juntas em audiência de julgamento).
BB (no dia 30.05.2019 segundo relatório de averiguação) prestou também “declarações” à mencionada testemunha (CC), as quais (BB) reduziu a escrito e das quais consta que “após ter tomado café com o meu colega de trabalho AA, no restaurante B... ele retomou após lanche o trageto [sic] para a sua casa, apos regresso do seu posto de trabalho em ... (…)”, passando à descrição do acidente (declarações juntas com a contestação).
A testemunha CC, perito averiguador, referiu que: falou com o A. e com BB, os quais em momento algum referiram ter o A. feito a entrega de qualquer objeto, designadamente de chaves; que se tal tivesse sido dito constaria dos depoimentos que foram prestados; que, às perguntas do ilustre mandatário da Ré se “a justificação que lhe foi dada foi: eram amigos e foram à B...?”, se “não era a primeira vez que o faziam, era frequente, de vez em quando faziam isso” e se “na altura nem sequer o Senhor AA lhe disse que tinha ido fazer qualquer coisa. Disse era que era normal ir encontrar-se com o amigo?” respondeu a cada uma delas “exatamente”; que a situação da entrega de chaves nunca foi referida; que a preocupação na averiguação deste tipo de acidentes é saber qual o percurso, se foi feito desvio e a razão do desvio; que perguntou a razão do desvio ao percurso e que, para além de ir tomar café, “nunca foi referido que ia fazer algo mais, ou ia buscar alguma chave, seja o que for, nunca foi referido qualquer um outro na altura”. E à pergunta da ilustre mandatária do A. sobre se tinha a certeza de que o A. não foi entregar a chave ao colega referiu que “Eu tenho a certeza que ele não indicou esse motivo”. Mais disse que o contacto com o sinistrado é feito sem aviso prévio (assim evitando que as respostas possam ser preparadas), que o A., assim como o mencionado BB, é que escreveram as declarações.
O descrito na fundamentação da decisão da matéria de facto está, no essencial, de acordo com os depoimentos prestados pelo A. e pelas testemunhas DD e EE, sendo que:
Quanto ao depoimento de parte do A. em julgamento (prestado em momento anterior à junção das suas declarações escritas, acima referidas, sobre as quais não foi depôs), referiu, em síntese, que o responsável da estação lhe disse que o BB deixou as chaves da estação solicitando-lhe que lhas levasse e que o A. as levou sendo que aquele iria delas precisar pois senão “dormia na rua” (uma vez que, indo trabalhar no dia seguinte, precisava delas para dormir nas instalações sociais da estação pela razão já explicada na fundamentação da decisão da matéria de facto e que está em consonância com o que foi afirmado pelo A. e pelas testemunhas DD e EE); assim, saiu do trabalho, foi à B... que fica perto da casa do BB e onde às vezes se encontrava com ele, “pedi uma sande ao balcão, bebi uma cerveja e esperei por ele cerca de 7 a 10 minutos”, deu-lhe a chave, ele tomou café, e veio-se (o A.) embora na mota, após o que sucedeu o acidente.
DD, para além de colega do A., chefe da estação e superior hierárquico, foi perentório a afirmar que disse ao A. que o BB se tinha esquecido de levar as chaves e que pediu ao A. para lhas levar e, EE, que o BB, após o acidente do A., lhe telefonou a comunicar que este tinha tido um acidente tendo-lhe também dito que este lhe tinha tido levar as chaves.
De referir que não foi possível inquirir o mencionado BB uma vez que o mesmo entretanto faleceu.
A menos que a força probatória da prova tenha natureza vinculativa, vigora o princípio da livre apreciação da prova, segundo a qual o juiz aprecia livremente a prova de acordo com a sua prudente convicção (art. 607º, nº 5, do CPC), o que, porém, não se confunde com a arbitrariedade dessa apreciação. Com efeito, a convicção há-de formar-se, não com base num simples ou insustentado convencimento, mas sim, e em síntese, com base num juízo crítico com respaldo na globalidade prova que haja sido produzida, bem como nas regras da experiência, da lógica, da razoabilidade, do senso comum, da normalidade das “coisas”.
