ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA
I – RELATÓRIO
I LLC, devidamente identificada no presente apenso de habilitação, veio deduzir incidente de habilitação de cessionário contra M e J, executados nos autos de execução ordinária para pagamento que quantia certa, em que é exequente o Banco, S.A., alegando, para tanto, que por contrato de cessão de créditos, datado de 30 de Setembro de 2005, o Banco, S.A. cedeu à requerente o crédito que detinha sobre os requeridos, bem como todas as garantias e acessórios a ele inerentes, sendo a requerente a actual titular do crédito, cujo pagamento é exigido na execução.
Devidamente notificados para contestar, os executados deduziram contestação à habilitação, pugnando pela sua improcedência, referindo que ao ler-se o contrato de cessão de créditos junto pela requerente, o mesmo reporta-se apenas aos direitos e obrigações a que o cedente e o cessionário se vinculam com a outorga daquele contrato e em momento algum menciona as condições e o preço pelo qual a cessão do crédito dos ora contestantes foi efectuada. Além disso, não se consegue percepcionar, porque em branco, se o crédito que o B detinha sobre os contestantes faz ou não parte do anexo 3 que identifica a carteira. Os contestantes não aceitam a cessão efectuada porque os termos e condições da mesma não lhe foram notificados, tendo-lhe sido apenas comunicado que a cessão do crédito pertencente ao B havia sido cedida à Investments, sem acompanhamento do contrato de cessão desse crédito.
Mais referem que o negócio que origina o crédito cedido é um escrito particular que o B denominou de contrato de reestruturação e consolidação de créditos, o qual tinha como garantia uma livrança em branco e um contrato de penhor do direito de trespasse e arrendamento do estabelecimento onde labora a C, Lda. Através desse contrato o B concedeu um empréstimo a M no montante de 16.469.156$00. Tal situação configura um contrato de mútuo efectuado, o qual deveria ter sido celebrado por escritura pública nos termos do disposto no artigo 1143° do Código Civil. Logo, o contrato celebrado entre o B e a ora contestante M é nulo, porque celebrado por escrito particular e consequentemente também são nulas as garantias prestadas, como sendo a possibilidade do Exequente preencher e executar a livrança em branco, como o fez, e accionar o penhor do direito ao trespasse e arrendamento do estabelecimento onde labora a C, Lda.
Notificada a requerente da contestação, veio a mesma apresentar resposta pugnando pela falta de fundamento legal da contestação junta aos autos.
Foi, então proferida decisão que, nos termos do disposto nos art.°s 271°, n°2, 376°, n° 1, alínea a) todos do Cód. Proc. Civil, decidiu pela procedência do incidente de habilitação e assim considerou a Requerente l LLC, ocupando o lugar da Exequente no processo principal de execução.
Inconformados os Requeridos vieram agravar do despacho proferido, tendo no essencial formulado as seguintes conclusões:
1. Não se averiguou da validade do negócio subjacente à cessão de créditos, apesar de tal questão ter sido suscitada na contestaçãoao incidente de habilitação.
2. O negócio subjacente à cessão de créditos é um contrato de mútuo de valor superior a 20,000.00€, logo nos termos do art. 1143º Ccivil deveria ser celebrado por escritura pública, pelo que a cessão é inválida, nos termos do art. 376º do CPC e a habilitação não poderá ter lugar.
3. Os agravantes não aceitaram a cessão de créditos porque apenas lhe foi notificada a sua existência e não o seu conteúdo.
4. Um dos elementos essenciais da cessão de créditos é o preço e o mesmo não consta do contrato de cessão de créditos.
5. A cessão que o B fez não é suficiente para tornar a habilitante parte legítima na execução a que pretende habilitar-se, pois que a transmissão do título executivo por cessão ordinária tem que ser alegada no requerimento executivo nos termos do art. 56º, nº 1 do CPC.
6. O detentor de uma livrança só é considerado portador legítimo da mesma se o seu direito for justificado através de uma série ininterrupta de endossos, o que não ocorre nos autos.
7. Mesmo que se venha a considerar habilitada a Requerente, deverá a mesma ser considerada parte ilegítima por não ficurar no título executivo como credora.
8. Não tendo sido conhecido e apreciado o negócio subjacente, a sentença é nula – art. 668º, nº 1, d) do CPC.
Não foram produzidas contra-alegações.
