Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0432327
Nº Convencional: JTRP00036926
Relator: FERNANDO BAPTISTA
Descritores: TELECOMUNICAÇÕES
Nº do Documento: RP200405200432327
Data do Acordão: 05/20/2004
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: ALTERADA A SENTENÇA.
Área Temática: .
Sumário: Estando apenas provado que o assinante celebrou um contrato de prestação de serviços de telecomunicações com o operador da rede de serviço público e não resultando provado que esse utente alguma vez tenha declarado expressamente que o operador lhe facilitasse o acesso aos SVA ou de audio-texto, sendo que essa prova incumbia à prestadora dos serviços, é evidente que não pode esta peticionar do assinante o pagamento das quantias ou custos resultantes da utilização dos referidos S.V.A..
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto

I. RELATÓRIO:

"B............., S.A." instaurou acção declarativa sob a forma de processo sumário contra C.............., melhor identificado nos autos.

Pede:
A condenação do réu no pagamento das contas telefónicas relativas aos meses de Julho de 2000 a Abril de 2001, no valor total de 2.289.489$00, acrescido dos juros de mora contados desde as datas de vencimento das respectivas facturas, à taxa legal, cifrando-se os vencidos até 23/10/01 em 326.582$00.

Contestou o réu, invocando, em súmula, que os montantes peticionados só podem derivar de erro de facturação ou pirataria telefónica e que nenhum dos membros do seu agregado familiar poderia ter efectuado chamadas que implicassem um custo dessa envergadura.

Foi dispensada a selecção da matéria de facto. Realizou-se julgamento e a final foi proferida sentença a julgar procedente a acção e, em consequência, foi o réu condenado “a pagar à autora a quantia de 2.616.071$00/ € 13.048,91, acrescida de juros de mora à taxa de 7%, sobre os montantes constantes de cada factura, contados desde 23/10/01, até 1 de Maio de 2003 e à taxa de 4 % desde 1 de Maio de 2003, até efectivo pagamento”.

Inconformado com o assim sentenciado, veio o réu interpor recurso de apelação, apresentando as pertinentes alegações, onde conclui que “a decisão sobre a matéria de facto foi incorrectamente tomada”, entendendo que “foram incorrectamente julgados, pelo menos, os quesitos 7º, 13º, 16º, 22º, 24º, 27º, 28º, todos da contestação e 5º, 6º, 8º e 9º do ponto II da sentença”. Assim, entende que deve ser alterada a decisão proferida sobre a matéria de facto no sentido que refere e, em consequência, por aplicação do direito a essa nova decisão de facto, deve a sentença ser revogada e o réu absolvido do pedido contra si deduzido.

A autora apresentou contra-alegações, concluindo pela manutenção da sentença recorrida.

Foram colhidos os vistos legais.
Cumpre apreciar e decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO

II. 1. AS QUESTÕES:
Tendo presente que:
--O objecto dos recursos é balizado pelas conclusões das alegações dos recorrentes, não podendo este Tribunal conhecer de matérias não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso (arts. 684º, nº3 e 690º, nºs 1 e 3, do C. P. Civil);
-- Nos recursos se apreciam questões e não razões;
-- Os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido,

são as seguintes as questões a resolver:
- Impugnação da decisão da matéria de facto: saber se foram, ou não, incorrectamente julgados os arts. 7º, 13º, 16º, 22º, 24º, 27º, 28º, todos da contestação e 5º, 6º, 8º e 9º do ponto II da sentença.
- Se foi incorrecta a interpretação e aplicação do direito aos factos.
Qui juris?