No caso, o facto impugnado (da matéria de facto provada e da não provada) tem por objeto, no essencial, saber se o A., quando se foi encontrar com o então seu colega BB, o fez para lhe ir levar as chaves das instalações sociais da Estação de ... (para o que fez um desvio ao percurso do trajeto entre tal Estação e a sua residência) ou se se foi encontrar com o mesmo apenas para um momento de convívio e lazer.
As declarações escritas prestadas pelo A. e pelo então seu colega, BB, na medida em que nelas não é referida a entrega das chaves, apontaria, segundo a Recorrente, no sentido da alteração da decisão da matéria de factos nos termos por ela pretendidos.
É todavia de referir o seguinte:
A prova testemunhal é, nos termos do art. 500º do CPC, prestada oralmente e em audiência de julgamento (a menos que se verifique alguma das situações previstas em tal preceito, o que não é o caso dos autos), perante o juiz, mediante as garantias de isenção, imparcialidade, imediação, contraditoriedade e estando as testemunhas sujeitas a juramento e suas consequências em termos criminais em caso de falso testemunho, não sendo admissíveis depoimentos prestados por escrito e, muito menos, perante entidade averiguadora do sinistro por conta de Ré Seguradora e no âmbito da averiguação por esta efetuada e, por consequência, completamente à margem de tais princípios, garantias e regras. Ou seja, no caso, nenhuma relevância revestem, ou devem revestir, as declarações reduzidas a escrito pelo BB, tanto mais que o mesmo, entretanto falecido, não pode depor em julgamento e com elas ser confrontado.
No que toca ao depoimento de parte (no caso, do A.), deve ele ter também lugar em sede de audiência de julgamento (art. 456º, nº 1, do CPC), estando sujeito, nos termos apontados, às garantias de isenção (tanto quanto possível, pois há que não esquecer que, sendo parte, tem um interesse no desfecho da ação, mas que a intervenção do juiz sempre tentará garantir e que, pelo menos quanto às questões que são ou poderão ser colocadas e forma como o são, garantirá), imediação e contraditoriedade, estando também a parte sujeita a juramento (art. 459º CPC). E é de ter também em atenção que, nos termos do art. 354º, al. b), do Cód. Civil, a confissão não faz prova contra o confitente “se recair sobre factos relativos a direitos indisponíveis”, sendo que os direitos relativos a matéria de direito à reparação dos danos emergentes de acidente de trabalho tem natureza indisponível – cfr. arts. 12º e 78º da Lei 98/2009.
Ou seja, no caso, as declarações escritas do A. não são também de relevar, tanto mais que o mesmo prestou depoimento em audiência de julgamento e, diga-se, aqui se deixando a nota de que não foi o mesmo confrontado com tais declarações, as quais apenas foram juntas já após o seu depoimento. E, nas declarações que prestou, o A. afirmou ter ido levar ao BB as chaves a pedido de DD, seu superior hierárquico.
De todo o modo e ainda quanto às declarações escritas de BB e do A., não consta que não tivesse o A. ido levar as chaves; o que consta ou, melhor, o que não consta é a referência às chaves. Como diz o Exmº Sr. Procurador Geral Adjunto no seu parecer é que “Para além disso, não disseram as testemunhas que o Autor não tenha ido entregar as chaves da Estação ao colega, o que dizem é que tal facto não foi referido.”
Mas avançando.
O A. foi perentório no sentido de que foi levar as chaves da Estação/”instalações sociais” ao colega BB que iria entrar de serviço no dia seguinte de manhã (sem as quais, e em síntese, não poderia entrar, não havia comboio de manhã que chegasse a tempo, que era habitual irem de véspera e dormir em tais instalações); a testemunha DD, que era responsável pela Estação e superior hierárquico do A., foi igualmente perentório ao afirmar ter dito ao A. que aquele se havia esquecido das chaves e que lhe pediu se as poderia levar , assim como EE que o referido BB lhe telefonou dando conta do acidente e lhe fez referência a que o A. lhe tinha ido levar as chaves.
É certo que a testemunha CC afirmou que a questão da entrega das chaves nunca foi afirmada pelo A., nem por BB aquando das declarações que lhe tomou, designadamente quando perguntou ao A. a razão do desvio.