Corridos os Vistos legais,
Cumpre apreciar e decidir.
São as conclusões das alegações que delimitam o objecto do recurso e o âmbito do conhecimento deste Tribunal (arts. 684º, nº 3 e 690º, nº 1 do CPC), pelo que fundamentalmente importa apreciar e decidir se os autos fornecem todos os elementos em ordem a proceder à habilitação do cessionário.
Saliente-se, contudo, que este Tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos produzidos nas conclusões do recurso, nos termos do art. 660º, n.º 2 e 713º, n.º 2 do CPC, pelo que não tem que se pronunciar sobre as questões cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras.
II – FACTOS PROVADOS
1 - Nos autos principais de acção executiva para pagamento de quantia certa, com processo ordinário, em que é exequente o Banco, S.A. e executados, M e outros, aqui requeridos, o título executivo é constituído por uma livrança subscrita pela 1ª Executada e avalizada pelo 2° executado, emitida em 20/08/2001, com vencimento em 17/06/2003, no montante de € 89.893,51 (Doc. fls. 8 dos autos de execução).
2 - A referida livrança foi entregue ao Exequente como garantia de um financiamento sob a forma de um contrato de reestruturação e consolidação de créditos, no montante de 16.469.156$00 (€ 82.147,80, atribuído pelo exequente à Ia executada (Doc. fls. 9 a 13 dos autos de execução).
3 - O cumprimento do referido contrato, foi ainda garantido, nos termos do n°. 2 da cláusula 7ª, pela constituição pela 3a executada, a favor do exequente, de penhor sobre o direito de trespasse e arrendamento do estabelecimento comercial de que a 3' Executada é arrendatária (Doc. fls. 14 a 19 dos autos de execução).
4 - Citada a executada sociedade em 24/10/2003 (Doc. fls. 26 dos autos de execução) para os termos da execução, a mesma não pagou nem deduziu embargos de executada.
5 - Citados os executados M e J em 29/10/2003 (doc. fls. 27 e 28) para os termos da execução, os mesmos não pagaram, nem deduziram embargos de executado.
6 - Por documento particular denominado de cessão de créditos, celebrado no dia 30 de Setembro de 2005, entre o B, exequente nos autos principais, e a requerente foram cedidos, entre outros, por aquela a esta os créditos emergentes dos títulos juntos aos autos de execução (Doc. fls. 91 a 170).
7 - Por carta datada de 18/10/2005, remetida pelo exequente B, S.A. aos executados e por estes recebida, aquele comunicou que havia cedido à requerente os créditos que detinha sobre os executados (Doc. fls. 199).
III – O DIREITO
Nos termos do artigo 577º n.º 1 do CC o credor pode ceder a terceiro uma parte ou a totalidade do crédito, independentemente do consentimento do devedor. Dispõe, ainda, o artigo 582º do CC no seu n.º 1 que “na falta de convenção em contrário, a cessão do crédito importa a transmissão, para o cessionário, das garantias e outros acessórios do direito transmitido que não sejam inseparáveis da pessoa do cedente”.
“A cessão produz efeitos em relação ao devedor desde que lhe seja notificada, ainda que extrajudicialmente, ou desde que ele a aceite”, artigo 583 n.º 1 do CC.
Ocorre a cessão de um crédito quando o credor, mediante negócio jurídico, transmite a terceiro o seu direito. Verifica-se então, a substituição de credor originário por outra pessoa – modificação subjectiva da obrigação –, mantendo-se inalterados os restantes elementos da relação obrigacional.[1].
Por outro lado, e na medida em que a cessão representa uma simples transferência da relação obrigacional pelo lado activo, o devedor cedido pode valer-se, em face do cessionário (novo credor), dos meios direitos de defesa que lhe era lícito opor ao cedente (antigo credor), excepto os que provenham de facto posterior ao conhecimento da cessão (cfr. art. 585º, do C. Civil).
1. Do incidente da habilitação do adquirente
O incidente de habilitação apresenta-se como um dos meios de modificar a instância quanto às pessoas[2].
