Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
19545/22.5T8PRT-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ARISTIDES RODRIGUES DE ALMEIDA
Descritores: DIFERIMENTO DA DESOCUPAÇÃO DO IMÓVEL
COVID-19
VIGÊNCIA DA LEI
Nº do Documento: RP2023032319545/22.5T8PRT-A.P1
Data do Acordão: 03/23/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 3. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O diferimento da desocupação do arrendado apenas pode ser autorizado, por razões sociais imperiosas, quando estiver demonstrada uma das seguintes situações: a) sendo a entrega pedida com fundamento na resolução por não pagamento de rendas, que a falta desse pagamento se deve a carência de meios do arrendatário; b) em qualquer situação, que o arrendatário tem deficiência com grau comprovado de incapacidade igual ou superior a 60 %.
II - O conceito de «situação excepcional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infecção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19» é um conceito normativo, é a forma como o legislador qualifica uma situação de saúde pública, pelo que só deixará de existir quando o legislador o consagrar em texto legal.
III - Até ao momento o artigo 6.º-E da Lei n.º 1-A/2020 não foi revogado, nem caducou, encontrando-se em vigor e a produzir efeitos na ordem jurídica.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso de Apelação
ECLI:PT:TRP:2023:19545.22.5T8PRT.A.P1
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Sumário:
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Acordam os Juízes da 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto:


I. Relatório:
A... Unipessoal Lda., pessoa colectiva e contribuinte fiscal n.º ..., com sede no Porto, instaurou execução para entrega de coisa certa contra AA, contribuinte fiscal n.º ..., residente no Porto, com fundamento na resolução de um contrato de arrendamento para habitação por falta de pagamento das rendas.
Citada, a executada deduziu incidente de diferimento da desocupação do imóvel pelo prazo mínimo de 90 dias, alegando essencialmente que a entrega do imóvel lhe causará prejuízo, pois vive com sua irmã, que tem um bebé, além do que se encontra doente, com crises de asma e, embora trabalhe, até ao momento não conseguiu arranjar qualquer habitação, não obstante já tenha feito inúmeros esforços nesse sentido; acrescenta que a entrega deverá ser suspensa nos termos do disposto no artigo 6º- E, nºs 1, 7 e 8 da Lei nº 1-A/2020, de 19 de Março.
A exequente opôs-se ao diferimento da desocupação, impugnando os factos que o fundamentam e invocando, em síntese, que aquando da celebração do contrato de arrendamento a executada comprovou que gozava de desafogada situação económica, embora depois, durante a vigência do contrato, apenas tenha pago 3 rendas, sendo que a executada tudo tem feito para protelar a entrega, não cumprindo acordos estabelecidos, nem recepcionando as cartas que lhe são enviadas
Produzida a prova, foi proferida sentença a julgar o incidente improcedente e indeferir o pedido de diferimento da desocupação. Na sentença, antes do dispositivo, assinalou-se ainda que «deixaram de estar suspensas as entregas de imóveis que constituam casa de morada de família e de imóveis arrendados, pelo que deverá e executada entregar de imediato à exequente o imóvel».
Do assim decidido, a executada interpôs recurso de apelação, terminando as respectivas alegações com as seguintes conclusões:
I. O Douto Despacho não faz a correcta aplicação do direito aos factos.
II. O art. 15º-N n.º 1 NRAU permite ao arrendatário, no caso de despejo de imóvel arrendado para habitação, diferir a desocupação por razões sociais imperiosas, devendo, nomeadamente, ponderar-se a circunstância de o arrendatário não dispor imediatamente de outra habitação, o número de pessoas que com ele habitam, a sua idade, o seu estado de saúde e, em geral, a situação económica e social das pessoas envolvidas (nº 2 do art. 15º-N NRAU).
III. A requerente não dispõe de outro local para a habitar para lá do imóvel ajuizado, nem dispõem de capacidade económica (vive com a irmã e filha de meses, sendo a única a trabalhar), para procurar outra casa no mercado normal da habitação, restando-lhe o recurso à habitação social que, como é sabido de todos, não se consegue de um dia para o outro, acrescendo que a sua situação precária tem vindo a agravar-se.
IV. Tal faz presumir que a falta de pagamento de rendas, que originou a resolução do contrato, se deve a carência de meios da arrendatária, preenchendo dessa forma o aludido preceito legal.