II. 2. OS FACTOS PROVADOS:

Na sentença recorrida foram dados como provados os seguintes factos:
1- A autora “B.............., S.A.”, que sucedeu à “D.............., S.A.”, tem por objecto principal a prestação de serviço público de telecomunicações.
2- O réu C............ requereu à autora a prestação de serviço de telecomunicações mediante o pagamento mensal de taxas fixas no tarifário em vigor ao abrigo do Regulamento do Serviço Telefónico Público anexo ao DL. n.º 199/87 de 30/04.
3- Satisfazendo o pedido, a autora montou na casa do réu o posto telefónico com o n.º 001.
4- O réu não pagou as contas relativas aos meses de Julho de 2000 a Abril de 2001, a que se reportam as facturas juntas de fls. 7 a 26, cujo conteúdo se dá aqui por reproduzido para todos os efeitos legais, no valor total de 2.289.489$00.
5- A autora enviou ao réu, em 04/08/00, a carta de cópia a fls. 65, comunicando-lhe que o registo de comunicações para a rede móvel registava um valor acima da média de facturação habitual.
6- Uma filha do autor, de nome E..........., solicitou à autora, em 06/09/00, em nome dos pais, pela carta de cópia a fls. 66, um pedido de pagamento da dívida a prestações.
7- Em 28/09/00, o réu enviou à autora a carta que consta a fls. 39.
8- Em 24/10/00, a autora apresentou um plano de pagamento a prestações, nos termos que constam de fls. 71 a 73.
9- Em 29/01/01 a autora comunicou ao réu que iria proceder ao barramento das chamadas de saída no sentido de impedir o aumento da dívida, uma vez que o elevado valor de facturação passou de chamadas de valor acrescentado para chamadas móveis.
10- O telefone estava instalado na residência do réu e sua família.
11- O agregado familiar do réu é composto por uma filha e um neto sendo a família do réu de parcos recurso económicos.
12- O réu é reformado.
13- O réu passa a maior parte do seu tempo a conviver com amigos num café próximo da sua residência, a jogar cartas para se distrair.
14- A filha do réu faz serviços de limpeza e passa a maior parte do tempo fora de casa durante o dia.
15- O neto é estudante.
16- Até 2000, os montantes médios mensais das contas de telefone do réu raramente ultrapassavam os 5.000$00.
17- E só ultrapassaram esse montante aquando da doença que vitimou a esposa do réu.
18- A autora suspendeu o serviço telefónico em 21/03/01.

III. OS FACTOS E O DIREITO:

Vejamos, então, das questões suscitadas pelo apelante.

-- Primeira questão: impugnação da matéria de facto:
O apelante, ao questionar a decisão sobre a matéria de facto, impõe a análise sobre se há fundamento legal para alterar a decisão sobre a mesma.
Entende o apelante que foi incorrecta a decisão da matéria de facto, sustentando que foram incorrectamente julgados os quesitos 7º, 13º, 16º, 22º, 24º, 27º, 28º, todos da contestação e 5º, 6º, 8º e 9º do ponto II da sentença.

Como é sabido, fixada a matéria de facto, através da regra da livre apreciação das provas consagrada no artº 655º nº 1 do CPCivil, em princípio essa matéria de facto é inalterável.
Como resulta dos autos, a prova testemunhal produzida em audiência de julgamento foi gravada.
Por outro lado, o apelante deu cumprimento ao preceituado nos arts. 690º-A, nºs 1 e 2 e 522º-C, ambos do CPC, na redacção (aqui aplicável) emergente do DL nº 183/2000, de 10.08.
Como tal, nada obsta ao conhecimento do recurso quanto à matéria de facto.