Só é permitida a habilitação do adquirente nos termos do artigo 376º do CPC, ou seja, a habilitação do adquirente nos termos do artigo 376º só é admissível quando se verifiquem os pressupostos de aplicação do artigo 271º, que são: primeiro, a pendência da acção; segundo, a existência de uma coisa ou de um direito litigioso; terceiro, a transmissão da coisa ou direito litigioso na pendência da acção por acto entre vivos; e quarto, o conhecimento da transmissão durante a acção[3].
Verificados os enunciados pressupostos poderá ser promovida a habilitação do adquirente. Se a mesma foi promovida pelo adquirente ou pelo transmitente, o incidente processa-se nos termos do n.º 1 do artigo 376º: o habilitante, que só pode oferecer o título de aquisição, limita-se a pedir que se julgue habilitado o adquirente (cessionário) como substituto do transmitente (cedente). A parte contrária pode contestar com base em dois fundamentos: a apreciação da validade (formal ou substancial) do acto ou a alegação de que a transmissão se fez para tornar mais difícil a posição processual do contestante na causa principal[4]. O segundo fundamento que o contestante pode invocar entronca na 2ª parte do n.º 2 do artigo 271º "deve recusar-se a substituição quando se entenda que a transmissão foi efectuada para tornar mais difícil, no processo, a posição da parte contrária".
Os fundamentos que os Recorrentes apresentam nas presentes conclusões de recurso são, grosso modo, os que já constavam da contestação ao incidente de habilitação, devidamente apreciadas na sentença recorrida.
2. Da cessão de créditos
2.1. Dizem os Agravantes que um dos elementos essenciais da cessão de créditos é o preço e o mesmo não consta do contrato de cessão de créditos e que não aceitaram a cessão de créditos porque apenas lhe foi notificada a sua existência e não o seu conteúdo.
No que tange à validade formal ou material do acto de cessão ou de transmissão, designadamente no que se respeita ao preço da cessão, a sentença recorrida dá resposta cabal.
Com efeito, refere a sentença que ”da cópia certificada do documento particular de cessão de créditos celebrado em 30/09/2005, junta pela requerente aos autos de fls. 91 a 170, resulta cabalmente as condições e os termos em que a referida cessão foi realizada, a qual consubstancia uma cessão global de créditos, e não apenas do crédito dos aqui executados, o qual vem expressamente indicado no Anexo 3 e a fls. 133 e 170 dos presentes autos.
Por outro lado, resulta igualmente do mencionado documento que, o preço estabelecido pela mencionada cessão entre o exequente e a requerente não se refere unicamente ao preço pelo qual foi cedido o crédito em causa nestes autos, mas antes refere-se o preço global da cessão de todos os créditos constantes do Anexo 3 ao mencionado contrato, entre os quais se encontra o crédito dos aqui executados.
Da leitura do mencionado contrato de cessão de créditos, nomeadamente de fls. 98 dos presentes autos, resulta que o referido preço da compra, ou seja, o preço global a pagar pela cessionária ao cedente pela cessão de créditos encontra-se rasurado, explicando a requerente no requerimento de resposta à contestação que tal se deve a razões de sigilo.”
Como se afirma no Acórdão desta Relação de 24.4.96[5] estamos perante a figura da cessão de crédito “quando, mediante negócio jurídico, o credor (cedente) transfere para terceiro (cessionário), independentemente do consentimento do devedor, uma parte ou a totalidade do seu direito, substituindo-se, assim, o credor originário por outra pessoa e mantendo-se inalterados os demais elementos da relação obrigacional.
Mais se afirmando no citado aresto que o “documento que titula a cessão não tem de mencionar o montante exacto da dívida no momento em que o negócio entre o cedente e o cessionário é concluído, apenas sendo de identificar o crédito em termos de os interessados saberem qual o objecto da cessão, pelo que a cessão é válida, podendo dar lugar a habilitação do cessionário em processo executivo, mesmo sem indicação exacta daquele montante, que pode ser objecto de discussão como o podia ser entre o cedente e o devedor”.
Ademais, e como também consta da decisão recorrida, “nos termos do disposto no artigo 583° n°. 1 do Código Civil, a cessão produz efeitos em relação ao devedor desde que lhe seja notificada, ainda que extrajudicialmente, ou desde que ele a aceite, ou seja, a referida cessão de créditos produz efeitos em relação à pessoa do devedor com a mera notificação ao mesmo da existência dessa cessão, sendo o devedor totalmente alheio, porque terceiro, relativamente ao preço convencionado entre o cedente e a cessionária, nem se vislumbra qual o interesse que os ora requeridos podem ter ao fazerem questão de conhecer o preço pelo qual foi efectuada a cessão, uma vez que, o preço da cessão em causa nos autos configura um preço global que integra o preço pela cessão do crédito sobre os aqui requeridos e sobre muitos outros devedores que constam do anexo III do mencionado contrato”.
