Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
666/20.5PIPRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: HORÁCIO CORREIA PINTO
Descritores: CRIME DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
NAMORO
PRINCÍPIO DA LEGALIDADE DAS PENAS
Nº do Documento: RP20220223666/20.5PIPRT.P1
Data do Acordão: 02/23/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFERÊNCIA
Decisão: INDEFERIDA A ARGUIÇÃO DE NULIDADE DO ACORDÃO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Namoro é um compromisso entre duas pessoas que se relacionam durante um lapso de tempo indeterminado, com partilha e comunhão de afetos e interesses pessoais.
II - Na tipificação do crime de violência doméstica, o legislador não definiu o conceito de namoro, provavelmente pelo seu carácter dinâmico, necessariamente ajustado à realidade actual.
III - Essa margem de manobra de apreciação concedida ao intérprete não sacrifica a legalidade e a tipicidade da norma.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 666/20.5PIPRT.P1
Arguição de nulidade nos termos dos artºs 425 nº 4 e 379 nº 1 alª c), ambos, do CPP.
O recorrente AA veio arguir a nulidade do acórdão nos termos do disposto no artºs 425 nº 4 e 379 nº 1 alª c), ambos, do CPP.
O tribunal pronunciou-se sobre o artº 152 nº 1 alª b) do CP nos termos referidos pelo recorrente – constitucionalidade do preceito. Mais abaixo deixaremos expresso o que dissemos no acórdão e a matéria alegada pelo recorrente nas conclusões com os nºs 14/16. No fundo, o recorrente salienta que o tribunal tratou a questão da constitucionalidade mas não o fez sob a vertente do princípio da proibição de excesso (proporcionalidade) e do princípio da culpa, porquanto a lei trata no mesmo plano situações jurídicas bem diversas – o namorado é tratado no mesmo plano que o casado ou o que vive em união de facto, objecto da mesma moldura penal abstracta.
O recorrente motivou e concluiu nos seguintes termos:
(…)
14ª Por outro lado e ainda que assim não se entenda, a lei penal trata de forma igual relações documentalmente comprovadas e com um regime legal consagrado, como o casamento ou a união de facto com coabitação, com outras que dependem dos humores dos envolvidos, como sejam a união de facto sem coabitação e o namoro, sendo certo que nem sequer se percebe muito bem qual a diferença entre união de facto sem coabitação e namoro ou de namoro e união de facto com coabitação.
15ª A lei penal deve obedecer ao princípio da legalidade e da tipicidade, sendo que conceitos genéricos alegadamente consubstanciadores de relações para-conjugais não podem, nem devem constar de normas penais.
16ª Pelo exposto, deve entender-se que a norma do artº 152 nº1 alª b) do Código Penal é inconstitucional ao fazer depender a incriminação de uma relação de namoro sem qualquer outra concretização, por violação do disposto no artº 2, 13, 18 nº 2 (princípio da proibição do excesso) e 29 nº1 e 3 da Constituição.
O MP na resposta pugnou pela constitucionalidade da norma:
(…)
19.Nas conclusões 14 a 16, defende-se que o conceito de namoro previsto no artº 152 do Código Penal é demasiado vago, violando o princípio da legalidade penal constitucional (artº 29/1 da Constituição da República Portuguesa).
20.Toda a comunidade consegue facilmente alcançar os contornos das situações da vida real que podem estar abrangidos pelo conceito de namoro – “relações sentimentais, afectivas, íntimas e tendencialmente estáveis ou duradouras, que ultrapassam a mera amizade ou relações fortuitas, não se exigindo, todavia, um projecto futuro de vida em comum” - pelo que o conceito tem, manifestamente, a densificação necessária para respeitar o princípio da legalidade.
O nosso texto (extracto do acórdão), devidamente citado pelo recorrente, tem o seguinte teor:
Do conceito de namoro.