Pode, porém, desde já, dizer-se o seguinte:
A apreciação da prova na Relação envolve "risco de valoração" de grau mais "elevado" que na 1ª instância, onde são observados os princípios da imediação, da concentração e da oralidade.
Quando o juiz tem diante de si a testemunha ou o depoente de parte, pode apreciar as suas reacções, apercebe-se da sua convicção e da espontaneidade, ou não, do depoimento, do perfil psicológico de quem depõe: em suma, daqueles factores que são decisivos para a convicção de quem julga, que, afinal, é fundada no juízo que faz acerca da credibilidade dos depoimentos.
Conforme ensina, a propósito da imediação, o Prof. Antunes Varela (in "Manual de Processo Civil, 2ª Ed., págs. 657): "Esse contacto directo, imediato, principalmente entre o juiz e a testemunha, permite ao responsável pelo julgamento captar uma série valiosa de elementos (através do que pode perguntar, observar e depreender do depoimento, da pessoa e das reacções do inquirido) sobre a realidade dos factos que a mera leitura do relato escrito do depoimento não pode facultar".
No domínio da prova testemunhal, vigora o princípio da livre apreciação das provas - art. 396º do CC - segundo a convicção que o julgador tenha formado acerca de cada facto - art. 655º, nº1 - sem embargo do dever de as analisar criticamente e especificar os fundamentos decisivos para a convicção adquirida - art. 653º, nº 2, do CPC.
A alteração das respostas, atento o principio da aquisição processual consagrado no art. 515º, poderia basear-se, inclusivamente, em material probatório não carreado pela parte discordante.
Segundo o Prof. Manuel de Andrade (in “Noções Elementares de Processo Civil, 1963, págs. 357), "Os materiais (afirmações e provas) aduzidos por uma das partes ficam adquiridos para o processo. São atendíveis mesmo que sejam favoráveis à parte contrária...”
Entendemos que a Relação só deverá alterar a matéria de facto em que assenta a decisão recorrida se, reapreciada a mesma, for evidente a grosseira apreciação e valoração que foi feita na instância recorrida, isto pelo facto de o julgador da 1ª instância dispor de um universo de elementos (não apreensíveis na mera gravação áudio dos depoimentos) que são decisivos para o processo íntimo de formação da convicção, que se não satisfaz com a, diríamos, insípida audição daquela gravação, não tendo a 2ª instância possibilidade de intuir ou de apreciar para lá daquilo que se mostra gravado, o que é deveras redutor no processo de formação da convicção.

Lendo a decisão da 1ª instância sobre a fundamentação das respostas à matéria de facto, verificamos que a mesma não fez uma correcta análise critica das provas, com especificação, de forma racional, coerente e lógica e com respeito por toda (incluindo a documental) a prova produzida, dos fundamentos que foram decisivos para a respectiva convicção. Ou seja, a fundamentação da decisão da matéria de facto, de fls. 175, podia ir muito mais longe e não ficar-se por um laconismo que muito deixa a desejar.
No entanto, não é pela via do recurso que pode ser atacada tal decisão da matéria de facto com base na falta ou deficiência de fundamentação--, sendo, no entanto, certo que se não pode dizer que há ausência de motivação quanto àquela decisão de facto.
Para que se pudesse atender à falta de fundamentação da decisão de facto, ao abrigo do artº 712º, nº5, do CPC, impunha-se que o apelante tivesse requerido o suprimento dessa eventual omissão, como decorre de forma expressa do normativo acabado de citar, mas sem que tal situação encerre nulidade da sentença, por não fazer parte dos vícios que taxativamente vêm enumerados no artº 668º, nº1, do CPC.
Não foi, porém, feito tal requerimento pelo apelante, como se impunha, por forma a eventualmente merecer aqui a sua apreciação.

Ora, face à ausência das razões que levaram a Mmª Juiz a dar maior ou menor credibilidade a esta ou àquela testemunha e/ou documento junto (cfr. fls. 175—onde se refere, no entanto, que a convicção do tribunal “fundou-se na análise dos documentos juntos aos autos, ........., e nos depoimentos das testemunhas inquiridas em sede de audiência de julgamento”) e tal ausência de (correcta) motivação da decisão de facto não pode ser sindicada oficiosamente por este Tribunal Superior—antes, como dissemos, só a parte interessada nisso podia requerer a baixa dos autos à primeira instância para ser feita a correcta motivação--, é claro que não está este Tribunal de Recurso na posse de todos os elementos necessários para poder eventualmente censurar a motivação do tribunal naquela decisão de facto, designadamente, não está em condições de analisar as razões que levaram a aceitar este ou aquele depoimento—sendo certo, ainda, que a maior ou menor credibilidade dada a este ou àquele documento igualmente tem a ver com o valor dos depoimentos testemunhais produzidos em julgamento e que incidiram, também, sobre o conteúdo dos mesmos documentos.

