Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
5551/19.0T9LSB-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: RAÚL ESTEVES
Descritores: CRIME DE DISCRIMINAÇÃO E INCITAMENTO AO ÓDIO E VIOLÊNCIA
DISCURSO DE ÓDIO
LIBERDADE DE EXPRESSÃO
DOLO ESPECÍFICO
Nº do Documento: RP202306075551/19.0T9LSB-A.P1
Data do Acordão: 06/07/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFERÊNCIA
Decisão: NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO INTERPOSTO PELA ARGUIDA
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Num Estado de Direito Democrático e segundo a corrente jurídica dominante, as limitações à liberdade de expressão encontram a sua origem numa visão onde os direitos individuais de livre manifestação de opinião divulgada publicamente relativa a pessoa ou grupo de pessoas por causa da sua raça, cor, origem étnica ou nacional, ascendência, religião, sexo, orientação sexual, identidade de género ou deficiência física ou psíquica deverão ceder face aos interesses comuns de não discriminação, proteção e integração social dessa pessoa ou grupo de pessoas.
II - O discurso de ódio haverá de ser definido como um discurso ilegal de incitação publica à violência ou ao ódio com base em determinadas características, como a cor, a religião, a ascendência e a origem nacional ou étnica; é um discurso que põe em causa os direitos e os valores fundamentais em que assentam as sociedades democráticas, prejudicando não só as vítimas desse discurso, mas também a sociedade em geral.
III - O discurso de ódio com efeitos geradores de violência social ou assente na defesa de políticas de discriminação negativas relativas a pessoa ou grupo de pessoas por causa da sua raça, cor, origem étnica ou nacional, ascendência, religião, sexo, orientação sexual, identidade de género ou deficiência física ou psíquica haverá sempre de ter enquadramento criminal, ultrapassando qualquer teoria de primazia à liberdade de expressão sobre outros direitos.
IV - Na atualidade, assiste-se a uma híper-subjetivação dos direitos morais das comunidades, o que não deixa de influenciar a evolução do pensamento jurídico contemporâneo, com todos os riscos inerentes a esse facto, sendo o principal risco o de se abandonar qualquer juízo crítico sobre os casos submetidos à ação da justiça, deixando-se de alcançar com rigor os riscos e danos envolvidos para as vítimas, ignorando-se de vez a motivação discursiva da critica e da opinião enquanto base do pensamento politico moderno e democrático alicerçado na liberdade de expressão.
V - O preenchimento da previsão do artigo 240.º, n.º 2, al. b), do Código Penal, relativamente à sua tipicidade subjetiva, não se basta com um dolo genérico representado pelo conhecimento e vontade de praticar o ato, exige a prova de um dolo específico do agente representado pela intenção de difamar ou injuriar pessoa ou grupo de pessoas, unicamente por causa da sua raça, cor, origem étnica ou nacional, ascendência, religião, sexo, orientação sexual, identidade de género ou deficiência física ou psíquica.
VI - O complexo raciocínio conclusivo relativamente à caracterização da vontade e da intenção do agente quanto ao comportamento que levou a cabo e que se traduz na factualidade material indiciada em sede de Instrução, nos casos de apreciação das limitações à liberdade de expressão, pode bastar-se, para efeitos de despacho de pronúncia, com a invocação de um dolo genérico, tendo o juiz em sede de julgamento o dever de procurar a verificação e a prova de um dolo específico na motivação do agente.
VII - Para a penalização do discurso difamatório de grupo de pessoas por causa da sua raça, cor, origem étnica ou nacional, ascendência, religião, sexo, orientação sexual, identidade de género ou deficiência física ou psíquica, haverá ainda de ter em conta os danos e riscos causados no referido grupo e na sociedade em geral.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acórdão 5551/19.0T9LSB-A.P1

Sumário:
………………………………
………………………………
……………………………….

Acordam em Conferência na 1ª secção criminal do Tribunal da Relação do Porto

1 Relatório

Nos autos nº 5551/19.0T9LSB-A.P1, que correm os seus termos na comarca do Porto, Juízo de Instrução Criminal de Matosinhos, juiz 1, foi proferido o seguinte despacho de pronúncia:
“Nos presentes autos foi proferido despacho de arquivamento do inquérito que corria contra a arguida AA, id. a fls. 175, no qual era investigada a prática de um crime de discriminação e incitamento ao ódio e à violência, previsto e punido pelo art. 240.º, n.º 2, al. b), do Código Penal.
Inconformado, o assistente “A...” requereu a abertura de instrução, alegando, em síntese, que o despacho de arquivamento é omisso quanto à análise jurídica do crime de discriminação e incitamento ao ódio e à violência, limitando-se a transcrever a norma legal que o prevê.
Acrescentou, após discorrer sobre o bem jurídico tutelado e sobre os elementos objetivos e subjetivos do tipo, que a denunciada proferiu expressões, frases e ideias que consubstanciam, sem sombra para dúvida, difamações e injúrias, ao coligir ataques violentos a dois grupos populacionais, que a mesma descreve como “africanos” e “ciganos”, afirmando, categoricamente, que existe uma diferença civilizacional entre estes grupos “populacionais “africanos” e “ciganos” e aqueles que entende que, tal como ela, partilham de “crenças”, “códigos de honra” e “valores” moralmente superiores, imputando-lhes a prática de comportamentos desviantes e criminosos e tratando-os como seres que não fazem parte do mundo civilizado.
Concluiu, assim, que os factos descritos na participação e reiterados no requerimento de abertura de instrução integram a prática do supra referido crime, pugnando pela sua pronúncia.
Juntou cinco documentos.
Declarada aberta a instrução, realizou-se debate instrutório, que decorreu com observância estrita das formalidades legais.
Foi concedido prazo para a defesa se pronunciar sobre uma eventual alteração da qualificação jurídica dos factos imputados à arguida no requerimento de abertura de instrução, nada tendo sido requerido.
*
Não há nulidades ou outras questões prévias que cumpra conhecer.
Dispõe o art. 286.º n.º 1 do Código de Processo Penal que “a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento”.
A fase de instrução culmina com a prolação de despacho de pronúncia ou de não pronúncia, determinada pela conclusão de existência ou não de indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança (cfr. art. 308.º n.º 1 do Código de Processo Penal).
Por expressa remissão operada pelo n.º 2 do art. 308.º do Código de Processo Penal para o art. 283.º n.º 2 do mesmo diploma legal, o conceito de indícios suficientes a ter em conta para a prolação da decisão instrutória é o mesmo que vale para a decisão de encerramento do inquérito por via de dedução de acusação.
Assim, “consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança”.
Contudo, não é pacífico o entendimento doutrinário e jurisprudencial quanto ao grau de probabilidade de aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança em sede de julgamento que se deve exigir para proferir decisão de pronúncia.
Segue este Tribunal a posição que se vislumbra maioritária, entendendo-se ser necessário que dos indícios resulte uma forte ou séria possibilidade de condenação em julgamento.
Por sintetizar de modo cristalino este entendimento, cita-se muito brevemente o exposto no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça lavrado no processo n.º 03P1493 (datado de 21-05-2003, relator Henriques Gaspar) - “O despacho de pronúncia, como também a acusação, dependem, pois, da existência de prova indiciária, de prima facie, de primeira mas razoável aparência, quanto à verificação dos factos que constituam crime e de que alguém é responsável por esses factos. Não se exigindo a certeza - a certeza processual para além de toda a dúvida razoável - que tem de preceder um juízo condenatório, é mister, no entanto, que os factos revelados no inquérito ou na instrução apontem, se mantidos e contraditoriamente comprovados em audiência, para uma probabilidade sustentada de condenação” (sublinhado nosso).
* Factos indiciados
Com interesse para a decisão instrutória, consideram-se suficientemente indiciados os seguintes factos:
1) A arguida escreveu um artigo de opinião, publicado no Jornal ... no dia 06 de julho 2019, com o seguinte teor:
“Podemos? Não, não podemos
As quotas para negros e ciganos não passam de uma farsa multicultural igualitarista. Não, não podemos integrar por decreto.
(…)
Segundo o Jornal ... de 29 de Junho, o “PS quer discriminação positiva para as minorias étnico-raciais”. Em causa estão sobretudo africanos e ciganos, independentemente de terem nascido em Portugal ou não. Estas minorias excluídas da Cidade, a sua suposta ou real marginalização, constitui a prova de que Portugal “continua a ter um problema de racismo e xenofobia”, independentemente do efeito – que de resto não sofremos – do drama dos refugiados, com o seu pico mais trágico em 2015.
O entrevistado pelo Jornal ..., BB, sociólogo e secretário nacional do Partido Socialista, lamenta “a falta de diversidade no espaço público”, que continua atulhado de homens brancos e mulheres brancas. E, em conformidade com a ideia, grata à esquerda, de que a sociedade e respectiva mentalidade podem ser mudadas por decreto, BB saúda a possibilidade de que o problema da exclusão de negros e ciganos do espaço público se resolva, ou comece a resolver, estabelecendo quotas para deputados coloridos, de forma a conferir à futura Assembleia da República uma dimensão representativa mais conforme com a composição étnico-racial da sociedade portuguesa. Se as quotas tinham impulsionado a emancipação e igualização de direitos das mulheres, se lhes haviam aberto o espaço público, porque não aplicar a mesma receita às minorias étnicas?
A comparação com a igualdade ou paridade de género é inteiramente falaciosa. As mulheres, que sem dúvida têm nos últimos anos adquirido uma visibilidade sem paralelo com o passado, partilham, de um modo geral, as mesmas crenças religiosas e os mesmos valores morais: fazem parte de uma entidade civilizacional e cultural milenária que dá pelo nome de Cristandade. Ora isto não se aplica a africanos nem a ciganos. Nem uns nem outros descendem dos Direitos Universais do Homem decretados pela Grande Revolução Francesa de 1789. Uns e outros possuem os seus códigos de honra, as suas crenças, cultos e liturgias próprios.