V. Neste contexto factual nenhumas dúvidas temos em dar por verificados os requisitos a que alude o nº 2 do artigo 864º do CPC, sendo que nada emerge da matéria de facto que permita concluir que a requerente está de algum modo a agir em violação dos princípios que balizam as relações entre um senhorio proprietário do locado objecto de resolução contratual por falta de pagamento de rendas e locatários que usando de artifícios substantivos ou processuais tenha como única finalidade retardar a entrega do locado, violando assim o direito de propriedade dos requeridos que merece acolhimento constitucional – artigo 62º da CRP; artigos 1305º e 1311º do CC.
VI. Neste confronto entre a compressão do direito de propriedade que afecta o proprietário do locado, e o direito dos arrendatários a terem uma habitação digna – artigo 65º da CRP – o legislador optou pela criação já em 2006 – Lei nº 6/2006, de 27.2 – de um quadro jurídico que embora comprima o direito de propriedade, acaba por conferir aos arrendatários carenciados uma moratória máxima de 10 meses, contados a partir do trânsito em julgado do incidente de diferimento da desocupação – nº 5 do artigo 930ºD do CPC – para que encontre uma solução habitacional, assumindo o Estado – que somos todos nós – o pagamento das rendas reportadas ao período do diferimento, solução que não tem outra finalidade que não a de mitigar os prejuízos que o senhorio tem por via do diferimento da desocupação e de não «atirar» para o meio da rua uma pessoa que vive da ajuda do Estado, e que afecta parte desse parco rendimento ao tratamento das suas maleitas.
VII. Que a requerida não pode sem mais ir para a rua é uma realidade, que o senhorio tem direito à devolução do locado é inquestionável, então que mecanismos é que nos habilita a lei na fixação do prazo de desocupação que pode ir até 6 meses?
VIII. Deve também reflectir-se enquanto modulador de um prazo de diferimento de desocupação, o facto da requerente não estar a viver uma situação nova ou que de algum modo os tenham apanhado de surpresa, na medida em está demonstrado que deixou de pagar há algum tempo, o que já sucedia por não ter meios financeiros que lhe permitissem proceder ao seu pagamento, o que levaria, inevitavelmente, a verem-se mais dia menos dia despejados do locado, impondo-se no ínterim a busca de uma solução habitacional que lhe permitisse entregar o locado ao menos após a prolação de sentença que resolvesse o contrato de arrendamento com o fundamento na falta de pagamento de renda.
IX. Todos e neste particular a requerida deve dar uma resposta humanizada, mas tal resposta não pode desresponsabilizar quer a requerente, quer os familiares mais próximos, se os houvesse, quer o Estado ou a Autarquia Local na procura de uma solução habitacional que satisfaça as necessidades da requerente.
X. Por tal motivo, entendemos que o prazo de 90 dias requerido para resolver a sua questão habitacional é justo e adequado à sua situação.
XI. Com efeito, a requerente tem o dever de procurar uma solução, cabendo ao senhorio, contribuir para a resolução de um problema de cariz social e humanitário e que passa por esperar pelo decurso do prazo de diferimento de 90 dias meses para que veja a sua propriedade de volta.
XII. Ora, o mercado imobiliário actualmente está impossível, com rendas muito inflacionadas, estando em causa a satisfação do comando constitucional de a todos assegurar o direito a uma habitação (art. 65º da CRP).
XIII. De facto, ponderando os prejuízos com o protelamento da situação até ao prazo requerido para diferimento, o prejuízo da requerente com a entrega imediata, superará em muito o dos Proprietários, e assim estar-se-á a dar cumprimento aquele desígnio constitucional.
XIV. A recorrente, cumpriu todas as formalidades: alegou de forma pormenorizada e concisa os fundamentos plasmados no nº 2 do artigo 864º do CPC, que preenche na totalidade e arrolou testemunhas.
XV. Perante todo o cenário desolador do ponto de vista económico e social que ficou descrito nas alegações, está de todo justificado o diferimento da entrega do local em causa.
XVI. Tal diferimento deverá ser por um período não inferior a 90 dias, para se dar oportunidade à requerente de encontrar uma nova habitação e refazer a sua vida, sem o risco máxime de cair na desgraça.
XVII. Tal diferimento, não afecta o direito fundamental à habitação do proprietário, na medida em que este não carece da habitação para sua residência.