Assim sendo, não nos resta senão aceitar as respostas aos artigos da petição e da contestação (fls. 174).
Sempre se diga, porém, que, mesmo que nos cingíssemos, de forma fria e nua, aos depoimentos prestados pelas testemunhas—gravados--, sempre nos não parece que dos mesmos se impusesse outra versão dos factos que não aquela que foi aceite pela Mmª Juiz.
Saliente-se, no entanto, que, sendo gravada a prova, há que ter em conta que—como ensina Lebre de Freitas, in A Acção Declarativa Comum À luz do Código Revisto, pág. 280—“... a sua análise crítica constitui um complemento fundamental da gravação; indo, nomeadamente, além do mero significado das palavras do depoente (registadas em audiência e depois transcritas), evidencia a importância do modo como ele depôs, as suas reacções, as suas hesitações e, de um modo geral, todo o comportamento que rodeou o depoimento.”—sublinhado nosso.
Ora, não dispõe este Tribunal de Recurso da riqueza que esses elementos contêm—a qual, aliás, como dissemos, a Mmª Juiz não plasmou (como devia, porém) na resposta à decisão da matéria de facto, só que—como também já dissemos—tal falta ou deficiente motivação não foi objecto de requerimento a pedir a sua correcção em primeira instância, e só com tal requerimento pode este Tribunal da Relação ordenar a baixa dos autos à 1ª instância para que seja feita a correcta fundamentação.
Portanto, se é certo que no caso sub judice o Tribunal "a quo" não procedeu – como devia-- a uma correcta valoração dos diversos meios de prova que indica no despacho sobre a decisão de facto como tendo servido para formar a sua convicção, em especial os depoimentos testemunhais, não explicando a relevância e a razão da credibilidade que as testemunhas mereceram por parte do julgador, de acordo com as regras da experiência comum e a lógica do homem médio, e de acordo com o princípio da livre apreciação da prova inserto no 655º, do CPC, o certo é, também, que, não tendo havido o aludido requerimento do apelante, não resta ao tribunal senão aceitar as respostas dadas à matéria de facto—sendo certo (perdoe-nos a repetição), que a gravação dos depoimentos, por si só, não nos permite, com segurança, outra solução para a decisão de facto.

Do exposto se conclui que há que tomar como assentes os factos dados como provados pelo tribunal a quo, não se nos afigurando motivo legal para a modificabilidade da decisão de facto, ao abrigo do artº 712º do CPC, assim improcedendo esta primeira questão suscitada pelo apelante.

* DA APLICAÇÃO DO DIREITO:

Entendemos que a decisão recorrida não fez a melhor aplicação do direito aos factos provados.
Vejamos.

Resulta dos factos provados que Autora e Réu celebraram um contrato de prestação de serviços na modalidade de Serviço Telefónico Público, ao tempo regido pelo Dec.-Lei nº 199/87, de 30.04.

Posteriormente, veio a Lei nº 23/96, de 26.07, estabelecer regras relativas à prestação de serviços públicos essenciais, inclusive o serviço de telefone, visando a protecção dos utentes.
De entre os preceitos desta Lei, temos os arts. 3º e 4º, dos quais resulta que o prestador de serviço deve, não apenas proceder de boa fé, em conformidade com os ditames que resultam da natureza pública do serviço e a importância dos interesses dos utentes que visa proteger, mas também informar convenientemente a outra parte das condições em que o serviço público é fornecido—dispondo o artº 11º que é nula a convenção ou disposição que exclua ou limite os direitos dos utentes, outrossim se diz no artº 13º que o disposto nesse diploma se aplica às relações que subsistam à data da sua entrada em vigor.