Os ciganos, sobretudo, são inassimiláveis: organizados em famílias, clãs e tribos, conservam os mesmos hábitos de vida e os mesmos valores de quando eram nómadas. E mais: eles mesmos recusam terminantemente a integração. É só ver a quantidade de meninas ciganas que são forçadas pelos pais a abandonar a escola a partir do momento em que atingem a puberdade; é só ver a quantidade de meninas e meninos ciganos que abandonam os estudos, apesar dos subsídios estatais de que os pais continuam a gozar para financiar (ou premiar!) a ida dos filhos às aulas; é só ver o modo disfuncional como se comportam nos supermercados; é só ver como desrespeitam as mais elementares regras de civismo que presidem à habitação nos bairros sociais e no espaço público em geral. Os ciganos não praticam a bárbara excisão genital das mulheres. Mas, em vez desta brutal mutilação, vulgar e imperativa nas tribos muçulmanas, aos casamentos entre ciganos segue-se, no dia seguinte, obrigatoriamente, a humilhante demonstração da virgindade da noiva, cujo sangue de desfloramento, estampado nos lençóis, é orgulhosamente exibido perante a comunidade. O que temos nós a ver com este mundo? Nada. O que tem o deles a ver com o nosso? Nada.
Africanos e afro-descendentes também se auto-excluem, possivelmente de modo menos agressivo, da comunidade nacional. Odeiam ciganos. Constituem etnias irreconciliáveis, e desta mútua aversão já nasceram, em bairros periféricos e em guetos que metem medo, batalhas campais só refreadas pela intervenção policial. Os africanos são abertamente racistas: detestam os brancos sem rodeios; e detestam-se uns aos outros quando são oriundos de tribos ou “nacionalidades” rivais. Há pouco tempo, uma empregada negra do meu prédio indignou-se: “Senhora, eu não sou preta, sou atlântica, cabo-verdiana.” Passou-se comigo. A cabo-verdiana desprezava as angolanas porque eram africanas, não atlânticas, e muito mais pretas...
Os partidos, nomeadamente o PS, confessam que, para o fim inconfesso de conquistar mais alguns votos, se vêem hoje obrigados a “assegurar a representatividade das diferentes origens étnico-raciais”. Não por acaso, na entrevista com BB, a visibilidade dessas diferentes origens aparece imediatamente relacionada com a facilitação do acesso ao ensino superior, que deveria abrir-se a todos os alunos, “independentemente da sua nota final” no 12.º ano. “Se fizermos uma política de alargamento de acesso ao ensino superior, já resolvemos parte do problema. Não faz sentido ter um ensino virado para os melhores alunos, mas sim para todos os que têm as condições mínimas para entrar.” BB não explica que condições são essas. Possivelmente, o simples facto de existirem jovens que, apesar de incapazes e preguiçosos, aspiram a um diploma universitário! Pelos vistos, o facilitismo que já reina hoje em dia nas universidades ainda não chega: para resolver “os problemas de racismo e xenofobia” que afligem a esquerda bem-pensante da nossa democracia, teremos de criar um passe de livre-trânsito entre o secundário e a universidade.
Quando esta política for oficialmente consagrada e der os seus resultados, teremos um Parlamento ainda mais ignorante e incompetente do que já temos – sem que o País deixe de “ter um problema de xenofobia e racismo”.
A título de complemento do acesso irrestrito ao ensino superior, BB recomenda também a criação de “um observatório do racismo e da discriminação junto a uma universidade”. Mas como é que se observa o racismo e a discriminação a partir dos gabinetes almofadados onde se sentariam os observadores? A única maneira de observar uma matéria tão fugidia e evanescente é frequentar feiras e supermercados baratos, é entrar nos bairros em que nem a polícia se atreve a pôr os pés. Mas isto é tremendamente maçador e, sobretudo, exige muita coragem física. O observatório não observaria nada e seria perfeitamente inútil, a não ser – isso sim – para criar mais alguns jobs for the boys.
Bem-vindos os analfabetos – lusitanos, africanos ou ciganos – à “visibilidade” no espaço público. De facto, só por uma cabeça de esquerda passaria a ideia peregrina de um acesso irrestrito e incondicional à universidade. E, quanto à melhoria da representatividade parlamentar, o recrutamento de meia dúzia de indivíduos africanos ou ciganos em nada, mas nada, promoveria a integração destas comunidades “invisíveis”, pelo singelo motivo de que a sua “inclusão” não passaria de uma farsa multicultural igualitarista. Por um lado, os eleitos não tardariam a ser vistos pelos seus como desertores, e por outro seriam olhados pelos seus colegas de bancada como forasteiros coloridos. Acontece que a xenofobia e o racismo são um fenómeno universal, e não um problema especificamente português. Por mais que se escancarem as portas da universidade, por mais que se criem srs. doutores de aviário, nunca se dissolverão na comunidade autóctone as minorias exóticas em que uma selvajaria como a excisão genital feminina seja moeda corrente.
Mais extraordinário e mais eloquente é que, na entrevista de BB, nunca surja a palavra “mérito”. Não, não podemos integrar por decreto.
Historiadora”.

2) A arguida proferiu as sublinhadas expressões sabendo que com elas ofendia, rebaixava e inferiorizava os grupos/comunidades visados – que a arguida designa de “africanos e afrodescendentes” e “ciganos” –, em razão da cor da sua pele e origem, pertença cultural ou étnica;
3) A arguida escreveu e divulgou publicamente o seu escrito, querendo fazê-lo da forma que o fez, bem sabendo que o mesmo era ofensivo e discriminatório;
4) A arguida agiu livre e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei criminal.
* Factos não indiciados
Com interesse para a decisão instrutória, nenhum facto foi considerado não indiciado. *
Motivação
A convicção do tribunal, quantos aos factos suficientemente indiciados, baseou-se na consideração conjugada, à luz das regras da experiência, da prova produzida em sede de inquérito e instrução.
Note-se que, no caso dos presentes autos, a discussão não se centra na ocorrência dos factos imputados à arguida, dado que esta admite a autoria do artigo de opinião em causa, mas antes na sua aptidão para configurarem o crime previsto no art. 240.º n.º 2, al. b) do Código Penal.
Contudo, a defesa coloca em causa os factos que consubstanciam o elemento subjetivo da incriminação referida – o dolo –, defendendo que a arguida não pretendeu ofender ou discriminar nenhuma pessoa ou grupo de pessoas com as expressões constantes do referido artigo de opinião.
Oram, tais factos são relativos ao foro psicológico ou da vida interior do agente e não são diretamente demonstráveis por qualquer meio apreensível pelos sentidos.
Deste modo, a prova dos mesmos apenas pode ser feita mediante indícios que os permitam deduzir, sempre observando as regras da experiência comum e da lógica. Ora, no caso dos autos, é manifesto que a arguida conhecia o significado das expressões que proferiu, não se concebendo a possibilidade de que não soubesse que com elas ofendia e humilhava os visados, querendo ainda assim utilizá-las no seu escrito.
* Enquadramento jurídico-penal dos factos
Conforme já ficou dito, o assistente entende ser de imputar à arguida a prática de um crime de discriminação e incitamento ao ódio e à violência.
O ilícito-típico previsto e punido no art. 240.º visa tutelar os seguintes bens jurídicos: igualdade entre todos os cidadãos, a integridade física, a honra e a liberdade de outra pessoa (cfr. Paulo Pinto Albuquerque, Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República Portuguesa e da CEDH, 3.ª edição atualizada, p. 900).
Dispõe o art. 240.º n.º 2, al. b) do Código Penal, “[q]uem, publicamente, por qualquer meio destinado a divulgação, […] [d]ifamar ou injuriar pessoa ou grupo de pessoas por causa da sua raça, cor, origem étnica ou nacional, ascendência, religião, sexo, orientação sexual, identidade de género ou deficiência física ou psíquica, […] é punido com pena de prisão de 6 meses a 5 anos”.
A difamação ou injúria previstos neste tipo têm o conteúdo típico dos crimes de injúria e difamação, previstos e punidos pelos arts. 180.º e 181.º do Código Penal. Assim, nesta modalidade, também o crime de discriminação tutela sobretudo o direito à honra, tanto na aceção de honra interna, relacionada com a consideração da pessoa sobre si própria (a autoestima), como na aceção de honra externa, isto é, a reputação e bom nome que a pessoa tem na comunidade.
Conforme é expendido no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 128/2012, a tutela penal da honra é “uma decorrência direta da dignidade da pessoa humana (artigo 1.º da Constituição) e, nessa medida, um conceito normativo cuja concretização não dispensa a convocação de uma dimensão fática ou existencial do homem enquanto ser social, enquanto pessoa empenhada na realização dos seus planos de vida e ideais de excelência, o que tem correspondência no n.º 1 do artigo 26.º da Constituição”.
Acresce, no caso da discriminação, um elemento especial, na medida em que a lesão da honra da pessoa ou grupo de pessoas relaciona-se casuisticamente com a sua raça, cor, origem étnica ou nacional, ascendência, religião, sexo, orientação sexual, identidade de género ou deficiência física ou psíquica.
“A discriminação consiste na distinção, exclusão, restrição ou preferência de uma pessoa ou de um grupo de pessoas com base em uma característica ou qualidade dessa pessoa ou grupo de pessoas, com vista a que não goze dos mesmos direitos e das mesmas liberdades” (cfr. Paulo Pinto Albuquerque, obra citada, p. 901).
O tipo subjetivo abrange qualquer modalidade de dolo, exigindo-se que o agente pelo menos represente que o facto que pratica constitui o referido crime (cfr. art. 14.º do Código Penal).
Note-se que não se exige uma especial intenção de discriminar. Basta que a lesão da honra se relacione com as mencionadas características ou qualidades da pessoa ou grupo de pessoas.
*
Apesar de a norma incriminadora não o dizer expressamente (como não é necessário – v. Parecer do Conselho do Ministério Público a propósito do Projeto de Lei n.º 251/XIV/1.), a subsunção da factualidade ao referido tipo de ilícito deve sempre ser feita à luz da liberdade de expressão, analisando se o âmbito desta foi extravasado.
Tutelando a Constituição quer o direito à honra, quer o direito à liberdade de expressão e informação, sem que estabeleça hierarquia entre eles, deve procurar-se compatibilizá-los por forma a garantir que ambos mantêm a máxima amplitude possível, restringindo-os na estrita medida do mínimo indispensável. Com efeito, tratando-se de direitos constitucionalmente previstos e tutelados, o conflito entre ambos deve ser dirimido de acordo com os princípios ínsitos na Constituição da República Portuguesa (cfr. arts. 1.º, 18.º n.º 2, 25.º n.º 1, 26.º n.º 1 e 37.º deste diploma).