XVIII. Refere-se no douto Despacho em crise que terminou o Estado de alerta e consequentemente a situação excepcional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infecção epidemiológica de COVID 19 a que alude o art.º 6º E da Lei 1-A/2020.
XIX. Sucede que, salvo melhor opinião, ainda se encontram suspensos todos os actos, nos termos do disposto no art. 6º- E da Lei n.º 1-A, 2020 de 19 de Março com a última redacção da Lei n.º 13-B/2021 de 5 de Abril.
XX. Com efeito, compulsado o Decreto-Lei n.º 66-A/2022 de 30 de Setembro, o mesmo no seu art. 2º n.º 1 al. a) considerada revogados “… art. 6º-E do Decreto-Lei 10-A/2020 de 13 de Março”, que dispõe sobre outra matéria.
XXI. Salvo melhor opinião, o referido Decreto 66-A/2022 não procedeu à revogação do art. 6º-E da já referida Lei 1-A/2020 de 19 de Março, o qual ainda se mantem, portanto, em vigor.
XXII. Nestes termos, e salvaguardando melhor opinião, tendo em conta que a situação da aqui recorrente se enquadra, infelizmente, totalmente nos termos do referido art. 6-E da Lei 1-A/2020, deve continuar suspensa a entrega do imóvel onde habita este agregado familiar.
XXIII. O Douto Despacho recorrido, viola por errada interpretação a aplicação do disposto no n.º 7 do art.º 6º -E da Lei 1-A/2020, alterada pela Lei 13-B/2021, art.º 864º n.º 2 CPC e 65º CRP.
Nestes Termos, deve ser dado provimento ao recurso e revogado o douto despacho recorrido.
A recorrida respondeu a estas alegações defendendo a falta de razão dos fundamentos do recurso e pugnando pela manutenção do julgado.
Após os vistos legais, cumpre decidir.

II. Questões a decidir:
As conclusões das alegações de recurso demandam desta Relação que decida as seguintes questões:
a. Se o recurso deve ser admitido;
b. Se estão provados os requisitos para o diferimento da desocupação do arrendado;
c. Se o artigo 6.º-E da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, caducou;
d. Se estão provados os requisitos para a suspensão da entrega do locado da referida norma.

III. Os factos:
Ficaram provados os seguintes factos:
1. Entre a Exequente e Executada AA foi celebrado em 23 de Fevereiro de 2022 um contrato de arrendamento para fins habitacionais com prazo certo nos termos constantes do documento anexo ao requerimento executivo como documento n. 1m cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
2. O referido contrato de arrendamento tinha como objecto a fracção autónoma designada pelas letras “BE” destinada a habitação, sita no Piso Cinco A.5.2 do tipo T1, com entrada pelo n.º ... da Rua ..., com um lugar de estacionamento designado pelas letras BE e sito no Piso - 1, integrada no prédio urbano em regime de propriedade horizontal denominado lote n.º 3 e sito na Rua ..., ... e Rua ..., descrito na Conservatória do Registo Predial do Porto sob o n.º ... da Freguesia ..., Concelho do Porto, inscrita na matriz predial urbana sob o Artigo .... da Freguesia ... - cf. certidão e caderneta predial anexos ao requerimento executivo.
3. Tal contrato de arrendamento foi celebrado pelo prazo de um ano tendo o seu início em 01 de Março de 2022 e término no dia 28 de Fevereiro de 2023.
4. Nos termos da cláusula 16.ª do contrato foi convencionado nos termos referidos no Artigo 9.º da Lei n.º 6/2006 de 27 de Fevereiros com as alterações introduzidas pela Lei n.º 31/2012 de 14 de Agosto e Lei n.º 43/2017 de 14 de Junho que as moradas de notificação entre as partes eram para a arrendatária, aqui executada o locado.
5. A renda mensal livremente acordada foi de 800,00€, que devia ser paga até ao dia 8 do mês imediatamente anterior àquele a que dissesse respeito por depósito ou transferência bancária para a conta da ora Exequente.
6. A executada apenas pagou as rendas correspondentes aos meses de Março, Abril e Maio de 2022, esta última, com atraso, tendo deixado de pagar qualquer renda a partir dessa data, apesar das diversas interpelações efectuadas.