Não obstante, a matéria de facto dada como provada – no sentido dessa entrega - tem corroboração na prova produzida (depoimentos do A. e das testemunhas DD e EE), não se podendo afirmar, muito menos com um mínimo de segurança, que a omissão da referência à entrega das chaves seja suficiente no sentido seja da prova de que as mesmas não foram entregues ou, até e tão-só, de contraprova suficiente no sentido de tornar duvidoso esse facto de molde a ser o mesmo dado como não provado, o mesmo se dizendo quanto às participações de acidente de trabalho e das declarações prestadas na perícia médica (donde não consta tal facto, nem o desvio feito, mas apenas que o acidente ocorreu quando o A. se deslocava do trabalho para casa). Acrescente-se que não se pode deixar de admitir que possam o A. e o BB não ter valorizado tal facto.
Ou seja, e concluindo, perante a prova produzida que corrobora o nº 11 dos factos provados, entendemos ser de o manter, assim como ser de manter com a al. d) dos factos não provados, improcedendo a impugnação da decisão da matéria de facto.

2. Se o acidente de que foi vítima o A. não consubstancia acidente de trabalho

Na sentença recorrida referiu-se, para além do mais, o seguinte:
“(…)
Uma das situações consagradas pelo legislador de extensão do conceito de acidente de trabalho é a prevista no art.º 9.º n.º 1 a) da L.A.T., no qual se considera também acidente de trabalho o ocorrido no trajeto de ida para o local de trabalho ou de regresso deste, nos termos referidos no artigo seguinte.
O n.º 2 da mesma norma, por sua vez, prevê expressamente que estão compreendidos na alínea supra citada do n.º 1, entre outros, os acidentes que se verifiquem nos trajetos normalmente utilizados e durante o período de tempo ininterrupto habitualmente gasto pelo trabalhador:
(…)
b) Entre a sua residência habitual ou ocasional e as instalações que constituem o seu local de trabalho.
(…)
Por outro lado, nos termos do nº 3 do mesmo artigo, não deixa de se considerar acidente de trabalho o que ocorrer quando o trajeto normal tenha sofrido interrupções ou desvios determinados pela satisfação de necessidades atendíveis do trabalhador, bem como por motivo de força maior ou por caso fortuito.
Para o Professor Júlio Gomes, no seu artigo “Breves reflexões sobre a noção de acidente de trabalho” (in 1º Congresso Nacional de Direito dos Seguros, Almedina, pág. 211), “se o núcleo central - os acidentes ocorridos no local e no tempo de trabalho - corresponde à esfera em que mais intensamente se faz sentir o controlo do empregador e a subordinação jurídica, a extensão do acidente de trabalho ao domínio exterior ao local e/ou ao tempo de trabalho parece ocorrer em homenagem a vários fatores”, sendo que um deles será a necessidade do empregador surgir como garante de custos ligados ao oferecimento da sua prestação por parte do trabalhador, como o caso dos acidentes in itinere.
O que se pretende, como bem salienta o mesmo Professor, é que “o empregador suporte as consequências em sede de perda de capacidade de trabalho ou de ganho de um acidente que um seu trabalhador sofreu porque tinha de trabalhar e tinha de se deslocar para o seu local de trabalho”.
Ora, ficou provado nos autos que o A., após terminar a sua jornada de trabalho, estava a efetuar o percurso entre o seu local de trabalho (a estação de caminhos de ferro de ...) e a sua residência (sita na Rua ..., em Vila Nova de Gaia), e, a solicitação do seu superior hierárquico, efetuou um desvio naquele percurso por forma a entregar a chave da referida estação de caminhos de ferro ao seu colega BB, deslocando-se, para o efeito, até à Rua ..., em Gondomar, artéria esta onde se deu o evento lesivo.
Será que, face à matéria de facto tida por assente e que agora se elencou, podemos considerar que o acidente sofrido pelo A. foi um acidente de trabalho in itinere? A resposta, a nosso ver, é negativa. De facto, ainda que seja verdade que o A., no dia 20 de maio de 2019, estava a desenvolver o trajeto do seu local de trabalho para a sua residência, não menos verdade é que se não provou qual era o trajeto normalmente utilizado pelo sinistrado para efetuar tal percurso, tão-pouco qual o tempo que o mesmo habitualmente despendia para o percorrer.
E a prova de tal “trajeto normal” é condição sine qua non para a aplicação do regime estatuído no n.º 3 do art.º 9.º da L.A.T.