De forma a auxiliar-nos nessa demanda, devemos recorrer a instrumentos internacionais, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), conforme dita o art. 16.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, que impõe a interpretação dos preceitos constitucionais e legais relativos aos direitos fundamentais à luz daquele diploma.
Também a DUDH, nos seus arts. 2.º, 7.º, 12.º e 19.º, tutela a honra e reputação das pessoas, por um lado, e a sua liberdade de opinião e expressão, por outro, mais uma vez sem hierarquizar ou definir como compatibilizar o âmbito de proteção desses direitos.
Importa ainda convocar o disposto na Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH) e o expendido na jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH) sobre a matéria. A importância (sobretudo desta) não deve ser menosprezada, desde logo pela influência que tem na jurisprudência nacional, ao ponto de haver invertido a tendência, que se verificava nesta, de fazer prevalecer o direito à honra sobre a liberdade de expressão, salvo contadas exceções.
Ora, a CEDH, ao contrário dos outros instrumentos mencionados, não tutela, no plano geral, o direito à honra, prevendo-o apenas como uma das restrições à liberdade de expressão (cfr. art. 10.º n.º 2).
Neste conspecto, o TEDH, na sua análise dos conflitos entre os referidos direitos, assume como ponto de partida a liberdade de expressão, apreciando se estão reunidas as condições necessárias à sua restrição.
Assim, as decisões deste Tribunal vêm assentando num entendimento constante, cujo essencial foi sumarizado no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, lavrado no processo n.º 1272/04.7TBBCL.G1.S1, datado de 30-06-2011 e relatado por João Bernardo, nos seguintes termos:
“A liberdade de expressão constitui um dos pilares fundamentais do Estado democrático e uma das condições primordiais do seu progresso e, bem assim, do desenvolvimento de cada pessoa;
As excepções constantes do art. 10.º n.º 2 devem ser interpretadas de modo restrito; Tal liberdade abrange, com alguns limites, expressões ou outras manifestações que criticam, chocam, ofendem, exageram ou distorcem a realidade.”.
Ainda que se subscreva que a análise deve partir do princípio enunciado no parágrafo que antecede, não se pode olvidar que a liberdade de expressão não é um direito que possa ser exercido de forma irrestrita ou ilimitada (v. Acórdão do Tribunal Constitucional nº 81/84, publicado na 2ª Série do Diário da República de 31 de Janeiro de 1985). Como vimos, ante a colisão de direitos fundamentais constitucionalmente tutelados, mostra-se praticamente impossível o seu exercício sem limites recíprocos.
Conforme já fomos adiantando, existem limites ao exercício do direito de exprimir e divulgar livremente o pensamento e as opiniões, podendo a sua violação conduzir à responsabilização do seu autor, nomeadamente a nível criminal.
Tais limites têm necessariamente de estar legalmente previstos e visar salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.
Nomeadamente, dispõe o n.º 2 do já citado art. 10.º que o exercício da liberdade de expressão “implica deveres e responsabilidades” e “pode ser submetido a certas formalidades, condições, restrições ou sanções, previstas pela lei, que constituam providências necessárias, numa sociedade democrática, para a segurança nacional, a integridade territorial ou a segurança pública, a defesa da ordem e a prevenção do crime, a proteção da saúde ou da moral, a proteção da honra ou dos direitos de outrem, para impedir a divulgação de informações confidenciais, ou para garantir a autoridade e a imparcialidade do poder judicial”.
Em suma, ainda que proibida toda e qualquer forma de censura (cfr. art. 37.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa), é, no entanto, lícita a repressão dos abusos da liberdade de expressão, quando necessária à garantia do respeito por outros direitos e bens jurídicos penalmente tutelados.
De acordo com a jurisprudência do TEDH, as exceções previstas à liberdade de expressão devem ser interpretadas restritivamente, na estrita medida da necessidade de garantir o exercício de outros direitos e interesses, no âmbito de uma sociedade democrática.
Assim, deve apreciar-se:

(1) se a restrição à liberdade de expressão está “prevista na lei” e (2) se prossegue um “objetivo legítimo” e (3) se a condenação do arguido se justifica, se é uma “providência necessária numa sociedade democrática” (“Liberdade de Expressão e Discurso de Ódio”, João Gomes de Sousa - CEJ, 5 de fevereiro de 2021, disponível online).
Tal consubstancia uma clara opção de primazia pela liberdade de expressão, por se tratar de um direito e princípio basilar da democraticidade e pluralismo de ideias e opiniões que se pretendem vigentes na sociedade em que vivemos.
Conforme se resumiu no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora lavrado no processo n.º 53/11.6TAEZ.E2, por referência à decisão do TEDH “Sunday Times”, de 26-04-1979, “as formalidades, condições, restrições e sanções à liberdade de expressão previstas no nº 2 do artigo 10º devem ser convenientemente estabelecidas, corresponderem a uma necessidade imperiosa e interpretadas restritivamente”.
Tendo presente tudo o exposto, não pode perder-se de vista que a referida jurisprudência do TEDH em matéria de conflito destes dois direitos é especialmente abonatória da liberdade de expressão quando está em causa a proteção da privacidade, do bom nome, da reputação e da honra de “figuras públicas” (ver, entre muitos outros, o caso JJ, S.A. v. Portugal, Proc. nº 11182/03 e 11319/03, de 26/04/2007).
Neste sentido, Ireneu Cabral Barreto afirma (em “A Convenção Europeia dos Direitos do Homem”, 2016, 5.ª edição revista e atualizada, p. 290): “Note-se que, quanto aos limites da crítica admissível, eles são mais amplos relativamente a um homem político, agindo como uma personagem pública, do que a um particular”.
Em sentido inverso, pensamos que a liberdade de expressão terá menor amplitude quando o discurso se dirija não a uma, mas um grupo de pessoas, especialmente quando estas constituam, na sociedade em questão, uma minoria.
Deve ainda ter-se em conta a representatividade que tal grupo tem na sociedade em questão, na medida em que tal influencia a capacidade de exercício do direito de resposta e de discussão das ideias, factos e juízos de valor que são dirigidos às pessoas que o compõem.
Vertendo as considerações supra expendidas ao caso dos autos, importa contextualizar e referir alguns aspetos que se consideram importantes.
Por um lado, releva-se que o texto assinado pela arguida foi escrito e publicado no âmbito da discussão política de propostas de medidas concretas, nomeadamente a previsão de quotas para minorias e a generalização do acesso ao ensino superior. Assim, no referido artigo, a arguida visou e criticou a defesa dessas medidas efetuada por BB, sociólogo e secretário nacional do Partido Socialista, em entrevista.
Por outro lado, não pode deixar de se constatar que, nesse contexto ou com esse pretexto, a autora faz uma série de generalizações e afirmações em que formula juízos de valor carregados de conotação objetivamente negativa sobre grupos de pessoas que designa como “africanos” e “ciganos”, nomeadamente:
- “As mulheres […] fazem parte de uma entidade civilizacional e cultural milenária que dá pelo nome de Cristandade. Ora isto não se aplica a africanos nem a ciganos. Nem uns nem outros descendem dos Direitos Universais do Homem decretados pela Grande Revolução Francesa de 1789”;
- “Os ciganos, sobretudo, são inassimiláveis: organizados em famílias, clãs e tribos, conservam os mesmos hábitos de vida e os mesmos valores de quando eram nómadas. E mais: eles mesmos recusam terminantemente a integração”;
- “é só ver o modo disfuncional como se comportam nos supermercados; é só ver como desrespeitam as mais elementares regras de civismo que presidem à habitação nos bairros sociais e no espaço público em geral.”;
- “aos casamentos entre ciganos segue-se, no dia seguinte, obrigatoriamente, a humilhante demonstração da virgindade da noiva, cujo sangue de desfloramento, estampado nos lençóis, é orgulhosamente exibido perante a comunidade. O que temos nós a ver com este mundo? Nada. O que tem o deles a ver com o nosso? Nada.”;
- “Africanos e afro-descendentes também se auto-excluem, possivelmente de modo menos agressivo, da comunidade nacional. Odeiam ciganos. Constituem etnias irreconciliáveis, e desta mútua aversão já nasceram, em bairros periféricos e em guetos que metem medo, batalhas campais só refreadas pela intervenção policial. Os africanos são abertamente racistas: detestam os brancos sem rodeios; e detestam-se uns aos outros quando são oriundos de tribos ou “nacionalidades” rivais.”;
- “Quando esta política for oficialmente consagrada e der os seus resultados, teremos um Parlamento ainda mais ignorante e incompetente do que já temos – sem que o País deixe de “ter um problema de xenofobia e racismo”;
- “Mas como é que se observa o racismo e a discriminação a partir dos gabinetes almofadados onde se sentariam os observadores? A única maneira de observar uma matéria tão fugidia e evanescente é frequentar feiras e supermercados baratos, é entrar nos bairros em que nem a polícia se atreve a pôr os pés.”;
- “Por mais que se escancarem as portas da universidade, por mais que se criem srs. doutores de aviário, nunca se dissolverão na comunidade autóctone as minorias exóticas em que uma selvajaria como a excisão genital feminina seja moeda corrente.”.
Conforme entendeu o Tribunal da Relação de Lisboa (no Acórdão proferido nos presentes autos) a propósito dessas mesmas expressões, «[e]sta adjetivação generalista não deixa de revelar uma manifestação de uma pretensa inferioridade de “ciganos” e “africanos” apresentando-os como inferiores a um outro grupo colocado a uma distância civilizacional e intelectual que partilha de “crenças", “códigos de honra" e “valores" moralmente superiores».
Acresce que várias das expressões utilizadas e das afirmações realizadas pela arguida no artigo de opinião em causa são baseadas em ideias preconceituosas e carregadas de generalizações abusivas, o que o torna não apenas discutível e criticável, mas também objetiva e inequivocamente ofensivo da honra das pessoas que visa, nomeadamente as pessoas de etnia cigana e de origem africana. Tal ofensa assume carácter discriminatório, na medida em que distingue e visa pessoas que constituem “grupos étnico-raciais”, por esse motivo.
Assim, o discurso assumido pela arguida é ofensivo dos grupos identificados como “ciganos” e “africanos”, lesando as pessoas que o compõem nos seus direitos à igualdade, à honra e à consideração.