Certamente que a definição de namoro não se encontra em qualquer diploma legal mas também não há dúvida que o legislador no artº 152 nº 1 alª b) do CPP fala de uma relação de namoro para também tipificar o crime de violência doméstica. Refere-se ao namoro sem definir o conceito. O conceito de namoro alterou-se através dos tempos todavia, esta relação não pode ser posta em causa desde que obedeça a traços comuns: duração, afectividade e projecto (expectativa). Namoro é muito mais que um encontro fortuito (one night stand). A relação amorosa não é um fim em si, nem perspectiva necessariamente uma comunhão de cama, mesa e habitação, como acontece, em regra, no casamento – salientar que o conceito de casamento tem sofrido mutações … Aceitamos que é um compromisso entre duas pessoas que se relacionam durante um lapso de tempo indeterminado, com partilha e comunhão de afectos e interesses pessoais comuns. Alguma doutrina fala de namoro simples e qualificado para distinguir o grau de compromisso. Admitimos também que a ideia de intimidade, estabilidade, fidelidade e publicidade da união pode estar comprometida e precisa de ser repensada em termos hodiernos. A noção terá de ser preenchida judicialmente - com jurisprudência - atendendo aos factos concretos e, neste contexto analisando os factos provados, não há dúvida que arguido e ofendida namoraram, embora de forma muito especial. O namoro está consubstanciado nos factos provados.
Arguido e ofendida durante o lapso de tempo descrito na sentença – rubrica de factos provados – namoraram ainda que com o mínimo de afecto e estabilidade.
O conceito de namoro tem de ser permanentemente ajustado à realidade actual. Certamente que o princípio da legalidade sairia mais reforçado se o legislador tivesse definido namoro no âmbito da lei. Não optou por essa via, provavelmente pela noção dinâmica que o conceito encerra. No Código Penal o legislador não optou por esse procedimento concedendo alguma margem ao intérprete sem que isso sacrifique a legalidade e tipicidade da norma.
O valor dos conceitos indeterminados e da interpretação da lei em matéria penal obedecem a critérios muito apertados, sem que seja proibido fazer ajustamentos de acordo com a realidade social (interpretação actualista), a isso não se opõe o princípio da legalidade.
Actualmente a relação de namoro integra uma causa expressiva de violência doméstica que o legislador não pode declinar, pelo que compete aos tribunais definir a relação segundo critérios actualistas.
A norma do artº 152 nº 1 alª b) do CP não é inconstitucional.
O recorrente leva-nos ao limite no domínio do pronunciamento.
Muitas das questões técnico-jurídicas, em torno de direitos (fundamentais) de natureza pessoal, compreendem uma abordagem ético-moral difícil de compaginar com tipologias desactualizadas ou de recorte técnico duvidoso. Vejamos, sem prescindir que o nosso foco é técnico-jurídico, de realçar que proibição de excesso consiste num juízo de proporcionalidade clássico, visão pós-positivista e fundante da dogmática dos direitos fundamentais. A proporcionalidade afirma-se como instrumento imprescindível da moderna teoria constitucional. O princípio apresenta-se dirigido como norma de acção ao legislador e também como parâmetro de controlo ao dispor do juiz constitucional. O recorrente assinala predominantemente a primeira variante, (consequentemente) não excluindo o concreto controlo constitucional da norma. Sobre esta matéria, largamente desenvolvida, ver, XV Conferência Trilateral – 24/27 de Outubro de 2013 – Roma – O princípio da proporcionalidade e da razoabilidade na jurisprudência constitucional – fls. 11/45.
O artº 152 nº 1 alª b) do CP prescreve: a pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação.
Além da controvérsia sobre a natureza do crime, superada por imposição legal, urge dizer algo quanto ao bem jurídico protegido complexo – saúde física, psíquica e mental – ameaças, humilhação, coacção, integridade física, privação da liberdade individual e ofensas sexuais – auto determinação sexual: o tipo legal de crime de violência doméstica protege a pessoa individual, na dimensão da sua dignidade humana. De curioso, desde já, assinalar o tipo legal de crime excluí a comunidade familiar ou conjugal… com propriedade porque o crime pode ser praticado contra ex-cônjuge – Taipa de Carvalho – O crime de violência doméstica e o estatuto da vítima – fls.13. Mais curioso ainda é constatar a agravação prevista no artº 152 nº 2 do CP: no domicílio comum ou no domicílio da vítima… ao arrepio daquela observação porque afinal parece querer proteger a comunidade doméstica …Como aceitar esta agravação se os parceiros podem viver em domicílios diferentes…
Em conclusão falar de dignidade da pessoa humana como conceito mais ou menos privativo deste tipo legal é despropositado, tanto mais que aquele valor percorre transversalmente princípios e normas que regem o ordenamento jurídico, muito especialmente os princípios e normas de direito penal…
Mas o tipo, como crime específico impróprio, é surpreendente porque disciplina relações actuais ou pretéritas (cônjuge ou ex-cônjuge); pessoas de sexos indistintos (pessoa de outro ou do mesmo sexo) novamente, com referência ao presente ou passado (mantenha ou tenha mantido) uma relação de namoro, análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação. Para efeito de relação análoga à dos cônjuges de salientar a quebra de unidade jurídica entre alguns elementos do tipo e o disposto no livro de família, artº 1672 (1673,1674,1675 e 1676) todos do CC – os cônjuges estão reciprocamente vinculados pelos deveres de respeito, fidelidade, coabitação, cooperação e assistência, é manifesta e cria embaraços na interpretação daquela norma penal. A dificuldade em caracterizar o conceito de namoro é evidente e disso dá nota alguma doutrina e jurisprudência a exigir alguma estabilidade da relação para não desfigurar a disposição normativa.