Não obstante as considerações acabadas de expender, temos para nós que o evento lesivo que se discute por via da presente lide não pode deixar de ser caracterizado como acidente de trabalho. Na verdade, relembre-se, o acidente sofrido pelo aqui sinistrado, ainda que tenha ocorrido fora do local e do tempo de trabalho, foi-o na execução de uma tarefa com conexão com a sua atividade laboral e cuja assunção lhe foi solicitada pelo seu superior hierárquico. Caímos, assim, na previsão da alínea h) do n.º 1 do art.º 9.º da L.A.T. Esta norma alude à execução de serviços determinados pelo empregador ou por ele consentidos. Se o legislador quis abranger os serviços consentidos pelo empregador, por maioria de razão estão igualmente abrangidos os serviços por este solicitados.
Como tal, dúvidas não há de que estamos perante um acidente de trabalho, por força do disposto no art.º 9.º n.º 1 h) da L.A.T.”
A Recorrente discorda do decidido, desde logo com fundamento na alteração do nº 11 dos factos provados (e al. d) dos factos não provados). Porém, improcedendo esta, improcede igualmente o recurso com tal fundamento.
Mas alega ainda a Recorrente que: “8. (…) aquilo que foi pedido ao Apelado nunca pode considerar-se como um serviço mas apenas e tão só um mero favor pessoal, absolutamente estranho à entidade patronal e seu processo produtivo. 9. E para cuja execução o Apelado foi totalmente livre, não estando sob a sua autoridade e direção. 10. Ao decidir diferentemente o Mmo. Juiz a quo interpretou erradamente e com isso violou o Art. 9º nº 1 al h) da lei 98/2009”.

2.1. Ao caso, atenta a data dos factos, é aplicável a Lei 98/2009, de 04.09, que entrou em vigor aos 01.01.2010.
Dispõe o art. 8º da citada lei, sob a epígrafe “Conceito” que:
1- É acidente de trabalho aquele que se verifique no local e no tempo de trabalho e produza direta ou indiretamente lesão corporal, perturbação funcional ou doença de que resulte redução na capacidade de trabalho ou de ganho ou a morte.
2- Para efeitos do presente capítulo, entende -se por:
a) «Local de trabalho» todo o lugar em que o trabalhador se encontra ou deva dirigir -se em virtude do seu trabalho e em que esteja, direta ou indiretamente, sujeito ao controlo do empregador;
b) «Tempo de trabalho além do período normal de trabalho» o que precede o seu início, em actos de preparação ou com ele relacionados, e o que se lhe segue, em actos também com ele relacionados, e ainda as interrupções normais ou forçosas de trabalho.
Por sua vez, o art. 9º da mesma veio proceder a uma extensão do conceito de acidente de trabalho, dispondo que:
1- Considera-se também acidente de trabalho o ocorrido:
a) No trajecto de ida para o local de trabalho ou de regresso deste, nos termos referidos no número seguinte;
b) Na execução de serviços espontaneamente prestados e de que possa resultar proveito económico para o empregador;
c) No local de trabalho e fora deste, quando no exercício do direito de reunião ou de actividade de representante dos trabalhadores, nos termos previstos no Código do Trabalho;
d) No local de trabalho, quando em frequência de curso de formação profissional ou, fora do local de trabalho, quando exista autorização expressa do empregador para tal frequência;
e) No local de pagamento da retribuição, enquanto o trabalhador aí permanecer para tal efeito;
f) No local onde o trabalhador deva receber qualquer forma de assistência ou tratamento em virtude de anterior acidente e enquanto aí permanecer para esse efeito;
g) Em actividade de procura de emprego durante o crédito de horas para tal concedido por lei aos trabalhadores com processo de cessação do contrato de trabalho em curso;
h) Fora do local ou tempo de trabalho, quando verificado na execução de serviços determinados pelo empregador ou por ele consentidos.
2 - A alínea a) do número anterior compreende o acidente de trabalho que se verifique nos trajectos normalmente utilizados e durante o período de tempo habitualmente gasto pelo trabalhador:
a) Entre qualquer dos seus locais de trabalho, no caso de ter mais de um emprego;
b) Entre a sua residência habitual ou ocasional e as instalações que constituem o seu local de trabalho;
c) Entre qualquer dos locais referidos na alínea precedente e o local do pagamento da retribuição;
d) Entre qualquer dos locais referidos na alínea b) e o local onde ao trabalhador deva ser prestada qualquer forma de assistência ou tratamento por virtude de anterior acidente;
e) Entre o local de trabalho e o local da refeição;
f) Entre o local onde por determinação do empregador presta qualquer serviço relacionado com o seu trabalho e as instalações que constituem o seu local de trabalho habitual ou a sua residência habitual ou ocasional.