As referidas expressões e juízos de valor extravasam o âmbito de proteção da liberdade de expressão, sendo suscetíveis de gerar ou potenciar na comunidade sentimentos de desconfiança, rejeição ou até ódio perante os membros da comunidade visada (critério utilizado pelo TEDH no caso Feret contra Bélgica, disponível em https://hudoc.echr.coe.int/eng#{%22itemid%22:[%22001-93626%22]}).
Ora, ainda que tal discurso não incite direta e imediatamente ao ódio e à violência contra estes grupos, o certo é que o tipo penal em causa na disposição em apreço não o exige, estando tal conduta prevista na al. d) do n.º 2 do art. 240.º do Código Penal.
Assim, a suscetibilidade de o discurso fomentar a intolerância entre membros de uma sociedade que se pretende igualitária e não discriminatória é suficiente para conduzir a uma decisão de pronúncia da arguida.
Deste modo, subsumindo os factos tidos por indiciados às considerações supra expendidas, resta concluir pelo preenchimento de todos os elementos objetivos e subjetivos do tipo de crime em apreço, julgando-se que não pode a liberdade de expressão da arguida prevalecer sobre o direito à honra das pessoas que integram os grupos/comunidades visadas no seu escrito.
Face ao exposto, decidir-se-á pela pronúncia da arguida, nos termos do art. 308.º n.º 1 do Código de Processo Penal.
* Da agravação prevista na Lei da Imprensa
Prevê o art. 30.º n.º 2 da Lei n.º 2/99, de 13 de janeiro (Lei da Imprensa) que “[s]empre que a lei não cominar agravação diversa, em razão do meio de comissão, os crimes cometidos através da imprensa são punidos com as penas previstas na respectiva norma incriminatória, elevadas de um terço nos seus limites mínimo e máximo”.
Ora, tal agravação não se aplica aos crimes de difamação e injúria, porquanto estão previstas no art. 183.º n.ºs 1, al. a) e 2 do Código Penal agravações específicas quando tais crimes sejam praticados através de meios que facilitem a sua divulgação ou de meio de comunicação social.
No caso do crime que é imputado à arguida, é elemento objetivo do tipo a publicidade dos factos – “Quem, publicamente, por qualquer meio destinado a divulgação […]”.
A inclusão desse elemento no tipo parece esgotar o sentido de ilicitude acrescida das condutas que o integrem, mesmo que praticadas através da imprensa, não se justificando a aplicação da agravação prevista na referida lei.
*
Pelo exposto, pronunciar-se-á a arguida pela prática dos factos supra enunciados, subsumíveis ao crime de discriminação, previsto e punido pelo art. 240.º, n.º 2, al. b), do Código Penal.
* DECISÃO
Pelo exposto, para julgamento em processo comum, com intervenção do tribunal singular, pronuncio
AA, nascida a .../.../1948, em ..., Lisboa, divorciada, professora universitária, BI nº..., residente na Avenida ..., ..., 7.º E/F, ... Lisboa,
porquanto se considera suficientemente indiciado que:
1) A arguida escreveu um artigo de opinião, publicado no Jornal ... no dia 06 de julho 2019, com o seguinte teor:
“Podemos? Não, não podemos
As quotas para negros e ciganos não passam de uma farsa multicultural igualitarista. Não, não podemos integrar por decreto.
(…)
Segundo o Jornal ... de 29 de Junho, o “PS quer discriminação positiva para as minorias étnico-raciais”. Em causa estão sobretudo africanos e ciganos, independentemente de terem nascido em Portugal ou não. Estas minorias excluídas da Cidade, a sua suposta ou real marginalização, constitui a prova de que Portugal “continua a ter um problema de racismo e xenofobia”, independentemente do efeito – que de resto não sofremos – do drama dos refugiados, com o seu pico mais trágico em 2015.
O entrevistado pelo Jornal ..., BB, sociólogo e secretário nacional do Partido Socialista, lamenta “a falta de diversidade no espaço público”, que continua atulhado de homens brancos e mulheres brancas. E, em conformidade com a ideia, grata à esquerda, de que a sociedade e respectiva mentalidade podem ser mudadas por decreto, BB saúda a possibilidade de que o problema da exclusão de negros e ciganos do espaço público se resolva, ou comece a resolver, estabelecendo quotas para deputados coloridos, de forma a conferir à futura Assembleia da República uma dimensão representativa mais conforme com a composição étnico-racial da sociedade portuguesa. Se as quotas tinham impulsionado a emancipação e igualização de direitos das mulheres, se lhes haviam aberto o espaço público, porque não aplicar a mesma receita às minorias étnicas?
A comparação com a igualdade ou paridade de género é inteiramente falaciosa. As mulheres, que sem dúvida têm nos últimos anos adquirido uma visibilidade sem paralelo com o passado, partilham, de um modo geral, as mesmas crenças religiosas e os mesmos valores morais: fazem parte de uma entidade civilizacional e cultural milenária que dá pelo nome de Cristandade. Ora isto não se aplica a africanos nem a ciganos. Nem uns nem outros descendem dos Direitos Universais do Homem decretados pela Grande Revolução Francesa de 1789. Uns e outros possuem os seus códigos de honra, as suas crenças, cultos e liturgias próprios.
Os ciganos, sobretudo, são inassimiláveis: organizados em famílias, clãs e tribos, conservam os mesmos hábitos de vida e os mesmos valores de quando eram nómadas. E mais: eles mesmos recusam terminantemente a integração. É só ver a quantidade de meninas ciganas que são forçadas pelos pais a abandonar a escola a partir do momento em que atingem a puberdade; é só ver a quantidade de meninas e meninos ciganos que abandonam os estudos, apesar dos subsídios estatais de que os pais continuam a gozar para financiar (ou premiar!) a ida dos filhos às aulas; é só ver o modo disfuncional como se comportam nos supermercados; é só ver como desrespeitam as mais elementares regras de civismo que presidem à habitação nos bairros sociais e no espaço público em geral. Os ciganos não praticam a bárbara excisão genital das mulheres. Mas, em vez desta brutal mutilação, vulgar e imperativa nas tribos muçulmanas, aos casamentos entre ciganos segue-se, no dia seguinte, obrigatoriamente, a humilhante demonstração da virgindade da noiva, cujo sangue de desfloramento, estampado nos lençóis, é orgulhosamente exibido perante a comunidade. O que temos nós a ver com este mundo? Nada. O que tem o deles a ver com o nosso? Nada.
Africanos e afro-descendentes também se auto-excluem, possivelmente de modo menos agressivo, da comunidade nacional. Odeiam ciganos. Constituem etnias irreconciliáveis, e desta mútua aversão já nasceram, em bairros periféricos e em guetos que metem medo, batalhas campais só refreadas pela intervenção policial. Os africanos são abertamente racistas: detestam os brancos sem rodeios; e detestam-se uns aos outros quando são oriundos de tribos ou “nacionalidades” rivais. Há pouco tempo, uma empregada negra do meu prédio indignou-se: “Senhora, eu não sou preta, sou atlântica, cabo-verdiana.” Passou-se comigo. A cabo-verdiana desprezava as angolanas porque eram africanas, não atlânticas, e muito mais pretas...
Os partidos, nomeadamente o PS, confessam que, para o fim inconfesso de conquistar mais alguns votos, se vêem hoje obrigados a “assegurar a representatividade das diferentes origens étnico-raciais”. Não por acaso, na entrevista com BB, a visibilidade dessas diferentes origens aparece imediatamente relacionada com a facilitação do acesso ao ensino superior, que deveria abrir-se a todos os alunos, “independentemente da sua nota final” no 12.º ano. “Se fizermos uma política de alargamento de acesso ao ensino superior, já resolvemos parte do problema. Não faz sentido ter um ensino virado para os melhores alunos, mas sim para todos os que têm as condições mínimas para entrar.” BB não explica que condições são essas. Possivelmente, o simples facto de existirem jovens que, apesar de incapazes e preguiçosos, aspiram a um diploma universitário! Pelos vistos, o facilitismo que já reina hoje em dia nas universidades ainda não chega: para resolver “os problemas de racismo e xenofobia” que afligem a esquerda bem-pensante da nossa democracia, teremos de criar um passe de livre-trânsito entre o secundário e a universidade.
Quando esta política for oficialmente consagrada e der os seus resultados, teremos um Parlamento ainda mais ignorante e incompetente do que já temos – sem que o País deixe de “ter um problema de xenofobia e racismo”.
A título de complemento do acesso irrestrito ao ensino superior, BB recomenda também a criação de “um observatório do racismo e da discriminação junto a uma universidade”. Mas como é que se observa o racismo e a discriminação a partir dos gabinetes almofadados onde se sentariam os observadores? A única maneira de observar uma matéria tão fugidia e evanescente é frequentar feiras e supermercados baratos, é entrar nos bairros em que nem a polícia se atreve a pôr os pés. Mas isto é tremendamente maçador e, sobretudo, exige muita coragem física. O observatório não observaria nada e seria perfeitamente inútil, a não ser – isso sim – para criar mais alguns jobs for the boys.
Bem-vindos os analfabetos – lusitanos, africanos ou ciganos – à “visibilidade” no espaço público. De facto, só por uma cabeça de esquerda passaria a ideia peregrina de um acesso irrestrito e incondicional à universidade. E, quanto à melhoria da representatividade parlamentar, o recrutamento de meia dúzia de indivíduos africanos ou ciganos em nada, mas nada, promoveria a integração destas comunidades “invisíveis”, pelo singelo motivo de que a sua “inclusão” não passaria de uma farsa multicultural igualitarista. Por um lado, os eleitos não tardariam a ser vistos pelos seus como desertores, e por outro seriam olhados pelos seus colegas de bancada como forasteiros coloridos. Acontece que a xenofobia e o racismo são um fenómeno universal, e não um problema especificamente português. Por mais que se escancarem as portas da universidade, por mais que se criem srs. doutores de aviário, nunca se dissolverão na comunidade autóctone as minorias exóticas em que uma selvajaria como a excisão genital feminina seja moeda corrente.
Mais extraordinário e mais eloquente é que, na entrevista de BB, nunca surja a palavra “mérito”. Não, não podemos integrar por decreto.
Historiadora” (sublinhados nossos).
2) A arguida proferiu as sublinhadas expressões sabendo que com elas ofendia, rebaixava e inferiorizava os grupos/comunidades visados – que a arguida designa de “africanos e afrodescendentes” e “ciganos” –, em razão da cor da sua pele e origem, pertença cultural ou étnica;
3) A arguida escreveu e divulgou publicamente o seu escrito, querendo fazê-lo da forma que o fez, bem sabendo que o mesmo era ofensivo e discriminatório;
4) A arguida agiu livre e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei criminal.