7. Por carta registada de 30/06/2022 a exequente interpelou a executada e o fiador para pagarem as rendas até aí vencidas correspondentes aos meses de Junho e Julho de 2022 no valor total de 1.600,00€ bem como a quantia de 320,00€ referente às penalidades da mora sob pena de resolução do contrato de arrendamento - cf. documentos n.ºs 5 e 6 anexos ao requerimento executivo;
8. E por carta registada em 16/09/2022 com aviso de recepção enviada para o locado, a exequente notificou a executada da resolução do contrato de arrendamento por falta de pagamento das rendas, nos termos constantes do documento n. 7 anexo ao requerimento executivo, que se dá por integralmente reproduzido.
9. Aquando da celebração do contrato de arrendamento, a executada apresentou-se como encarregada de uma empresa de limpeza e empresária, tendo entregue para prova dos seus rendimentos e situação financeira: um comprovativo da Declaração Modelo 3 e uma certidão das Finanças referente ao ano de 2021 que apresentava rendimentos de €28.700,00 e vários recibos de vencimento de uma empresa denominada B... Unipessoal Lda. e um recibo de vencimento e declaração emitidos pela empresa C... S. A. comprovativos de um rendimento mensal de cerca de 3.050€ - cf. documentos n.ºs 2 a 8, anexos à resposta da exequente, cujo teor se dão por integralmente reproduzido.
10. A Executada é sócia única e gerente da uma sociedade denominada B...– Unipessoal Lda., NIPC ... na qual detém uma quota de 50.000,00€, conforme certidão comercial permanente anexa à reposta da exequente sob o n.º 18.
11. A executada é vista na vizinhança a conduzir veículos automóveis de alta cilindrada, designadamente um AUDI de matrícula ..-UF-...

IV. O mérito do recurso:
A] dos fundamentos do diferimento da desocupação:
A possibilidade de diferimento da desocupação de imóvel arrendado para habitação encontra-se prevista nos artigos 15.º-N e 15.º-O do NRAU, aprovado pela Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro, na redacção da Lei n.º 31/2012, de 14 de Agosto.
Estabelecem esses preceitos legais o seguinte:
Artigo 15.º-N
1 - No caso de imóvel arrendado para habitação, dentro do prazo para a oposição ao procedimento especial de despejo, o arrendatário pode requerer ao juiz do tribunal judicial da situação do locado o diferimento da desocupação por razões sociais imperiosas, devendo logo oferecer as provas disponíveis e indicar as testemunhas a apresentar, até ao limite de três.
2 - O diferimento de desocupação do locado para habitação é decidido de acordo com o prudente arbítrio do tribunal, devendo o juiz ter em consideração as exigências da boa fé, a circunstância de o arrendatário não dispor imediatamente de outra habitação, o número de pessoas que habitam com o arrendatário, a sua idade, o seu estado de saúde e, em geral, a situação económica e social das pessoas envolvidas, só podendo ser concedido desde que se verifique algum dos seguintes fundamentos:
a) Que, tratando-se de resolução por não pagamento de rendas, a falta do mesmo se deve a carência de meios do arrendatário, o que se presume relativamente ao beneficiário de subsídio de desemprego, de valor igual ou inferior à retribuição mínima mensal garantida, ou de rendimento social de inserção;
b) Que o arrendatário tem deficiência com grau comprovado de incapacidade igual ou superior a 60 %.
3 - No caso de diferimento decidido com base na alínea a) do número anterior, cabe ao Fundo de Socorro Social do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social pagar ao senhorio as rendas correspondentes ao período de diferimento, ficando aquele sub-rogado nos direitos deste.
Artigo 15.º-O
1 - O requerimento de diferimento da desocupação assume carácter de urgência e é indeferido liminarmente quando: a) Tiver sido apresentado fora do prazo; b) O fundamento não se ajustar a algum dos referidos no artigo anterior; c) For manifestamente improcedente.
2 - Se o requerimento for recebido, o senhorio é notificado para contestar, dentro do prazo de 10 dias, devendo logo oferecer as provas disponíveis e indicar as testemunhas a apresentar, até ao limite de três.
3 - O juiz deve decidir o pedido de diferimento da desocupação por razões sociais no prazo máximo de 20 dias a contar da sua apresentação, sendo, no caso previsto na alínea a) do n.º 2 do artigo anterior, a decisão oficiosamente comunicada, com a sua fundamentação, ao Fundo de Socorro Social do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social.
4 - O diferimento não pode exceder o prazo de cinco meses a contar da data do trânsito em julgado da decisão que o conceder.