3 - Não deixa de se considerar acidente de trabalho o que ocorrer quando o trajecto normal tenha sofrido interrupções ou desvios determinados pela satisfação de necessidades atendíveis do trabalhador, bem como por motivo de força maior ou por caso fortuito.
4 -No caso previsto na alínea a) do n.º 2, é responsável pelo acidente o empregador para cujo local de trabalho o trabalhador se dirige.

O conceito de acidente de trabalho não sofreu alteração face ao que constava da legislação pretérita (Lei 100/97, de 13.09).
Para que o acidente seja caracterizado como de trabalho é necessário que: (a) ocorra um acidente; (b) que tal se verifique no local e tempo de trabalho ou em algumas das demais circunstâncias referidas no art. 9º (c) que o acidente determine, direta ou indiretamente, uma lesão corporal, perturbação funcional ou doença ou a morte; (d) que das lesões provocadas pelo acidente resulte a perda ou diminuição da capacidade de ganho.
A ocorrência de um acidente consubstancia-se num evento exterior, isto é com origem estranha à constituição da vítima.
Quanto aos conceitos de local e tempo de trabalho estão ele definidos nos termos acima referidos, não sendo, ao alargamento do conceito de acidente de trabalho estranho o entendimento de que o mesmo assenta na teoria do risco de autoridade.
Com efeito, como é hoje adquirido, o conceito de acidente de trabalho e a responsabilidade objetiva do empregador assenta na teoria do risco de autoridade que, porque a antecessora corrente assente na teoria do risco profissional - esta exigindo uma relação de causa e efeito entre o acidente e o trabalho - não dava cobertura a acidentes dignos de proteção, a veio substituir.
A teoria do risco de autoridade, assentando na responsabilidade do empregador decorrente da possibilidade do exercício da autoridade por parte deste sobre os seus trabalhadores, dispensa o referido nexo de causalidade entre o trabalho e o acidente, bastando-se com alguma relação entre o trabalho e o acidente.
Assim é que, no âmbito da proteção infortunística, nela estão incluídos, não apenas os acidentes diretamente ocasionados por facto próprio, inerente ou típico do exercício das tarefas que se enquadram nas funções que constituem a atividade do trabalhador ou a este cometidas expressamente pelo empregador, mas também aquelas que sejam por ele consentidas ou espontaneamente prestadas de que possa resultar proveito económico para o empregador, sendo que, a assim não se entender, tal representaria um regresso às ultrapassadas conceções assentes na referida teoria do risco profissional.
O ónus de alegação e prova dos referidos requisitos impende sobre o trabalhador por constituírem pressuposto do direito de que se arroga titular (art. 342º, nº 1, do Cód. Civil), salvo quanto ao nexo de causalidade entre a lesão (perturbação ou doença) e o acidente, se aquela for reconhecida a seguir ao acidente, caso este em que o sinistrado beneficia da presunção, estabelecida a seu favor, no art. 10º.

2.2. No caso, é indiscutível que o A. foi vítima de um acidente de viação e que do mesmo resultaram lesões que foram determinantes de incapacidade temporária e permanente,
Tal acidente ocorreu quando o A. regressava do seu local de trabalho à sua residência, tendo ele, porém, feito um desvio ao percurso para se encontrar com BB, seu colega de trabalho, no snack-bar “B...”, sito na Rua ..., em ..., próximo da residência deste, a fim de proceder à entrega das chaves da Estação a esse seu colega BB, que delas ia necessitar no dia seguinte, para abrir a estação, em cumprimento de solicitação do seu superior hierárquico, DD.
A Recorrente, como referido, discorda do decidido, desde logo com fundamento na alteração do nº 11 dos factos provados (e al. d) dos factos não provados) pois que, segundo defendeu, estaríamos perante um acidente ocorrido no percurso de regresso, porém interrompido por um desvio ao percurso normal e para efeitos meramente pessoais do sinistrado que, assim e nos termos do art. 9º, nºs 1, als. a), 2, al. b), e 3 (este a contrario), não se incluiria na extensão do conceito de acidente de trabalho decorrente do citado preceito.