Assim, incorreu a arguida na prática de um crime de discriminação, previsto e punido pelo art. 240.º, n.º2, al. b), do Código Penal.”
***
Inconformada, veio a arguida interpor recurso, tendo concluído nos seguintes termos:
I. Vem o presente recurso interposto da decisão instrutória que pronunciou a Recorrente pela prática de um crime de discriminação, p.p. pelo artº 240º nº 2 b) do CP, em virtude ter publicado, no dia 29 de Junho de 2019, um artigo no Jornal ... com o título "Podemos? Não, não podemos?"
II. O artigo da autoria da Recorrente respondia a um artigo publicado no mesmo jornal, dias antes, um artigo com o título "PS quer discriminação positiva para negros e ciganos", da autoria da jornalista CC.
III. Nesse artigo, um sociólogo do Partido Socialista, BB, defendia a criação de quotas para "étnico-raciais", para que o Parlamento reflectisse melhor a diversidade da sociedade portuguesa e que para "africanos" e "ciganos" - como constava do título do artigo referido - se criasse uma espécie de livre trânsito entre o Liceu e a Universidade - "independentemente da nota final no 12 ano".
IV. A Recorrente discorda em absoluto destas medidas e, como intelectual, entende ter o dever de escrutinar o funcionamento da sociedade em que vive e exprimir as suas ideias, contribuindo, assim, para o debate no espaço p úblico de questões relevantes para a sociedade e fá-lo, independentemente de a sua opinião assumir formas agradáveis ou desagradáveis para terceiros.
V. A Recorrente entende que não é possível integrar comunidades "exóticas" por decreto sendo o título do artigo e o lead do mesmo são claros:
Podemos? Não, não podemos
As quotas para negros e ciganos não passam de uma farsa multicultural igualitarista. Não, não podemos integrar por decreto.
VI. A Recorrente limitou-se a enumerar alguns dos argumentos que fundamentavam a sua posição, veementemente oposta, ao estabelecimento de medidas de discriminação positiva, tendo utilizado uma classificação genérica, que reconhece como deficiente, ao falar de "africanos" ou "negros" e de "ciganos", mas a isso foi induzida pelo próprio título do artigo a que respondia e pelas declarações do dirigente do PS, reproduzidas no mesmo artigo.
VII. Em obediência ao princípio da economia processual, a Recorrente dá por reproduzido o alegado nos artigos 41º a 61º das contra-alegações apresentadas em 22/03/2021.
VIII. A Recorrente não afirma, no texto em causa, que há comunidades étnico-raciais "estão condenadas" à exclusão da Civilização Ocidental, diz que não fazem parte dela, no sentido de não estarem na sua origem e exemplificou e fundamentou a sua opinião, referindo práticas culturais e sociais que, actualmente, no entender da Recorrente, divorciam tais comunidades da vida e civilização ocidental, tais como o casamento cigano e a excisão genital feminina.
IX. Sendo certo que que há as que se auto-excluem voluntariamente, não pretendendo ser assimiladas, muitas vezes, de resto, reivindicando o direito à sua diferença e tradições, o que é igualmente um facto.
X. Dúvidas não haverá que, hoje em dia, uma das mais importantes e delicadas questões nas sociedades democráticas é precisamente a que respeita à integração das minorias de toda a ordem, sendo, de resto, o nosso país um caso em que tais problemas não revestem a gravidade com que se apresentam em muitos outros.
XI. Quer se adote o modelo multicultural, como fazem os países anglo-saxónicos, quer se adote o modelo assimilacionista, como prevalece no Continente (nomeadamente em França), por toda a parte as relações entre "nativos" e "exóticos" se têm revelado muito problemáticas, não raro violentas já que, de parte a parte, ninguém renuncia voluntariamente à sua identidade, que de parte a parte se julga ameaçada.
XII. Da visão crítica e, mesmo, pessimista da Recorrente, sublinha-se, não resulta que tenha alguma vez afirmado no texto em causa, ou que seja esse o seu entendimento, a existência de uma qualquer pretensa inferioridade dos ciganos e africanos ou a defesa que os mesmos não sejam tratados de forma igual ou que não gozem dos mesmos direitos que todos os outros cidadãos.
XIII. O que a Arguida não concorda, e por isso manifestou a sua veemente discordância, é com a instituição de um sistema de quotas, aquilo a que se chama discriminação positiva em que, a determinados grupos de pessoas, são conferidos direitos especiais de acesso seja em termos de instituições de ensino superior seja a cargos e lugares públicos, nomeadamente como deputados na Assembleia da República.
XIV. Conforme refere Paulo Pinto Albuquerque na sua obra "Comentário do Código Penal", páginas 899 a 902 (3ª edição):
- a difamação discriminatória não é um ailiud em relação à difamação, antes se trata da mesma lesão do bem jurídico da honra agravada pela intenção discriminatória;
- A discriminação consiste na distinção, exclusão, restrição ou preferência de uma pessoa ou de um grupo de pessoas com base em uma característica ou qualidade dessa pessoa ou grupo de pessoas, com vista a guê não goze dos mesmos direitos e liberdade das outras pessoas.
XV. O texto em causa mais não representa do que a opinião da Recorrente sobre uma determinada questão, uma opinião eventualmente, preconceituosa ou abusiva mas que não configura o crime previsto no arte 240º nº 2 b) do CP, isto é, uma difamação com intenção discriminatória.
XVI. Mesmo que se entenda que alguma ou algumas das expressões utilizadas pela Recorrente seja difamatória, o que se admite por dever de patrocínio, ainda assim, sempre estaria em falta a intenção discriminatória - distinção de um grupo de pessoas com vista a que não goze dos mesmos direitos e liberdades das outras pessoas - diminuição de direitos e liberdades - intenção que, como é meridianamente evidente, não existe no texto, nem quaisquer indícios da mesma, pelo que nunca deveria a Recorrente ter sido pronunciada.
XVII. Saliente-se que a pronúncia não refere quaisquer factos que sustentem, ainda que indiciariamente, tal intenção de redução de direitos e liberdades, sendo certo que a deficiente descrição dos factos integradores do elemento subjetivo do tipo do crime de discriminação, p.p. no art.e 240.º n.2 b) do CP, não é susceptível de ser integrada, em julgamento.
XVIII. Acresce que, os conflitos entre a liberdade de expressão e outros direitos fundamentais, como os consagrados no artigo 26º da Constituição da República Portuguesa, devem resolver-se em termos concretos, isto é, tendo em conta as circunstâncias em que os mesmos ocorrem.
XIX. Ora no caso concreto, temos, de um lado, um artigo de opinião de uma professora universitária, publicado num jornal de referência - isto é, com um público leitor com maior diferenciação - sobre um tema de relevante interesse público e que, passados três anos da sua publicação, em nada contribuiu para qualquer discriminação dos grupos de pessoas em causa antes tendo provocado um saudável e profícuo debate na esfera pública nacional.
XX. Do outro lado, temos uma organização ativista de defesa dos direitos das minorias, sem dúvida louvável nos seus objetivos, mas que, nos presentes autos, leva a sua militância à pretensão de criar e punir um delito de opinião, pretendendo, assim, castigar a Recorrente para exemplo dos que ousem transmitir publicamente opiniões não coincidentes com as suas.
XXI. A decisão sob recurso perfilhou, contra legem, este entendimento que visa punir uma opinião incómoda mas que não é uma opinião discriminatória nos termos legais.
XXII. Não se encontram preenchidos, nem indiciariamente, os elementos do crime p.p. no artº 240º nº 2 b) do CP, pelo que deverá ser revogado o despacho de pronúncia e ser substituído por outro que não pronuncie a Recorrente, assim se fazendo JUSTIÇA!
***
Respondeu ao recurso o Digno Magistrado do Ministério Público junto do Tribunal recorrido, tendo concluído nos seguintes termos:
1. A arguida AA vem interpor recurso da decisão instrutória proferido no processo à margem referenciado, datada de 21-03-2022, que decidiu pronuncia-la pela prática de um crime de um crime de discriminação e incitamento ao ódio e à violência, previsto e punido no art.º 240.º do Código Penal;
2. Nas suas alegações e em síntese, refere: - Que no artigo de opinião de sua autoria e publicado no Jornal ...”, no dia 29-06-2019, sob o título “Podemos? Não não podemos?”, por se tratar de uma resposta ou de uma reflexão discordante de um outro artigo, com o titulo “PS quer discriminação positiva para negros e ciganos”, da autoria da jornalista CC, não extravasa o direito à liberdade de expressão e conclui que não estão verificados os elementos constitutivos daquele tipo de crime;
3. Discordamos, em absoluto, da posição manifestada pela recorrente em sede de recurso, tanto mais que o MP, em sede de instrução, pugnou pela pronuncia da arguida, à semelhança da posição manifestada pela Assistente, e que foi acolhida pelo M. JIC;
4. Senão vejamos:
Este tipo de crime, à semelhança, dos crimes de difamação ou injúria, previstos e punidos pelos artºs 180.º e 181.º do Código Penal, embora de forma mais abrangente, tutela o direito à honra, tanto na aceção de honra interna, como na aceção de honra externa, ou seja, a reputação e o bom nome que a pessoa tem na comunidade, independentemente da sua raça cor, origem étnica ou nacional, ascendência, religião, sexo, orientação sexual, identidade de género ou deficiência física ou psíquica e não se exige uma especial intenção de discriminar;
5. A Constituição da República Portuguesa tutela tanto o direito à honra, como o direito à liberdade de expressão e informação, sem que, contudo, se estabeleça uma hierarquia entre ambos, pelo que se torna necessário, procurar-se compatibilizá-los por forma a garantir que ambos mantêm a máxima amplitude possível, restringindo-os na estrita medida do mínimo indispensável;
6. Assim, por forma a auxiliar-nos nessa apreciação, teremos também que nos socorrer dos instrumentos internacionais, tais como a Declaração Universal dos Direitos Humanos, uma vez que impõe a interpretação dos preceitos constitucionais e legais relativos aos direitos fundamentais à luz daquele diploma, dado que a DUDH, nos seus art.ºs 2.º, 7.º, 12.º e 19.º, também tutela a honra e reputação das pessoas, por um lado, e a sua liberdade de opinião e expressão, por outro, mais uma vez sem hierarquizar ou definir como compatibilizar o âmbito de proteção desses direitos;
7. Para além da DUDH, temos também que nos socorrer da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH), a qual não tutela, no plano geral, o direito à honra, prevendo-o apenas como uma das restrições à liberdade de expressão no seu nº 2 do art.º 10.º e o expendido na jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem sobre tal matéria;
8. O direito à liberdade de expressão, tal como muitos outros, não é um direito absoluto e que possa ser exercido de forma irrestrita ou ilimitada, uma vez que existem limites ao exercício do direito de exprimir e divulgar livremente o pensamento e as opiniões;
9. Tais limites têm necessariamente de estar legalmente previstos e dispõe o n.º 2 do já citado art.º 10.º que o exercício da liberdade de expressão “implica deveres e responsabilidades” e “pode ser submetido a certas formalidades, condições, restrições ou sanções, previstas pela lei, que constituam providências necessárias, numa sociedade democrática, para a segurança nacional, a integridade territorial ou a segurança pública, a defesa da ordem e a prevenção do crime, a proteção da saúde ou da moral, a proteção da honra ou dos direitos de outrem, para impedir a divulgação de informações confidenciais, ou para garantir a autoridade e a imparcialidade do poder judicial”.