Em consonância com esse regime material, o Código de Processo Civil regula os trâmites processuais do pedido de diferimento da desocupação, estabelecendo o seguinte:
Artigo 864.º
1 - No caso de imóvel arrendado para habitação, dentro do prazo de oposição à execução, o executado pode requerer o diferimento da desocupação, por razões sociais imperiosas, devendo logo oferecer as provas disponíveis e indicar as testemunhas a apresentar, até ao limite de três.
2 - O diferimento de desocupação do locado para habitação é decidido de acordo com o prudente arbítrio do tribunal, devendo o juiz ter em consideração as exigências da boa-fé, a circunstância de o arrendatário não dispor imediatamente de outra habitação, o número de pessoas que habitam com o arrendatário, a sua idade, o seu estado de saúde e, em geral, a situação económica e social das pessoas envolvidas, só podendo ser concedido desde que se verifique algum dos seguintes fundamentos:
a) Que, tratando-se de resolução por não pagamento de rendas, a falta do mesmo se deve a carência de meios do arrendatário, o que se presume relativamente ao beneficiário de subsídio de desemprego, de valor igual ou inferior à retribuição mínima mensal garantida, ou de rendimento social de inserção;
b) Que o arrendatário é portador de deficiência com grau comprovado de incapacidade superior a 60 %.
3 - No caso de diferimento decidido com base na alínea a) do número anterior, cabe ao Fundo de Socorro Social do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social pagar ao senhorio as rendas correspondentes ao período de diferimento, ficando aquele sub-rogado nos direitos deste.
Artigo 865.º
Termos do diferimento da desocupação
1 - A petição de diferimento da desocupação assume carácter de urgência e é indeferida liminarmente quando: a) Tiver sido deduzida fora do prazo; b) O fundamento não se ajustar a algum dos referidos no artigo anterior; c) For manifestamente improcedente.
2 - Se a petição for recebida, o exequente é notificado para contestar, dentro do prazo de 10 dias, devendo logo oferecer as provas disponíveis e indicar as testemunhas a apresentar, até ao limite de três.
3 - O juiz deve decidir do pedido de diferimento da desocupação por razões sociais no prazo máximo de 20 dias a contar da sua apresentação, sendo, no caso previsto na alínea a) do n.º 2 do artigo anterior, a decisão oficiosamente comunicada, com a sua fundamentação, ao Fundo de Socorro Social do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social.
4 - O diferimento não pode exceder o prazo de cinco meses a contar da data do trânsito em julgado da decisão que o conceder.
Resulta destas normas que o diferimento da desocupação apenas pode ser autorizado, por razões sociais imperiosas, quando estiver demonstrada a existência de uma das seguintes situações: a) sendo a entrega pedida com fundamento na resolução por não pagamento de rendas, que a falta desse pagamento se deve a carência de meios do arrendatário; b) em qualquer situação, que o arrendatário tem deficiência com grau comprovado de incapacidade igual ou superior a 60 %.
Resulta também que caso se verifique uma destas situações o juiz deve diferir a desocupação, podendo para o efeito fixar um prazo até cinco meses a contar da data do trânsito em julgado da decisão que o conceder. Para o efeito deverá levar em consideração as exigências da boa fé, a circunstância de o arrendatário não dispor imediatamente de outra habitação, o número de pessoas que habitam com o arrendatário, a sua idade, o seu estado de saúde e, em geral, a situação económica e social das pessoas envolvidas, ponderando tudo segundo um critério de prudência.
Resulta ainda que a carência de meios do arrendatário se presume se o arrendatário for beneficiário de subsídio de desemprego igual ou inferior à retribuição mínima mensal garantida, ou de rendimento social de inserção.
Resulta por fim que o requerente do diferimento deve logo oferecer as provas disponíveis e indicar as testemunhas a apresentar, até ao limite de três, do mesmo direito gozando o requerido com a apresentação da sua resposta.
Como em qualquer acção, a aplicação do direito incide sobre os factos provados, os quais constituem a fundamentação de facto da decisão. O que significa que o tribunal deve aplicar o direito aos factos provados, não pode aplicar o direito a factos que embora alegados não se provaram.
Ora é manifesto que os factos julgados provados não permitem em circunstância alguma concluir pela carência de meios económicos da arrendatária, sendo certo que foi esse o fundamento invocado para obter o diferimento, não se colocando, no caso, a questão da aplicabilidade do fundamento da deficiência.