Acontece que tal linha de defesa assentava na alteração do nº 11 dos factos provados e (al. d) dos factos não provados), alteração essa que improcedeu, assim improcedendo tal argumentação da Recorrente.
Não está na matéria de facto totalmente determinado qual o percurso normal que o sinistrado faria entre o seu local de trabalho e a sua residência, sendo que a ele competia tal prova. E, por outro lado, está também assente que o mesmo fez um desvio a esse percurso, o que também, se outra razão não existisse, levaria à exclusão da caracterização do acidente como acidente de trabalho.
Acontece, porém, que esse desvio ocorreu porque o A., em cumprimento de solicitação do seu superior hierárquico, DD, foi entregar ao seu colega BB as chaves da Estação de que este ia necessitar no dia seguinte para abrir a estação, fundamento este com base no qual a sentença recorrida considerou, nos termos do art. 9º, nº 1, al. h), ser de o qualificar como consubstanciando um acidente de trabalho, desta decisão discordando a Recorrente alegando que: “8. (…) aquilo que foi pedido ao Apelado nunca pode considerar-se como um serviço mas apenas e tão só um mero favor pessoal, absolutamente estranho à entidade patronal e seu processo produtivo. 9. E para cuja execução o Apelado foi totalmente livre, não estando sob a sua autoridade e direção. 10. Ao decidir diferentemente o Mmo. Juiz a quo interpretou erradamente e com isso violou o Art. 9º nº 1 al h) da lei 98/2009”.
Concordamos com a sentença recorrida, carecendo de fundamento a mencionada argumentação da Recorrente.
A al. h) do nº 1 do art. 9º abarca as situações não apenas de execução de serviços determinados/ordenados pelo empregador, mas também por esta consentidos.
No caso, mesmo que a solicitação da entrega das chaves não haja sido, ou possa não ter sido, colocada em termos de ordem expressa e que o A. não pudesse recusar, não deixou, contudo, de lhe ser solicitada essa entrega e a consequente incumbência da mesma por um superior hierárquico; e, se não era uma ordem, mas uma solicitação, foi logicamente consentida por este superior (pois que foi ele quem lho solicitou), o que, manifestamente, cai no âmbito da citada alínea. E tal é perfeitamente enquadrável no âmbito da teoria do risco de autoridade, que dispensa um nexo de causalidade entre o trabalho e o acidente, bastando-se com alguma relação entre o trabalho e o acidente, mais se concordando com o douto parecer do Exmº Sr. Procurador Geral Adjunto ao referir que:
“(…)
Mas mesmo que fosse apenas, como refere a Recorrente, que “aquilo que foi pedido ao Apelado nunca pode considerar-se como um serviço mas apenas e tão só um mero favor pessoal”, … “e não tem com o mesmo qualquer relação”, se pedido pelo Superior hierárquico põe o Apelado na “obrigação” de satisfazer tal pedido, sem que seja censurável quer o pedido do superior hierárquico, quer a execução desse pedido pelo Recorrido.
É que, o colega que se esqueceu das chaves ia precisar delas para abrir a Estação como se disse, não o podendo fazer se as não tivesse.
Há neste caso, ou pode haver um beneficio/proveito económico, para a Entidade Empregadora, que pode ver aberta a Estação, sem transtornos ou atrasos, que podiam acontecer não tendo o trabalhador as chaves á mão.
Por fim, diferentemente do que refere a Recorrente, entende-se que o acidente não tem que ter uma relação com o “processo produtivo”, muito menos directa e imediata.
Ao acidente basta que tenha uma relação com o trabalho.
E, neste caso, cremos não haver dúvidas que tem uma relação com o trabalho, mesmo sendo um favor pessoal é feito a um colega de trabalho por causa do trabalho, o mesmo é dizer para que este possa cumprir a obrigação laboral de abrir a Estação à hora certa, sem transtornos.”
Improcedem, assim, as conclusões do recurso, sendo de confirmar a sentença recorrida.
***

V. Decisão

Em face do exposto, acorda-se em julgar o recurso improcedente, confirmando-se a sentença recorrida.

Custas pela Recorrente.


Porto, 05.06.2023
Paula Leal de Carvalho
Rui Penha
Jerónimo Freitas