10. De acordo com a jurisprudência do TEDH, tal como refere a decisão instrutória, as exceções previstas à liberdade de expressão devem ser interpretadas restritivamente, na estrita medida da necessidade de garantir o exercício de outros direitos e interesses, no âmbito de uma sociedade democrática, ou seja, se a restrição à liberdade de expressão está “prevista na lei” e se prossegue um “objetivo legítimo”;
11. A jurisprudência do TEDH em matéria de conflito destes dois direitos tem dado primazia à liberdade de expressão quando está em causa a proteção da privacidade, do bom nome, da reputação e da honra de “figuras públicas”, mas terá menor amplitude quando o discurso se dirija não a uma, mas um grupo de pessoas, especialmente quando estas constituam, na sociedade em questão, uma minoria;
12. Posto isto, circunscrevendo-nos à decisão instrutória de pronuncia, verifica-se que após os M.º JIC ter plasmado como formulou a sua convicção, a luz dos referidos princípios, doutrina e jurisprudência, entendeu que o artigo de opinião da autoria da arguida e publicado sob o título “Podemos? Não Podemos?”, pese embora, tivesse sido escrito no âmbito da discussão política de propostas de medidas concretas, por um partido político, no caso o PS, quanto à previsão de quotas para minorias e a generalização do acesso ao ensino superior, extravasa o direito fundamental dos cidadãos a uma informação livre e pluralista, essencial à prática da democracia, uma vez que não se limitou apenas a expressar o seu pensamento ou entendimento sobre a integração social de pessoas ou grupos;
13. As citações e as afirmações da arguida, porque feitas de uma forma generalizante, dirigem-se a grupos identificados pela etnia, cor de pele ou origem nacional “africanos” e “ciganos” e as características que lhe são apontadas traduzem-se em juízos de valor apresentando-os como inferiores a um outro grupo colocado a uma distância civilizacional e intelectual que partilha de “crenças", “códigos de honra" e “valores" moralmente superiores;
14. Destarte, a apreciação feita pela arguida é inequivocamente discriminatória e ofensiva desses grupos identificados, o que faz com que a mesma seja lesiva dos seus direitos à igualdade, à honra e à consideração, colocando-os a um nível inferior das outras pessoas, ditas por normais, como que baseadas em ideias preconceituosas, o que extravasam os referidos limites da liberdade de expressão e de opinião e, como tal, são aptas a gerar ou a potenciar naquelas comunidades sentimentos de desconfiança, rejeição ou até ódio perante os demais membros da comunidade e
15. O facto de o artigo de opinião fomentar a intolerância entre membros de uma sociedade que se pretende igualitária e não discriminatória é, por si só, suscetível de preencher a tipologia e a conduta elencada na al. d) do n.º 2 do art.º 240.º do Código Penal, pelo qual a arguida AA foi pronunciada.
Assim, a Decisão Instrutória recorrida aplicou de forma correta o DIREITO ao caso concreto, ao pronunciar a arguida AA nos sobreditos termos pelo que deve ser mantida.
***
Neste Tribunal a Digna Procuradora Geral Adjunto teve vista nos autos, tendo emitido parecer no mesmo sentido.
Deu-se cumprimento ao disposto no artigo 417º nº 2 do CPP.
Foram os autos aos vistos e procedeu-se à conferência.
Cumpre assim apreciar e decidir.
***
2 Fundamentação.
Atentas as conclusões do recurso, sendo estas que balizam o seu objeto, a única questão a apreciar e decidir é se os factos indiciados acima indicados integram a prática pela arguida do crime pela qual foi pronunciada.
Vejamos então.
Entendeu o M. Juiz de Instrução que a factualidade indiciada nos autos preenchem a tipicidade objetiva e subjetiva da previsão constante do nº 2 al. b) do artigo 240º do C.P.
Como é sabido, e por isso mesmo sobre este tema não nos iremos debruçar, visa a fase processual da instrução a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter a causa a julgamento – artigo 286º nº 1 do CPP – tão somente isso, não envolvendo um juízo de condenação final definitivo.
Compulsados os autos podemos concluir que, o Ministério Público, por despacho de 177 a 186 decidiu arquivar o inquérito, tendo para tanto e em suma considerado que, e transcreve-se: (…) “As referidas considerações devem ser toleradas de forma alargada quando está em causa a gestão de assuntos políticos, na medida em que importa garantir a qualquer pessoa a liberdade de exprimir o seu pensamento, sem censura. De resto, o tema das declarações tem relevo social e actual, assume interesse público e não resvala para o ataque pessoal.
O entendimento contrário traduzir-se-ia numa ingerência na liberdade de expressão inadmissível, na medida em que não existe nenhuma necessidade social imperiosa que a justifique, de modo convincente.
A conduta da denunciada mais não é do que o exercício de um direito, o direito de livre expressão, nele incluindo o direito de opinião e critica.
Com efeito, uma vez que o artigo em apreço foi publicado no exercício de um direito de opinião e critica (que é garantido a qualquer pessoa), tendo em atenção o dito princípio da ponderação de interesses, bem como o princípio da adequação prática, está justificada a actuação da denunciada e excluída a ilicitude”(…).
Ao contrário do entendido pela Digna Magistrada do Ministério Público, entendeu o M. Juiz de Instrução, que existem limites ao exercício do direito de exprimir e divulgar livremente o pensamento e as opiniões, podendo a sua violação conduzir à responsabilização do seu autor, nomeadamente a nível criminal.
Diversamente do que é frequente na fase de instrução, neste caso particular o que está em apreço não são os indícios recolhidos em sede de inquérito, pois a conduta da arguida está espelhada no seu artigo de opinião publicado num jornal diário, sendo pacífico quais os concretos comportamentos que estão sujeitos ao escrutínio jurídico e ao subsequente preenchimento do tipo objetivo estatuído no artigo 240º nº 2 al. b) do C.P.
Estamos perante uma questão que envolve uma tomada de posição relativamente à dimensão da proteção que a liberdade de expressão pode acolher no que se refere à opinião e à critica numa sociedade democrática.
Antes de se passar a essa fase, importa situar no seu preciso contexto a iniciativa da arguida revelada no seu escrito.
Claramente se conclui que pretendeu a arguida manifestar-se contra um artigo publicado no mesmo jornal diário, dias antes, com o título "PS quer discriminação positiva para negros e ciganos", da autoria da jornalista CC.
Nesse artigo, um sociólogo do Partido Socialista, BB, defendia a criação de quotas para "étnico-raciais", para que o Parlamento refletisse melhor a diversidade da sociedade portuguesa e que para "africanos" e "ciganos" - como constava do título do artigo referido - se criasse uma espécie de livre trânsito entre o Liceu e a Universidade - "independentemente da nota final no 12º ano".
Tal tema – a discriminação positiva de cidadãos entre si – não é um tema de discussão política consensual, sendo já longa e inconclusiva a sua apreciação, dividindo há décadas os políticos e as comunidades, um pouco por toda a sociedade ocidental democrática, e a sua razão de ser passa pelo posicionamento ideológico/filosófico dos seus interlocutores, mais precisamente e grosso modo, entre aqueles que defendem o primado da liberdade individual e do mérito de cada cidadão para obter uma oportunidade social e os que defendem o primado da comunidade social no seu todo enquanto motor gerador dessas mesmas oportunidades para os cidadãos mais desfavorecidos seja por razões económicas, seja por razões de estigmatização social derivadas da sua cor de pele ou da sua proveniência étnica minoritária.
Como é evidente, não está em discussão nestes autos qualquer posicionamento relativamente a essa matéria, o que nos importa é o reconhecimento que tal questão tem conteúdo político, ideológico, suprapartidário, e que causa uma profunda fratura no meio intelectual e filosófico.
Não deixa de ser curioso assinalar que a génese da questão em discussão tem exatamente os mesmos contornos que o objeto destes autos, ou seja, não a propósito de qualquer adesão, ou não, a uma politica de discriminação positiva de ingresso nas faculdades para cidadãos de origem africana ou provenientes de etnias minoritárias, como se identifica a comunidade cigana, mas sim porque a razão de ser das limitações à liberdade de expressão que iremos abordar, tem igualmente a sua origem numa visão onde os direitos individuais de livre manifestação de opinião encontram entraves numa visão onde os valores sociais e comunitários deverão prevalecer, nos mesmos moldes em que o mérito individual de cada um cidadão poderá ter que ceder face aos interesses comuns de integração escolar de cidadãos provenientes de meios socialmente desfavorecidos em razão da raça ou da etnia.
E, não se pretendendo que a presente decisão tenha qualquer pretensão académica, permitimo-nos revelar, em abono do que acabámos de dizer, o estudo corporizado no livro “O liberalismo e os Limites da Justiça” de Michael J. Sandel, edição da Fundação Calouste Gulbenkian, 2005, onde esse professor da Universidade de Harvard debruça-se precisamente sobre a liberdade individual e os seus limites, nomeadamente no que se refere à discriminação positiva de cidadãos e à liberdade de expressão.