Os factos que a requerente alegou para justificar o seu pedido foram na sua totalidade julgados não provados [«Não se provaram quaisquer outros factos, designadamente, os factos alegados nos artigos 4º, 5º, 7º, 8º, 9º, 10º 11º, 16º, 17º, 21º, 22º, 23º, 28º, 29º, 30º, 34º do requerimento da executada»].
Os factos provados não apenas não permitem considerar verificada uma situação de carência de meios económicos, como inclusivamente indiciam a existência de meios económicos [a executada «9. aquando da celebração do contrato de arrendamento, apresentou documentos demonstrativos de um rendimento mensal de cerca de 3.050€; 10. é sócia única e gerente da uma sociedade denominada B...– Unipessoal Lda.; 11. é vista na vizinhança a conduzir veículos automóveis de alta cilindrada, designadamente um AUDI de matrícula ..-UF-..».
Deste modo, toda a argumentação da recorrente desenvolvida com base em factos que alegou, mas não provou, apenas podia ser atendida se o recurso tivesse igualmente por objecto a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, o que não sucede, e essa impugnação viesse a obter provimento.
Por isso e sem necessidade de mais fundamentação, o recurso improcede nesta parte.
B] da suspensão da execução ao abrigo do artigo 6.º-E da Lei n.º 1-A/2020, na redacção dada pelo artigo 3.º da Lei n.º 13-B/2021:
No requerimento de diferimento da desocupação a executada suscitou a questão da suspensão das diligências para entrega do arrendado ao abrigo da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março.
Pese embora se tratem de mecanismos diversos que conduzem a soluções distintas e que por isso devem constituir incidentes autónomos, esta questão foi suscitada e decidida no âmbito do incidente de diferimento da desocupação, razão pela qual nos parece que a respectiva decisão podia ser impugnada no recurso da decisão do incidente e essa impugnação ser aqui apreciada, o que se passa a fazer.
A Mma. Juíza a quo fundamentou assim a decisão de não suspender as diligências executivas para entrega do arrendado: «terminou o estado de alerta e consequentemente terminou a situação excepcional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infecção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19, a que alude o artigo 6º-E da Lei 1-A/2020, de 19 de Maio. Até hoje não foram implementadas pelo Governo, nem pela Assembleia da República quaisquer outras medidas excepcionais, pelo que se terá que considerar automaticamente caducado o regime previsto no aludido artigo 6º- E, designadamente no seu n.º 7, que se aplicou apenas durante o período de vigência do regime excepcional e transitório previsto no artigo.»
Com todo o devido respeito, somos obrigados a discordar desta afirmação.
O artigo 6.º-E da Lei n.º 1-A/2020 não foi revogado por qualquer outro diploma posterior, nem caducou designadamente por ter deixado de existir a situação excepcional que usada para justificar a sua criação, razão pela qual se encontra em vigor e a produzir efeitos na ordem jurídica portuguesa.
O conceito de «situação excepcional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infecção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19» é um conceito normativo. Tal conceito não passa da forma como o legislador qualifica uma situação de saúde pública que se espera que tenha uma duração, mas que de momento é impossível definir qual será. Não se trata, portanto, de uma situação puramente factual cuja cessação possa ser constatada objectivamente por todos.
Sendo um conceito normativo, cabe aos órgãos legislativo e executivo apurar, medir, avaliar, decretar e/ou declarar finda a situação excepcional quando entenda que estão reunidas as circunstâncias que o permitam. O legislador é que define se e quando considera estar-se ainda perante uma situação excepcional dessa índole, sendo certo que a evolução da situação justifica a evolução das soluções jurídicas criadas para responder aos problemas produzidos por essa doença, umas vezes, quando a situação é mais grave, no sentido do seu aumento, outras vezes, quando a transmissão e gravidade das consequências da doença melhoram, no sentido da sua diminuição.
Nada disso tem a ver com o decretamento do estado de emergência, contingência ou de alerta, porque as declarações desses estados são também elas parte do edifício jurídico aprovado para responder à evolução da doença, e destinam-se somente a dar cobertura jurídico-legal a outras medidas que as razões de saúde pública tornaram necessárias mas que importam o constrangimento que de direitos, liberdade e garantias constitucionalmente protegidos, razão pela qual não prejudicam nem implicam a adopção ou cessação de outras medidas que o legislador entendeu necessário colocar em prática e cujo fim indexou não à cessação daqueles estados excepcionais de vigência democrática (emergência, contingência ou de alerta) mas à cessação da «situação excepcional».