2.2. Mais invocam os Recorrentes que não aceitam a cessão efectuada porque os termos e as condições da mesma não lhe foram notificados, tendo-lhe sido apenas comunicado que a cessão do créditos pertencente ao B havia sido cedido à requerente, sem acompanhamento do contrato de cessão desse crédito.
Porém, a verdade é que nos termos do já citado art. 583° n°. 1 do Código Civil, a cessão de créditos produz efeitos em relação ao devedor, isto é, em relação aos Recorrentes, desde que lhe seja notificada, não dependendo por isso da sua aceitação.
Sendo certo que o exequente comunicou aos executados, aqui Requeridos, por carta datada de 18/10/2005, que havia cedido à requerente os créditos que detinha sobre os mesmos, claramente se conclui, como concluiu a sentença recorrida, que “tal comunicação é suficiente para que a mencionada cessão produza os seus efeitos, em relação aos executados ora Recorrentes, uma vez que do disposto no artigo 583° n°. 1 do Código Civil não se retira que haja obrigatoriedade por parte do cedente e cessionário na remessa ao devedor de cópia do contrato de cessão, neste sentido leia-se o Acórdão do STJ, datado de 1/06/2000, Rev. N°. 407/00, Sumários 42°, no qual apenas se exige o conhecimento da cessão por parte do devedor”.
Seja como for, são de excluir do círculo dos meios de defesa oponíveis pelo devedor, as circunstâncias que digam respeito à causa da cessão, pois que estas interessam apenas às relações entre cedente e cessionário. Nesta medida serão irrelevantes para o devedor os vícios do contrato de cessão. Tolera-se apenas que o devedor, sob pena de poder vir a satisfazer o crédito a dobrar, se inteire da real existência da cessão[6].
3. Da validade do negócio subjacente
Alegam ainda os Recorrentes que o contrato, que esteve na base do negócio jurídico subjacente à emissão da livrança que é título executivo nos autos de execução, é nulo, por falta de forma, uma vez que nos termos do disposto no artigo 1143° n°. 1 do C.C. estava sujeito a escritura pública, sendo também nulo o contrato de cessão por via do disposto no artigo 578° n°. 1 do Código Civil.
Com efeito, nos termos do disposto no artigo 578° n°. 1 do Código Civil, os requisitos e efeitos da cessão entre as partes definem-se em função do tipo de negócio que lhe serve de base.
Importa, também, ter presente que a lei, no art. 585º do CCivil permite ao devedor, terceiro em relação ao contrato de cessão, opor ao cessionário os meios de defesa que podia invocar contra o cedente.
Cabe, por isso, referir que ao cessionário já tinha sido dada oportunidade de arguir na contestação aos embargos de executado esse mesmo vício. Não fora o caso de a nulidade ser de conhecimento oficioso poder-se-ia dizer, tal como a sentença recorrida[7], que os Recorrentes estavam impedidos, agora, de deduzir esta defesa, que deveriam ter deduzido oportunamente na oposição/embargos à execução, uma vez que a habilitação do adquirente não "ressuscita" o prazo peremptório para deduzir oposição/contestação, no processo de que o incidente é apenso[8].
3.1. O apelante vem invocar a nulidade por falta de escritura pública. Porém, sem razão.
Com efeito, tal como resulta da factualidade provada, a relação jurídica estabelecida entre o Banco eos aqui Recorrentes, teve por base diversos financiamentos, como se constata do documento que os próprios juntaram com a oposição ao incidente.
No fluxo de situações jurídicas que se estabeleceram entre o banqueiro e o cliente, vieram a celebrar acordo de reestruturação e consolidação desses financiamentos, por escrito particular subscrito quer pela entidade bancária quer pelos aqui Recorrentes, tendo na base diversos financiamentos. Não oferece, pois, dúvidas que foram efectuados diversos mútuos. Tratando-se de operação de crédito bancário está sujeita ao regime legal dos artigos 362º e 263º Código Comercial, ao Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras aprovado pelo D.L. nº 298/92, de 31.12, alterado pelo D.L. nº 201/2002, de 26.09 e ao D.L. nº 32 765, de 29.04.1943, sendo-lhe aplicáveis subsidiariamente as disposições do contrato de mútuo previstas nos artigos 1142º e seguintes do Código Civil.