Na verdade, e referindo-se à discriminação positiva de cidadãos no acesso às universidades, tal autor, manifestando-se contra a possibilidade de tal ser admissível, apelida a mesma de “excentricidade moral” (cfr, pág, 191 da obra citada) justificando a pertinência académica de tal matéria, enquanto afloração de uma conceção da justiça cuja base ideológica parte do primado dos valores comunitários em prejuízo da liberdade individual.
Quanto às limitações à liberdade de expressão, é claro o autor citado quando defende que haverá que distinguir entre aqueles “que prezam a liberdade individual e aqueles para quem os valores da comunidade ou a vontade da maioria devem prevalecer sempre; ou, então entre os que acreditam em direitos humanos universais e os que insistem em que os valores que enformam as diferentes culturas e tradições se encontram acima de qualquer critica ou juízo.” (…) “No caso dos discursos de ódio, aquilo que é considerado como um mal tem os seus danos limitados pela concepção liberal da pessoa. Nos termos desta concepção, a minha dignidade consiste, não em quaisquer papéis sociais que eu possa desempenhar, mas, pelo contrário, na minha capacidade de eleger os meus papéis e a minha identidade para mim mesmo. Isto significa, porém, que a minha dignidade jamais pode ser beliscada por um insulto dirigido contra um grupo com o qual eu me possa identificar. Na perspetiva liberal, nenhum discurso de ódio poderá constituir um mal em si mesmo, uma vez que o respeito mais elevado é o de um sujeito por si mesmo, independentemente dos seus objetivos ou das suas ligações”(…) “Por isso mesmo um liberal opor-se-ia ao estabelecimento de restrições ao discurso de ódio, a não ser na medida em que desse discurso pudesse decorrer um dano físico concreto – algum dano para além do próprio discurso”(…). Pelo contrário, “um comunitarista poderá responder dizendo que a concepção liberal de dano é demasiado estreita. Para pessoas que se vêem a si mesmas como definidas pelo grupo étnico ou religioso a que pertencem, um insulto ao seu grupo pode causar-lhes um dano tão real e prejudicial como alguns danos físicos”.
No tempo em que tal estudo foi pensado (finais dos anos 70 do século XX) não tinham ainda aparecido as “redes sociais” tal como hoje as conhecemos, sendo a comunicação politica e ideológica restrita aos meios de comunicação social tradicionais, aos panfletos e aos discursos públicos, nem tão pouco se havia ainda firmado como movimento identificável o que hoje é conhecido e apelidado como movimento “Woke”.
Na verdade, nos tempos que correm, assiste-se a uma híper-subjetivação dos direitos morais das comunidades ou grupos minoritários integrantes da sociedade a que não é alheio o acima referido movimento “WOKE”, caraterizado pela extrema sensibilidade à ofensa seja ela dirigida a um só individuo que se identifique com essa comunidade ou grupo, seja ela dirigida a toda a comunidade ou grupo.
Essa militância ideológica de defesa intransigente e ativa da honra e consideração que tais comunidades ou grupos devem merecer – e note-se que não estamos a emitir qualquer juízo de opinião sobre o mérito ou desmérito desse movimento – não deixa de influenciar a evolução do pensamento jurídico contemporâneo, com todos os riscos inerentes a esse facto, sendo o principal risco o de se abandonar qualquer juízo crítico sobre os casos submetidos à ação da justiça, deixando-se de alcançar com rigor os riscos e danos envolvidos para as vítimas, ignorando-se de vez a motivação discursiva da critica e da opinião enquanto base do pensamento politico moderno e democrático alicerçado na liberdade de expressão.
Importa, contudo, desde já esclarecer que quer se perfilhe uma ou outra perspetiva filosófica, dúvidas não temos que o discurso de ódio com efeitos geradores de violência social ou assente na defesa de políticas de discriminação racial ou étnica negativas haverão sempre de ter enquadramento criminal, ultrapassando qualquer teoria de primazia à liberdade de expressão sobre outros direitos, o que não será, forçosamente, o caso que nos ocupa.
E para terminar este pequeno enquadramento filosófico quanto ao estado atual do pensamento jurídico no que se refere à liberdade de expressão, somente mais uma ultima citação do autor que estamos a revelar, e que sintetiza o seu pensamento sobre a matéria, e a que se adere, como se verá:
“Não é pelo facto de a justificação do direito de liberdade de expressão depender de um juízo moral substantivo acerca da importância desse discurso relativamente aos riscos que o seu exercício possa acarretar que se atira para o poder judicial o dever de avaliar, em cada caso concreto, os méritos desse mesmo discurso. (..). Qualquer teoria de direitos exige certas regras e doutrinas gerais, de modo a poupar o juiz a ter de tratar todos os casos que lhe são presentes a partir da estaca zero. No entanto, em certos casos difíceis, o juiz não pode aplicar estas regras gerais, tendo antes que apelar, desde logo, para os objetivos morais que justificam a prática em causa”
Vejamos então as “regras gerais” de que nos fala Michael J. Sandel.
Como anotámos, a Digna Magistrada do Ministério público que proferiu despacho de arquivamento, fundamentou tal decisão no primado da liberdade de expressão, enquanto direito individual que deverá prevalecer em sede de discussão política, sendo que o M. Juiz de Instrução acabou por proferir despacho de pronuncia entendendo que haveriam limitações a esse direito individual sempre que afetasse outros direitos igualmente inalienáveis como o sejam o direito à honra de comunidades identificáveis como minoritárias e desfavorecidas.
O despacho de pronuncia dado a recurso tipificou o comportamento da arguida como adequado a preencher a previsão do artigo 240º nº 2 al. b) do Código Penal (CP), sendo a sua redação a seguinte:
“Artigo 240.º
Discriminação e incitamento ao ódio e à violência
2 - Quem, publicamente, por qualquer meio destinado a divulgação, nomeadamente através da apologia, negação ou banalização grosseira de crimes de genocídio, guerra ou contra a paz e a humanidade:
b) Difamar ou injuriar pessoa ou grupo de pessoas por causa da sua raça, cor, origem étnica ou nacional, ascendência, religião, sexo, orientação sexual, identidade de género ou deficiência física ou psíquica;
é punido com pena de prisão de 6 meses a 5 anos.”
Ora, como se retira da redação do preceito, a conduta do agente consiste em difamar, ou injuriar, pessoa ou grupo de pessoas por causa da sua raça, cor, origem étnica ou nacional, ascendência, religião, sexo, orientação sexual, identidade de género ou deficiência física ou psíquica, desde que tal seja feito publicamente, por qualquer meio destinado a divulgação, sendo exemplo dado pelo legislador a apologia, negação ou banalização grosseira de crimes de genocídio, guerra ou contra a paz e a humanidade.
Não consta dos exemplos a apologia e o combate às politicas de discriminação positiva no acesso às universidades, mas o que está em causa não é o tema em concreto do objeto da comunicação, mas sim os termos em que a mesma se funda, sendo que as alusões feitas aos cidadãos negro e aos cidadãos de etnia cigana surgem como referências generalizadas e globalizantes características da sua raça, que, segundo a arguida os tornam incapazes e desmerecedores de qualquer politica de descriminação positiva, por não o merecerem, sendo claro que estamos perante uma possível ofensa à honra de um grupo e não de uma qualquer pessoa individual integradora desse mesmo grupo.
Ora, conforme se pode encontrar no acórdão do STJ proferido nos autos 48/12.2YREVR.S1, em 5 de julho de 2012, e disponível em www.dgsi.pt, embora a propósito de outra questão, acaba por concluir esse Venerando Tribunal pela necessidade de ser reconhecido e provado o dolo específico do agente dizendo sobre o artigo 240º nº 2 al. b) que, e transcreve-se: “Daí também a exigência no sentido de a negação difamatória ou injuriosa ser com a intenção de incitar à discriminação racial ou religiosa ou de a encorajar sendo necessário que o agente actue com intenção de incitar à discriminação racial ou religiosa ou de a encorajar ( dolo específico).”
E entende-se que assim seja, pois, a liberdade de expressão surge no nosso ordenamento jurídico com uma eficaz e rigorosa tutela constitucional, iniciando esse diploma fundamental, logo no seu artigo 2º por referir que a República Portuguesa é um Estado de direito democrático, baseado na soberania popular, no pluralismo de expressão e organização política democráticas, no respeito e na garantia de efetivação dos direitos e liberdades fundamentais (…), reforçando no seu artigo 37º que todos têm o direito de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, bem como o direito de informar, de se informar e de ser informados, sem impedimentos nem discriminações e que o exercício destes direitos não pode ser impedido ou limitado por qualquer tipo ou forma de censura.
A liberdade de expressão é assim um valor/direito que assume a dignidade Constitucional e como refere Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Anotada, pág 573) o direito de expressão é desde logo e em primeiro lugar a liberdade de expressão, isto é o direito de não ser impedido de exprimir-se e de divulgar ideias e opiniões. Neste sentido, enquanto direito negativo ou direito de defesa, a liberdade de expressão é uma componente da clássica liberdade de pensamento. Referem ainda esses autores que a exclusão constitucional da possibilidade de qualquer tipo de limitação ou censura é tão vincado que se exclui obviamente o “delito de opinião” mesmo quando se trate de opiniões que se traduzam em ideologias ou posições anticonstitucionais.
Contudo, e no próprio artigo 37º da CRP, no seu número 3, aponta o legislador constitucional a possibilidade de o exercício do direito de expressão poder envolver responsabilidade criminal, dizendo, e transcreve-se: “As infrações cometidas no exercício destes direitos ficam submetidas aos princípios gerais de direito criminal ou do ilícito de mera ordenação social, sendo a sua apreciação respetivamente da competência dos tribunais judiciais ou de entidade administrativa independente, nos termos da lei.”