A coabitação deixou de ser um pressuposto da relação e o mesmo se diga da reiteração das condutas ilícitas. Basta um acto, de gravidade assinalável para colocar a relação em crise. Certamente que sim, observação sancionada pela jurisprudência mais recente, porém também não é menos verdade que a reiteração assenta num processo relacional típico do modelo de cooperação de vontades para viver em comum ou pelo menos manter uma relação com alguma estabilidade. Este acto absoluto de ruptura só é concebível no exercício de uma qualquer relação que obviamente pressupõe antecedentes ou pelo menos alguns preliminares daquela incompatibilidade…
Os tribunais têm um papel relevante mas não menos importante do que o do poder executivo e sobretudo legislativo. A Alemanha publicita exemplo de um labor cuidado no domínio da interpretação. Recomendamos vivamente uma leitura sobre o livro de Bernd Rüthers – Direito Degenerado. Teoria Jurídica e Juristas de Câmera (Sala) no III Reich. A curiosidade deste livro prende-se com a utilização da Constituição e legislação de Weimar pelo nacional-socialismo – 1933/1945. Principais intérpretes: Carl Schmitt - especialista em direito constitucional (autor do manual Guardião da Constituição) e Karl Larenz, eminente civilista mas também com particular dedicação à metodologia e filosofia do direito. Retirar desta perversão jurídica algumas lições apontadas pelo autor: é possível utilizar um ordenamento jurídico simplesmente mediante interpretação … Por outro lado reconhecer que não há jurisprudência apolítica, ideologicamente neutral e eticamente livre de valores… Terminamos quase como começamos, não deixando de acrescentar que o mesmo autor (Bernd Rüthers) em Revolução Secreta – Do Estado de Direito ao Estado Social. Um Ensaio sobre a Constituição e o Método – Marcial Pons (2020) – traça uma evolução do direito alemão no pós-guerra, muito depois da Lei Constitucional de 1949, (Grundgesetz) até aos dias de hoje – revisão constitucional de 2020. A incidência dos anos /90 é significativa, não só pelo facto da reunificação (ex-RDA) mas, sobretudo no domínio dos princípios da interpretação da constituição – crescente velocidade de mudança das sociedades modernas como um problema jurídico e metodológico. Obviamente a protecção, entre outras, de um modelo dinâmico de casamento e de família como preocupação central…
Resulta salientar que a tarefa do intérprete, por ser casuística tem limites. Os tribunais superiores, em particular o TC, têm importante função (direito judicial) mas não determinam o conteúdo do ordenamento jurídico, sob pena de colocar em perigo o princípio da separação de poderes, manifestação central do estado de direito democrático (Grundgesetz und Methodenlehre) fls. 158/165 da obra citada (Revolução Secreta). Pode parecer fácil afirmar que a conduta ilícita tem de ser punida, porém o direito não se pode alhear da particular relação jurídica e do bem jurídico protegido, utilizando as tipologias mais adequadas para dar respostas satisfatórias. Acompanhar a transformação da sociedade, do ordenamento jurídico e da própria constituição é tarefa do poder legislativo, legitimado democraticamente…
De assinalar que as preocupações vão para lá de uma relação entre pessoas do mesmo sexo, superado que está o casamento homossexual, por decisão do legislador e apreciação do Tribunal Constitucional. A pertinência advém da exacta definição de namoro, onde nem a jurisprudência fixada se atreveu a fazer caminho, como de uma relação sem coabitação, sem estabilidade, dupla ou até entre distintos parceiros, cuja relação nada tenha a ver com algo análogo à dos cônjuges…
Vamos a exemplos para elucidar as dúvidas lançadas.