Entretanto, em 18.10.97 entra em vigor o novo Regulamento de Exploração do Serviço Fixo de Telefone, aprovado pelo Dec.-lei nº 240/97, de 18.08.
Este diploma visava “uma mais eficaz protecção dos direitos dos utilizadores de um serviço fundamental”.
Começa este Dec.-lei nº 240/97 por revogar o Dec.-Lei nº 199/87, preceituando que tal regulamento se aplica aos contratos anteriores, bem assim que o utilizador, no prazo de 60 dias a contar da sua entrada em vigor, deve adoptar os procedimentos necessários à execução do regulamento.
Ora, resulta dos termos deste regulamento-- repete-se, aplicável aos contratos anteriores--, designadamente que:
- Constituem direitos dos assinantes (artº 3º):
a) aceder aos S.V.A. que tenham como suporte o S.F.T.
- O operador está obrigado a barramento selectivo das chamadas com destino aos serviços de telecomunicações complementares e aos serviços de telecomunicações de valor acrescentado (artº 12º-b);
- A prestação do S.F.T. é objecto de contrato escrito (artº 16º-1) e dos contratos devem constar os preços aplicáveis (artº 16º-2-c)) , tal como a manifestação expressa da vontade do assinante sob o acesso, ou não, aos serviços S.V.A., de modo selectivo (artº 16º, nº3).
- São nulos os contratos de prestação do S.F.T. que não contenham qualquer das cláusulas ou dos elementos previstos no artº 16º.
- A utilização do telefone por terceiro, com ou sem autorização do assinante, considerava-se sempre feita por este para todos os efeitos contratuais e legais (artº 26º, nº3).

Posteriormente, é aprovado o Dec.-Lei nº 474/99, de 8 de Novembro (novo Regulamento de Exploração do Serviço Fixo de Telefone), que entrou em vigor no dia 01.01.2000 e revogou o referido Dec.-Lei nº 240/97.
Neste diploma prescreveu-se, além do mais:
- A obrigatoriedade dos prestadores de serviço fixo de telefone em assegurar a oferta do serviço de forma regular e contínua e o direito dos assinantes ao acesso aos serviços de audiotexto que tivessem como suporte o serviço de telefone fixo (artº 4º-1-d) e 10º-1);
- A obrigatoriedade de o contrato de prestação do serviço de telefone fixo continuar a ser objecto de contrato escrito entre o prestador e o assinante à data de satisfação do pedido de utilização do serviço (artº 17º, nº1);
- A obrigatoriedade de nos contratos constar a manifestação expressa da vontade do assinante sobre o acesso, ou não, aos serviços de telecomunicações de audio-texto de modo selectivo (artº 17º-3-d));
- A nulidade dos contratos que não contivessem, além do mais, a manifestação expressa da vontade do assinante sobre o acesso, ou não, a esses serviços (artº 17º-3-d) e 18º);
- Que a utilização do serviço de telefone fixo por terceiros, com ou sem autorização do assinante, passou, porém, apenas a presumir-se efectuada por este último para todos os efeitos contratuais e legais (artº 28º-3)

Mais tarde apareceu a Lei nº 95/2001, de 20.08, que veio dar nova redacção ao aludido artº 4º-1-d) do DL 474/99, fazendo depender o acesso aos serviços de audio-texto por banda dos assinantes do serviço de telefone fixo, de “requerimento expresso efectuado nesse sentido, nos termos do disposto no artº 10º do Decreto-Lei nº 177/99, de 21 de Maio”.

A questão, no caso sub judice, respeita aos montantes peticionados pela autora respeitantes aos serviços de valor acrescentado (ou de audio-texto)—serviços estes que, como do bosquejo legislativo acabado de fazer resulta se vê, só recentemente deixaram de andar associados, sem necessidade de pedido expresso e sem quaisquer cautelas ao serviço fixo de telefone.
Sobre estes S.V.A., regeram, cronologicamente, a Lei nº 88/99, de 11.09, o DL nº 329/90, de 23.10—este regulamentado pela Portaria nº 428/91, de 22.05--, a Portaria nº 160/94, de 22/03 (que aprovou o novo Regulamento de Exploração dos Serviços de Telecomunicações de Valor Acrescentado), o DL nº 177/99, de 21.05 e a Lei nº 95/2001, de 20.08.