Tal possibilidade, foi aflorada no Acórdão do Tribunal Constitucional nº 81/84 ( 2ª série do DR de 31 de janeiro de 1985) onde se referiu expressamente que: “ A liberdade de expressão - como de resto, os demais direitos fundamentais - não é um direito absoluto, nem ilimitado. Desde logo, a proteção constitucional de um tal direito não abrange todas as situações, formas ou modos pensáveis do seu exercício. Tem, antes, limites, imanentes. O seu domínio de proteção pára, ali onde ele possa pôr em causa o conteúdo essencial de outro direito ou atingir intoleravelmente a moral social ou os valores e princípios fundamentais da ordem constitucional (v. neste sentido: J. C. Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, Coimbra, 1983, pp. 213 e segs.). Depois, movendo-se num contexto social e tendo, por isso, que conviver com os direitos de outros titulares, há-de ele sofrer as limitações impostas pela necessidade de realização destes. E, então, em caso de colisão ou conflito com outros direitos - designadamente com aqueles que se acham também directamente vinculados à dignidade da pessoa humana [v. g. o direito à integridade moral (artigo 25º, nº 1) e o direito ao bom nome e reputação e à reserva da intimidade da vida privada e familiar (artigo 26º, nº 1)] -, haverá que limitar-se em termos de deixar que esses outros direitos encontrem também formas de realização. Dizer isto é reconhecer que, sendo proibida toda a forma de censura (artigo 37º, nº 2), é, no entanto, lícito reprimir os abusos da liberdade de expressão”
No caso em apreço, haveremos de concluir que a conduta da arguida, na fase em que se encontram os autos, ainda está compreendida no âmbito da responsabilidade criminal, pois e não obstante o reconhecimento constitucional da liberdade de expressão e a proibição da censura, apenas se sairá deste âmbito criminal se se concluir não ter havido dolo específico da mesma quanto à ofensa à honra dos grupos e comunidades que cita ou que o risco comunitário foi inexistente ou irrelevante.
Importa chamar à colação a Convenção Europeia dos Direitos do Homem, (CEDH) nomeadamente o disposto nos seus artigos 10º e 17º, a saber:
ARTIGO 10°
Liberdade de expressão
1. Qualquer pessoa tem direito à liberdade de expressão. Este direito compreende a liberdade de opinião e a liberdade de receber ou de transmitir informações ou ideias sem que possa haver ingerência de quaisquer autoridades públicas e sem considerações de fronteiras. O presente artigo não impede que os Estados submetam as empresas de radiodifusão, de cinematografia ou de televisão a um regime de autorização prévia.
2. O exercício desta liberdades, porquanto implica deveres e responsabilidades, pode ser submetido a certas formalidades, condições, restrições ou sanções, previstas pela lei, que constituam providências necessárias, numa sociedade democrática, para a segurança nacional, a integridade territorial ou a segurança pública, a defesa da ordem e a prevenção do crime, a protecção da saúde ou da moral, a protecção da honra ou dos direitos de outrem, para impedir a divulgação de informações confidenciais, ou para garantir a autoridade e a imparcialidade do poder judicial.
ARTIGO 17°
Proibição do abuso de direito
Nenhuma das disposições da presente Convenção se pode interpretar no sentido de implicar para um Estado, grupo ou indivíduo qualquer direito de se dedicar a atividade ou praticar actos em ordem à destruição dos direitos ou liberdades reconhecidas na presente Convenção ou a maiores limitações de tais direitos e liberdades do que as previstas na Convenção.
Ora, é com base precisamente no artigo 17º da CEDH que surge a necessidade de comprovar a vontade expressa ( cfr- decisão do TEDH de 17 de junho de 2004, no caso Fdanoka contra Letónia), daqueles que, pretendendo beneficiar do direito consagrado no artigo 10º do mesmo diploma, pretendem destruir com o seu exercício outros direitos ou liberdades igualmente fundamentais numa sociedade democrática e plural, e espelhados nessa mesma Convenção, como o sejam, e no caso, os espelhados pelo seu artigo 14º sob a epigrafe “proibição de discriminação”.
Recentemente o Conselho da Europa, (cfr. comunicação do Conselho da Europa de 3 e 4 de Março de 2022, in https://www.consilium.europa.eu/pt/meetings/jha/2022/03/03-04/) referiu-se à temática entendendo que: “O discurso e os crimes de ódio estão disseminados por toda a União e têm vindo a aumentar nos últimos anos. Comprometem os direitos e valores fundamentais em que assenta a União e causam danos não só às vítimas individuais, mas também à sociedade em geral. Põem em causa o pluralismo e a tolerância, conduzindo à polarização e afetando negativamente o debate público e a vida democrática. Neste contexto, a Comissão Europeia apresentou uma comunicação em que propõe alargar a lista de crimes reconhecidos a nível europeu de modo a incluir o discurso de ódio e os crimes de ódio.”
Entendendo-se assim, o discurso de ódio como sendo o discurso ilegal de incitação ao ódio, definido no direito europeu como uma incitação pública à violência ou ao ódio com base em determinadas características, como a cor, a religião, a ascendência e a origem nacional ou étnica. É um discurso que põe em causa os direitos e os valores fundamentais em que assentam as sociedades democráticas, prejudicando não só as vítimas desse discurso, mas também a sociedade em geral. Além disso, o discurso de ódio é um entrave ao pluralismo e à diversidade, devido à polarização a que conduz e aos seus efeitos negativos no debate público e na vida democrática.
Estes princípios gerais, de que nos fala Michael J. Sandel, como referimos anteriormente, são no fundo os que o juiz haverá de ter em conta quando apreciar o preenchimento da tipicidade do artigo 240º nº 2 al. b) e o seu preenchimento relativamente ao comportamento da arguida e a sua responsabilização criminal.
No caso, entendeu o M. Juiz de Instrução estar verificado, quer quanto à sua parte objetiva, quer quanto à sua parte subjetiva.
Na apreciação que fez, e ao contrário do que anteriormente havia sido feito pela Magistrada do Ministério Público, entendeu o M. Juiz de Instrução que a liberdade de expressão constitucionalmente consagrada, no caso, haveria de ser limitada pois as exigências comunitárias de salvaguarda dos direitos das comunidades afetadas pelo discurso da arguida assim o exigiam.
Entendeu, também, que “o tipo subjetivo abrange qualquer modalidade de dolo, exigindo-se que o agente pelo menos represente que o facto que pratica constitui o referido crime (cfr. art. 14.º do Código Penal).”, afastando da apreciação a exigência de uma especial intenção de discriminar, referindo que: “Basta que a lesão da honra se relacione com as mencionadas características ou qualidades da pessoa ou grupo de pessoas.”
Ainda na sua apreciação jurídica, em abono da tese que perfilhou, aponta o M. Juiz de Instrução o acórdão do TEDH no caso “Feret contra Bélgica”, concluindo dai que as referidas expressões e juízos de valor proferidos pela arguida, extravasam o âmbito de proteção da liberdade de expressão, sendo suscetíveis de gerar ou potenciar na comunidade sentimentos de desconfiança, rejeição ou até ódio perante os membros da comunidade visada, tal qual considerou o referido aresto.
Não deixa contudo de ser curioso assinalar, no que se refere ao acórdão do TEDH no caso “Ferét contra Bélgica que a decisão final, proferida em 16 de julho de 2009, e que decidiu que não seria contrária à liberdade de expressão a condenação por delito de incitação e de discriminação e ódio o presidente de um partido político de extrema direita denominado “Frente Nacional” pela divulgação diversos textos onde se propunha a expulsão dos imigrantes irregulares a viveram na Bélgica, foi subscrito por 4 votos a favor e 3 contra, o que revela que, mesmo os Juízes do TEDH estavam divididos quanto à proteção dos direitos em causa – a liberdade de expressão e os direitos dos imigrantes irregulares.
Esse mesmo acórdão, foi objeto de estudo e comentário jurídico num artigo de opinião da autoria de Rafael Alácer Guirao (Professor Titular de Direito Penal na Universidade Rey Juan Carlos) publicado sob o título “Discurso Del Odio y Discurso Politico – En defensa da la libertad do los intolerantes” na Revista Electrónica de Ciencia Penal y Criminologioa e disponível para consulta no endereço http://criminet.ugr.es/recpc.
Nesse artigo, pode encontrar-se, como o seu subtítulo indica, “En defensa da la libertad do los intolerantes”, uma conclusão final que importa registar enquanto reveladora da dificuldade prática que os Tribunais de uma sociedade democrática têm para ajuizar a ilicitude dos agentes dos crimes relativos ao discurso de ódio, e que se transcreve, em tradução livre por nós agora feita:
“Sem embargo, uma sociedade estável em que não existam situações estruturais de desequilíbrio ou desigualdade entre distintos coletivos sociais, possuirá mecanismos suficientes para oferecer resistência ao discurso de ódio, pelo que não está justificado o recurso a um instrumento de ultima
ratio como é a pena. Máxime em democracias que se definem como não militantes, as que lhes é inerente a tolerância frente à intolerância”
Todas as questões levantadas por este Tribunal de Recurso, não tem em si mesmo um juízo de censura, relativamente ao despacho de pronuncia razão pela qual será mantido.
E a sua manutenção funda-se essencialmente no reconhecimento que na fase processual em que os autos se encontram, sempre seria prematuro a opção por uma das várias soluções jurídicas que o caso permite.
Em rigor, e perante os factos assentes, a tipicidade objetiva do ilícito revela-se preenchida e mostra-se igualmente preenchidos os pressupostos de que depende a aplicação à arguida de uma pena – cfr- artigo 308º nº 1 do CPP.
O preenchimento da tipicidade subjetiva, no caso em concreto, não pode ser extraída com ânimo leve, sendo o complexo raciocínio conclusivo relativamente à caracterização da vontade e da intenção da arguida fortemente condicionado nesta fase processual, tanto mais que defende este Tribunal de Recurso, tal como defendeu o Venerando STJ no acórdão supra citado, a necessidade da verificação de um dolo específico de difamação, o que somente em julgamento será possível apurar.
Efetivamente, será em fase do Julgamento que tudo se irá decidir, sendo a fase processual própria e por excelência para, no seio de um amplo e público contraditório, ser apreciada em toda a sua dimensão, não só as motivações psicológicas da arguida, como também os riscos e danos que o seu escrito provocaram nas comunidades e grupos visados.
Não pode este Tribunal de Recurso deixar de considerar que, perfilhando o juiz do Tribunal de Julgamento uma tese “comunitarista” segundo a qual a liberdade de expressão deve ceder perante o seu confronto com outros direitos fundamentais e, e provado que seja o dolo específico da arguida, e os danos causados, estão verificados os pressupostos para uma decisão final condenatória, razão pela qual se julga não provido o recurso, devendo os autos prosseguirem para julgamento.

3 Decisão

Pelo exposto, julga-se o recurso não provido, mantendo-se o despacho recorrido.

Custas pela recorrente, fixando-se a taxe de justiça em 3 uc´s.

Porto, 7 de junho de 2023
Raúl Esteves
Amélia Catarino
Maria Joana Grácio (com a declaração que vota unicamente a decisão)