Para o direito penal (violência doméstica) será relevante uma relação entre dois parceiros que vivem distante geograficamente (em território nacional ou estrangeiro) e apenas se encontram, por causa dos filhos, durante pequenos períodos das férias estivais (?) A relação mantém-se no verão, obedece a algum conceito de estabilidade (?)
Uma parceria de “concubinato” – teúda(o) e manteúda(o) – permite avaliar uma relação de violência doméstica (?) Admite-se uma relação múltipla para efeito de violência doméstica (?). E com um(a) prostituto(a) ou acompanhante avençado(a) que frequenta regularmente uma garçonière (?) E o que se entende actualmente por namoro… E por relações, sempre para o mesmo efeito, da chamada violência intragénero, incluindo relações entre pessoas bissexuais, transsexuais e intersexuais… Atrás, atrevemo-nos a elaborar o esboço de uma definição mas, será que responde aos compromissos actuais de uma juventude hodierna e surpreendente (?). São muitas as interrogações que emergem de uma tipologia deficiente no plano da redacção e onde a jurisprudência vai fazendo caminho, sempre surpreendida pela inovadora realidade.
Desde já vincar a determinabilidade do tipo legal (tipo de garantia) – a origem da fonte (Assembleia da República) como manifestação dos princípios da proporcionalidade, igualdade e legalidade. A proibição da analogia legis como meio de fundamentar a responsabilidade ou até de a agravar (alargamento indevido da punição).
Estamos plenamente convencidos que o recorrente não desdenha o fenómeno da violência doméstica na sociedade contemporânea… Como notas mais impressivas a violência durante o namoro, com prevalência das agressões psicológicas e bidireccionais (mútua e reciproca) – Estudo empírico sobre violência de pareja en España, fls 45/63 – Maria Luisa Cuenca e José Luis Graña Gómez - (Violência y género en las relaciones de pareja). Porém a questão é bem distinta e merece cuidado tratamento, já que a integração de condutas, a esmo, no tipo legal de crime previsto no artº 152 do CP não é indiferente. Este tipo complexo, no confronto com outras tipologias, é mais grave e determina medidas abstractas mais severas – agrava e fundamenta novas responsabilidades.
Por tudo, arguido e vítima, estabeleceram uma relação de namoro e esse conceito, com todas as dificuldades de caracterização, está previsto no tipo legal do artº 152 do CP. Já quanto ao tratamento do tipo, segundo o princípio da proporcionalidade, lançamos as dúvidas sobreditas, porém não podemos deixar de convir que o Tribunal Constitucional é a instituição mais vocacionada para controlar a proibição do excesso no quadro da fiscalização da constitucionalidade.
Não obstante os reparos continuamos a pensar que não há qualquer nulidade e, a avaliação da constitucionalidade da norma, por nos merecer interrogações, só o TC está em privilegiada condição de a fiscalizar.
Improcede a arguida nulidade.
Mantém-se o acórdão.

Nestes termos acordam os juízes que integram esta 2ª Secção Criminal em julgar a arguida nulidade improcedente, confirmando a decisão recorrida.

Sem tributação.
Registe e notifique.

Nos termos dos D/L nº 10-A/2020 e D/L nº 20/2020 de 1 de Maio – artºs 3 (aditamento ao artº 15-A daquele D/L) e 6 – a assinatura dos outros juízes que, para além do relator, tenham intervindo em tribunal colectivo, nos termos previstos no nº 1 do artº 153 do CPP, aprovado pela lei nº 41/2013, de 26 de Junho, na sua redacção actual, pode ser substituída por declaração escrita do relator atestando o voto de conformidade dos juízes que não assinaram.
Nestes termos atesto o voto do Juiz Desembargador-Adjunto Moreira Ramos em conformidade com a decisão.

Porto, 23 de Fevereiro de 2022.
Horácio Correia Pinto.
Moreira Ramos