Desse modo se justifica, por exemplo, que a Lei n.º 13-B/2021, de 5 Abril, através do seu artigo 6.º tenha revogado vários preceitos da Lei n.º 1-A/2020, e, em simultâneo, através do artigo 3.º, tenha aditado a esta o artigo 6.º-E a que vimos fazendo referência, norma que até ao momento não foi revogada. Terá entendido o legislador que já não eram necessárias certas medidas ou medidas com determinado conteúdo, mas continuava a ser necessária a medida do novo preceito que introduziu na ordem jurídica.
A demonstração clara de que isso é assim encontra-se na circunstância de presentemente se encontrarem pendentes na Assembleia da República duas iniciativas legislativas destinadas precisamente a revogar aquele preceito legal, pondo fim ao regime processual excepcional e transitório nele fixado, iniciativas que, todavia, ainda não desembocaram na aprovação de uma Lei revogatória das diversas leis aprovadas para responder à situação pandémica e ainda em vigor (ao contrário, por exemplo, do que o Governo já fez em relação aos Decretos-Leis através do Decreto-Lei n.º 66-A/2022, de 30 de Setembro).
Referimo-nos à Proposta de Lei n.º 45/XV, apresentada pelo Governo, e em cujo artigo 2.º se propõe precisamente declarar a revogação da «Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, na sua redacção actual, que estabelece medidas excepcionais e temporárias de resposta à situação epidemiológica provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2 e da doença COVID-19, com excepção do artigo 5.º».
A outra iniciativa é o Projecto-lei 608/XV/1.ª apresentado por um Grupo Parlamentar e em cujo artigo 2.º se projecta igualmente a «revogação do artigo 6.º-E da Lei n.º 1.º-A/2020, de 19 de Março e posteriores alterações». Portanto é o próprio legislador a pensar e a actuar entendendo que aquela norma se encontra em vigor, como igualmente nos parece (cf. neste sentido o Acórdão da Relação de Lisboa de 09.02.2023, proc. n.º 8834/20.3T8SNT.L1-2, in www.dgsi.pt).
A questão que se coloca é se basta a afirmação de que, ao contrário do que decidiu a 1.ª instância, o preceito em causa se encontra em vigor para concluir que a entrega do arrendado à exequente se encontra suspensa e não pode ser efectuada enquanto aquela norma não for revogada.
A resposta é negativa.
Na parte que aqui interessa o artigo 6.º-E tem a seguinte estatuição:
«7 - Ficam suspensos no decurso do período de vigência do regime excepcional e transitório previsto no presente artigo: […]
b) Os actos a realizar em sede de processo executivo ou de insolvência relacionados com a concretização de diligências de entrega judicial da casa de morada de família;
c) Os actos de execução da entrega do local arrendado, no âmbito das acções de despejo, dos procedimentos especiais de despejo e dos processos para entrega de coisa imóvel arrendada, quando o arrendatário, por força da decisão judicial final a proferir, possa ser colocado em situação de fragilidade por falta de habitação própria ou por outra razão social imperiosa. […]
As duas normas transcritas têm uma redacção que aparentemente confunde.
Com efeito, uma vez que os processos para entrega de coisa imóvel arrendada são processo executivos e que se a entrega do imóvel determina a falta de habitação própria o arrendamento teve de ter por finalidade a instalação da casa de morada de família, a redacção das normas parece ter um campo de sobreposição: as situações da alínea b) estão compreendidas na alínea c), razão pela qual não se compreende porque hão-de estar subordinadas a um requisito específico que não se aplica ao abrigo da alínea b).
A interpretação das normas permite afastar essa dúvida.
A previsão específica da alínea c) reporta-se, nas suas próprias palavras, à entrega do local arrendado, ou seja, à entrega de habitações arrendadas, aplicando-se nas acções de despejo, como nos procedimentos especiais de despejo, como nos processos para entrega de coisa imóvel arrendada, isto é, em todos os processos instaurado pelo senhorio para obter a entrega do imóvel que lhe pertence e que se encontra ocupado pelo demandado ao abrigo de um contrato de arrendamento para habitação própria.