Como emerge da matéria de facto provada, no caso sub judice, os serviços de audio-texto cujos custos a apelada vem peticionar do apelante foram prestados antes da entrada em vigor da aludida lei nº 95/2001, de 20.08, pelo que tal diploma lhes não é aplicável, em conformidade com o disposto no artº 12º, nºs 1 e 2 do Cód. Civil).

Posto isto—e continuando com a apreciação da questão suscitada pelo apelante--, temos que, como vimos, com o Dec.-Lei nº 240/97, de 18.09, estabeleceu-se a necessidade de manifestação expressa da vontade do assinante sobre o acesso ou não aos serviços de telecomunicações de valor acrescentado, de modo selectivo (cit. artº 16º-3-d)).
No entanto, como igualmente vimos, no artº 3º desse diploma legal declarou-se que aos contratos de prestação de serviço fixo de telefone que tivessem sido celebrados antes da entrada em vigor desse novo Regulamento se aplicava o regime nele previsto.
Como tal, parece inquestionável que o contrato de prestação de serviços sub judice passou a ficar sujeito à obrigatoriedade de manifestação expressa da vontade do apelante sobre se queria ou não aceder a esses serviços de telecomunicações de valor acrescentado ou de audio-texto, de modo selectivo.
Para tal efeito, impunha-se que a Autora/apelada informasse o réu/apelante das condições em que contratava, no que aos ditos serviços respeitava, designadamente, informando-o dos custos respectivos (cfr. Lei nº 23/96, de 26.07, ut arts. 3º e 4º-1).
Ou seja, era obrigação da apelada comunicar expressamente ao apelante de que aquele deveria dizer, de forma clara e sem tibiezas, se queria ou não aceder aos ditos serviços de valor acrescentado ou audio-texto.
Não vem alegado, sequer—muito menos, obviamente, provado--, que tal comunicação tivesse sido feita, o que não pode deixar de ter outra consequência que não seja a de que o contrato celebrado entre autora e réu não inclui os serviços de valor acrescentado ou de audio-texto.
E não os incluindo, é patente que não pode a autora/apelada exigir os respectivos custos.
Ver, neste sentido, v.g., os Acs. da Rel. de Lisboa de 27.09.2001, Col. Jur. Ano XXVI, T. 4, pág. 98 e Acs. STJ de 09.04.2002 e de 06.07.2002, in Col. Jur., Acs. STJ, Ano X, T. II, págs. 11 segs. e www.dgsi.pt.
Esta solução é, aliás, imposta pelos normativos legais atinentes à defesa do consumidor, designadamente a Lei nº 24/96, de 31.07, que define no artº 2º a noção de consumidor—de onde se vê que, obviamente, abarca a situação do apelante—e nos artsº 7º a 9º dispõe sobre os direitos do consumidor à protecção dos seus interesse económicos e à informação em geral e em particular—o que está, aliás, em conformidade com o que a própria Const. Rep. Port. dispõe no artº 60º--, prescrevendo-se, mesmo, no artº 9º, nº4, que o consumidor não fica obrigado ao pagamento de bens ou serviços que não tenha prévia e expressamente encomendado ou solicitado.
Efectivamente—o que é louvável--, tem-se verificado uma acrescida preocupação em regulamentar de forma cada vez mais apertada a prestação de serviços pela Rede Fixa Telefónica, visando a protecção do consumidor, tendo tal atitude sido o resultado da experiência de que a liberdade contratual estava a permitir a utilização da rede para autênticas burlas ao consumidor médio menos prevenido e informado.
Repare-se que o réu é “reformado” e de “parcos recursos económicos”, passando “a maior parte do seu tempo a convive com amigos num café próximo da sua residência, a jogar cartas para se distrair”, o que diz bem do seu nível intelectual, não nos parecendo que, sem um esclarecimento cuidado e paciente, alguma vez soubesse o que significavam os ditos serviços de audio-texto e o alcance das suas consequências.

Até por uma questão de boa fé contratual se impunha o aludido cuidado esclarecimento da ré, a qual não devia deixar passivamente que os ditos serviços fossem efectuados para de seguida vir exigir-- de quem tem “parcos recursos económicos” e que teve contas de telefone mensais que raramente ultrapassaram os 5.000$00—o pagamento de quantias exorbitantes e que de todo extravasam das possibilidades económicas do assinante do telefone!
Não se deve esquecer, com efeito, que a boa fé está presente tanto na preparação como na formação do contrato (artº 227º do C. Civil), como, também, no cumprimento das obrigações e no exercício do direito correspondente (artº 762º, do mesmo Código).
É um princípio que constitui uma trave mestra, certa e segura da nossa ordem jurídica, vivificando-a por forma a dar solução a toda a gama de problemas de cooperação social que ela visa resolver no campo obrigacional--princípio, é certo, que deve ser observado com as restrições apontadas por Salvatore Romano, em “Enciclopédia del Diritto”, Milão, 1959, - “Buona Fede”, págs. 667 e segs. Ver, ainda, a Boa Fé nos Contratos, de Armando Torres Paulo, pág. 124 e “A Boa Fé no Direito Comercial”, in “temas de Direito Comercial”, conferência no Conselho Distrital do Porto da ordem dos Advogados, págs. 177 e segs. e Baptista Machado, in Obras Dispersas, vol. I.

Portanto, estando apenas provado que o réu celebrou um contrato com o operador da rede de serviço público e não resultando provado que esse réu/utente alguma vez tenha declarado expressamente que o operador lhe facilitasse o acesso aos SVA ou de audio-texto, sendo que essa prova incumbia à autora, é evidente que não pode esta peticionar do réu o pagamento das quantias ou custos resultantes da utilização dos referidos S.V.A..

Não ficou, sequer, alegado, por outro lado, que o réu tivesse sabido em qualquer altura que o telefone de que dispunha lhe permitia aceder aos SVA e respectivas condições.
E não há nos autos elementos que permitam afirmar tal conhecimento do réu/utente.
Tal significa que qualquer contrato em tais condições sempre seria nulo por falta de consciência do declarante de que ao fazer a ligação estava a celebrar um contrato com pessoa diferente e de natureza diferente daquele que tinha celebrado para obter o acesso ao serviço fixo de telefone.
Daqui que não possa ser o réu responsabilizado pelos custos das chamadas emergentes de tais SVA ou de audio-texto.
Assim sendo, é evidente que o contrato celebrado entre autora e réu tão somente se destina à obtenção da prestação do Serviço Fixo Telefónico público.

Procede, como tal, o recurso, pois a sentença manter-se-à tão só na parte respeitante à condenação do apelante a pagar à apelada as quantias que não digam respeito às chamadas de “serviços de audiotextos”, descriminadas nas facturas de fls. 8 e 10 (respectivamente, “1.020.197$2” e “458.592$4”, e respectivo IVA), e respectivos juros de mora à taxa legal.

III. DECISÃO:

Termos em que acordam os Juízes do tribunal Cível da Relação do Porto em julgar procedente a apelação e revogar parcialmente a sentença recorrida.
Em consequência, condena-se o réu a pagar à autora as quantias peticionadas e juros de mora às taxas legais apontadas na decisão recorrida, à excepção das respeitantes a chamadas de “serviços de audiotextos” (as descriminadas nas facturas de fls. 8 e 10--respectivamente, “1.020.197$2” e “458.592$4”, e respectivo IVA), das quais vai o réu absolvido.

Custas do recurso pela recorrida (já que nele saiu vencida) e da acção por ambas as partes na proporção do respectivo decaimento (artº 446º, nºs 1 e 2, do CPC).

Porto, 20 de Maio de 2004
Fernando Baptista Oliveira
Manuel Dias Ramos Pereira Ramalho
António Domingos Ribeiro Coelho da Rocha