Porém, o artigo único do D.L. nº 32 765, de 29.04.1943 determina que os contratos de mútuo, seja qual for o seu valor, quando feitos por estabelecimentos bancários autorizados, possam provar-se por escrito particular, ainda mesmo que a outra parte não seja comerciante.
Como se vê, no caso dos autos, os contratos de mútuo que respeitam à relação subjacente ficaram provados documentalmente nos autos pela junção pelos prórpios Recorrentes do doc. de fls. 182 e segs. dos autos., pelo que faz prova plena quanto ás declarações nele atribuídas à parte, nos termos dos artºs 362º, 363º, nº 2, parte final, 373º, nº 1, 374º,nº 1 e 375º, nº 1, todos do Código Civil.
Temos assim que o aludido contrato é formalmente válido, não sendo exigível escritura pública porque não é aplicável a este mútuo bancário o disposto no art. 1143º Código Civil.
Não se verifica, assim, a nulidade por vício de forma apontada pelo apelante, pelo que não há lugar á aplicação do disposto nos artigos 220º, 286º e 289º, todos do Código Civil[9].
4. Afirmam, ainda, os Recorrentes, que a livrança não foi endossada, pelo exequente à cessionária, pelo que esta não teria legitimidade para ser habilitado no lugar do primitivo exequente.
Vejamos.
Decorre do disposto no art. 55º do CPC que a execução tem de ser promovida pela pessoa que no título executivo figure como credor e deve ser instaurada contra a pessoa que no título tenha a posição de devedor. Se o título for ao portador, será a execução promovida pelo portador do título.
No caso dos autos, o cessionário não figura no título como credor, pois nessa posição figura o exequente. Será o cessionário parte ilegítima?
Como é sabido às livranças são aplicáveis as disposições relativas às letras, nomeadamente o artigo 11° da LULL, por força do seu artigo 77°.
As formas de transmissão destas vêm assim reguladas no artigo 11° a 20° da Lei Uniforme sobre Letras e Livranças.
De acordo com o citado artigo 11º, toda a letra de câmbio, mesmo que não envolva expressamente a cláusula à ordem, é transmissível por via de endosso.
O endosso é uma declaração aposta no verso da livrança, pela qual o seu portador a transfere para outrem. É este o modo normal de transmissão de letras e livranças e, consequentemente, do crédito nelas representado.
Mas o endosso é apenas um dos meios de transmissão das letras e livranças. “Com efeito, as letras ou livranças podem ser transmitidas, para além do endosso, por exemplo, por acto entre vivos, com os efeitos de uma normal cessão de créditos, ou por sucessão mortis causa (neste caso transmitem-se aos herdeiros quer os títulos quer o crédito que eles encerram). Portanto, a livrança pode circular sob a forma e com os efeitos de uma cessão ordinária de créditos”[10], ficando, neste caso a sua eficácia sujeita às regras normais destes contratos.
Refere Ferrer Correia, a respeito da diferença entre a figura do endosso, enquanto figura jurídica emergente da relação cambiária e previsto no art. 11º da LULL, e a cessão de créditos que, “enquanto a cessão é um negócio contratual celebrado entre o cedente e o cessionário, o endosso é uma declaração unilateral de vontade. Feita a declaração de endosso e entregue o título, a transferência dos direitos a ele inerentes é eficaz desde logo, mesmo para com terceiros; ao passo que a plena eficácia da cessão está dependente da notificação ao devedor (Código Civil, art. 789°). Quanto à responsabilidade, o cedente ordinário responde pela existência e legitimidade do crédito (Cód. Civl, art. 794°), mas não pela solvência do devedor, salvo se assim for estipulado; o endossante, pelo contrário, garante a aceitação e o pagamento da letra, se nesta não houver uma cláusula que liberte de tal responsabilidade. O endosso, finalmente, "transmite os direitos emergentes da letra (art. 14°,I), isto é, transmite os direitos que resultem do título, que resultam "ex litteris", e por isso o endossado é um redor originário, o seu direito é autónomo. Ora, a cessão transfere um direito a que se prendem todas as excepções pessoais, todas as excepções relativas à pessoa do cedente: a posição do cessionário é a de um representante deste, ele tem exactamente "o direito" que este teve"[11].