Já a previsão específica da alínea b) tem por objecto as situações em que no decurso de uma acção executiva se pretenda obter a entrega judicial da casa de morada de família do executado. O que está aqui previsto é, pois, a situação em que o executado tem a sua casa de morada de família na casa a entregar, ao abrigo de qualquer outro direito que não o de arrendatário, v.g. por ser proprietário, usufrutuário, comodatário ou possuidor ou mero detentor do imóvel, devendo entregá-la ao exequente porque, por exemplo, está condenado a reconhecer a propriedade do exequente sobre o imóvel e a entregar-lho, ou foi condenado a pagar-lhe uma determinada quantia e como não o fez o imóvel foi vendido ao exequente que reclama a entrega (neste sentido, por exemplo, o Acórdão da Relação do Porto de 25.10.2022, proc. n.º 18281/21.0T8PRT.P1, in www.dgsi.pt).
Refira-se que antes de estas duas normas passarem a constituir as alíneas b) e c) do n.º 7 do artigo 6.º-E da Lei n.º 1-A/2020, o que sucedeu com a Lei n.º 13-B/2021, de 5 de Abril, a sua previsão constituía o n.º 11 do artigo 6.º-B daquela Lei, então na versão da Lei n.º 4-B/2021, de 1 de Fevereiro.
Na altura a redacção da disposição legal era a seguinte: «São igualmente suspensos os actos a realizar em sede de processo executivo ou de insolvência relacionados com a concretização de diligências de entrega judicial da casa de morada de família ou de entrega do locado, designadamente, no âmbito das acções de despejo, dos procedimentos especiais de despejo e dos processos para entrega de coisa imóvel arrendada, quando, por requerimento do arrendatário ou do ex-arrendatário e ouvida a contraparte, venha a ser proferida decisão que confirme que tais actos o colocam em situação de fragilidade por falta de habitação própria ou por outra razão social imperiosa».
Ao juntar as duas situações antes e depois autonomizadas nas normas legais, o legislador deixou claro que a entrega do locado, designadamente no âmbito das acções de despejo, dos procedimentos especiais de despejo e dos processos para entrega de coisa imóvel arrendada, estava dependente de um requisito específico: a demonstração por parte do arrendatário ou ex-arrendatário de que que tais actos o colocam em situação de fragilidade por falta de habitação própria ou por outra razão social imperiosa.
Nenhuma razão se vislumbra para entender que a posterior separação das duas previsões em normas distintas tivesse subjacente a intenção de sujeitar a entrega do locado a um condicionalismo distinto do anterior.
Ao invés, acompanha-se a afirmação constante do Acórdão da Relação de Lisboa antes citado segundo a qual a diferença entre as duas alíneas «talvez se explique … pela circunstância de, mesmo quando o local arrendado seja casa de morada de família, tal não significar que o arrendatário não possa dispor de alternativa de habitação própria. Já quando se trate de execução para pagamento de quantia certa, a circunstância de estar a ser concretizada uma diligência de entrega judicial da casa de morada de família indicia, em regra, uma situação de fragilidade económica do executado-devedor, sobretudo no actual quadro legislativo, pois não terão bastado os diversos mecanismos legais que visam conferir alguma protecção à casa de morada da família, designadamente os previstos no n.º 4 do art.º 751.º do CPC.»
Nesse pressuposto, uma vez que, como se viu, a executada não demonstrou encontrar-se uma situação de carência de meios económicos ou, mais propriamente numa situação de fragilidade por falta de habitação própria ou outra razão social imperiosa, resultando da fundamentação de facto do incidente indícios de que a mesma possui meios económicos, as diligências para entrega do arrendado não se encontram suspensas por motivos legais.
Improcede, assim o recurso.
Quanto à litigância de má-fé que a recorrida imputa à recorrente, afigura-se-nos que nos encontramos somente perante uma lide temerária, baseada em teses jurídicas que improcedem, mas que são em alguma medida sustentáveis do ponto de vista formal, razão pela qual a discordância em relação às mesmas e a sua improcedência não deve ser qualificada como litigância de má fé.

V. Dispositivo:
Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação julgar o recurso improcedente e, em consequência, embora parcialmente com distinta fundamentação, confirmam a decisão recorrida.

Custas do recurso pela recorrente, a qual vai condenada a pagar à recorrida, a título de custas de parte, o valor da taxa de justiça que suportou e eventuais encargos.
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Porto, 23 de Março de 2023.
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Os Juízes Desembargadores
Aristides Rodrigues de Almeida (R.to 739)
Francisca Mota Vieira
Paulo Dias da Silva



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