De acordo com o artigo 16º da LULL o detentor de uma letra é considerado portador legítimo se justifica o seu direito por uma série ininterrupta de endossos, mesmo que o último seja em branco. Portanto, além do tomador da letra (seu originário portador) é também considerado seu portador legítimo qualquer detentor que justifique o seu direito através de uma série ininterrupta de endossos.
4.1. Consta do contrato de cessão de créditos junto aos autos que o Exequente e o cessionário, ora Agravado, acordaram expressamente em ceder, além de outros, o crédito que o B detinha sobre os Requeridos, bem como todas as garantias e acessórios a ele inerentes.
E, assim, a livrança entrou na posse do cessionário, através de uma cessão ordinária de créditos.
Dizem os Recorrentes que o detentor de uma livrança só é considerado portador legítimo da mesma se o seu direito for justificado através de uma série ininterrupta de endossos.
Porém, importa ter presente que de acordo com o art. 424º do CC "no contrato com prestações recíprocas, qualquer das partes tem a faculdade de transmitir a terceiro a sua posição contratual, desde que o outro contraente, antes ou depois da celebração do contrato, consinta na transmissão"
Além disso, do nº 1 do art. 56º do CPC resulta que tendo havido sucessão no direito ou na obrigação, deve a execução correr entre os sucessores das pessoas que no título figuram como credor ou devedor da obrigação exequenda, para o que no próprio requerimento executivo deduzirá o exequente os factos constitutivos da sucessão. Tendo havido sucessão na titularidade da obrigação exequenda, já na pendência da execução, não sendo possível fazê-lo no requerimento executivo, foi através do incidente de habilitação que foram deduzidos os factos demonstrativos dessa mesma sucessão.
Se o art. 56º do CPC confere legitimidade como exequente e como executado aos sucessores do credor e aos sucessores do devedor, respectivamente, que no mesmo título figurem nessa qualidade, tanto basta para que, sendo essa cessão posterior à entrada em juízo do requerimento executivo, essa sucessão se processe por via incidental, ficando a legitimidade assegurada.
Deste modo temos de considerar que o aqui Agravado é parte legítima, não obstante não figurar na livrança como credor.
IV – DECISÃO
Termos em que nega-se provimento ao Agravo, mantendo-se a decisão recorrida.
Custas pelos Agravantes.
Lisboa, 24 de Abril de 2008.
(Fátima Galante)
(Ferreira Lopes)
(Manuel Gonçalves)
_______________________________________________________
[1] Cfr. Mário Júlio de Almeida Costa, Noções Fundamentais de Direito Civil, 4ª Edição, págs. 179 e segs.
[2] Lopes Cardoso, Manual dos Incidentes da Instância em Processo Civil, 1999, pág. 296.
[3] Cfr. Paula Costa e Silva, A Transmissão da Coisa ou Direito em Litígio, páginas 60 e seguintes.
[4] Rodrigues Bastos, Notas..., vol. II, páginas 219/220.
[5] Ac. RL de 24.4.96, Silva Pereira), www.dgsi.pt/jtrl.
[6] Pires de Lima/Antunes Varela, Código Civil Anotado, anotação ao art. 585º.
[7] Não assiste razão aos Recorrentes quando invocam a nulidade da sentença (art. 668º, nº 1, d) do CPC). Com efeito a sentença recorrida pronuncia-se sobre a matéra, no sentido de considerar precludido o direito dos Requeridos, ora Agravantes.
[8] Ac. STJ de 18.5.2006, (Pereira da Silva), www.dgsi.pt/jstj.
[9] Neste sentido entre outros o Ac. RP de 29 de Novembro de 2006 (Manuel Lopes Madeira Pinto), www.dgsi.pt/jtrp.
[10] Ac. RL de 12.12.2006 (Pimentel Marcos), www.dgsi.pt/jtrl
[11] Lições de Direito Comercial, Vol. 111, Letra de Câmbio, Coimbra, 1966, pág. 172e ss.: